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A Metáfora Fundamental da Sofística1 1 Trabalho decorrente de pesquisas subsidiadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Resumo:

Este artigo analisa a metáfora como estratégia discursiva destinada a explicar e a difundir os conceitos que sustentam as doutrinas em geral e as doutrinas educacionais em particular. Examina a metáfora cultivo como metáfora fundamental da educação, bem como a sua suposta origem na Sofística, e propõe substituí-la pela metáfora navegação. Esta substituição permite atribuir novos significados tanto à prática dos sofistas quanto ao ofício de educar no decorrer da história e na atualidade, impondo desafios à formação inicial e continuada de professores.

Palavras-chave:
Metáfora; Sofística; Educação Contemporânea

Abstract:

This paper analyzes the metaphor as a discursive strategy to explain and disseminate the concepts that support doctrines in general and educational doctrines in particular. It examines the Cultivation metaphor as a fundamental metaphor for education, as well as its supposed origin in Sophistry, and proposes to replace it with the Navigation metaphor. This substitution makes it possible to assign new meanings both to the practice of the sophists and to the profession of educating today and throughout history, imposing challenges on the training and continuing education of teachers.

Keywords:
Metaphor; Sophistry; Contemporary Education

Introdução

As metáforas são úteis para explicar figurativamente e também para difundir noções e raciocínios componentes dos mais diversos campos teóricos. São chamadas metáforas fundamentais aquelas que estabelecem cabalmente a definição, as finalidades e os procedimentos de determinado domínio do saber e do ofício a ele correspondente. Muitas vezes, a mentalidade coletiva mantém por séculos certas expressões metafóricas sem questionamento, como que adormecidas, o que dificulta o exame de sua adequação, bem como a discussão dos propósitos da área a que se aplica.

A educação é descrita por uma metáfora fundamental que desfruta dessa letargia: Cultivo2 2 Para grafar as metáforas, recorremos à tipografia SmallCaps utilizada por Lakoff e Johnsen (2003). . Sua permanência no discurso dos educadores faz-se em prejuízo de um exame crítico de seu significado teórico e das consequências que acarreta ao exercício da docência3 3 Scheffler (1974) foi um dos primeiros a analisar o impacto das metáforas na educação, destacando os limites e as possibilidades das metáforas Cultivo, Jardim da Infância, Argila e Arte, muito utilizadas para caracterizar essa área. . A origem da ideia de educação como ofício assemelhado à agricultura ou à jardinagem é associada à atuação dos primeiros pensadores que se dedicaram à pedagogia como atividade profissional, os sofistas que atuaram na Grécia Clássica.

Neste artigo, faremos inicialmente uma exposição de caráter geral acerca das metáforas, com o intuito de contribuir para a sua elucidação teórica, destacando a sua relevância no discurso pedagógico. Em seguida, discutiremos os problemas envolvidos na adoção da metáfora Cultivo como representativa do empreendimento educacional da Sofística. Esse questionamento nos levará à proposição de uma nova metáfora fundamental para definir as metas e os métodos educacionais dos sofistas, mais condizente com as atribuições políticas por eles assumidas.

Esperamos que tais análises contribuam para o cumprimento de dois objetivos básicos em sintonia com o movimento de investigação que vem se desenvolvendo desde o século passado em franca oposição à tradição platônica, pretendemos contribuir para recuperar a relevância dos sofistas no delineamento dos traços fundantes da profissão docente; considerando o persistente legado da metáfora Cultivo na área de educação e a sugestão de uma nova metáfora fundamental para definir a Sofística, buscaremos debater as tendências pedagógicas ora dominantes.

As Metáforas no Discurso Pedagógico

Quando explicamos a alguém um significado que lhe seja desconhecido, recorremos a algo que seja de seu conhecimento e que se assemelhe, de algum modo, ao que desejamos comunicar. Esse procedimento constitui uma estratégia argumentativa presente tanto na fala coloquial quanto no discurso científico, revelando, muitas vezes, a intenção de obter a anuência do auditório a determinada tese. Trata-se da metáfora, figura de linguagem com valioso potencial persuasivo por ser capaz de orientar o pensamento de quem nos ouve ou lê (Lemgruber; Oliveira, 2011LEMGRUBER, Márcio; OLIVEIRA, Renato. Argumentação e Educação: da ágora às nuvens. In: LEMGRUBER, Márcio Silveira; OLIVEIRA, Renato José (Org.). Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora: UFJF, 2011. P. 23-56. , p. 49).

O potencial argumentativo da metáfora deve ser avaliado considerando que sua origem reside em uma analogia. Raciocinamos por analogia quando estabelecemos semelhanças entre termos originalmente distintos entre si. Seu esquema típico é a afirmação de que A está para B, assim como C está para D, e esses componentes devem ser tão diferentes um do outro quanto possível, para que a equivalência pretendida não se reduza a simples proporcionalidade (Perelman, 2004PERELMAN, Chaïm. Retóricas. Tradução de Maria Ermantina Galvão. 2. edição. São Paulo: Martins Fontes , 2004., p. 334). A analogia visa elucidar os termos A e B, denominados tema, que o auditório desconhece, e a sua eficácia persuasiva reside em lançar mão dos termos C e D, chamados foro, cujo sentido pertence ao domínio cognitivo dos ouvintes (Perelman, 2004, p. 334; Mazzotti, 2008aMAZZOTTI, Tarso. Doutrinas Pedagógicas, Máquinas Produtoras de Litígios. Marília: Poïesis, 2008a. , p. 2).

Ao condensar uma analogia, obtemos uma metáfora. Em vez de dizer que A está para B, assim como C está para D, diremos apenas que A é C de B, expressão resultante da fusão de um dos termos do foro com os termos do tema (Perelman; Olbrechts-Tyteca, 1996PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes , 1996., p. 453). Considerando que, em grego, a palavra metáfora (μεταφορά) significa transporte, raciocinar metaforicamente é transportar para A e B os atributos supostamente inerentes a C e D. A operação é a mesma presente na analogia, porém abreviada, resultando em uma afirmação mais curta e incisiva.

Black (1962BLACK, Max. Models and Metaphors: studies in language and philosophy. New York: Cornell University, 1962., p. 35) afirma que as metáforas possuem características únicas para o estudo da natureza da interação que se pretende entre tema e foro, afirmação que se aplica a qualquer tipo de ordenação social. Uma dessas características é a visão substitutiva, que consiste no emprego da metáfora como expressão literal equivalente do foro. Seu poder argumentativo repousa na suposição de que o tema, em seu conjunto, é similar ou análogo aos significados do foro. A identificação desses significados e do propósito da analogia ou da similaridade permite que o auditório refaça o caminho percorrido pelo orador na construção da metáfora, alcançando o significado literal do que se pretende explicar (Black, 1962, p. 35). Um caso especial é a visão comparativa, quando o orador apresenta a metáfora como demonstração da analogia ou semelhança subjacente, assegurando que a afirmação metafórica pode ser substituída por uma comparação literal equivalente (Black, 1962, p. 37).

