Open-access Uma galeria para travestis, gays e seus maridos: Forças discursivas na geração de um acontecimento prisional

A ward for travestis, gays, and their husbands: Discursive forces in a prison event

Un pabellón para travestis, gays y sus maridos: fuerzas discursivas en la generación de un acontecimiento carcelario

Resumo

O Presídio Central de Porto Alegre criou em 2012 uma galeria destinada a abrigar a população encarcerada de travestis, gays e seus maridos. Considerando que a instituição prisional é historicamente marcada por forte viés heteronormativo e disciplinador, o objetivo deste artigo é analisar algumas das forças discursivas que se articularam de modo original e produtivo para a emergência da galeria. São explorados, preponderantemente, dois elementos: o acoplamento travesti-vítima e a dinâmica de gestão do risco. O primeiro diz respeito ao processo discursivo de produção da identidade travesti vinculada invariavelmente à posição de vítima e como tal relação influencia no processo de (re)humanização desse sujeito quando na vida encarcerada. O segundo descreve como o funcionamento prisional e os princípios disciplinares que regem o cárcere produziram estratégias institucionais para a instalação da galeria.

Palavras-chave: travesti; população carcerária; vitimização; gestão de risco; Brasil

Abstract

In 2012, the Porto Alegre Central Prison created a ward designed to house the inmate population of travestis, gays, and their husbands. Considering that the prison is an institution historically marked by a strong disciplinarian, and heteronormative bias, the purpose of this article is to analyze certain discursive forces that were articulated in an original and productive way for the emergence of the ward. We describe two prominent elements: the conflation of meaning between transvestite and victim, and the dynamics of risk management. The first concerns the discursive process of transvestite identity production, as invariably linked to a victim position, and that relation influences this subject's process of (re)humanization, as an incarcerated life. The second describes how the prison operation and its disciplinary principles produced institutional strategies for the installation of the ward.

Keywords: travesti; prison; victimization; risk management; Brazil

Resumen

El Presidio Central de Porto Alegre creó, en 2012, un pabellón destinado a albergar la población carcelaria de travestis, gays y sus maridos. Considerando que la institución carcelaria está históricamente marcada por un fuerte bies heteronormativo y disciplinador, el objetivo de este artículo es analizar algunas de las fuerzas discursivas que se articularon de modo original y productivo para la emergencia de este pabellón. Se exploran, principalmente, dos elementos: el acoplamiento travesti-víctima y la dinámica de gestión del riesgo. El primero refiere al proceso discursivo de producción de la identidad travesti, vinculada invariablemente a la posición de víctima, y cómo tal relación influencia el proceso de (re)humanización de ese sujeto en ocasión de su vida carcelaria. El segundo describe cómo el funcionamiento penitenciario y los principios disciplinarios que rigen la cárcel han producido estrategias institucionales para la instauración del pabellón.

Palabras clave: travesti; población carcelaria; victimización; gestión de riesgo; Brasil

A galeria como acontecimento institucional

Este estudo tem como foco um acontecimento institucional. O que mobiliza a investigação é o funcionamento prisional, em especial seus atravessamentos com dinâmicas de gênero e sexualidade. No ano de 2012 foi inaugurado um espaço, que ficou conhecido popularmente como "a galeria para travestis, gays e seus maridos do Presídio Central de Porto Alegre (PCPA)". O surgimento desta galeria ocorreu como resultado da convergência de uma série de componentes, através de uma cooperação singular e situada em momento histórico preciso, que propiciaram as condições para que esse lugar institucional se tornasse possível. Este artigo tem como objetivo agrupar, descrever e relacionar o que identificamos como duas grandes forças discursivas que contribuíram de forma fundamental para a emergência dessa galeria no PCPA.1

A abordagem está dividida em duas partes. Na primeira, utilizando reportagens jornalísticas, relatos de experiência publicados em anais de congressos, entrevistas e narrativas (cf. Andrade, 2012) proferidas pelos apenados2 no PCPA, desenvolvemos argumentação que se relaciona com os processos histórico-culturais que produzem a categoria "humanidade" como variável social localizada e datada, e discutimos como essa variável produz os sujeitos travestis. Na segunda parte, através da análise de observações etnográficas e das narrativas dos moradores e das moradoras da galeria, bem como dos militares responsáveis pela administração do presídio, avançamos um conceito de gestão do risco. Em linhas gerais, esse conceito vincula a constante marcação identitária exigida discursiva e institucionalmente pelo funcionamento do PCPA com a logística de alocação dos apenados no espaço prisional.3

Todo o trabalho de pesquisa e atuação no PCPA foi desenvolvido em parceria com a organização não governamental (ONG) Igualdade RS - Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul,4 entidade que trabalha promovendo os direitos humanos de travestis e transexuais no estado. Um dos projetos realizados pela organização consiste na formação de equipe que disponibiliza assessores técnicos nas áreas de Direito, Psicologia, Serviço Social e Educação. O projeto que deu subsídios financeiros e institucionais para a realização das ações no PCPA foi uma parceria entre a ONG, a Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe) e a Secretaria de Estado de Justiça e de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (SJDH). O projeto desenvolvido pela Igualdade RS e aprovado pela Susepe e pela SJDH possibilitou acesso às dependências do presídio e permitiu que fossem realizadas as entrevistas e a etnografia (Meyer & Paraíso, 2012).

Este artigo apresenta um texto de caráter descritivo e que, portanto, sublinha os detalhes e a raridade dos acontecimentos (Fischer, 2003): em meio a muitas possibilidades, uma nova forma social foi produzida. Cabe aos pesquisadores, neste caso, descrever as condições de emergência dessa nova forma de convívio social. Operamos com a ideia de que é necessário ter um quadro rico em detalhes da instituição para compreender a condição de possibilidade de criação da ala, além do fato de as oportunidades de trânsito e conhecimento do interior das instituições carcerárias serem escassas. Nossa inserção no projeto da Igualdade RS, com amplo acesso às dependências do PCPA e interlocução com os moradores da ala, foi etnografada com cuidado, porque se apresentou como uma abertura a um universo apenas conhecido de modo muito parcial.

