Resumo
O objetivo deste artigo é compreender de que forma o Kandandu, enquanto expressão do direito dos Negros à cidade, se consolidou como marco do Carnaval de Belo Horizonte, como um lugar de valorização e inclusão da negritude. O Kandandu é o evento que agrega os blocos Afro de Belo Horizonte e abre as festividades de Carnaval da cidade. Ao desenvolver a presente pesquisa, foi realizada uma contextualização da capital mineira, destacando os aspectos de segregação socioespacial que remontam a sua origem, respaldada em um arcabouço teórico que contempla dimensões de espaço, segregação, cultura e política. Recorre-se aqui à etnografia, entrevistas e à pesquisa documental para compreender o processo de constituição do Kandandu a partir de dois blocos Afro: Angola Janga e Magia Negra. Os resultados indicam que o Carnaval, especificamente a atuação dos blocos Afro de Belo Horizonte, para além de suas dimensões lúdica e do espetáculo, se norteia pela luta em torno da valorização dos Negros e da ocupação da cidade, em especial da região central, por comunidades e grupos historicamente excluídos, em processos de fazer cultura e de fazer cidade materializados pelo Kandandu.
Palavras-chave:
Segregação racial; Cultura; Resistência
Abstract
This article seeks to understand how Kandandu, as an expression of Black people’s right to the city, was consolidated as a landmark of Belo Horizonte’s Carnival, as a place of recognition and inclusion of Black people. Kandandu is the event that brings Belo Horizonte’s Afro blocks together and opens the city's Carnival festivities. For the development of the present research, a contextualization of the capital of Minas Gerais was carried out, highlighting aspects of the socio-spatial segregation that dates back to the city’s origin, supported by a theoretical framework that contemplates the dimensions of space, segregation, culture and politics. The ethnographic research regarding two Afro blocks, Angola Janga and Magia Negra (Black Magic), was used herein along with interviews and documentary research to understand the establishment of Kandandu. The results indicate that the Carnival, specifically the performance of Belo Horizonte’s Afro blocks, notwithstanding its playful and spectacle dimension, is guided by the endeavor to acknowledge and empower Black lives, as well as to promote the city's occupation, especially the central region, by historically excluded communities and groups, in a culture-making and city-making process that is embodied by Kandandu.
Keywords:
Racial segregation; Culture; Resistance
Introdução
A presente pesquisa busca compreender de que maneira o Kandandu, enquanto expressão do direito dos Negros à cidade, se consolidou como marco do Carnaval de Belo Horizonte, como um lugar de valorização e inclusão da negritude. Partindo do pressuposto de que os blocos Afro do Carnaval belo-horizontino, enquanto instâncias tanto organizativas quanto políticas que reúnem etnicidade e territorialidade, se destacam naquilo que Agier (2015, pAgier, M. (2015). Do direito à cidade ao fazer-cidade: o antropólogo, a margem e o centro. Mana, 21(3), 483-498. http://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n3p483.
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. 484) chama de “fazer-cidade”: um movimento que parte de uma ausência (o direito à cidade), impulsionado por uma imagem ou ideal de cidade, “um mito perdido, um horizonte inatingível”.
As ausências referentes aos direitos da população negra se somam à violência e à segregação socioespacial, afetando seriamente as possibilidades de participação nos rumos da cidade, da política urbana ao fazer cultura, do acesso aos equipamentos públicos e do uso festivo dos espaços públicos.
A utopia que anima os blocos Afro de Carnaval, assim como outras organizações de resistência negra (Siqueira, 1997Siqueira, M. L. (1997). Ancestralidade e contemporaneidade de organizações de resistência afro-brasileira. In T. Fischer (Ed.), Gestão contemporânea: cidades estratégicas e organizações locais (2ª ed., pp. 133-150). Rio de Janeiro: FGV.), é a de uma cidade marcada pela diferença, que não apenas permita, mas fomente existências diversas e todas as possibilidades delas advindas. Essa utopia é o coração da realidade urbana, já existindo enquanto imaginário e símbolos (Lefebvre, 1991Lefebvre, H. (1991). The production of space. Oxford: Blackwell Publishing.).
De forma individual e coletiva, as pessoas constroem a cidade por meio de suas ações diárias bem como através do envolvimento nos seus aspectos políticos, econômicos e intelectuais. Ao mesmo tempo, a cidade molda as pessoas mediante permissões e restrições, oportunidades de participação e exclusões.
Nessa perspectiva, para Harvey (2014), oHarvey, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes. direito à cidade implica no exercício coletivo de poder para refazer a cidade. Se Harvey (2013)Harvey, D. (2013). A Liberdade da Cidade. Fórum Justiça. Recuperado em 15 de março de 2023, de https://forumjustica.com.br/wp-content/uploads/2013/02/A-LIBERDADE-DA-CIDADE-David-Harvey.pdf
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considera que, ao refazer a cidade, refazemos a nós mesmos, torna-se então oportuno considerar a atuação dos blocos Afro de Carnaval, enquanto resistência à segregação socioespacial e ao apagamento cultural que marcam a presença de pessoas Negras nas cidades, naquilo que Rezende e Andrade (2022)Rezende, A. F., & Andrade, L. F. S. (2022). Direito do Negro à Cidade: de uma Formação Socioespacial Racista à Utopia Lefebvriana. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 14, e20210438. http://doi.org/10.1590/2175-3369.014.e20210438.
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tratarão como direito do Negro à cidade.
Levando em consideração que a população Negra manifesta desvantagens cumulativas que a impede de disputar a cidade (Rezende & Andrade, 2022Rezende, A. F., & Andrade, L. F. S. (2022). Direito do Negro à Cidade: de uma Formação Socioespacial Racista à Utopia Lefebvriana. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 14, e20210438. http://doi.org/10.1590/2175-3369.014.e20210438.
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), tendo também a sua história negada enquanto produtora e construtora da cidade de Belo Horizonte (Pereira, 2020Pereira, J. A. (2020). A eloquência dos silêncios: racismo e produção de esquecimento sobre a população negra em narrativas das cidades. Revista da ABNP, 12(34), 439-462. Recuperado em 15 de março de 2023, de https://www.abpnrevista.org.br/index.php/site/article/view/1145
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), faz-se pertinente a questão de que a produção da cidade, seus espaços e suas narrativas são permeados por silenciamentos, exclusões e fragmentações:
[...] o espaço público nunca foi para todas. E muitas pessoas que sofrem opressões por terem uma raça e classe específicas ou por possuírem marcas de dissidências de gênero e sexualidade já o sabem há muito tempo. (Grunvald, 2019, pGrunvald, V. (2019). Lâmpadas, corpos e cidades: reflexões acadêmico-ativistas sobre arte, dissidência e a ocupação do espaço público. Horizontes Antropológicos, 25(55), 263-290. http://doi.org/10.1590/s0104-71832019000300010.
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Belo Horizonte, construída por uma intervenção estatal inspirada nas experiências urbanísticas europeias, representa um processo de modernização adequado ao nascimento de uma nova República (Arrais, 2009Arrais, C. A. (2009). Belo Horizonte, a La Plata brasileira: entre a política e o urbanismo moderno. Revista UFG, 11(6), 63-76. Recuperado em 15 de março de 2023, de https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/694/o/06_belohorizonte.pdf
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), um centro intelectual e irradiador de civilização (Calvo, 2013Calvo, J. (2013). Belo Horizonte das primeiras décadas do século XX: entre a cidade da imaginação à cidade das múltiplas realidades. Cuadernos de Historia, 14(21), 71-93. http://doi.org/10.5752/P.2237-8871.2013v14n21p71.