Black (1962BLACK, Max. Models and Metaphors: studies in language and philosophy. New York: Cornell University, 1962., p. 38) menciona ainda a visão interativa, caso em que dois pensamentos sobre coisas diferentes atuam em conjunto e dão fundamento a uma única palavra ou frase cujo significado é resultante dessa interação. Quando dizemos que o homem é um lobo, o tema é a palavra homem, a ser explicada pelo foro lobo. Obviamente, a sentença metafórica não será efetiva para um leitor ignorante do que sejam lobos, mas Black (1962, p. 40) lembra que não é preciso conhecer o significado padrão, dicionarizado, da palavra lobo, nem que o leitor a saiba utilizar em sentido literal; basta que se aproprie de um sistema de lugares comuns associados à palavra. Se um leigo for solicitado a dizer o que considera verdadeiro a respeito desses animais, o conjunto de declarações resultantes estará próximo do que Black (1962, p. 40) classifica como sistema de lugares comuns concernente à palavra lobo.

Black (1962BLACK, Max. Models and Metaphors: studies in language and philosophy. New York: Cornell University, 1962., p. 40) sustenta que um sistema de lugares comuns pode incluir “[...] meias-verdades ou erros absolutos”, como quando uma baleia é classificada como peixe. É inegável que uma metáfora operante em dada sociedade pareça absurda em outra, pois o sistema de lugares comuns não é comungado universalmente. Um grupo que acredite serem os lobos reencarnações de humanos mortos dará à afirmação de que o homem é um lobo uma interpretação diferente da que estamos habituados.

O significado da palavra lobo integra um sistema de ideias que, mesmo não sendo delineado com total nitidez, é suficientemente definido para compor uma enumeração detalhada. Chamar um homem de lobo é evocar um sistema de lugares comuns relacionados, como assumir que o homem é parecido com um animal feroz ou que se porta como um caçador, envolvido em constantes lutas etc. Cada uma dessas características ou afirmações implícitas agrega-se com facilidade ao sujeito, o homem, “[...] tanto nos sentidos normais quanto nos anormais”. Conduzido pelo sistema de implicações da palavra lobo, certo ouvinte poderá construir um sistema correspondente de implicações sobre o assunto principal, mas essas implicações poderão não ser as que usualmente se associam aos lugares comuns concernentes aos usos literais da definição de homem (Black, 1962BLACK, Max. Models and Metaphors: studies in language and philosophy. New York: Cornell University, 1962., p. 40).

Black (1962BLACK, Max. Models and Metaphors: studies in language and philosophy. New York: Cornell University, 1962., p. 41) sugere que podemos explicar a metáfora usando outra metáfora: ao olhar o céu à noite através de um vidro em que algumas linhas são transparentes, e outras, opacas, veremos apenas as estrelas que as linhas translúcidas permitem enxergar. A metáfora seria como esse vidro: o sistema de lugares comuns é como o ponto para o qual converge nosso olhar voltado ao objeto e às palavras, e as linhas transparentes do vidro, a argumentação que emprega a metáfora. Assim, na metáfora o sujeito principal são as estrelas, o sujeito subsidiário é o céu com as demais estrelas, e as linhas transparentes são o que delimita a explicação dada pelo orador ao conceito de estrela, desconsiderando tudo o que não lhe é permitido enxergar - os demais astros celestiais.

As doutrinas em geral - filosóficas, teológicas, pedagógicas etc. - sempre se valem de metáforas para comunicar e fazer prevalecer as visões de mundo que defendem. Ao analisar os seus argumentos, podemos identificar as metáforas fundamentais que as compõem, responsáveis por reunir raciocínios que almejam exprimir o real da maneira que lhes parece mais adequada (Perelman apud Lemgruber; Oliveira, 2011LEMGRUBER, Márcio; OLIVEIRA, Renato. Argumentação e Educação: da ágora às nuvens. In: LEMGRUBER, Márcio Silveira; OLIVEIRA, Renato José (Org.). Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora: UFJF, 2011. P. 23-56. , p. 49-50)4 4 Perelman (1987). . As doutrinas pedagógicas, em particular, habitam um campo controvertido em que as concepções educacionais são expressas por meio de distintas metáforas fundamentais, sempre com o propósito de estruturar, organizar e orientar o pensamento da audiência (Lemgruber; Oliveira, 2011, p. 49). Suas características e potencialidades são idênticas às de outras áreas do conhecimento, razão pela qual se sujeitam aos mesmos perigos que as demais.

Apesar da variedade de metáforas passíveis de serem empregadas para explicar o que é a educação, Mazzotti (2008aMAZZOTTI, Tarso. Doutrinas Pedagógicas, Máquinas Produtoras de Litígios. Marília: Poïesis, 2008a. , p. 1) defende que todas as doutrinas educacionais são condensadas e coordenadas por uma só metáfora, Percurso. A justificativa é que a atividade de educar se define pela intenção de conduzir alguém de um estado de menor educação para um estado mais educado (Mazzotti, 2002, p. 128). Nas proposições pedagógicas, a presença de palavras como percurso, caminho, currículo e outras assemelhadas evocam o significado de condução do educando de um estado a outro (Mazzotti, 2008a, p. 3).

Dois sentidos concorrentes e antagônicos são intrínsecos a essa metáfora genérica: um percurso perfeitamente determinado e determinável e um percurso permeado por incertezas, processo que não se sujeita a determinações (Mazzotti, 2002MAZZOTTI, Tarso. A Metáfora Percurso no Debate Sobre Políticas Educacionais no Brasil Contemporâneo. In: VALE, José Misael et al. (Org.) Escola Pública e Sociedade. São Paulo: Saraiva, 2002. P. 124-132., p. 127). O primeiro sentido permite visualizar uma doutrina pedagógica em que o ensino pode ser previamente estabelecido e, mais ainda, submetido a controles planejados antecipadamente (Cunha, 2004CUNHA, Marcus Vinicius. Ciência e educação na década de 1950: uma reflexão com a metáfora percurso. Revista Brasileira de Educação, Campinas, n. 25, p. 116-126, jan./abr. 2004., p. 118). Os pensadores da educação postulantes da perfeita determinação do percurso recorrem a experiências que garantem essa possibilidade, afastando, tanto quanto possível, tudo o que impeça a exatidão. O baluarte dessa noção é a ideia de que, uma vez conhecido o percurso, pode-se nele interferir e realizar tudo o que é desejado e desejável (Mazzotti, 2002, p. 128)5 5 Encontra-se esse raciocínio nas proposições de Comenius, Platão e tantos outros que acreditam, cada qual a seu modo, que o percurso educacional pode ser perfeitamente planejado e realizado em um tempo ideal conhecido previamente (Mazzotti, 2002, p. 4). .