Na condição de um acontecimento singular e situado historicamente, a criação da galeria das travestis, gays e maridos relaciona-se de maneira íntima com certas forças discursivas existentes antes de sua irrupção, ao mesmo tempo em que desencadeia inúmeros efeitos. Um complexo de relações históricas une a galeria a elementos que existiam antes dela e que, de certa forma, demandaram sua existência desta e não de outra maneira. A galeria representa uma atualização nas práticas prisionais no curso histórico aparente da instituição, mas permite saber de outras histórias ocorridas em seu interior. O que procuramos explorar aqui é o horizonte histórico imediatamente anterior à criação da galeria e alguns dos elementos que, ao se entrelaçarem de modo singular, produziram as condições para a emergência desse espaço. Dessa forma, entendemos que as noções de acoplamento travesti-vítima e gestão do risco são centrais para a análise de tais condições.

O sujeito travesti: o acoplamento travesti-vítima

O que se espera ao perguntar sobre a história de vida de pessoas que se identificam ou são identificados com marcas de sexualidades ou identidades de gênero não normativas? O exame do que consta nos veículos midiáticos, nas produções acadêmicas e nas falas do cotidiano nos mostrou como são concebidas as trajetórias de vida de travestis e transexuais. Para além dos distintos caminhos, independentemente de serem pessoas de classe alta, média ou baixa, de diferentes etnias, raças, religiões, por mais dissonantes que tais narrativas pareçam ser, há um elemento que as unifica mesmo em sua diferença. É absolutamente frequente que, ao remeter à sua própria história, uma travesti ou transexual reconheça uma constante proximidade com um ente indesejável: a violência, como um conjunto de práticas que assolam constantemente suas vidas, introduzindo o medo ao circular e se expor. Se, por um lado, as diferenças nas modalidades de violência distanciam cada história de vida, a sua existência, quase inequívoca em cada uma delas, aproxima-as.

Ao narrar sua própria trajetória, Reidel (2013) traz, nas primeiras linhas de seu relato, a ideia de não ser possível falar de seu percurso como professora transexual sem antes fazer um breve histórico de experiências vivenciadas em sua infância. As palavras "sofrimento", "agressão", "gozações", "opressão" são múltiplas vezes evocadas e convidadas a se acoplarem à sua história como constituintes primeiras e fundamentais. As situações descritas sobre o passado, as vivências escolares, a vivência familiar e o medo constante surgem de forma regular como aspectos importantes a serem relatados. Embora a relação íntima com o medo permanente de possíveis violências físicas apareça preponderante em seu relato, outras formas de violência transportam o leitor para o interior de cenas que, até então, poderiam ser consideradas banais (Carrara & Vianna, 2006). O simples uso de um banheiro pode produzir situação de vulnerabilidade, pois esse espaço comumente não se apresenta seguro para travestis e transexuais. Pensando na situação de uma prisão, o choque entre a identidade de gênero e o funcionamento institucional amplifica tais experiências.

As situações cotidianas de violência, que são elementos constituintes das identidades de muitas travestis, as expõem a processos de exacerbação dessa vulnerabilidade. Analisando os relatos policiais e as narrativas de travestis vítimas de violência, Carrara e Vianna (2006) descreveram práticas que resultam em um mau funcionamento do sistema de segurança pública: a precariedade, frequentemente intencional no atendimento a essas pessoas, e a violência desferida pela própria força policial. A prática violenta sobre o próprio corpo também pode ser apontada como um efeito desencadeado pela falta de assistência à saúde da população de travestis, bem como o uso de silicone industrial, a mutilação do corpo e a generalizada falta de preparo do sistema de saúde no que diz respeito às demandas específicas dessa população (Garcia, 2007). Até as possibilidades conjugais das travestis são, em muitos casos, pautadas em complexos campos de tensão que envolvem a relação com a prostituição (profissão muito comum entre elas) e a violência (Seffner & Müller, 2012). Na prisão, o choque entre a identidade de gênero e o funcionamento institucional amplifica tais experiências.

Não apenas em relatos acadêmicos é possível encontrar a exposição de elementos vitimizantes associados às identidades sexuais e de gênero não hegemônicas. Ao informar o termo "travesti" como referência para a ordenação de reportagens, documentários e itens relacionados nos arquivos on-line disponibilizados publicamente pela empresa de mídia Zero Hora,5 o que se encontra é um apanhado volumoso de histórias que ressaltam um aspecto vulnerável e sugerem um acoplamento quase inevitável à vida das protagonistas dessas notícias. Essa vulnerabilidade pode ser percebida em reportagens que falam sobre a violência física e sobre a morte de travestis. Embora este tipo de notícia seja a expressiva maioria, as reportagens também descrevem situações de prisão, prostituição, relação marcadamente assimétrica e violenta entre a travesti e seus clientes, entre outras. É, sem dúvida, uma quantidade expressiva de registros que, em sua grande maioria, veiculam informações sobre violências com desfechos fatais ou tentativas de assassinato que têm travestis como alvo.

Os crimes contra a vida dessas pessoas costumam apresentar requintes de crueldade. Quando ocorrem, as agressões costumam ser múltiplas, através da utilização de instrumentos que permitem diversas investidas antes da efetiva morte de suas vítimas, sendo tais atos muitas vezes concentrados na região da face e nos órgãos genitais. A violência e a opressão surgem assim como elementos absolutamente presentes no que é dito e vivido por esse grupo.

Se, por um lado, a mídia constitui um importante veículo através do qual esse grupo pôde conquistar uma maior visibilidade (Coghi, 2005), por outro, configura um potente dispositivo pedagógico que produz discursivamente aquele de quem fala (Fischer, 2001a). A mídia se constitui como instrumento que participa ativamente na construção de saberes e, relacionado a isso, produz certas imagens, vinculações e significados.6 Assim, a mídia também atua na representação/produção cultural do que é dito e pensado sobre as travestis. Prostituição, conduta violenta, moral duvidosa e hipersexualidade, status menos humano ou até mesmo o estatuto de uma pessoa que merece morrer são alguns dos elementos reiterados midiaticamente e atribuídos à identidade travesti.

Não só no âmbito da mídia, mas também nas narrativas de pessoas que se colocam como ativistas, nas Organizações Não Governamentais e nos relatos de experiência, a vulnerabilidade, a vitimização e a morte são produzidos como elementos aglutinantes do movimento LGBT como um todo. Segundo Efrem Filho (2016), "os mortos e as violências integram o Movimento LGBT. Eles são ressuscitados, em discurso, para legitimar a permanência da necessidade da política". Carvalho e Carrara (2013) apontam o binômio violência policial/AIDS como um elemento mobilizador fundante do movimento social de travestis no Brasil. Certamente o ativismo travesti não permaneceu ao longo dos anos apenas com esta pauta, mas ocupar a posição de vítima de um esquema social, reiterar estrategicamente tal posicionamento e produzir uma visibilidade acoplada à vitimização compõem práticas úteis que acabam por legitimar a urgência da intervenção do Estado.