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), oposta ao passado colonial e escravista da antiga capital, Ouro Preto. Em seu planejamento urbano, marcado pela Avenida do Contorno, há uma nítida separação entre os espaços destinados para cada grupo social e aos Negros. Tanto as famílias expulsas do Curral del Rey, arrasado para a construção da região central da nova capital mineira, quanto parte dos trabalhadores que edificaram a cidade foram colocados à margem das áreas planejadas, cujos critérios de ordem, progresso e higiene, em uma urbanização elitista (Fernandes, 2021Fernandes, C. P. A. (2021). A fundação de Belo Horizonte: ordem, progresso e higiene, mas não para todos. Cadernos Metrópole, 23(52), 1061-1084. http://doi.org/10.1590/2236-9996.2021-5210.e.
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) contrastavam com Negros e pobres, elementos indesejados que acabaram por ocupar áreas periféricas de risco e ambientalmente inseguras.
Essa constatação não é tratada como um fatalismo, e sim como um processo de apagamento, exclusão e violência sofrido pelos Negros que perduram, não apenas na atual Belo Horizonte, mas na produção dessas cidades reais que repelem e limitam grande parte de seus cidadãos: é justamente no movimento entre uma realidade racial opressora e uma cidade possível, sonhada pelas diferentes organizações e mobilizações negras na capital mineira que se encontra a presente pesquisa. Assim, os blocos Afro do Carnaval belo-horizontino se destacam como um campo de possibilidades e de promoção de igualdade racial, tanto pela valorização da cultura e da estética negra quanto pela ocupação do espaço público por corpos dissidentes.
Produção do espaço urbano, segregação racial e apagamento cultural
Lefebvre (1991)Lefebvre, H. (1991). The production of space. Oxford: Blackwell Publishing., ao defender que o espaço é socialmente construído e não pode ser reduzido à dimensão material, apresenta três categorias centrais para se pensar o espaço urbano: espaços concebidos, percebidos e vividos, representando, respectivamente, aspectos da mente, do corpo e suas sensações, e da experiência direta. O autor considera, ainda, que há uma preponderância do espaço concebido em relação aos demais, entendido como o espaço planejado e projetado pelas autoridades, urbanistas e arquitetos, como um reflexo de interesses políticos e econômicos que predominam na cidade, se materializando em planos, regulamentos e intervenções urbanas que visam controlar e organizar o uso do espaço, tratado pelo autor como uma abstração do espaço urbano e apagamento das diferenças.
Esse processo de produção do espaço urbano que pode ser relacionado à abstração e apagamento das diferenças é o fenômeno atual da segregação, relacionado às desigualdades espaciais e marginalidade social. Especificamente, a segregação racial diz respeito aos processos e às circunstâncias em que certos grupos sociais são afastados uns dos outros, evitando a convivência e a interação, baseados em relações de desigualdade, hierarquia e discriminação (França, 2022França, D. (2022). Segregação residencial por raça e classe em Fortaleza, Salvador e São Paulo. Caderno CRH, 35, e022045. http://doi.org/10.9771/ccrh.v35i0.42018.
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).
E, ainda que Boterman et al. (2021)Boterman, W. R., Musterd, S., & Manting, D. (2021). Multiple dimensions of residential segregation. The case of the metropolitan area of Amsterdam. Urban Geography, 42(4), 481-506. http://doi.org/10.1080/02723638.2020.1724439.
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argumentem que, ao lado de dimensões clássicas para a análise da segregação residencial como distinções de raça e classe, é possível considerar subdimensões como níveis de escolaridade, frações de classe, status no mercado de trabalho e setores laborais, onde raça e classe são fundamentais para a discussão a respeito da segregação.
Para tanto, a presente pesquisa se fundamenta em duas constatações: (1) a pobreza no Brasil tem cor (Carneiro, 2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro Edições.) e ela é Negra; e (2), de acordo com estudos que remontam à década de 1940 (Telles, 1995Telles, E. E. (1995). Race, class and space in Brazilian cities. International Journal of Urban and Regional Research, 19(3), 395-406. http://doi.org/10.1111/j.1468-2427.1995.tb00516.x.
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), a cor da pele predominante nos moradores varia de acordo com a qualidade da vizinhança/do bairro:
[...] as áreas mais pobres e populosas [de Salvador] eram habitadas por pretos, pardos de pele escura e um número limitado de mulatos de pele clara, enquanto os brancos e ocasionais pardos de pele clara viviam nos setores de classe média da cidade. (Telles, 1995, pTelles, E. E. (1995). Race, class and space in Brazilian cities. International Journal of Urban and Regional Research, 19(3), 395-406. http://doi.org/10.1111/j.1468-2427.1995.tb00516.x.
http://doi.org/10.1111/j.1468-2427.1995.... . 400, tradução nossa).
O autor destaca que em outras cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, há uma marcante segregação racial atrelada à questão de classes sociais, assim como à indisposição de brancos em terem vizinhos Negros.
Segundo Oliveira e Oliveira (2015, pOliveira, R. J. O., & Oliveira, R. M. S. (2015). Origens da segregação racial no Brasil. Amérique Latine Histoire & Mémoire, 29(29), 1-11. http://doi.org/10.4000/alhim.5191.
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. 2), as origens da segregação racial nas cidades brasileiras remontam à escravização dos Negros e, após 1888, políticas eugenistas/higienistas promoveram a segregação da população negra para lugares pouco desenvolvidos, na
[...] introdução de medidas socioeconômicas e políticas que impediram da mão de obra escravizada, no percurso das revoltas, conflitos e da abolição, de se tornar empreendedora, proprietária e protagonista do espaço e do território brasileiro.
Para Telles (1995), aTelles, E. E. (1995). Race, class and space in Brazilian cities. International Journal of Urban and Regional Research, 19(3), 395-406. http://doi.org/10.1111/j.1468-2427.1995.tb00516.x.
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segregação racial tem implicações tão significativas quanto (ou até maiores) a posição econômica para a pobreza, com diversas implicações na distribuição espacial da riqueza entre brancos e não brancos, em “[...] uma segmentação entre classes médias e altas brancas e classes baixas multirraciais” (França, 2022, pFrança, D. (2022). Segregação residencial por raça e classe em Fortaleza, Salvador e São Paulo. Caderno CRH, 35, e022045. http://doi.org/10.9771/ccrh.v35i0.42018.
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. 4), predominantemente negras. Hodiernamente, ao analisar a segregação nas cidades de São Paulo, Salvador e Fortaleza, ainda que mecanismos explícitos de apartheid existentes em outros países não tenham existido no Brasil, para França (2022)França, D. (2022). Segregação residencial por raça e classe em Fortaleza, Salvador e São Paulo. Caderno CRH, 35, e022045. http://doi.org/10.9771/ccrh.v35i0.42018.
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, há uma evidente separação entre os grupos sociais de acordo com raça e classe, principalmente de brancos ricos em relação aos grupos Negros de baixa renda.
Especificamente em Belo Horizonte, estudos indicam o caráter segregacionista de sua construção, em que as ideias de progresso, modernidade e higiene importadas das reformas europeias indicam a preponderância de uma lógica colonialista e racista de separação das pessoas, bem como no apagamento da população Negra na produção da cidade e suas narrativas (Arrais, 2009Arrais, C. A. (2009). Belo Horizonte, a La Plata brasileira: entre a política e o urbanismo moderno. Revista UFG, 11(6), 63-76. Recuperado em 15 de março de 2023, de https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/694/o/06_belohorizonte.pdf
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; Calvo, 2013Calvo, J. (2013). Belo Horizonte das primeiras décadas do século XX: entre a cidade da imaginação à cidade das múltiplas realidades. Cuadernos de Historia, 14(21), 71-93. http://doi.org/10.5752/P.2237-8871.2013v14n21p71.