O segundo sentido da metáfora Percurso postula que o caminho a ser percorrido pelo estudante é um processo que só pode ser exposto e evidenciado depois de realizado, implicando a tese de que nenhuma previsão é factível (Mazzotti, 2002MAZZOTTI, Tarso. A Metáfora Percurso no Debate Sobre Políticas Educacionais no Brasil Contemporâneo. In: VALE, José Misael et al. (Org.) Escola Pública e Sociedade. São Paulo: Saraiva, 2002. P. 124-132., p. 128). A metáfora Percurso Indeterminado sugere que a progressão educacional não se submete a planejamento rígido justamente por ser imprevisível, incerta, sendo possível conhecê-la apenas no momento em que acontece (Cunha, 2004CUNHA, Marcus Vinicius. Ciência e educação na década de 1950: uma reflexão com a metáfora percurso. Revista Brasileira de Educação, Campinas, n. 25, p. 116-126, jan./abr. 2004., p. 118). Os pensadores que se alinham a essa noção entendem a educação de modo flexível e impregnada pela imprevisibilidade, um caminhar que deve ser revisto e muitas vezes refeito face às contingências que se vão apresentando no caminho6 6 Proposições como as de John Dewey, dentre outros, cada qual com suas peculiaridades, exemplificam essa maneira de conceber a educação (Carvalho; Silva; Cunha, 2014) .

Ainda que o recurso mais eficiente para entender as doutrinas pedagógicas seja a análise de suas metáforas fundamentais, é possível identificar em seus corpora argumentativos a presença de outras formulações metafóricas que contribuem para a sua caracterização. A expressão jardim da infância utilizada por Fröebel para explicar o valor da educação na infância pertence ao domínio da metáfora Percurso Determinado, constituindo uma das mais poderosas expressões metafóricas adormecidas na mentalidade dos educadores: Cultivo. A ideia de que a criança é como uma semente que requer cuidado e atenção para desenvolver suas potencialidades naturais é associada ao lugar comum de que cabe ao professor atuar como um jardineiro que opera sobre a natureza humana, a qual, por sua vez, deriva do divino. Trata-se de uma metáfora adormecida pela recorrência de sua aparição no discurso pedagógico, sem que se apresente uma reflexão acerca dos significados por ela transportados.

Esta discussão ressalta o valor argumentativo das metáforas nas doutrinas educacionais e destaca a importância de sua identificação e análise. Devemos estar cientes de que, ao nos depararmos com essa estratégia argumentativa em discursos sobre educação, não devemos nos limitar a conferir se a relação entre os termos é ou não factível, mas observar que, ao dar aval à comparação proposta, aceitamos as concepções transportadas pela relação metafórica (Lemgruber; Oliveira, 2011LEMGRUBER, Márcio; OLIVEIRA, Renato. Argumentação e Educação: da ágora às nuvens. In: LEMGRUBER, Márcio Silveira; OLIVEIRA, Renato José (Org.). Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora: UFJF, 2011. P. 23-56. , p. 49).

Analisar uma metáfora consiste em interpretar os componentes analógicos por ela implicados e os lugares comuns por ela acionados, para que se possa discutir a relação que o orador pretende estabelecer com seu auditório em torno do objeto que almeja explicar. Trata-se de um empenho de natureza científica e política que requer sensibilidade e disposição para ampliar a acuidade de nosso olhar e alcançar o que está além das linhas transparentes do vidro, cientes de que tais linhas elucidam certas ideias educacionais, mas também encobrem uma extensa constelação de outras. Seja como auditório, seja como pesquisadores, o que nos cabe é problematizar as metáforas e os lugares comuns a elas associados, para dar a conhecer os fundamentos de nosso próprio discurso e das práticas educativas em voga.

A Metáfora Cultivo Como Problema

Ao analisar a formação moral, física, poética e teológica empreendida pelos sofistas, Jaeger (2010JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Arthur M. Parreira. 5. edição. São Paulo: Martins Fontes, 2010.) inclui esses pensadores no rol dos mestres da história da educação, opção inovadora e arrojada, uma vez que a Sofística permaneceu por séculos à margem dos compêndios, recebendo somente menções obscuras e depreciativas. Jaeger (2010, p. 356) destaca que, diante da afirmação de que a natureza é o fundamento de toda educação possível, aqueles professores de retórica concluíram que educar consiste em instituir uma segunda natureza. Os sofistas levaram a ideia de physis - a totalidade do universo - para o espaço da individualidade e desenvolveram um conceito mais amplo, o de natureza humana, significando a totalidade do corpo e da alma (Jaeger, 2010, p. 357).

Jaeger (2010JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Arthur M. Parreira. 5. edição. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 363) diz que é por intermédio da agricultura, vista como “[...] cultivo da natureza pela arte humana”, que Plutarco explica a relação entre os três componentes da educação: natureza, ensino e hábito - a trindade pedagógica dos Sofistas. A boa agricultura requer, antes de tudo, terra fértil, um lavrador competente e uma semente de boa qualidade. Quando esses termos se relacionam com a tarefa de educar, temos que o terreno é a natureza do homem, o lavrador representa o educador, e as sementes são as doutrinas e preceitos transmitidos de viva voz.

Esses três componentes bem articulados resultam em algo bom, mas, mesmo uma natureza escassamente dotada pode receber cuidados adequados por meio do conhecimento e do hábito, e ter as suas deficiências em parte compensadas. Inversamente, até mesmo uma natureza exuberante pode decair, se deixada ao abandono. Jaeger afirma que a metáfora plutarquiana, assim desenvolvida, eleva a educação ao patamar de arte indispensável ao progresso humano. Torna-se possível cultivar e educar a physis, desde que no momento certo, quando a natureza é maleável e permite que o conteúdo seja “[...] facilmente assimilado, gravando-se na alma” (Jaeger, 2010, p. 364).

Jaeger institui, assim, o que seria a metáfora fundamental da Sofística, cujo significado penetrou no pensamento ocidental e deu origem, em sua tradução para o latim, à ideia de educação como cultura espiritual, da qual se utilizaram posteriormente as doutrinas educacionais do humanismo (Jaeger, 2010, p. 365). Tendo por base a ideia de que a educação está para a natureza humana, assim como o cultivo está para a terra, emerge a metáfora Cultivo: a educação é o cultivo da natureza humana, tal qual se apresenta mais tarde na teoria froebeliana.

Os lugares comuns a ela associados seriam integrantes da concepção filosófica e educacional da Sofística: na condição de educando, o homem é dotado de um espírito que possui uma primeira natureza regida por leis inatas decorrentes de uma physis, lei geral que rege o universo, transposta para a individualidade humana. A novidade introduzida pelos sofistas residiria na crença de que a physis pode e deve ser cultivada pela educação, dotando o homem de uma segunda natureza - melhorada, digamos.

Como a primeira natureza não se mostra igual em todos os indivíduos, podendo manifestar-se de maneira precária em alguns e de maneira excelente em outros, cabe à educação promover melhorias indistinta e universalmente, seja em condições de precariedade ou de excelência, atuando sobre quaisquer hábitos, doutrinas e preceitos para obter o desenvolvimento constante da humanidade. A educação, assim, é guiada pela metáfora Percurso, pois consiste em tomar o educando em um estado inferior e conduzi-lo a um estado superior.