O Presídio Central também tem sido alvo constante do retrato midiático. A partir do relatório7 produzido pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário no ano de 2009, o PCPA foi eleito o pior presídio do país. Os critérios de análise utilizados para tal classificação são objeto de polêmicas, entretanto, o fato de apontar de maneira categórica o Presídio de Porto Alegre como o pior do Brasil resultou numa série de efeitos. Da mesma forma que a mídia produz reiterativamente a identidade travesti como prostituta, agressiva, degenerada, menos humana, este mesmo dispositivo midiático nos ensina que o Presídio Central seria o pior cárcere do país.8 Assim, como produto desse cenário, o PCPA se torna o centro das atenções no debate sobre o sistema carcerário no Brasil. Subitamente, passa a ser importante conhecer como é a vida dos apenados que residem nesse presídio e, mais do que isso, é preciso explorar intensamente cada detalhe do seu dia a dia pois, afinal, dessa forma, pode-se oferecer materialidade à análise realizada pela CPI. Atestar a falência do PCPA também atende a uma série de demandas políticas, já que a desativação do Presídio Central é promessa de campanha que surge frequentemente durante os debates eleitorais.

Viver na condição de apenado no PCPA certamente é um desafio de sobrevivência. A proximidade com os conflitos, as aflições e o medo descritos nos relatos feitos a nós pelos apenados em meio à violência cotidiana nos permite afirmar isto. Entretanto, ainda assim, as estratégias descritivas postas em funcionamento produzem uma realidade dramática, que é apropriada para além dos sérios problemas que o presídio apresenta. O PCPA também é um produto midiático que atrai audiência e leitores para os veículos da mídia, e é um produto político que funciona como argumento a apontar a má gestão do governo do estado. A exploração da vida dos apenados torna visíveis as condições desafiadoras de sobrevivência nesta instituição. Nos relatos de violência institucional constata-se que, certamente, as vidas mais precárias nesse sistema são as das travestis.

Ter cometido um crime é por si só algo que produz sérios efeitos sobre a possibilidade de obter reconhecimento pelos outros. Ser apontado como alguém que cometeu um crime (principalmente os chamados crimes hediondos) parece afetar e comprometer drasticamente o status de "humano", e aqueles que habitam os presídios são sistematicamente vistos como menos humanos quando postos em relação com outros indivíduos. O qualificativo "humanidade" sugere que, enquanto igualmente humanos, todos os indivíduos são dotados dos mesmos direitos: direito à moradia, à escolaridade (Bohm, 2009), a ter direitos e de existir com dignidade (Fonseca, 2012). Sugere ainda que todas as vidas têm o mesmo valor. Entretanto, tal vinculação da vida humana ao qualificativo de humanidade, que em primeira análise pareceria uma relação absolutamente inequívoca, se mostra frágil quando colocada como referência comparativa entre certos indivíduos.

Porém, ler um relato midiático sobre o sofrimento vivenciado pelos apenados no PCPA torna a face desses sujeitos visível para nós.9 A dificuldade de ignorar a dor desses indivíduos está ligada aos parâmetros morais que nos atravessam constantemente. Não se sentir sensibilizado com tal situação parece despertar uma sensação de cumplicidade com o sistema que inflige os maus-tratos desferidos contra essa população. Pessoas que cumprem pena de reclusão são sujeitos de um processo cultural que as afasta do reconhecimento de humanidade. No entanto, a visibilidade do severo sofrimento cotidiano vivenciado pelos apenados no PCPA atua no sentido contrário. Conhecer o verdadeiro regime de tortura ao qual estão submetidos pode despertar em um grande número de pessoas um sentimento de revolta e indignação, tornando a face dos apenados visível e indagativa, embora possa também reforçar o sentimento de vingança, quando o sofrimento do outro é visto como algo que é merecido por suas condutas.

As travestis são alvo de uma equação social mais específica. Como dito anteriormente, a construção social do sujeito travesti no nosso tempo agrupa uma série de qualificativos, entre eles o acoplamento travesti-vítima: aquela que sofre violência em casa, na escola, nas ruas, ao tentar usar o banheiro, a que é assassinada, vítima de crimes de ódio. Talvez, de todas as identidades de gênero não hegemônicas, a travesti seja a mais vulnerável, condição esta que não é diferente no cárcere, como pode ser observado na fala de uma travesti que cumpre pena no PCPA:

Antes da galeria a gente tinha que fazer o que os Duques10 queriam. A gente era estuprada, faziam a gente carregar celular no ânus. Essas (travestis) novas que chegaram agora não sabem como era antes nesse lugar (Colaboradora VII).

Até então, as travestis sofriam os efeitos de um sombreamento institucional. Dentre todas as que estavam no PCPA durante a realização desta pesquisa, apenas uma delas recebia visita de familiares.11 A situação de abandono, tanto institucional quanto familiar, torna a morte de uma travesti no sistema prisional um evento praticamente invisível. O tratamento de completo descaso e abandono se efetiva pelo não reconhecimento da humanidade dessa população. A visibilidade, dada a condição de extrema vulnerabilidade e violência vivida pelas travestis no Presídio Central, funcionou como elemento preponderante no processo de (re)humanização desses sujeitos que, em parte, se materializou na instalação da galeria específica. Dificilmente uma ação direcionada para um sujeito menos humano encontraria subsídios para existir. A argumentação que dá legitimidade à existência da galeria está intimamente ligada à situação severamente precária vivenciada pelas travestis. A identidade travesti está fortemente acoplada à situação de vítimas da sociedade, assim como vítimas da instituição prisional. A exposição do seu sofrimento no PCPA exige daquele que é colocado na posição de espectador uma tomada de posição, uma vez que permanecer inerte significa compartilhar a culpa por tal sofrimento. Esta foi uma das forças discursivas que atuaram para a criação da galeria para travestis, gays e seus maridos.