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; Instituto Nossa BH, 2021Instituto Nossa BH. (2021). Mapa das desigualdades: Belo Horizonte e região metropolitana. Belo Horizonte. Recuperado em 15 de março de 2023, de https://nossabh.org.br/uploads/2021/06/Mapa-das-desigualdades-da-RMBH-2021.pdf
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; Pereira, 2020Pereira, J. A. (2020). A eloquência dos silêncios: racismo e produção de esquecimento sobre a população negra em narrativas das cidades. Revista da ABNP, 12(34), 439-462. Recuperado em 15 de março de 2023, de https://www.abpnrevista.org.br/index.php/site/article/view/1145
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), o que é perpetuado, atualmente, em formas de desigualdades sociais e segregação:
A já republicana Belo Horizonte foi construída por trabalhadores pobres vindos de diversas partes de Minas Gerais e do Brasil e que não tiveram a oportunidade de habitar as zonas centrais, destinadas às elites do funcionalismo público mineiro. Já a população aqui presente, composta predominantemente por gente preta, sobretudo por mulheres pretas “livres”, é arrasada para dar lugar à malha urbana ortogonal do interior da atual Avenida do Contorno e das zonas suburbanas de Belo Horizonte. (Instituto Nossa BH, 2021, pInstituto Nossa BH. (2021). Mapa das desigualdades: Belo Horizonte e região metropolitana. Belo Horizonte. Recuperado em 15 de março de 2023, de https://nossabh.org.br/uploads/2021/06/Mapa-das-desigualdades-da-RMBH-2021.pdf
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Pessoas negras representavam a maioria das famílias desapropriadas do antigo Curral del Rey, permanecendo à margem da narrativa oficial da produção da cidade apesar de terem sido parte relevante deste processo (Pereira, 2020Pereira, J. A. (2020). A eloquência dos silêncios: racismo e produção de esquecimento sobre a população negra em narrativas das cidades. Revista da ABNP, 12(34), 439-462. Recuperado em 15 de março de 2023, de https://www.abpnrevista.org.br/index.php/site/article/view/1145
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). Como nos alerta o Instituto Nossa BH (2021, pInstituto Nossa BH. (2021). Mapa das desigualdades: Belo Horizonte e região metropolitana. Belo Horizonte. Recuperado em 15 de março de 2023, de https://nossabh.org.br/uploads/2021/06/Mapa-das-desigualdades-da-RMBH-2021.pdf
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. 5), “[...] as cidades trazem em si a história da estruturação do racismo que as construíram”.
Considera-se, na presente pesquisa, que as dimensões do percebido (sensações e emoções) e do vivido (interações sociais e práticas cotidianas das pessoas), tanto nos usos e apropriações dos espaços quanto das significações extraídas desse uso, são importantes aspectos da vida urbana, sendo diretamente impactados pela questão racial e sua consequente segregação racial. Para além da segregação residencial, o uso dos espaços públicos pela população Negra é afetado por diferentes prismas: restrições à mobilidade urbana, educação e saúde, violência letal de forças de segurança e encarceramento em massa (Rezende & Andrade, 2022Rezende, A. F., & Andrade, L. F. S. (2022). Direito do Negro à Cidade: de uma Formação Socioespacial Racista à Utopia Lefebvriana. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 14, e20210438. http://doi.org/10.1590/2175-3369.014.e20210438.
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), além da negação do direito à cultura e à memória, elementos essenciais para a construção de identidades e subjetividades, bem como para a apropriação do espaço urbano.
O acesso à cultura e a valorização de manifestações culturais Negras (e de outros grupos relevantes no processo “civilizatório”), previstas na Constituição Federal de 1988, podem indicar o protagonismo de homens e mulheres Negros na valorização cultural, assim como as barreiras para o pleno exercício deste direito. Referindo-se ao processo de embranquecimento cultural e de formas de existência, naquilo que é chamado de genocídio do Negro brasileiro, Nascimento (2016)Nascimento, A. (2016). O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado (3ª ed.). São Paulo: Perspectivas. indica que restaria ao Negro se embranquecer, interna e externamente.
Ao tratar especificamente das relações entre racismo, cidades e cultura com base em Fanon (2018)Fanon, F. (2018). Racismo e cultura. Revista Convergência Crítica, 13, 78-90. http://doi.org/10.22409/rcc.v1i13.38512., entendemos que, nas cidades brasileiras, o valor normativo das culturas segue uma lógica colonial de hierarquização, de acordo com sua origem étnica. A inferiorização da cultura Afro não se limita mais ao indivíduo em si, e sim a uma determinada forma de “existir”. Assiste-se à destruição dos valores culturais, das formas de existência, da linguagem, do vestuário e das técnicas (Fanon, 2018, pFanon, F. (2018). Racismo e cultura. Revista Convergência Crítica, 13, 78-90. http://doi.org/10.22409/rcc.v1i13.38512.. 79-80). Para além das formas de violência, fragmentação e segregação nas cidades, a opressão de raça se caracteriza pelo apagamento cultural, pela negação da democratização da cultura em geral e, principalmente, pela inferiorização da cultura Negra.
O Negro assimilado (Nascimento, 2016Nascimento, A. (2016). O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado (3ª ed.). São Paulo: Perspectivas.) ou o homem-objeto (Fanon, 2018Fanon, F. (2018). Racismo e cultura. Revista Convergência Crítica, 13, 78-90. http://doi.org/10.22409/rcc.v1i13.38512.) resultante desse processo é privado dos meios de existência e de sua cultura, acabando por buscar “se embranquecer”, adotando a cultura e as formas de existência de seu dominador, em um processo de alienação cultural.
Consideramos que o Negro, segregado no espaço urbano, em um lugar concebido que é materializado em um espaço físico marcado por segregação racial e fragmentação, também é privado dos meios de cultura. Mesmo tendo trocado seus deuses, formas culturais e línguas por aquelas impostas anteriormente, a população Negra continua a sofrer com o racismo na cidade, uma vez que a sua própria existência é considerada como desviante.
Conforme postulado por Fanon (2018)Fanon, F. (2018). Racismo e cultura. Revista Convergência Crítica, 13, 78-90. http://doi.org/10.22409/rcc.v1i13.38512., que entende a cultura como aquilo que se vive, o indivíduo inferiorizado acaba redescobrindo um estilo de vida, antes desvalorizado, se maravilhando e extasiando a cada nova descoberta. Esse processo de redescobrimento e ação cultural pode ser pensado a partir da atuação de blocos Afro do Carnaval de Belo Horizonte enquanto organizações de resistência Negra (Siqueira, 1997Siqueira, M. L. (1997). Ancestralidade e contemporaneidade de organizações de resistência afro-brasileira. In T. Fischer (Ed.), Gestão contemporânea: cidades estratégicas e organizações locais (2ª ed., pp. 133-150). Rio de Janeiro: FGV.), que buscam simultaneamente a valorização de elementos da cultura Afro e a apropriação de espaços públicos, como o hipercentro da cidade, por corpos dissidentes.
Portanto, o tópico a seguir discute a interface entre cultura e apropriação do espaço urbano, por meio dos conceitos de direito à cidade e fazer-cidade no Carnaval dos blocos Afro de Belo Horizonte.
Fazer-cidade e ação cultural dos blocos Afro de Carnaval
A história da cultura Negra no Brasil é uma história de luta:
[...] as comunidades litúrgicas conhecidas no Brasil como terreiros de culto constituem exemplo notável de suporte territorial para a continuidade da cultura do antigo escravo em face dos estratagemas simbólicos do senhor. (Sodré, 2019, pSodré, M. (2019). O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira (3ª ed.). Rio de Janeiro: Mauad X.. 17-18).