Mais precisamente, trata-se da metáfora Percurso Determinado e Determinável, pois o caminho a ser percorrido pelo educando é previamente estabelecido por sua primeira natureza, a qual, uma vez devidamente observada, permite antecipar o que se exige para preencher lacunas ou ampliar valores naturais. Temos aqui a noção de aluno como portador de qualidades inatas que podem ser trabalhadas no processo educativo. Na metáfora dos sofistas, o conhecimento torna-se um meio para fazer avançar a condição primeira de cada indivíduo, mantendo, entretanto, a forma de um percurso antecipável.

Em consonância com a seção anterior do presente trabalho, dar assentimento a essa metáfora adormecida significa assumir as definições implícitas e explícitas por ela transportadas. Sendo nosso propósito adotar uma conduta questionadora, nos posicionando como audiência ativa e disposta a examinar com afinco as formulações metafóricas dos autores que pesquisamos, devemos fazer despertar e debater a metáfora que supostamente fundamenta a Sofística. Indagamos, então, se é aceitável a analogia estabelecida por Plutarco e referendada por Jaeger para definir os preceitos educacionais e filosóficos da Sofística. Podemos dizer, com toda segurança, que a ideia de cultivo é a que melhor descreve o entendimento dos sofistas acerca da educação?

Analisemos primeiramente os argumentos de quem elaborou a referida analogia e, consequentemente, condensou os seus significados naquela metáfora. Plutarco (2015PLUTARCO. Da educação das crianças. Tradução de Maria Aparecida de Oliveira Silva. São Paulo: EDIPRO , 2015. , 4, 2A) afirma que o que estamos habituados a dizer sobre as artes e as ciências também deve ser dito acerca da virtude; para termos absoluta retidão nesse campo temático, três elementos devem convergir: natureza, razão e costume. A razão diz respeito ao aprendizado, ao passo que o costume é exercício e os princípios da natureza representam a “[...] evolução pela instrução, o proveito pelo cuidado e a excelência por esses todos” (Plutarco, 2015, 4, 2B).

O conceito abstrato de virtude, objeto da argumentação de Plutarco, é então relacionado ao cultivo da terra: assim como na agricultura, devemos começar pela terra boa; depois, pelo agricultor instruído; em seguida, pelas boas sementes. A natureza é semelhante à terra; o preceptor, ao agricultor; os princípios, as palavras e os preceitos, comparáveis à semente (Plutarco, 2015, 4, 2C). Plutarco (2015, 4, 2C) acredita que se engana quem pensa que aqueles que não são bem-nascidos e, consequentemente, possuem uma natureza limitada não podem ser encaminhados à virtude por intermédio da instrução e do cuidado; pois a indolência destrói a virtude da natureza, mas a disciplina corrige sua ignorância (Plutarco, 2015, 4, 2D).

Na obra em que Plutarco formula as analogias em defesa da educabilidade da natureza humana, não há menção aos sofistas. Ainda que a introdução do texto afirme que os pensadores antigos servem para compor os argumentos ali desenvolvidos, a maioria das referências explícitas diz respeito a Platão, de cuja filosofia Plutarco extrai boa parte de seus balizamentos educacionais. Isto fica evidente no conjunto das obras plutarquianas, quando nos deparamos com a indicação de quatro virtudes basilares na formação do homem virtuoso: coragem, inteligência, justiça e temperança. É notável a semelhança com os ditos de Platão (2006PLATÃO. A República (Da Justiça). Tradução de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2006.) em A república (427d-e), quando os sofistas são responsabilizados pelo ensinamento de atos injustos e Glaucon argumenta em favor de quatro virtudes essenciais: sabedoria, coragem, temperança e justiça (Frazier apud Silva, 2015SILVA, Maria. Plutarco e as Virtudes da Virtude: Platão como modelo. In: PLUTARCO. Da educação das crianças . São Paulo: EDIPRO , 2015. P. 9-12., p. 12)7 7 Frazier (1996). .

Admirador de Platão, Plutarco (2015PLUTARCO. Da educação das crianças. Tradução de Maria Aparecida de Oliveira Silva. São Paulo: EDIPRO , 2015. , 5, 3F) o qualifica como o enviado dos deuses, o que não implica necessariamente concordância com as críticas platônicas aos sofistas. O que interessa não são os seus vínculos intelectuais, mas saber se Jaeger tem razão ao dizer que a educação sofística é incluída por Plutarco no rol das doutrinas descritas pela metáfora Cultivo. Se assim for, teremos que os princípios educacionais sofísticos são pautados na ideia plutarquiana de que a natureza humana é naturalmente boa, dotada de certas qualidades atribuídas pelos deuses; qualidades ou virtudes inatas que se apresentam, porém, em maior ou menor grau em cada homem, e cujo cultivo pela instrução alcança o desenvolvimento pleno de quem as possui em grau de excelência e corrige o rumo de que as possui precariamente.

Se a metáfora Cultivo for de fato aplicável à proposta educacional da Sofística, os sofistas teriam afirmado haver um caminho certo para a instrução dos indivíduos, com o propósito de alcançar com retidão a virtude e a felicidade, e que seria possível, portanto, prescrever um conjunto de instruções a serem aplicadas de maneira fixa a todos os educandos, posicionamento que se qualifica pela metáfora Percurso determinado e determinável. Mesmo havendo um único caminho para construir a segunda natureza de cada homem, a pedagogia sofística seria aplicada diferentemente a cada um, tomando por base as diferenças presentes nas particularidades dos dons individuais inatos.

Admitir que a metáfora Cultivo é adequada para descrever o propósito dos sofistas traz graves implicações pedagógicas e políticas, tornando a sua concepção muito semelhante à maiêutica socrática e ao jardim de infância de Fröebel, expressões metafóricas que traduzem a noção de natureza humana como determinante do percurso educacional do aluno. Politicamente, trata-se de uma visão conservadora das finalidades da educação, no que tange às possibilidades de progresso do educando no cenário da vida social. Por ora, não afirmaremos nem negaremos tal adequação, nos limitando a assumir a atitude cética de suspender o juízo e seguir o caminho da investigação, tomando esse problema como um genuíno quebra-cabeça a ser solucionado por meio de outra interpretação da pedagogia Sofística.

Nessa nova abordagem, a atuação dos sofistas da primeira geração compreende-se no interior do intenso processo de transformação vivido por Atenas entre os séculos VI e V a.C., quando a democracia passou a reger toda a vida da polis. Foi então que Protágoras, Górgias, Hípias e outros pensadores prosperaram, oferecendo a formação necessária para os novos cidadãos atuarem politicamente e, mais ainda, provendo a cultura grega de uma ampla “[...] visão de mundo humanista” (Crick, 2015CRICK, Nathan. Rhetoric and Power: the drama of classical Greek. Columbia: University of South Carolina , 2015., p. 31).