Da falência ao acolhimento: a gestão do risco

A existência travesti parece ocupar no cenário contemporâneo o local da dualidade. São existências postas em um eterno embate entre a segregação, a violência, o pavor, ao mesmo tempo em que provocam fascínio erótico e curiosidade. Abjetas e fascinantes, fascinantes por serem abjetas, constituem uma parcela da nossa sociedade que vive na impossibilidade de acesso a vários âmbitos do serviço público.

Como dito anteriormente, a existência travesti vem sendo sistematicamente vinculada a uma imagem vitimizadora - uma posição de sujeito que certamente não corresponde à experiência da totalidade das pessoas que são travestis, mas que se configurou como um elemento produtivo fundamental na formatação de uma série de ajustes institucionais. Outro aspecto diz respeito a como as normas de funcionamento institucional produziram subsídios para a emergência da galeria.

As prisões são instituições que respondem a uma normativa maior prevista no Art. 1º da Lei de Execução Penal. O texto da legislação diz que "[...] a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado" (Brasil, 1984). A função dessas instituições seria primeiramente atuar como dispositivo disciplinador, na tentativa de tornar um sujeito, até então inapto ao convívio social, harmonicamente integrado à sociedade. Configurada como uma instituição fundamentada no impedimento do livre ir e vir dos apenados, a prisão seria, seguindo a lógica do texto legal, um espaço que armazena aqueles nos quais não se reconhecem os atributos necessários para uma "integração harmônica" com a sociedade.

Os apenados representam um aglomerado de pessoas tuteladas pelo Estado e sobre as quais ele deve investir para modificá-las e torná-las "novas pessoas". Segundo Foucault (1998), prisões são instituições pautadas na disciplina, no investimento tático constante e minucioso sobre os corpos. Através de elaboradas tecnologias do poder, o indivíduo se torna sujeito de esquadrinhamento, de uma formatação interessada de seu corpo. Torna-se constituinte de um processo produtivo que toma como referente um certo resultado: a fabricação de corpos submissos e exercitados. Logo, ao falar de prisões, remetemo-nos imediatamente aos processos disciplinares. A prisão é uma consequência material das lógicas disciplinares, tais como a escola, o hospital, o manicômio, o alojamento do exército. A disciplina não é uma invenção das prisões, mas sim sua aplicação em intensidade. E se para a disciplina o que está em jogo é o exercício do poder minuciosamente aplicado sobre os corpos, a intensificação da economia do controle torna o governo e a fiscalização mais eficientes.

Uma das estratégias para tais funcionamentos está ligada à logística de distribuição. A maneira com que esses indivíduos estão distribuídos no espaço prisional é um elemento fundamental para o funcionamento dos mecanismos disciplinares. Se são práticas minuciosas, quando se fala de disciplinas nesta perspectiva, o primeiro movimento na tentativa de aperfeiçoar o exercício do poder em instituições parece ser o de uma heterogeneização do espaço: reduzir o número de indivíduos de aglomerações amorfas ao mínimo possível. Quanto menor o grupo - sendo celas unitárias uma situação ideal - maior a possibilidade de fiscalização. Nesse sentido, é produzido um "espaço analítico" (Foucault, 1998: 123): uma conformação espacial que permite aos agentes do aparelho fiscalizador uma identificação eficiente daqueles que se tenta governar. As aglomerações amorfas provocam imprecisão, dificuldade de identificação. Mais do que isso, esses espaços devem ser funcionais. Não há aleatoriedade na alocação, tudo está em coerência com o aperfeiçoamento da economia dos corpos.

Embora todo o tempo o termo "massa carcerária" seja enunciado a fim de designar o aglomerado de apenados internados no PCPA, sugerindo, assim, uma homogeneidade e certo anonimato amorfo, a distribuição se apresenta de forma muito mais minuciosa do que o termo pode indicar. Mesmo que não esteja exatamente descrito e previsto na Lei de Execução Penal, é sensível a presença de um princípio norteador para o funcionamento do presídio, um tipo de normativa que rege grande parte das práticas institucionais.

É dever dos agentes penitenciários manter nas dependências da prisão os apenados que cumprem pena em regime fechado. Em outras palavras, em um primeiro momento, impedir que o indivíduo apenado escape parece ser uma das principais funções desses funcionários, da mesma forma que executar a pena. Todavia, o caráter tutelar dessa instituição confere a ela uma série de deveres que não constam exatamente da Lei de Execução Penal, mas que estão contemplados por ela ao estabelecer que todos os outros direitos, que não os suspensos pela lei, deverão ser assegurados.12 Nessa ambientação, é dever da instituição carcerária, como de qualquer outra instituição dotada de características de fechamento (manicômios, quartéis, entre outros), garantir a vida e a segurança dos sujeitos internados.

Considerando tais condições, ocorre um fenômeno curioso no PCPA, onde não há, para todos os efeitos, aleatoriedade na alocação dos internos nas galerias. Há grupos que se formam ou que são formados no cárcere. Todos os que lá chegam são reconhecidos pelo pertencimento anterior a grupos, facções, quadrilhas, bandos, famílias que mantêm relações de aliança ou hostilidade com os demais agrupamentos, numa situação altamente complexa e dinâmica, de pertencimentos passados (fora do cárcere ou em períodos anteriores lá dentro) e dos que agora se desenham. Dessa forma, os agrupamentos de apenados atendem a certos parâmetros de coalizão, solidariedade ou facção que se materializam no setor de triagem do PCPA, a verdadeira porta de entrada do espaço prisional. A este espaço cabe a alocação de pessoas, a partir de um diálogo que deve ser pautado na mais absoluta franqueza de ambos os lados: apenado e carcereiro:

Se ele for primário, não tiver crime sexual, não tiver curso superior, não for militar, ele pode ficar em qualquer uma das galerias, dependendo da facção dele. Ele é bala, ele tem que ficar nos bala. Se ele for bala e for lá pros mano,13 tem que ter autorização, coisa que não vai ter porque ele vai morrer lá dentro (Colaborador IV).