No que concerne à questão do espaço, as tentativas de apagamento da cultura Negra e a fragmentação enfrentadas pela população Negra podem ser relacionadas aos processos de abstração do espaço urbano e de apagamento das diferenças, os quais não ocorrem sem resistência, na produção de um contraespaço (Lefebvre, 1991Lefebvre, H. (1991). The production of space. Oxford: Blackwell Publishing.). Especificamente relacionada à questão racial e à resistência Negra.
As reflexões de Harvey (2013Harvey, D. (2013). A Liberdade da Cidade. Fórum Justiça. Recuperado em 15 de março de 2023, de https://forumjustica.com.br/wp-content/uploads/2013/02/A-LIBERDADE-DA-CIDADE-David-Harvey.pdf
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, 2014Harvey, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes.) suscitam questionamentos ligados à reconstrução da cidade a partir da reconstrução dos sujeitos políticos enquanto cidadãos. Os espaços urbanos ocupados em sua maioria pela população Negra podem ser pensados como territórios sem cidadãos, cujo direito de acessar e usufruir da cidade é seriamente afetado (Rezende & Andrade, 2022Rezende, A. F., & Andrade, L. F. S. (2022). Direito do Negro à Cidade: de uma Formação Socioespacial Racista à Utopia Lefebvriana. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 14, e20210438. http://doi.org/10.1590/2175-3369.014.e20210438.
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). Diversos movimentos e organizações atuam de forma a modificar a relação entre os sujeitos Negros e a cidade, a partir de diferentes perspectivas e de diferentes direitos sociais.
A presente pesquisa, especificamente, considera que os blocos Afro de Carnaval na cidade de Belo Horizonte tensionam duplamente uma cidade hostil: valorizam uma cultura historicamente desvalorizada e promovem a apropriação de espaços públicos, antes reservados aos grupos e manifestações culturais hegemônicos.
Ainda que o Carnaval não tenha suas origens em terras brasileiras ou nos Negros em diáspora, a apropriação da festa e sua ressignificação na valorização da negritude implicam um importante elemento cultural. Diferente do Carnaval das escolas de samba, o Carnaval de rua e especialmente os blocos Afro cumprem um importante papel para a democratização das festividades e da reconstrução de pertencimentos.
Frúgoli (2018)Frúgoli, H., Jr. (2018). Ativismos urbanos em São Paulo. Caderno CRH, 31(82), 75-86. http://doi.org/10.9771/ccrh.v31i82.24449.
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, ao pensar sobre os diferentes ativismos urbanos na cidade de São Paulo, afirma que o Carnaval de rua pode ser pensado dentro de uma lógica de ampliação do uso dos espaços públicos pelos cidadãos.
Complementarmente, Godet (2020)Godet, A. (2020). Behind the masks, the politics of carnival. Journal of Festive Studies, 2(1), 1-31. http://doi.org/10.33823/jfs.2020.2.1.89.
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elucida que o Carnaval e suas práticas se dão em tempo e espaço específicos, não sendo possível uma análise histórica desta festividade. Ademais, o autor indica que, apesar de ter ocorrido um processo de participação regular de Negros nos Carnavais de toda a América no fim do século XIX, é apenas no século XX que a performance Carnavalesca adquire uma tessitura política em questões como o legado colonial, a participação de minorias nas festividades e o orgulho étnico que trazem à tona a independência política e cultural.
Ainda que as diferentes interpretações do Carnaval brasileiro sejam relevantes para o entendimento da atuação dos blocos Afro, como sugerem os estudos de Roberta DaMatta e de Maria Isaura Pereira de Queiroz, em suas diferenças e complementariedades, a presente pesquisa foca no potencial da atuação dos blocos Afro de Carnaval, promovendo a valorização da cultura Afro e a apropriação dos espaços públicos por corpos dissidentes, o que também é entendido aqui como um exercício de busca pelo direito à cidade (Lefebvre, 2001Lefebvre, H. (2001). O direito à cidade. São Paulo: Centauro.).
Essa busca, que se dá a partir de uma multiplicidade de práticas, saberes, representações, lugares, emoções e formas de apropriação, pode acionar diferentes elementos das cidades, podendo ser relacionada ao movimento chamado por Agier (2015)Agier, M. (2015). Do direito à cidade ao fazer-cidade: o antropólogo, a margem e o centro. Mana, 21(3), 483-498. http://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n3p483.
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de fazer-cidade: um movimento originado de uma ausência, aqui especificada como o direito dos Negros de se apropriarem dos espaços públicos e, como a democratização da cultura, é impulsionado por uma “imagem”, um ideal perdido ou utopia (Harvey, 2014Harvey, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes.; Lefebvre, 2001Lefebvre, H. (2001). O direito à cidade. São Paulo: Centauro.). Essa perda, aqui relacionada à condição dos Negros na cidade, nas limitações à cidadania, cultura e formas de existência, provê potência e possibilidades em uma cidade real, diferente da cidade concebida no âmbito da política urbana e das imposições de mercado para a constituição do espaço físico da cidade.
O esforço metodológico apresentado, a seguir, destaca as formas de acessar essa cidade real, localizada entre o percebido e o vivido, nas apropriações e usos da cidade de Belo Horizonte pelas pessoas que integram os blocos Afro e por aqueles que tomam parte em seus desfiles, em uma multiplicidade de práticas.
Percurso metodológico
De acordo com Agier (2011), oAgier, M. (2011). Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo: Terceiro Nome. enfoque de uma etnografia urbana possibilita esquecer essa cidade planejada, concebida, e buscar a agência de cidadãos Negros que fazem a cidade e suas formas de existência e resistência, em um “[...] movimento permanente de transformação urbana no tempo e no espaço que podem constituir a contribuição do olhar antropológico sobre a cidade” (Agier, 2015, pAgier, M. (2015). Do direito à cidade ao fazer-cidade: o antropólogo, a margem e o centro. Mana, 21(3), 483-498. http://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n3p483.
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. 484).
Pensando em uma etnografia que enfoca os aspectos da cultura negra e a apropriação de espaços por corpos dissidentes, o primeiro esforço desta pesquisa está ligado à formação teórica, indispensável para acessar este campo, uma vez que “[...] a capacidade de levantar problemas em campo advém da familiaridade com a bibliografia do tema” (Uriarte, 2012, pUriarte, U. M. (2012). O que é fazer etnografia para os antropólogos. Ponto Urbe: Revista do Núcleo de Antropologia Urbana da USP, 11(11), 1-13. http://doi.org/10.4000/pontourbe.300.
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. 7). Tal processo envolve a leitura de textos do referencial teórico, que versam sobre o racismo no Brasil e a condição dos Negros nas cidades, pensando, especificamente, sobre a construção da cidade de Belo Horizonte, assim como leituras sobre Carnaval de rua e blocos Afro.
A etapa seguinte consistiu no trabalho de campo em dois blocos Afro do Carnaval de Belo Horizonte: Angola Janga e Magia Negra. A seleção desses blocos foi feita com base em critérios como identificação do bloco como Afro, local do desfile, atuação além do Carnaval, conexão com religiões de matriz Africana e atividades políticas. Inicialmente, cerca de dez blocos foram considerados, mas apenas dois foram escolhidos (Angola Janga e Magia Negra), levando em conta a viabilidade da pesquisa em relação à técnica de etnografia.