Os primeiros sofistas tiveram que enfrentar adversários de grande porte, como Parmênides, que, contrariando os que viam a realidade como fluxo constante em que tudo muda e vem a ser, afirmava que o Ser é uno, que todo movimento é ilusório e que os sentidos não merecem confiança quando indicam haver mudança nas coisas (Schiappa, 2003SCHIAPPA, Edward. Protagoras and Logos: a study in Greek philosophy and rhetoric. 2. ed. Columbia: University of South Carolina , 2003., p. 122). Os pensadores filiados a essa concepção acreditavam que, sob a aparente multiplicidade e confusão do universo, havia uma simplicidade fundamental e uma estabilidade que a razão era capaz de descobrir (Guthrie, 2007GUTHRIE, William. Os Sofistas. Tradução de João Resende da Costa. 2. edição. São Paulo: Paulus, 2007.). Tratava-se de uma physis, uma natureza independente da ação humana, à qual a realidade concreta deveria ser moldada para nortear todos os fenômenos sociais.

O monismo extremado de Parmênides desafiava a evidência dos sentidos, acusava a realidade concreta de ser irreal e supervalorizava os saberes teóricos, o que motivou reação violenta nos primeiros sofistas, cujas ideias produziram uma guinada no eixo filosófico vigente. Ao negarem a existência de uma physis, elegeram como tema central de sua filosofia as relações políticas e culturais do homem no mundo. É o que explica a afirmação feita por Protágoras: “[...] o homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são, enquanto não são” (DK, 80 A14). O homem-medida protagoriano sugere que não é a physis o que define o que é e o que não é, mas o próprio homem, por meio de normas, convenções, leis e crenças que cria no interior do amplo sistema cultural de cada sociedade - o que os gregos denominavam nómos.

Essa nova abordagem permite entender também o dito de Protágoras sobre os deuses: ele afirmava não ter “[...] a certeza de que existam e nem de que não existam”, considerando os obstáculos à sua frente - “[...] a obscuridade do assunto, assim como a brevidade da vida humana” (DK 80 B4). Examinando conjuntamente o fragmento a respeito dos deuses e a frase do homem-medida, entende-se a rejeição de Protágoras à especulação puramente teórica. Como bem observa Filodemus em sua Metafísica (996a29), citado por Schiappa (2003SCHIAPPA, Edward. Protagoras and Logos: a study in Greek philosophy and rhetoric. 2. ed. Columbia: University of South Carolina , 2003., p. 149), a linguagem do fragmento sobre os deuses revela que a recusa de Protágoras é a empreendimento intelectuais distanciados da experiência concreta e da utilidade prática, o que integra a sua filosofia ao objetivo primordial da Sofística: educar o homem para a cidade, o posicionando no centro da vida política.

Alinhado a Protágoras, o Tratado do não-Ser de Górgias privilegia a realidade concreta, único objeto possível de cognição (Kerferd, 2003KERFERD, George. O Movimento Sofista. Tradução de Margarida Oliva. São Paulo: Loyola, 2003., p. 125). Afrontando Parmênides, Górgias argumenta que é evidente que o não-Ser não existe; ainda que existisse, existiria e não existiria a um só tempo, pois, se o apreendermos enquanto não-Ser, não existirá, mas, como tal, voltará a existir. E é completamente absurdo que algo exista e não exista ao mesmo tempo (Sexto Empírico, 1993SEXTO EMPÍRICO. Adversus Mathematicus. In: GÓRGIAS. Testemunhos e fragmentos. Tradução de Manuel Barbosa e Inês de Ornellas e Castro. Lisboa: Colibri, 1993., VII, 67-68). Se existissem o não-Ser e o Ser, o não-Ser seria idêntico ao Ser, e nenhum deles existiria. Portanto, não existe o Ser, como também não existe o não-Ser, e nem mesmo ambos coexistem. Para além disso, nada é pensável, nada existe (Sexto Empírico, 1993, VII, 76).

A conclusão de Górgias de que nada existe rejeita cabalmente a suposição fundante de todos os sistemas filosóficos que adotavam - e os que ainda hoje adotam - os pressupostos parmenideanos que afirmam haver, por detrás do panorama mutante do devir, acima do plano obscuro das aparências, uma substância que se possa descobrir (Guthrie, 2007GUTHRIE, William. Os Sofistas. Tradução de João Resende da Costa. 2. edição. São Paulo: Paulus, 2007., p. 183). Assim como Protágoras, Górgias não acredita em algo absoluto, uno e integral, cuja existência independa da realidade concreta e da ação humana, um Ser em si, fixo e imutável (Dupréel, 1948DUPRÉEL, Eugenne. Les Sophistes: Protagoras, Gorgias, Prodicus, Hippias. Neuchatel: Éditions du Griffon, 1948.). Não existe a physis, a realidade abstrata, superior e preferível, mas tão somente o nómos, e é com isso que o homem tem que lidar.

A rejeição gorgiana e seu novo entendimento acerca do homem e do conhecimento aparecem mais claramente na terceira tese do Tratado, na qual se afirma que o Ser, mesmo sendo compreensível, “[...] é impossível de se comunicar ou explicar a outrem”. Para Górgias, é pela palavra que identificamos as coisas, mas a palavra não é o que se apresenta à nossa vista, nem é o Ser; portanto, não comunicamos nem as coisas nem o Ser, somente a palavra (Sexto Empírico, 1993, VII, 84-85). Não sendo a palavra uma expressão do objeto exterior, é o objeto exterior que revela a palavra (Sexto Empírico, 1993, VII, 85).

Calogero, citado por Dupréel (1948DUPRÉEL, Eugenne. Les Sophistes: Protagoras, Gorgias, Prodicus, Hippias. Neuchatel: Éditions du Griffon, 1948.), explica que, ao afrontar Parmênides, Górgias não postula um niilismo radical, pois não afirma a impossibilidade do conhecimento e da verdade. Tal qual Protágoras, a filosofia gorgiana apenas identifica o erro dos pensadores que confundem o conhecimento com o ser conhecido, e enfatiza que o conhecimento é sempre a combinação de dois elementos, o que advém da percepção do mundo exterior e as disposições do próprio sujeito. Epistemologicamente, reconhecer essa combinação é postular que há padrões humanamente determinados para explicar os fenômenos naturais; não há padrões naturais apartados da intervenção consciente do intelecto humano (Jarrat, 1998JARRAT, Susan. Rereading the Sophists: classical rhetoric refigured. Illinois: Southern Illinois University, 1998. , p. 42). Assim como a verdade, o conhecimento é construído pelos homens em meio à realidade concreta, não algo indubitável, reflexo da contemplação de um Ser residente em um plano abstrato. Ao falarmos de uma cor, os destinatários de nosso discurso devem ter percebido, por si mesmos, aquela cor, sem o que a palavra, lógos, não assumirá nenhum significado para eles.

Diante da ontologia parmenideana, Hípias reagiu diferentemente de Protágoras e Górgias. No diálogo platônico Protágoras (337d-e), diz ele a seus interlocutores: “[...] senhores aqui presentes, vejo-vos a todos como parentes, amigos íntimos e concidadãos por natureza, não por convenção”, pois o semelhante se parece ao semelhante por natureza; a convenção, que tiraniza a humanidade, nos constrange com frequência contra a natureza. Ao que parece, trata-se de uma manifestação contrária aos demais sofistas, pois afirma a physis em detrimento do nómos.