Como está evidenciado no fragmento acima, são evocados certos qualificativos na tentativa de enquadrar cada um dos apenados naquela que seria "a melhor posição", o que se conecta a uma variedade de fatores. Cada indivíduo parece sofrer um processo de fracionamento. Os apenados são, na prática, decompostos em categorias que materializam certa trajetória de vida. Ainda segundo esta narrativa, o que parece motivar tal segmentação diz respeito a uma das atribuições legais dos agentes carcerários: manter a vida. Não estamos sugerindo uma visão romântica do funcionamento penal, em que a administração configuraria a materialização de uma benevolência estatal, assim como não está em questão a vontade deliberada em ajudar o apenado,14 em tornar-se um benfeitor e salvador da vida de cada interno. Mas o exercício da tutela implica o dever de manter aquela vida.

Tendo em vista a condição de cada apenado ser tutelado pelo Estado, é responsabilidade da instituição garantir sua vida, sua sobrevivência. Caso um apenado venha a falecer, por qualquer que seja o motivo, é aberto um processo de averiguação em que é investigada a causa da morte. Falhar na manutenção da vida do apenado onera a instituição e o Estado, por consequência. O que parece ocorrer não é exatamente um cuidado, mas sim o exercício de uma função - função esta que, caso não seja cumprida, acarretará uma série de consequências que poderiam ter sido evitadas. Para além de mera benfeitoria ou eventual bondade, garantir a vida é uma evidente função do Estado nesse espaço. O dispositivo prisional se organiza para fazer viver, e não deixar morrer, exercendo com isso sua disciplina.

Na argumentação foucaultiana, o cárcere é fortemente atravessado pelo caráter disciplinar. Constitui-se em uma instituição que mobiliza a todo momento as mais diferentes tecnologias do poder na tentativa sistemática de subjetivar seus alvos, neste caso, os apenados. Como parte dessas tecnologias do poder, conforme já citado, a separação dos indivíduos em unidades cada vez menores parece ocupar centralidade. Contudo, para a instituição em questão, tentar garantir a sobrevivência tem lugar preponderante. Assim, a função disciplinar que atravessa o cárcere e a política de diminuição do risco, conjugadas, aparentam níveis de prioridades similares, conforme as palavras de um dos policiais militares que ali é funcionário:

A administração pública [é] que responde pela integridade física do preso. Eu costumo dizer que o estado aqui tem nome. [...] Então, eu qualifico, eu personalizo no nome de uma pessoa o responsável. Então, o estado aqui é o responsável pela integridade física do preso (Colaborador V).

Não que as tentativas disciplinares tenham perdido espaço na concepção da lógica carcerária, afinal, cada apenado ainda é submetido a uma série de práticas disciplinares a todo momento, desde o cumprimento de horários de refeição, de sono, funções de trabalho interno até as reiterações sistemáticas das relações hierárquicas. Ao contrário, essas políticas de manutenção da vida do apenado podem produzir mecanismos disciplinares e de governança ainda mais eficientes. Porém, não é possível negar a posição preponderante que tais políticas vieram a ocupar.

Neste ponto, outro elemento de tensão surge. O ambiente em questão abriga uma quantidade significativa de pessoas em um mesmo local. É uma instituição dotada dos mais diversos problemas estruturais, de superlotação, de doenças e violência. Além desses agravantes, existem outras formas através das quais os apenados podem ser expostos ao risco. Na cidade de Porto Alegre, conforme já anotado, há múltiplas facções criminosas, dentre elas as maiores e mais influentes parecem ser as denominadas "Bala na Cara", ou simplesmente os "Bala", e os "Manos" (Sallin, 2008). Estas facções também se fazem presentes no interior do PCPA, fruto do encarceramento dos integrantes desses grupos. As duas organizações são consideradas concorrentes na venda de drogas e no domínio do crime na cidade. Essa rivalidade, em muitos casos, torna-se o estopim para embates violentos, algumas vezes resultando em morte.

Pertencer a esta ou àquela facção criminosa pode se tornar um qualificativo que confere tanto risco como segurança ao indivíduo. O encontro de apenados que pertencem a facções rivais representa um potencial perigo à vida dos envolvidos. Um evento como este, portanto, precisa ser evitado. Pareceria, em primeira análise, muito simples resolver uma problemática deste tipo: manter os apenados de uma facção em um local e os de outra em local diferente, impedindo o encontro entre eles. Não obstante, os qualificativos que conferem risco ao seu portador se multiplicam de modo dinâmico e intenso.

Segundo Sallin (2008), confirmado pelas observações da nossa pesquisa, existe uma série de qualificativos capazes de ameaçar a vida dos apenados, como pertencer a certa facção, ser ex-policial, ser evangélico, ter cometido estupro, matricídio, infanticídio, pedofilia, ser homossexual ou travesti. Levando-se em consideração, por exemplo, que um ex-policial, de acordo com a narrativa do Colaborador III, não é aceito pelo restante dos apenados, não importa qual tenha sido seu crime, não existe, portanto, para ele, ou para qualquer portador dos qualificativos acima mencionados um lugar efetivamente "seguro" no PCPA. Tendo em vista tal realidade, o que parece ocorrer não é a tentativa de anulação do risco, mas sim planejamentos táticos da ordem da gestão do risco.

O PCPA é uma instituição marcada por este tipo de gestão, ou seja, há de modo constante a criação de estratégias institucionais através das quais a administração prisional produz certa logística de alocação de pessoas e controle de fluxos: planejamento de horários, locomoção pela prisão visando à redução do risco ao mínimo possível. Partindo desses fatos, é possível enxergar aproximações com a descrição que Foucault (1998) faz das táticas institucionais que respondem a certa concepção de disciplina. Separar os indivíduos em grupos cada vez menores é um modo de tornar a prática disciplinar mais eficiente. Individualizar o apenado é identificá-lo mais facilmente, sendo que, desta forma, tornam-se mais eficientes a fiscalização e o controle sobre sua conduta, configurando, aparentemente, um ponto de aproximação muito estreito entre essas estratégias disciplinares e a gestão de risco.

Se uma estratégia interessante para melhor governar é a separação, separar também parece ser uma tática eficiente para proteger. Identificar da maneira mais correta possível qual o qualificativo que representa maior perigo para o seu portador parece ser fundamental para fazer funcionar a segurança, assim como reconhecer um ex-policial ou membro de uma facção é o primeiro passo para esse processo de separação. Agrupar todos em um mesmo local no presídio segundo determinado pertencimento parece mobilizar um mecanismo otimizador do funcionamento prisional. Agrupar todos os integrantes dos "Bala na Cara", e separá-los dos "Manos", não só impede a alocação desses indivíduos aparentemente incompatíveis nas mesmas celas, mas também proporciona um melhor controle na movimentação para os mais diversos fins nas instalações prisionais, como no estabelecimento de diferentes horários para o banho de sol, que é previsto por lei. Conseguir identificar quem são os "Bala na Cara" é garantir que eles não entrem em contato com os "Manos", reduzindo consideravelmente o risco de confronto.