Magnani (2009)Magnani, J. G. C. (2009). Etnografia como prática e experiência. Horizontes Antropológicos, 15(32), 129-156. http://doi.org/10.1590/S0104-71832009000200006.
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divide a experiência etnográfica em dois momentos: a primeira impressão e a experiência reveladora. Para a autora, a primeira impressão é o contato inicial com o campo desconhecido, seguida pela experiência reveladora que ocorre durante a pesquisa. No caso desta pesquisa, o autor que realizou a etnografia narra que sua primeira impressão sobre os blocos Afro de Belo Horizonte começou, em 2018, quando participou do desfile do bloco Angola Janga. O pesquisador relatou que se sentiu “em casa” e acolhido, devido à familiaridade com a cultura Afro, por ter vivido perto de um centro cultural que também possui um bloco Afro e ter participado de atividades relacionadas ao bloco quando criança. Essas experiências influenciaram a pesquisa e facilitaram o acesso ao campo.
Oliveira (2018)Oliveira, J. S. (2018). As influências raciais na construção do campo etnográfico: um estudo multissituado no contexto Brasil-Canadá. Organizações & Sociedade, 25(86), 511-531. http://doi.org/10.1590/1984-9250868.
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também destaca a importância das questões raciais na construção do campo etnográfico, afirmando que a experiência pessoal do pesquisador é evidenciada na realização da etnografia. Nesta pesquisa, particularmente, o recorte de raça foi fundamental para o acesso ao campo e para estabelecer conexões com os integrantes dos blocos aqui analisados. Foram recorrentes ao longo da etnografia, falas como “[...] pode contar comigo [para execução desta pesquisa], porque você é preta como a gente e precisamos fortalecer os corres dos nossos irmãos” (Diário de campo, 23 de fevereiro de 2021), e:
[...] a gente adora cara, especialmente quando o pesquisador é Negro, porque o bloco já foi pesquisado por algumas pessoas e isso é motivo de muito orgulho pra gente assim, de um movimento que é de rua chegar na academia. Mas nos incomoda um pouco, nos incomoda muito, na real, quando a gente é pesquisado apenas do ponto de vista de objeto, nós não somos um objeto, apenas, né. E quando o pesquisador é Negro, quando o pesquisador tem acompanhado o trabalho, tem se envolvido de alguma forma ou foi tocado pelo movimento de alguma forma, a gente ama participar assim [...]. (Diário de campo, 24 de agosto de 2021).
De modo complementar, foram realizadas entrevistas com os fundadores dos blocos Angola Janga e Magia Negra. A pesquisa documental realizada através dos registros do Arquivo Público de Belo Horizonte e do Museu Histórico Abílio Barreto teve por finalidade acessar a narrativa oficial da cidade, contraposta às discussões encontradas em pesquisas feitas sobre apagamentos e silenciamentos na história da capital mineira.
Do apagamento cultural aos blocos Afro
Antes mesmo de sua inauguração, em 12 de dezembro de 1897, Belo Horizonte já convivia com folias de caráter carnavalesco. Em janeiro do mesmo ano, operários que trabalhavam na construção da cidade se reuniram em um desfile de carros e carroças onde hoje é conhecida como a região central da cidade (Portal Belo Horizonte, 2019Portal Belo Horizonte. (2019). Tem muita história no Carnaval de Belo Horizonte. Recuperado em 15 de março de 2023, de http://portalbelohorizonte.com.br/carnaval/bh122-historia-do-carnaval-e-da-capital
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). Os anos que se sucederam foram marcados pelos desfiles dos corsos, blocos caricatos, escolas de samba e bailes fechados de Carnaval. Entretanto, nos anos de 1990, a cidade viveu uma suspensão das festividades e um grande esvaziamento populacional durante os dias de Carnaval. Em 2004, por exemplo, cerca de 500 mil habitantes deixaram a capital mineira, durante o período do Carnaval (Braga & Vieira, 2013Braga, S. S., & Vieira, L. M. (2013). Análise da viabilidade turística e cultural do carnaval de Belo Horizonte (MG). Revista Brasileira de Ecoturismo, 6(5), 910-925. http://doi.org/10.34024/rbecotur.2013.v6.6204.
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). Esse hiato de tempo relativo ao Carnaval da capital mineira foi utilizado pela imprensa para decretar o fim da folia.
Não obstante, já se observava, a partir do início dos anos 2000, uma retomada das festividades. Em 2004, por exemplo, mesmo com grande parte dos belo-horizontinos deixando a cidade, os desfiles das escolas de samba e blocos caricatos retornaram graças à organização e ao financiamento institucional do poder público. Apesar deste movimento de retomada, foi apenas por volta de 2009 que o Carnaval de Belo Horizonte vivenciou uma grande transformação, com o resgate dos blocos de rua (Dias, 2015Dias, P. L. C. (2015). Sob a “Lente do espaço vivido”: a apropriação das ruas pelos blocos de carnaval na Belo Horizonte contemporânea (Dissertação de mestrado). Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.).
O reaparecimento do Carnaval de rua na cidade, com destaque para o protagonismo dos blocos de rua que despontaram na capital em 2009 e 2010, pode ser explicado a partir de um movimento de resistência ao cerceamento da ocupação dos espaços públicos na cidade (Dias, 2015Dias, P. L. C. (2015). Sob a “Lente do espaço vivido”: a apropriação das ruas pelos blocos de carnaval na Belo Horizonte contemporânea (Dissertação de mestrado). Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.). Em 2009, o prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda, emitiu um decreto que exigia uma análise prévia para a realização de eventos em praças e parques da cidade (Mendes, 2018Mendes, S. (2018, 8 de janeiro). Praia da Estação comemora oito anos com mais uma edição da festa; neste sábado. Belo Horizonte: Portal BHAZ. Recuperado em 15 de março de 2023, de https://bhaz.com.br/2018/01/08/praia-estacao-oito-anos/
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). Em resposta a essa proibição, os moradores de Belo Horizonte iniciaram um movimento sem líderes, com organização horizontal e apartidária, decidindo realizar um evento chamado Praia da Estação. A mobilização e convocação foram feitas pela internet, convidando as pessoas a comparecerem à Praça da Estação vestindo trajes de praia e levando objetos associados a um dia de sol na praia. O objetivo era ocupar o espaço público, desfrutar de um dia de praia e discutir o decreto (Migliano, 2013Migliano, M. (2013). Praia da Estação como ação política: relato de experiências, envolvimentos e encontros. Redobra, 4(11), 43-54. Recuperado em 15 de março de 2023, de http://www.redobra.ufba.br/wp-content/uploads/2013/06/redobra11_05.pdf
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).
Tal movimento se relaciona com o que Lefebvre (1991)Lefebvre, H. (1991). The production of space. Oxford: Blackwell Publishing. chamou de espaço concebido, ou seja, o movimento de cercamento dos espaços públicos engendrado, em 2009, pelo Prefeito Márcio Lacerda é um reflexo da tentativa de manter aquele(s) espaço(s) planejado(s) pelas autoridades. Especialmente em Belo Horizonte, uma cidade planejada sob uma ótica elitista e eurocentrada, a concepção de cidade foi pautada em critérios de uma suposta modernidade que exclui elementos indesejáveis para fora de seu perímetro, o que retrata tanto elementos de eugenia quanto de higienismo. Esse espaço controlado mantém e reforça o apagamento das diferenças e dos diferentes. Por outro lado, tal apagamento não se dá sem resistência, o evento da Praia da Estação é um exemplo de produção de um contraespaço (Lefebvre, 1991Lefebvre, H. (1991). The production of space. Oxford: Blackwell Publishing.), ou seja, de reconstrução da cidade a partir da reconstrução dos sujeitos políticos enquanto cidadãos (Harvey, 2013Harvey, D. (2013). A Liberdade da Cidade. Fórum Justiça. Recuperado em 15 de março de 2023, de https://forumjustica.com.br/wp-content/uploads/2013/02/A-LIBERDADE-DA-CIDADE-David-Harvey.pdf
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, 2014Harvey, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes.).