A opinião de Hípias sobre nómos é elucidada no diálogo platônico Hípias maior (283b) (Platão, 2016PLATÃO. Hípias maior (ou Do Belo). In: PLATÃO. Diálogos II. Tradução de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO , 2016. ), no qual Sócrates pergunta se ele ganhou mais dinheiro nos estados que visitou ou em Esparta. Hípias responde negativamente, afirmando que dos espartanos não ganhou nada, e Sócrates questiona se o seu fracasso em educar os filhos daquela terra significava que aquela gente não desejava melhorar sua prole (Hípias maior, 283c). Hípias explica que tanto os adultos quantos os jovens desejavam instrução, mas que não a puderam receber por força de uma tradição, pois os lacedemônios são “[...] proibidos de mudar suas leis ou educar suas crianças de maneira diferente do que ditam os costumes” (Hípias maior, 284b). Sócrates, então, pergunta se a lei traz males ou benefícios aos estados, ao que Hípias responde: “[...] penso que a lei é feita para ser benéfica, mas às vezes, se for mal feita, é danosa” (Hípias maior, 284d).

Essa passagem é esclarecedora por indicar que, para Hípias, as leis, as normas e as convenções consubstanciadas em nómos não devem ser postas no campo do erro e do ilusório, como sugere o seu pronunciamento no Protágoras de Platão (2007PLATÃO. Protágoras (ou Sofistas). In: PLATÃO. Diálogos I. Tradução de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO , 2007.). Em Hípias maior, nota-se que o nómos torna-se o tirano dos homens quando assume o caráter de imutabilidade e prescreve a mesma coisa a todos e por todos os tempos, desprezando as particularidades individuais e a diversidade das circunstâncias temporais (Dupréel, 1948DUPRÉEL, Eugenne. Les Sophistes: Protagoras, Gorgias, Prodicus, Hippias. Neuchatel: Éditions du Griffon, 1948.).

Tendo por base uma nova abordagem da atuação e das teorizações dos primeiros sofistas, nossos questionamentos nos levam a concluir pela inadequação da metáfora plutarquiana cultivo como metáfora fundamental da Sofística. Ao que tudo indica, Jaeger não percebe que aqueles professores de retórica desenvolveram uma crescente consciência da inexistência de uma lei natural, de uma determinação histórica ou de um mandamento divino capaz de estabelecer antecipadamente o que é dado aos homens pensar e definir os limites do exercício de seu pensamento (Valle, 2008VALLE, Lilian. Castoriadis: uma filosofia para a educação. Educação e Sociedade, Campinas, v. 29, n. 103, p. 493-513, maio/ago. 2008., p. 496).

Protágoras, Górgias e Hípias viam o homem como um agente ativo no mundo e na construção de si mesmo como indivíduo, e não um mero reprodutor da natureza imutável, portador de uma natureza pré-determinada que se desperta por meio da educação. É do homem, anthrôpos, e de cada homem em particular, não de alguma entidade transcendental eterna e subjacente às aparências, a responsabilidade por decidir sobre o que é e o que não é acerca de todas as coisas (Crick, 2015CRICK, Nathan. Rhetoric and Power: the drama of classical Greek. Columbia: University of South Carolina , 2015., p. 69). Por ser o homem a medida de todas as coisas, as doutrinas nada mais são do que resultados do pensar humano, dependentes do que os homens entendem ser correto, verdadeiro, desejável (Mazzotti, 2008bMAZZOTTI, Tarso. Seria Possível Ensinar as Virtudes Políticas (Éticas)? Revista Teias, v. 12, n. 25, p. 47-66, maio/ago. 2008b., p. 4).

A metáfora cultivo não descreve as concepções educacionais dos primeiros sofistas porque a palavra, lógos, e o conhecimento eram utilizados na Sofística não para falar da physis, do kosmos, do Ser, mas para se ocupar daqueles para quem se fala, considerando o seu efeito na vida humana (Cassin, 1990CASSIN, Bárbara. Ensaios Sofísticos. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Siciliano, 1990., p. 254). Cabia à palavra significar as percepções humanas e possibilitar ao homem sair do estado de contemplação por meio da experiência e da observação, construir saberes úteis à vida humana. Na Sofística, as teorias elaboradas pela palavra não têm valor se apenas ensinarem o cidadão a pensar, sem agir; a contemplar, sem julgar; a refletir, sem superar as adversidades (Crick, 2010CRICK, Nathan. Democracy and Rhetoric: John Dewey on the arts of becoming. Columbia: University of South Carolina, 2010., p. 74).

Os postulados da Sofística inspiram um método experimental em que o critério para hierarquizar os conhecimentos é o alcance de seu valor prático. Nada é indubitável e imutável, pois tudo se encontra imerso no fluxo das situações práticas, e a verdade não pode ser senão humana, pois a sua origem não é um texto divino que impõe ao leitor uma significação única, invariável (Dupréel, 1948DUPRÉEL, Eugenne. Les Sophistes: Protagoras, Gorgias, Prodicus, Hippias. Neuchatel: Éditions du Griffon, 1948.). Descrever a sua pedagogia como semelhante ao ofício do jardineiro ou do agricultor implicaria ver o educador como quem meramente cuida do que é inato, valorizando os bem-dotados e abandonando os escassamente favorecidos pelos deuses.

A pedagogia sofista visava abranger todos os interessados, enfrentando o desafio de operar mesmo com os supostamente pouco virtuosos e inábeis, contrariando o costume de “[...] transmitir noções como se fossem dogmas, saberes indubitáveis e estanques”. Era uma concepção educacional que ousava comunicar as inovações que pudessem ser “[...] úteis como materiais e ferramentas para a criação de algo novo”, e que se efetuava em moldes teóricos e práticos, para que os educandos incorporassem as bases reflexivas necessárias para agir na sociedade (Silva, 2017SILVA, Tatiane. Análise retórica da influência sofista no discurso filosófico e educacional de John Dewey. 2017. 178 f Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, 2017., p. 150).

Uma Nova Metáfora para a Sofística

A inadequação da metáfora cultivo para caracterizar a pedagogia praticada pelos sofistas nos motiva a dar continuidade à investigação em busca da metáfora fundamental da Sofística. Faz-se necessário, para isso, levar em conta que aqueles professores do lógos elaboraram as suas concepções sobre o homem no espaço aberto à discussão oferecido pela nascente democracia grega. O clima democrático permitia - e, mesmo, requeria - que os cidadãos deixassem de se ver como piedosos servos da tradição, marionetes indefesos da vontade divina, e que se assumissem como ativos participantes da construção da história. Essa era a disposição propiciada pela arte do lógos, que se empenha em viabilizar o consenso, principal instrumento de poder em qualquer cultura verdadeiramente democrática (Crick, 2015CRICK, Nathan. Rhetoric and Power: the drama of classical Greek. Columbia: University of South Carolina , 2015., p. 65).