Se as distribuições são, para Foucault, um modo pelo qual se ampliam os efeitos da disciplina através de um melhor e mais minucioso controle das operações do corpo, separar possibilitando a sujeição constante ao poder, a gestão do risco surge seguindo princípios similares. Segmentar o que é chamado de "massa carcerária" em grupos menores é um processo útil à instituição. Proporciona uma administração mais eficiente dos níveis de risco aos quais os apenados estão submetidos. Desta forma, a separação em grupos identificáveis atende simultânea e produtivamente tanto ao princípio disciplinar quanto ao da gestão de risco. E, com isso, nos aproximamos da descrição da outra dimensão das condições de emergência da ala para travestis, gays e seus maridos.

Nessa conjuntura, a situação das travestis se insere em um contexto específico. O forte investimento midiático sobre o PCPA tornou visível os detalhes de seu funcionamento, bem como a vida dos apenados que lá residem. Um dos efeitos dessa superexposição foi desencadear o processo de (re)humanização das travestis presas, no sentido de que elas puderam ser identificadas como as grandes vítimas do mau funcionamento da instituição. Se a eventual morte de uma travesti no sistema carcerário era, até então, um evento praticamente invisível, essa realidade foi alterada drasticamente. O que acontece com as travestis no PCPA tornou-se alvo de diversos mecanismos fiscalizadores, em especial da mídia e da ONG Igualdade RS, que faz visitas periódicas ao presídio.

A exposição midiática, o desejo da instituição de separar para melhor governar, a entrada em cena de uma organização "do lado de fora" que representa as travestis, a necessidade de a administração do PCPA mostrar resultados positivos diante de graves denúncias sobre o seu funcionamento e do clamor pelo seu fechamento foram fatores que se conjugaram para a emergência da ala. Da invisibilidade inicial de suas mortes e sofrimentos, passando pelo acoplamento travesti-vítima e pela necessidade de eficiência da gestão de risco, a galeria aparece como resposta possível que dignifica o presídio ao mostrar sua face humanizadora.

Forças cooperativas e a emergência da galeria das travestis, gays e seus maridos

O que se descreveu até aqui foi um traçado argumentativo de uma série de práticas: aquelas sobre o corpo das travestis, que são resultado das estratégias de visibilidade e enunciação exercidas sobre essa população, produzindo um status de (re)humanização para essa identidade, e as de acoplamento travesti-vítima. Argumentamos também acerca das práticas institucionais de exercício do poder e sobre as estratégias traçadas na tentativa de potencializar e otimizar o efeito do controle prisional através da gestão do risco. Analisamos e descrevemos certas regularidades que ocupam espaço preponderante na formação das possibilidades discursivas para a emergência da galeria das travestis, gays e seus maridos.

Todas essas práticas se estabelecem na contemporaneidade como condicionantes importantes que sustentam a possibilidade da produção desse acontecimento institucional. Segundo Foucault (1997), talvez não haja como conectar de forma causal um determinado acontecimento e outros elementos vistos como seus predecessores. Não traçamos relações de causa e efeito entre os elementos apresentados até aqui e a criação da galeria. Esses elementos são como grandes forças discursivas que se ligam a inúmeras outras em um campo de embate. São várias forças que travam dinamicamente uma disputa entre si, sendo que a forma com que elas se relacionam pode abrir espaço para o início de certos acontecimentos.

A forma muito singular com que essas linhas de força interagem em um momento histórico específico conferiu as condições para que a galeria fosse concebida. Certa descontinuidade nos modos tradicionais de funcionamento do presídio - fruto da exposição midiática e da situação de "pior presídio do Brasil" - e a modificação na relação das travestis apenadas com as travestis "de fora", via ONG Igualdade RS, abriram espaço para que a existência específica da galeria pudesse se concretizar, resultando na assinatura de projeto que lhe deu origem.15 A demanda discursiva ou até mesmo o simples fato de ser possível pensar em algo como uma galeria específica para a população de travestis gays e seus maridos é uma resposta à relação entre as forças descritas aqui e muitas outras, que talvez ainda não tenhamos conseguido vislumbrar.

Conhecer de forma aprofundada essas forças discursivas não é apenas importante para descrever como se constituiu o campo fértil para o surgimento da galeria. A existência de um espaço como este modifica completamente a dinâmica do funcionamento prisional, tanto do ponto de vista da organicidade institucional como dos efeitos nas relações de poder que se estabelecem no cárcere. Embora não seja possível explorá-los, apontamos que, nesse processo, aumenta o protagonismo das travestis, tanto se valendo do acoplamento travesti-vítima quanto invertendo-o; consolida-se sua parceria com os apenados que se identificam como gays e que se juntaram à iniciativa, mesmo como coadjuvantes; abre-se a possibilidade de agregar à galeria os maridos das travestis, instaurando um novo critério de alocação em face da multiplicidade dos já existentes no presídio; surgem no setor de triagem algumas perguntas que antes não eram feitas aos ingressantes, como: "você é travesti?", "você é gay?", "você deseja ser companheiro de uma travesti?" e "você deseja ficar na galeria das travestis, gays e seus maridos?" - perguntas estas que, se para muitos recém-chegados são quase uma ofensa, para outros constituem possibilidade de uma vida com menor risco no ambiente prisional.

Além disso, o fato de a galeria ter rapidamente se constituído em modelo de organização, disciplina, limpeza, autogerenciamento, segurança, ausência de violência, em espaço para leitura e estudo e de parceria positiva entre carcereiros e apenados fez com que se tornasse verdadeiro cartão-postal do PCPA, com visíveis impactos positivos diante do título de "pior presídio do país".

Tais transformações retomam, de forma reiterada, a relação entre os elementos aqui descritos, mantendo-os impregnados das práticas prisionais no que diz respeito a essa galeria. Esses elementos contribuíram para a produção das condições para o surgimento da galeria como a conhecemos, para a manutenção da legitimidade para que ela perdure, e para a produção dos efeitos discursivos desencadeados pela sua existência em todos os recantos do ambiente prisional, com impactos ainda por analisar.