Os manifestantes ocuparam a praça no dia 16 de janeiro de 2010, porém, as fontes luminosas não foram ligadas como de costume. Os participantes arrecadaram dinheiro durante o evento e utilizaram esses recursos para contratar um caminhão-pipa, criando um ambiente de praia improvisado. Em resposta, a Administração Municipal estabeleceu uma Comissão Especial de Regulamentação de Eventos na Praça da Estação que resultou na publicação de um novo decreto em maio de 2010. Este decreto introduziu diversas regulamentações, incluindo uma cobrança monetária para a realização de eventos na praça, que foi vista pelos participantes da Praia da Estação como uma iniciativa para favorecer as grandes empresas. Apesar disso, os frequentadores continuaram ocupando a praça, e esse movimento deu origem ao bloco de Carnaval Praia da Estação, que contribuiu para o renascimento dos blocos de rua em Belo Horizonte (Migliano, 2013Migliano, M. (2013). Praia da Estação como ação política: relato de experiências, envolvimentos e encontros. Redobra, 4(11), 43-54. Recuperado em 15 de março de 2023, de http://www.redobra.ufba.br/wp-content/uploads/2013/06/redobra11_05.pdf
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).
Atualmente, as festividades cresceram e mais blocos de rua surgiram, passando a ocupar os espaços públicos da cidade, inclusive a Praça da Estação que, hoje, abriga o palco principal do Carnaval da cidade. De forma que, estando nas ruas, os blocos ganharam relevância no que diz respeito ao seu poder de atuação e, assim, assumiram o lugar de vocalizadores de uma mensagem política.
Estes blocos possuem todo um ferramental estético-simbólico relativo ao uso do corpo para a reivindicação das faltas e ao uso das fantasias, que podem ser alegorias das críticas de tudo aquilo que várias outras modalidades de movimentos político-sociais reivindicam. Os blocos de rua e outras organizações carnavalescas, em geral, possuem uma liberdade de expressão cultural que garante o direito ao lazer, mas também o direito ao protesto. Nesta perspectiva, os blocos Afro, especificamente, agregam mais uma luta a esse movimento, como ocorre com os blocos Afro Angola Janga e Magia Negra, lócus do presente estudo. Afinal, se Agier (2015)Agier, M. (2015). Do direito à cidade ao fazer-cidade: o antropólogo, a margem e o centro. Mana, 21(3), 483-498. http://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n3p483.
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defende a necessidade do fazer-cidade, à medida que se acionam diferentes elementos das cidades a partir das ausências, os blocos Afro reivindicam sua cultura ao mesmo tempo em que buscam também se apropriar dos espaços públicos, com vistas ao direito do Negro à cidade (Rezende & Andrade, 2022Rezende, A. F., & Andrade, L. F. S. (2022). Direito do Negro à Cidade: de uma Formação Socioespacial Racista à Utopia Lefebvriana. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 14, e20210438. http://doi.org/10.1590/2175-3369.014.e20210438.
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).
Fundado em 20 de novembro de 2015, o Angola Janga é um bloco Afro que surgiu em Belo Horizonte com o objetivo de permitir que pessoas Negras também participassem do Carnaval de rua. O bloco não possui um território específico na cidade, mas o seu cortejo acontece no hipercentro, reservando os destaques para pessoas Negras, enquanto pessoas brancas podem participar em outras funções. Além do Carnaval, o bloco desenvolve atividades ao longo do ano, como oficinas, apoio social e capacitações.
O Magia Negra, por sua vez, nasceu em 2016, e realiza seu desfile no bairro Concórdia, também chamado pelo fundador do bloco como a “pequena África” de Belo Horizonte. O bloco valoriza a ancestralidade e tem ligação com as religiões de matriz Africana, porém é aberto para pessoas de todas as etnias.
O Carnaval em Belo Horizonte, no final dos anos 2000, passou por um renascimento relacionado ao direito à cidade. É neste contexto que surgem o Angola Janga e o Magia Negra. Esses blocos atuam como agentes de transformação política e cultural, valorizando a identidade Negra e combatendo o racismo durante o Carnaval. Entretanto, tal movimento não é feito sem desafios, especialmente no que diz respeito às relações com o poder público.
No contexto do crescimento do Carnaval de rua em Belo Horizonte, é inevitável a interação dos órgãos públicos, como a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros, com as festividades. No entanto, a relação entre a população Negra e as forças de segurança é complexa, não apresentando mudanças significativas durante o Carnaval para os blocos Afro. Tal realidade evidencia como a intersecção entre racismo, cidades e cultura ainda se dão em bases coloniais, o que resulta em uma consistente marginalização da cultura Afro-brasileira, não apenas no âmbito individual, mas também em relação à sua forma de existência (Fanon, 2018Fanon, F. (2018). Racismo e cultura. Revista Convergência Crítica, 13, 78-90. http://doi.org/10.22409/rcc.v1i13.38512.).
No caso específico da atuação da Polícia Militar em um bloco Afro, uma mulher Negra se orgulha de ter dispersado a Polícia, consecutivas vezes, durante o cortejo (Diário de Campo, 23 de fevereiro de 2020). O bloco Angola Janga adota uma abordagem de negociação com a Polícia, estabelecendo um diálogo direto com o responsável pelo acompanhamento do cortejo e recebendo, antecipadamente, o Corpo de Bombeiros e a Polícia, buscando uma relação próxima para evitar a violência e a arbitrariedade.
Por outro lado, foi observada ao longo da pesquisa uma diferença de tratamento entre os blocos que desfilam em regiões nobres da cidade e os que saem de comunidades ou favelas, os quais, apesar de não serem blocos Afro, são blocos de Carnaval que possuem entre seus integrantes e foliões a maioria Negra, afinal, Carneiro (2011)Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro Edições. já nos alertou que a pobreza no Brasil tem cor. Constatou-se que a Polícia tende a demonstrar uma postura mais truculenta com os blocos Afro e/ou blocos periféricos, provavelmente devido à ideia de que as pessoas Negras não devem ocupar as ruas ou a cidade. O bloco Magia Negra, por sua vez, relata uma boa relação com a polícia, possivelmente devido à escolha de não tocar músicas consideradas pornográficas e à postura tranquila dos frequentadores. No entanto, há registros de situações em que a presença policial causou desconforto e desconfiança nos foliões participantes das festividades.
As relações conflituosas entre Negros e as forças públicas de segurança podem ser relacionadas ao espaço concebido de Lefebvre (1991)Lefebvre, H. (1991). The production of space. Oxford: Blackwell Publishing., espaço este que reflete a segregação e a marginalização racial presente na organização das cidades. As comunidades Negras são, frequentemente, segregadas em áreas periféricas, sem acesso a serviços e oportunidades (Rezende & Andrade, 2022Rezende, A. F., & Andrade, L. F. S. (2022). Direito do Negro à Cidade: de uma Formação Socioespacial Racista à Utopia Lefebvriana. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 14, e20210438. http://doi.org/10.1590/2175-3369.014.e20210438.