Como sistema único, sem precedentes, quando as narrativas homéricas deixavam de fazer sentido, a democracia impunha aos gregos uma concepção de indivíduo como algo a ser criado, um ser com iniciativa, espírito inventivo, desembaraço para opinar e deliberar em situações conflitivas, capacidade para assumir a responsabilidade pela escolha de crenças e condutas. Nenhum desses componentes eram dons, mas conquistas obtidas pelo exercício da cidadania, pela adoção de comportamentos passíveis de serem refeitos em um ambiente em constante transformação. A educação no lógos, tal como a oferecida pelos sofistas, tinha o propósito de propiciar oportunidades de crescimento e emancipação, por meio de experiências e conhecimentos ricos e significativos.

Diante dessa conceituação, os métodos pedagógicos dos sofistas merecem especial consideração. Schiappa (2003SCHIAPPA, Edward. Protagoras and Logos: a study in Greek philosophy and rhetoric. 2. ed. Columbia: University of South Carolina , 2003., p. 47) informa que Platão foi o primeiro a usar o termo rhêtorikê para caracterizar os sofistas, pois antes dele não há registro semelhante, nem mesmo em Aristófanes, que sempre os ridicularizava. Até então utilizada em sentido geral para designar a arte do lógos, na filosofia platônica o termo adquire o sentido restrito de treinamento exclusivo para a persuasão política, associando-se em definitivo à Sofística. Admitindo-se a caracterização advinda de Platão, o ofício dos sofistas consistia tão somente em ensinar retórica, no sentido restrito, não no sentido amplo da palavra.

Noutra vertente interpretativa, porém, a abordagem metodológica dos sofistas pode ser denominada experimental por ensinar que os conhecimentos e as ideias devem ser assumidos como provisórios, admitindo-se como verdadeiro apenas o que resultar da investigação e revelar-se útil no enfrentamento das situações problemáticas vividas pela coletividade e, em particular, pelos indivíduos. Como afirma Crick (2010CRICK, Nathan. Democracy and Rhetoric: John Dewey on the arts of becoming. Columbia: University of South Carolina, 2010., p. 41), uma situação problemática é a que se apresenta nas experiências compartilhadas que carregam em si conflito, urgência e incerteza, que são passíveis de questionamento e provocam o exame acurado e a discussão. Uma situação problemática só existe no âmbito da experiência, não em alguma realidade abstrata ou no discurso persuasivo isolado.

Os sofistas criavam situações problemáticas como exercícios para seus alunos, os provocando a desenvolver o processo reflexivo de investigação, a levantar informações, a elaborar esboços de perspectivas inovadoras de ação e o seu consequente teste na prática. Associados aos sofistas, os dissoi logoi operavam como genuíno método pedagógico, propiciando aos aprendizes a oportunidade para usar o poder da linguagem para buscar aspectos desconhecidos do assunto em pauta e novas maneiras de agir. Tratava-se de um recurso de ensino em que a hipótese escolhida emergia do choque entre as hipóteses disponíveis, o que revela o significado mais amplo da arte retórica, além da mera persuasão (Crick, 2004CRICK, Nathan. Rhetoric and Dewey’s Experimental Pedagogy. In: JACKSON, Brian; CLARK, Gregory (Org.). John Dewey Rhetoric, and Democratic Practice: trained capacities. University of South Carolina: Columbia, 2004. P. 177-193.).

Nessa abordagem, o termo retórica designa um empenho educativo dedicado a tornar a mente um espaço de criação capaz de encadear os múltiplos argumentos que se apresentam em uma complexa rede de significados, e dar a eles uma forma simplificada e eloquente (Crick, 2004CRICK, Nathan. Rhetoric and Dewey’s Experimental Pedagogy. In: JACKSON, Brian; CLARK, Gregory (Org.). John Dewey Rhetoric, and Democratic Practice: trained capacities. University of South Carolina: Columbia, 2004. P. 177-193.). Na pedagogia dos sofistas, a retórica não se resume ao propósito de influenciar a audiência por meio da mistura de apelos vagos, com o intuito de vencer o debate a qualquer custo. A retórica é o ato situado de resolver situações problemáticas por intermédio da reflexão, o que constitui base imprescindível para a elaboração de juízos coletivos.

A parte essencial do programa de ensino posto em prática pela Sofística era “[...] nada menos do que a formação da mente para pensar” (Schiappa, 2003SCHIAPPA, Edward. Protagoras and Logos: a study in Greek philosophy and rhetoric. 2. ed. Columbia: University of South Carolina , 2003., p. 47). Tal como Hipócrates, segundo a caracterização elaborada por Platão, os estudantes buscavam nos sofistas ensinamentos sobre como ser um hábil orador, mas, mais do que isso, sobre como “[...] adquirir o domínio do lógos que poderia lhes permitir constituir e direcionar o poder nos negócios privados e na cidade” (Silva; Crick, 2021SILVA, Tatiane; CRICK, Nathan. Movimento dos secundaristas brasileiros e o momento sofístico: quando uma nova história começa a ser contada. Educação e Filosofia. n. 34, v. 71, p. 891-922. 2021. , p. 906). A arte do lógos vai além das técnicas de persuasão, pois abarca diversas áreas de conhecimento, como astronomia, gramática e matemática - sendo essa última desenvolvida por Hípias de Élis e considerada essencial na composição do currículo necessário ao cidadão ateniense (Ramos Oliveira, 1998RAMOS OLIVEIRA, Newton. Tempo dos Sofistas, Tempo de Ruptura? Uma leitura da história a contrapelo. Multiciência, v. 1, n. 3, 1998.).

Esse currículo visava dar ao cidadão condições para usar os conhecimentos em favor de melhorar a vida, tanto a sua, em particular, quanto a de sua coletividade. Ao ministrarem a arte do lógos, os sofistas ensinavam a arte fundamental de “[...] autogoverno econômico ligada ao oikós” (Crick, 2015CRICK, Nathan. Rhetoric and Power: the drama of classical Greek. Columbia: University of South Carolina , 2015., p. 233)8 8 Oikós diz respeito à administração da casa, mas inclui também os campos e as posses, onde quer que estivessem localizados, mesmo fora dos limites da cidade (Crick, 2015, p. 233). . Na esfera privada, essa instrução envolvia a “[...] arte de ordenar racionalmente um agregado familiar com razão e ordem” (Crick, 2015, p. 233). Para Foucault (apud Crick, 2015, p. 234), tratava-se de uma espécie de askesis, um “[...] treinamento prático indispensável para formar um indivíduo como sujeito moral”, de maneira geral e ampla, e como chefe de família9 9 Foucault (1994). .