Do acontecimento partimos, ao acontecimento voltamos

Para Foucault (2014), a noção de acontecimento pode ser entendida a partir de alguns elementos centrais. Primeiramente, um acontecimento diz respeito aos modos de apropriação das formações discursivas, seu funcionamento e as estratégias que tomam forma e nos designam como sujeitos. Um acontecimento não pode ser situado de maneira exata e unívoca em um local temporal e espacial. Em outras palavras, mesmo levando em consideração que a inauguração da galeria tenha uma data e um local específicos, não podemos afirmar que o acontecimento discursivo "galeria das travestis, gays e seus maridos" coincida com a inauguração formal desse espaço institucional. O avanço das práticas discursivas e institucionais que se mobilizaram e tornaram possível a materialidade formal da galeria não coincide com a data de inauguração, ao contrário, vem sendo produzido lentamente, de maneira humilde, quase imperceptível aos olhos, mas fortemente sentido no corpo. O acontecimento descrito aqui é uma dispersão, não se encerra em si mesmo, coloca-se entre as forças dispostas nos âmbitos do funcionamento institucional, na atuação da ONG Igualdade, no momento nacional e mundial de debate dos direitos humanos, no surgimento de novas leis, nas vitórias e nas derrotas políticas e nas mobilizações internas dos apenados.

Através da análise dos efeitos podemos identificar e descrever um acontecimento discursivo (Foucault, 2014). Ele dá lugar a um conjunto de discursos, qualifica os agentes das práticas discursivas, produz os objetos que serão sujeitos dessa formação e os tipos de enunciados que ocasiona. A combinação dos aspectos característicos desta noção torna o acontecimento um foco significativo de modificação do curso regular das práticas cotidianas no presídio. Analisá-lo não só permite descrever como ele surgiu dessa maneira e não de outra qualquer, como também nos dá subsídios para entender como as novas práticas inauguradas a partir daí retomam a todo momento os elementos constituintes do acontecimento. Um exemplo que torna essa relação clara é a prática institucional mobilizada pelas travestis que leva o nome de "ensacolamento". Respondendo aos critérios da gestão do risco surgem certas possibilidades de apropriação das normativas administrativas a favor da manutenção da ordem no interior da galeria.

Uma das colaboradoras, em sua narrativa, fala sobre uma estratégia conhecida como "ensacolamento", que consiste em "ir lá e inventar uma calúnia da pessoa. Caluniar a pessoa. Fazer uma injustiça. Mandar aquela pessoa viajar". Ensacolar uma pessoa consistiria em uma tática de exclusão que tem como objetivo retirar uma pessoa da galeria em que ela se encontra. Em outras palavras, incitar a repulsa coletiva por aquela pessoa, reforçada muitas vezes por ameaças de violência. Esta prática de repulsa pode ser ativada por algum comportamento considerado comprometedor da ordem da galeria. Também pode ser forjada com o intuito de retirar alguém da galeria por desavenças políticas. De qualquer forma, a partir do momento em que estar naquele local configura risco à vida do indivíduo, seguindo as normativas de segurança institucional e a gestão de risco, ele deve ser movido para outro local. O grupo volta-se contra uma determinada pessoa e a administração institucional, condicionada pela gestão do risco, não vê outra saída senão retirá-la do espaço hostil e recolocá-la em outro lugar.

Contudo, no que diz respeito ao caso específico da galeria das travestis, "ensacolar" uma pessoa significa, como efeito, retirá-la da segurança desse espaço e condená-la ao alto risco em qualquer outro lugar no PCPA, sentença de morte ou, pelo menos, de grande sofrimento. Para garantir a existência da ala como espaço institucional e sua própria permanência nesse lugar, cada indivíduo torna-se responsável pelo governo de si no que diz respeito à sua conduta cotidiana. A "harmonia" e o sucesso da ala parecem exigir um grande investimento em si na tentativa de demonstrar sua legitimidade perante os olhares fiscalizadores da administração prisional e dos próprios apenados que compartilham aquele espaço.

A categoria "ensacolamento" sugere, para além de uma técnica de poder inaugurada pela noção de gestão do risco, o deslocamento dos agentes do disciplinamento que não mais se concentram apenas na administração prisional e no exercício do poder condicionado pelas suas limitações operacionais. Os agentes do poder se dispersam e se capilarizam, surgindo, assim, um lugar no campo de disputa do poder a ser ocupado pelas próprias travestis.

A partir dessa breve introdução à complexa trama tecida em meio aos efeitos produzidos pela existência da galeria, é possível perceber que em função desse acontecimento institucional se tornam visíveis novas conformações no funcionamento prisional. A que mais se destaca, e que perseguimos na pesquisa, são as organizações operacionais e as práticas de disciplinamento atravessadas por questões de gênero e de sexualidade, que não estão originalmente previstas e nem prescritas no código da execução penal. Não estamos sugerindo com isso que a existência das previsões legais referentes a questões de raça, religião e diferenças etárias, por exemplo, nos oferecem alguma certeza das formas com que esses parâmetros influenciam e modificam o exercício do poder no cárcere. Todas as prescrições de ordenamento do espaço prisional são contingentes. Entretanto, a total inexistência de menções a questões de orientação sexual e identidade de gênero na execução penal nos garante que não há regramento oficial para as práticas institucionais atravessadas por esses parâmetros. Assim sendo, conhecer profundamente como se deu o surgimento de uma galeria como esta, bem como os efeitos desencadeados pela sua existência, encontra relevância por ter efeito direto nas possibilidades de sobrevivência da população carcerária que é dissidente das normas de gênero e de sexualidade.