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). Essa segregação é resultado de uma discriminação institucionalizada. Não obstante, as comunidades negras buscam reivindicar o espaço urbano por meio de movimentos sociais e expressões culturais, lutando por uma cidade mais justa e inclusiva, como é o caso da atuação dos blocos Angola Janga e Magia Negra. A análise do espaço concebido de Lefebvre (1991)Lefebvre, H. (1991). The production of space. Oxford: Blackwell Publishing. estimula a questionar tanto as dimensões físicas quanto sociais do espaço, o que contribui para entender como o racismo dificulta a ocupação de espaços públicos, impedindo um bloco Afro de realizar seu cortejo conforme o planejado ou de ocupar parte da cidade.
Em relação ao Corpo de Bombeiros, parece haver uma postura mais favorável ao diálogo com os gestores dos blocos, atuando como os responsáveis pela elaboração das diretrizes de segurança para os blocos carnavalescos. No entanto, alguns integrantes do bloco Angola Janga relataram uma situação delicada com os bombeiros durante a vistoria do trio elétrico durante o Carnaval de 2019. Na ocasião, o órgão proibiu os cantores de ficarem em cima do trio, alegando riscos de segurança devido à altura, porém, o mesmo trio havia sido usado no mesmo dia por um bloco não-Afro, e a organização não experienciou nenhum problema com o Corpo de Bombeiros. Após tentativas de negociação sem sucesso, os integrantes do Angola Janga decidiram desfilar no chão.
Tanto os episódios com a Polícia Militar como aqueles com o Corpos de Bombeiros reiteram que a cidade não é para todos. Para além de todas as formas de violência, fragmentação e segregação que os Negros são submetidos nas cidades, eles também sofrem com a inferiorização de sua cultura (Fanon, 2018Fanon, F. (2018). Racismo e cultura. Revista Convergência Crítica, 13, 78-90. http://doi.org/10.22409/rcc.v1i13.38512.) até mesmo na periferia, onde a cor de pele predominante é a escura (Telles, 1995Telles, E. E. (1995). Race, class and space in Brazilian cities. International Journal of Urban and Regional Research, 19(3), 395-406. http://doi.org/10.1111/j.1468-2427.1995.tb00516.x.
http://doi.org/10.1111/j.1468-2427.1995....
).
Em resumo, as relações entre os blocos Afro, a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros no Carnaval de Belo Horizonte são complexas e revelam disparidades no tratamento, o que evidencia a necessidade de diálogo e negociação para garantir a segurança e o respeito aos direitos dos participantes dos blocos supracitados. É incontestável que as instituições públicas podem contribuir para a segregação, apagamento cultural e violência contra pessoas Negras visto que, por meio de políticas discriminatórias, elas são capazes de criar espaços segregados e negligenciar a diversidade cultural. As forças de segurança pública podem perpetuar violências físicas e simbólicas, entretanto, elas também podem contribuir para o direito à cidade, à medida que a cidade molda as pessoas por meio de permissões e não apenas restrições, possibilitando oportunidades de participação e não apenas exclusões. Para tanto, é necessário implementar políticas de combate ao racismo, capacitar as forças de segurança e promover a inclusão e igualdade de direitos, uma vez que, de acordo com Harvey (2014), oHarvey, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes. direito à cidade implica um exercício coletivo de poder para refazer a cidade.
Portanto, os blocos Afro são um movimento político com um viés fundamentalmente cultural, de mobilização racial (Gomes, 2019Gomes, N. L. (2019). O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes.). Apesar desses blocos se apoiarem na tradição, eles não apontam para o passado, e sim para o futuro das relações raciais brasileiras (Risério, 1995Risério, A. (1995). Carnaval: as cores da mudança. Afro-Ásia, 16(16), 90-106. http://doi.org/10.9771/aa.v0i16.20848.
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). Futuro esse que, no Carnaval da cidade de Belo Horizonte, pode ser observado no Kandandu. Se por um lado existe uma inferiorização da cultura Negra, por outro, recorremos a Agier (2015)Agier, M. (2015). Do direito à cidade ao fazer-cidade: o antropólogo, a margem e o centro. Mana, 21(3), 483-498. http://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n3p483.
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para pensar em possibilidades para o fazer-cidade.
Ao reconhecer a importância das práticas diárias das pessoas para a construção e transformação das cidades, é possível chegar também ao consenso de que o fazer-cidade ressalta a dimensão política da participação dos cidadãos na tomada de decisões, assim como na luta por direitos e inclusão. É nesse sentido que analisamos o Kandandu como um exemplo de fazer-cidade dos blocos Afro na cidade de Belo Horizonte.
Kandandu: encontro de blocos Afro do Carnaval de Belo Horizonte
Kandandu é uma palavra do kimbundu, uma das línguas bantu faladas em Angola, que significa “abraço”, mas também representa a união de filosofias, ideais, conhecimentos e vivências por meio da ancestralidade Africana. É um termo que vai muito além do contato físico entre dois corpos. Por causa de seu significado, o encontro de blocos Afro que marca a abertura oficial do Carnaval em Belo Horizonte é chamado de Kandandu. Em 2023, o evento contou com os seguintes blocos Afro: Oficina Tambolelê, Afoxé Bandarerê, Magia Negra, Swing Safado, Arrasta Favela, Afrodum e Samba da Meia Noite (Portal Belo Horizonte, 2023Portal Belo Horizonte. (2023). Programação Kandandu. Recuperado em 15 de março de 2023, de http://portalbelohorizonte.com.br/carnaval/2023/kandandu
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).
A proposta deste encontro nasceu a partir da articulação entre seis lideranças de blocos Afro da cidade de Belo Horizonte. A intenção dessas lideranças, no ano de 2016, era promover um evento no qual todos os blocos Afro de Belo Horizonte pudessem tocar em um mesmo dia e faixa de horário. Para tal, reuniram-se as lideranças dos blocos Afro Angola Janga, Magia Negra, Samba da Meia Noite, Afoxé Bandarerê, Fala Tambor e Tambolelê. Desse encontro nasceu a intenção de se organizarem coletivamente e, como consequência, surgiu a Associação dos Blocos Afro de Minas Gerais (Abafro).
Com a criação da Associação, a ideia de juntar todos os blocos Afro da cidade em um mesmo dia de apresentação ganhou forças e os integrantes da Abafro decidiram escrever o projeto que viria a se chamar Kandandu. Após a elaboração do projeto, a Associação, representada pela fundadora e então presidente do bloco Angola Janga, iniciou a busca por apoio institucional do Município, mas encontrou resistência e até um certo descaso com a projeto. Ela se recorda que, durante o período que buscou contato com a Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte, apenas estagiários eram designados para comparecer nas diversas reuniões marcadas com os representantes do órgão e, apesar da boa vontade, estes não tinham nenhum poder de decisão, de forma que pouco podiam contribuir ou oferecer para a efetividade do Kandandu.
Observa-se, portanto, uma desvalorização das manifestações culturais e das pessoas Negras. Especificamente, quando a presidente da Abafro é repetidamente recepcionada apenas por estagiários, evidencia-se o desinteresse dos representantes da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte nas demandas dos blocos Afro. Além disso, durante a conversa com os estagiários, a presidente da Abafro observou que os recursos públicos eram destinados para espaços culturais e/ou artistas predominantemente brancos, mostrando que a desvalorização da cultura Negra perpassa pelo apagamento, exclusão e violência de todo tipo, inclusive a financeira, negando o acesso aos recursos que poderiam garantir a atuação e agência destes grupos.
Apesar das dificuldades e tensionamentos que a presidente da Abafro vivenciou junto às lideranças das instituições públicas responsáveis por promover a cultura na cidade de Belo Horizonte, em 2017, a Abafro foi colocada em contato com a Belotur, a partir do intermédio do então presidente da Fundação Municipal de Cultura. A Prefeitura de Belo Horizonte se relaciona com os produtores culturais que atuam no Carnaval da cidade por meio da Belotur, a Empresa Municipal de Turismo de Belo Horizonte, responsável por gerir as festividades de caráter carnavalesco da capital mineira.
Após múltiplas negociações com a Belotur, inclusive respaldando argumentos relativos às legislações que versam sobre a promoção da igualdade racial, a Abafro conseguiu o palco principal do Carnaval de Belo Horizonte, localizado na Praça da Estação, para, enfim, transformar o projeto Kandandu em “Kandandu: Encontro de blocos Afro de Belo Horizonte”, festejo responsável pela abertura oficial do Carnaval da cidade de Belo Horizonte desde 2017.
No ano seguinte à estreia do Kandandu, o Ministério dos Direitos Humanos reconheceu o projeto como uma das principais ações de promoção da igualdade racial do país. Durante a cerimônia de premiação, o então diretor de eventos da Belotur declarou: “Não posso aceitar este prêmio sem entregá-lo também a [nome da presidente da Abafro responsável pelas negociações sobre o Kandandu junto a Belotur]”.
A esse respeito, a agora ex-presidente da Abafro afirmou: “Para mim, o reconhecimento foi ótimo. Depois, chorei bastante porque me emocionei com o reconhecimento. Foi um processo doloroso de racismo institucional, sendo tratada como nada”. Ela se emocionou por saber que teve papel ativo na conquista do Kandandu, por acreditar que esse evento simboliza uma grande conquista do povo Negro de Belo Horizonte no que diz respeito à valorização e à propagação da cultura Afro, mas também à ocupação do espaço público pelos Negros.
Afinal, percebe-se historicamente que a população Negra, como indivíduos e coletividade com uma cidadania mutilada, manifesta desvantagens cumulativas que a impede de exercer uma cidadania plena e disputar a cidade (Rezende & Andrade, 2022Rezende, A. F., & Andrade, L. F. S. (2022). Direito do Negro à Cidade: de uma Formação Socioespacial Racista à Utopia Lefebvriana. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 14, e20210438. http://doi.org/10.1590/2175-3369.014.e20210438.
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), como se percebe na busca da Abafro pelo direito de ocupar a cidade com o Kandandu. Tal movimento, ao mesmo tempo em que evidencia a resistência do povo Negro, também desvela uma realidade opressora.
O Kandandu celebra a cultura Negra e Afro-brasileira e utiliza a Praça da Estação como seu local de realização, o que é altamente relevante devido ao histórico de disputa entre a população e os agentes públicos. A população saiu vitoriosa nessa disputa, transformando a Praça e outros espaços de Belo Horizonte em áreas públicas acessíveis a todos.
Ao ocupar a Praça da Estação, o Kandandu fortalece a presença e a visibilidade da cultura Negra na cidade, contribuindo para o reconhecimento e a valorização da diversidade cultural. Em resumo, a escolha da Praça da Estação como local de realização do Kandandu possui um significado profundo, visto que, além de seu valor simbólico e histórico, ela permite que o evento contribua para fortalecer o direito do povo Negro à cidade, promovendo a valorização da cultura Negra e Afro-brasileira na sociedade como um todo.
Considerações
A presente pesquisa permite compreender melhor o papel dos blocos Afro no Carnaval de Belo Horizonte, destacando sua importância como expressões do direito dos Negros à cidade. Ao analisar o contexto urbano, é possível identificar o impacto dessas manifestações culturais como formas de resistência à segregação e ao apagamento da cultura Negra na cidade.
A utopia que impulsiona os blocos Afro representa um ideal de cidade que valoriza a cultura e corpos Negros, promovendo a participação ativa dos Negros na construção coletiva do espaço urbano. O direito à cidade, conforme discutido por Harvey (2013Harvey, D. (2013). A Liberdade da Cidade. Fórum Justiça. Recuperado em 15 de março de 2023, de https://forumjustica.com.br/wp-content/uploads/2013/02/A-LIBERDADE-DA-CIDADE-David-Harvey.pdf
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, 2014Harvey, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes.), exige uma ação coletiva para remodelar a cidade e, ao fazê-lo, remodelar a nós mesmos. Nesse sentido, a atuação dos blocos Afro no Carnaval de Belo Horizonte reivindica o direito dos Negros à cidade, promovendo a igualdade racial, valorizando a cultura e estética Negra, e ocupando os espaços públicos com corpos dissidentes.
É crucial reconhecer que a estruturação urbana de Belo Horizonte foi marcada por uma clara separação de espaços destinados aos diferentes grupos sociais, resultando em exclusões e silenciamentos da população Negra. Em outras palavras, a construção da cidade carrega consigo a história da estruturação do racismo. A retomada do Carnaval da cidade, com o protagonismo dos blocos de rua, incluindo os blocos Afro Angola Janga e Magia Negra, representa uma resistência ao cerceamento dos espaços públicos, bem como uma oportunidade de combater o racismo e a segregação dos corpos Negros, durante as festividades e para além delas.
Por meio de uma abordagem etnográfica baseada na antropologia das cidades, entrevistas e pesquisa documental, foram investigados dois blocos Afro em Belo Horizonte, permitindo uma compreensão mais aprofundada de suas práticas e significados no contexto urbano. Os resultados aqui encontrados reforçam a importância dos blocos Afro como agentes de transformação social, valorização da negritude e luta pelo direito à cidade, representando um campo de possibilidades que desafia as estruturas de segregação e apagamento cultural, oferecendo um horizonte de diversidade e inclusão para a capital mineira. Portanto, a abertura do Carnaval de rua de Belo Horizonte, o Kandandu, é um caso exemplar desse fazer-cidade.
Como contribuição central desta pesquisa, identificou-se o movimento de fazer-cidade dos blocos Afro do Carnaval de rua de Belo Horizonte, na promoção da cultura Negra e na ocupação dos espaços públicos, podendo ser compreendido como uma resistência à cidade planejada e concebida como um espaço urbano elitista e segregacionista. Ainda que os agentes de segurança e a própria pasta da cultura tenham atuado, direta ou indiretamente, de forma a coibir ou deslegitimar a pauta da cultura Afro no Carnaval Belo Horizontino, as pessoas Negras que fazem parte da folia conseguiram avanços consideráveis quanto à ocupação do espaço público, tanto pelo desfile no hipercentro realizado pelo Angola Janga quanto pela abertura da festa, que é feita desde 2017 pela reunião dos blocos Afro na Praça da Estação, no Kandandu.
A presente investigação pode, por conseguinte, suscitar uma agenda de pesquisa pautada nas diferentes formas que os Negros e Negras se apropriam da cidade de Belo Horizonte (e de outras cidades), em suas manifestações culturais, litúrgico-existenciais e religiosas, em um movimento de fazer-cidade que busca tanto a valorização da cultura e existência Negras quanto a ocupação dos espaços públicos e promoção da igualdade racial. O escopo deste estudo se concentrou em específico sobre o Carnaval de rua, porém, outros aspectos de contestação política dos blocos podem ser pesquisados e aprofundados em futuras pesquisas.
Declaração de disponibilidade de dados
O conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste artigo está disponível no repositório da SciELO Data e pode ser acessado em https://doi.org/10.48331/scielodata.GBONP5
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Como citar:
Andrade, L. F. S., Rezende, A. F., & Saraiva, L. A. S. (2024). Blocos Afro de Carnaval em Belo Horizonte: da segregação racial ao fazer-cidade. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, v.16, e2023020. https://doi.org/10.1590/2175-3369.016.e20230201
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Seção Especial: Desigualdades Urbanas e Segregação
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Set 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
19 Jun 2023 -
Aceito
05 Jul 2024