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  • 1
    Boa parte das informações aqui expostas e analisadas é fruto da dissertação de mestrado intitulada Uma ala para travestis, gays e seus maridos: pedagogias institucionais da sobrevivência no presídio central de Porto Alegre, de autoria de Amilton Gustavo da Silva Passos e disponível para consulta em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/ 10183/106455/000941753. pdf?sequence=1>. [Acesso em: 29.08.2015].
  • 2
    O Presídio Central de Porto Alegre é um presídio masculino. Entretanto, o surgimento da galeria em estudo trouxe o gênero feminino para a instituição. Ao longo do artigo nos referimos do modo mais adequado possível aos gêneros, conforme a situação predominante.
  • 3
    A noção de gestão de risco que avançamos não é aquela desenvolvida em estudos e políticas de prevenção à AIDS. Aqui não se trata de analisar escolhas racionais por parte de indivíduos, mas sim de ressaltar a constante preocupação da autoridade prisional com uma economia de distribuição dos indivíduos nos espaços que visa tanto evitar conflitos quando gerir possíveis riscos a cada apenado que está sob a guarda do estado.
  • 4
    Maiores informações em: <http://www.aigualdaders.org/>. [Acesso em: 07.04.2015].
  • 5
    O jornal Zero Hora é aquele de maior circulação e tiragem no Rio Grande do Sul, e o maior da região Sul também. A empresa jornalística que o edita é proprietária de grande número de jornais das cidades do interior do estado, o que se reflete na publicação de notícias destas localidades, daí sua escolha. Matérias foram coletadas utilizando a ferramenta de busca disponível no site <http://zh.clicrbs.com.br/rs/>. Ao digitar a palavra "travesti" na busca, a ferramenta agrupa uma série de reportagens disponíveis on-line. Os textos são ordenados por número de acessos, sendo o primeiro o mais acessado. Outro elemento que ordena as reportagens é a quantidade de vezes que a palavra "travesti" está presente no texto, bem como se esta palavra está presente no título.
  • 6
    É possível entender a mídia como um dispositivo pedagógico, sendo que o que é eleito por ela para ser dito contribui para a produção de subjetividades ou modos de ser. Modalidades de conhecimento que atuam sobre nós como ferramentas de produção de corpos e subjetividades (Benelli, 2003) se tornam muito mais nítidas, endereçadas de forma bastante incisiva e atuam sobre os sujeitos de maneiras muito produtivas através da mídia. Segundo Fischer: "trata-se de um lugar extremamente poderoso no que tange à produção e à circulação de uma série de valores, concepções, representações - relacionadas a um aprendizado cotidiano sobre quem somos, o que devemos fazer com nosso corpo, como devemos educar nossos filhos, de que modo deve ser feita nossa alimentação diária, como devem ser vistos por nós os negros, as mulheres, pessoas de camadas populares, portadores de deficiências, grupos religiosos, partidos políticos e assim por diante" (Fischer, 2001b: 153).
  • 7
    Relatório disponível em: <http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/2701>. [Acesso em: 10.08.2015].
  • 8
    Para fins desta análise, não importa se o PCPA é, de fato, o pior presídio, mas sim que ele se tornou visível como tal. A difícil verificação dos elementos que compõem tanto o relatório da CPI quanto a imagem produzida pela mídia tornam ainda mais eficientes a produção e o aprendizado desse saber sobre o PCPA.
  • 9
    Segundo Levinas e Kearney (1969), o "outro", que não necessariamente se personifica em um único indivíduo, requer uma demanda ética e moral sobre mim ("mim" lido aqui como cada um de nós). Para tal, os autores introduzem o conceito de "face", que seria o elemento através do qual o outro é capaz de fazer um apelo moral a nós. Esse apelo nos endereça e nos designa de tal maneira que não somos livres, tendo em vista a moralidade vigente de recusar. Para Butler (2004: 133), "a face do outro não pode ser lida enquanto um significado secreto, e o imperativo que ela proporciona não é imediatamente traduzível em uma prescrição que pode ser linguisticamente formulada e seguida". A face é a prerrogativa que exige de nós uma demanda ética no que diz respeito à vida do outro e que, feita pela face, não se encerra necessariamente em um ato de fala, e não está relacionada obrigatoriamente à face física do sujeito. A face é um elemento de reconhecimento não encerrado em nada estritamente linguístico. Ela se torna visível nas situações em que perceber o sofrimento do outro desperta o sentimento de que "isso não pode acontecer". Este conceito dialoga de modo estreito com a noção de precariedade da vida (Butler, 2006), que tem como propósito levar em conta a fragilidade da vida do outro, de qualquer outro com quem nos relacionamos, e perceber também nossa fragilidade original. Segundo a autora, ao propor ações para a vida em sociedade, há que se reconhecer que é no encontro com o outro, com as demandas do outro, que também reconheço a precariedade que me constitui (Butler, 2006: 70).
  • 10
    A palavra duque é uma categoria êmica no ambiente prisional. Tem origem na numeração atribuída aos crimes de estupro e pedofilia, artigos 213 e 218, respectivamente, do Código Penal.
  • 11
    O PCPA é uma prisão de caráter provisório, ou seja, orienta-se que apenas permaneçam na instituição pessoas que aguardam julgamento, que ainda não foram condenadas ou que estão aguardando transferência para outra casa prisional. Dessa forma, o número de apenados, tanto na galeria em análise quanto em todo o presídio, é flutuante. Em média, um terço das pessoas que moravam na galeria durante a pesquisa eram travestis. Em condições ideais, a galeria comporta 40 presos, mas sua lotação também mostrou flutuações importantes.
  • 12
    Segundo a Lei de Execução Penal, no Art. 3º (1984), "[...] ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei". Este texto submete as execuções penais a todas as outras normativas legais que não entram em conflito com a pena designada para cada apenado. Dessa forma, ao retornar ao texto da Constituição Federal (Brasil, 1988), o Art. 5º prevê a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Obviamente, a restrição ao direito à liberdade compõe a pena dos indivíduos em questão.
  • 13
    As denominações "Manos" e "Bala na Cara" referem-se a facções criminosas em atuação no município de Porto Alegre e região metropolitana (Sallin, 2008). A facção "Unidos Pela Paz" também é atuante no município e se faz presente no PCPA.
  • 14
    A análise leva em consideração que todas as práticas não são simplesmente deliberadas. Qualquer ato, talvez principalmente práticas que tomam curso em uma instituição como esta respondem a uma série de condições para a sua possibilidade, condições certamente multifatoriais, anteriores a cada ato em si, considerando-se ainda o fato indubitável de que cada ato institucional responde a efeitos políticos e discursivos e os produz.
  • 15
    Projeto de parceria entre o Presídio Central de Porto Alegre, a Secretaria de Estado da Justiça e dos Direitos Humanos, a Superintendência dos Serviços Penitenciários e a Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul, que teve início no segundo semestre de 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2016

Histórico

  • Recebido
    04 Out 2015
  • Aceito
    29 Fev 2016
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