Elogio a Helena, escrito por Górgias com base nas narrativas de Homero, é um bom exemplo dessa pedagogia, pois coloca os alunos diante de uma situação problemática: seria Helena culpada pela Guerra de Troia, tal como se diz na tradição homérica? Górgias, então, apresenta hipóteses sobre o que poderia ter ocasionado a traição da esposa de Menelau, dando margem a várias possibilidades de reflexão. O questionamento dos poetas e da tradição não se limita a mostrar os “[...] mecanismos por meio dos quais a retórica pode fabricar uma audiência por meio das palavras, modelando e manipulando essas pessoas para o ideal aspirado pelo orador” (Crick, 2015CRICK, Nathan. Rhetoric and Power: the drama of classical Greek. Columbia: University of South Carolina , 2015., p. 80). Elogio a Helena contém um modelo de discurso que pode ser imitado pelos alunos de Górgias, mas também mostra o poder da poiesis, a possibilidade de criar novos moldes narrativos com base na percepção individual, rompendo com as interpretações impostas pela tradição10 10 Assim como Górgias, Protágoras também rompe com a tradição poética ao fazer da poesia um objeto de análise crítica, como se pode ver na passagem de Platão (338e-348a) em que ele e Sócrates discutem sobre Simônides. .

A pedagogia sofista procurava conciliar o indivíduo “[...] localizado em uma mente separada que percebe o mundo” e o sujeito como “[...] membro de um coletivo com a responsabilidade de participar na democracia” (Jarrat, 1998JARRAT, Susan. Rereading the Sophists: classical rhetoric refigured. Illinois: Southern Illinois University, 1998. , p. 92). O eixo de sua ação pragmática com vistas à atuação individual e coletiva permite entender que o ensino então abrangia o amplo contexto de uma “[...]visão social particular, mais do que meramente oportunista ou utilitária nos seus sentidos mais restritos” (Jarrat, 1998, p. 92). A sala de aula sofista, para usar um termo moderno, evidencia uma “[...] investigação coletiva sobre a função do discurso e dos indivíduos dentro de uma democracia”, moldando as bases de “[...] uma educação prática, uma forma de ação informada pela reflexão” (Jarrat, 1998, p. 95).

As proposições dos pensadores da primeira geração de sofistas revelam os sistemas de lugares comuns contidos em seus argumentos acerca do mundo, do homem, do conhecimento e da educação. Com o abandono da especulação sobre a existência da physis, fonte de explicação dos fenômenos da realidade concreta, o mundo era por eles apresentado como envolto pela fluidez do tempo, um cenário em que se desenham “[...] todas as cenas em constante fluxo, sendo permanentemente alteradas pelas intempéries da natureza e pela ação dos homens; nada pode ser previamente determinado com exatidão, antes de vir a ser” (Silva, 2017SILVA, Tatiane. Análise retórica da influência sofista no discurso filosófico e educacional de John Dewey. 2017. 178 f Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, 2017., p. 148).

Nesse terreno incerto, os significados associados à palavra homem exibem um ser que percebe não haver leis absolutas e transcendentes a orientar a realidade em movimento, menos ainda um Ser superior e imutável atuando como fonte da qual emanam verdades acessíveis a poucos iluminados. O ambiente cultural em que os indivíduos se desenvolvem e a relação que estabelecem entre si permite que cada um tenha experiências singulares que alicerçam o que podemos chamar de natureza humana. Não se trata de uma natureza moldada por fatores inatos, mas delineada tanto por esses componentes quanto pelos que derivam da vida em sociedade, sem que se possa estabelecer rigidamente o peso de uns e de outros.

Dessa equação incerta resulta que a natureza humana é essencialmente social, o que, na visão dos sofistas, era traduzido pela prioridade ao nómos, aquilo que define em última instância as condutas a serem adotadas pelos membros do grupo e as leis a serem obedecidas. Os homens aprendem, então, que os consensos vigentes não são suficientes para sanar todos os problemas, uma vez que o mundo está em constante modificação, e que cada situação guarda particularidades que não se resolvem pelos acordos pretéritos. Os consensos devem ser assumidos como provisórios, levando a coletividade a novas deliberações para que vida em sociedade seja mantida em harmonia.

Na pedagogia dos sofistas, o mestre não é como o agricultor que arranca da terra tudo o que possa dificultar o desenvolvimento da semente, ou que coloca estacas para que a planta cresça reta e firme, como na metáfora plutarquiana. O professor entende que o crescimento dos indivíduos ocorre em momentos de conflito e crise, durante os quais se busca, por meio de experiências passadas, uma nova interpretação do presente e alguma projeção do futuro, delineando ações que possam ajudar a resolver o impasse. Sua atuação no processo não é sinônimo de ausência de orientação, nem de controle rígido; sua didática consiste em criar problemas significativos para os estudantes, os instigando com afeto à busca de soluções mediante o emprego da imaginação e da inteligência.

Esses atributos nos levam a sugerir que a metáfora fundamental da Sofística seja navegação. Não a navegação como existe atualmente, repleta de tecnologias que dão ampla margem de segurança a tripulantes e passageiros, mas a que era praticada pelos gregos antigos, caracterizada pelo arrojo no enfrentamento do desconhecido. Essa experiência de navegar persistiu por séculos, sendo retratada por diversos artistas: em Os Lusíadas, Camões (1916CAMÕES, Luis. Os lusíadas. Porto: Companhia Editora Portuguesa, 1916.) a utiliza como símbolo da luta por um projeto de nação levada a cabo por homens intrépidos que se arriscaram em mares nunca antes navegados; em Moby Dick, Melville (2019MELVILLE, Herman. Moby Dick, ou a baleia. Tradução de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Sousa. São Paulo: 34, 2019.) a emprega como representação das glórias e desgraças humanas encarnadas no insano combate a um perigoso animal marinho; na tela The Ship, Dali retrata a insólita figura de um corpo humano equipado com velas náuticas, ou velas náuticas sustentadas por um corpo humano - seja o que for, o artista sugere que navegar é uma boa metáfora para vida.

Como bem analisa Pereira Júnior, a navegação como símbolo para a experiência de viver ocupa posição de destaque na obra de Paulinho da Viola, cujos sambas, no dizer do próprio compositor, flagram a transitoriedade de tudo, transmitindo a “[...] sensação de angústia ou resignação diante dessa instabilidade da vida, da impossibilidade de falar do futuro, de ter certeza sobre as coisas”, pois a vida “[...] nos escapa e a resposta natural que o samba dá é deixar-se levar como um marinheiro à deriva” (Pereira Júnior, 2011PEREIRA JUNIOR, Luiz Costa. O Mar Que Me Navega: sintonias filosóficas em Paulinho da Viola. 2011. 224 f. Tese (Doutorado em Educação), Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011., p. 52-53).

A presença da metáfora navegação no cancioneiro de Paulinho da Viola traduz, segundo Pereira Júnior (2011, p. 58), a ideia de que

O mundo, afinal, não é um lugar estável, acolhedor e contínuo; a vida é precária, sem alicerces ou ponto seguro permanentes, e embora não se tenha um lugar de chegada claro, o desafio é caminhar com atenção ao rumo que se segue, desfrutando da caminhada. A falta de confiança em concretizar o que se planeja nos ancora naquilo que é provisório, na intuição de que o acaso é nossa variável mais constante.

Como sucede com toda metáfora, navegação também apresenta riscos, sendo o maior deles sugerir que o ofício de educar é uma atividade sem rumo, desprovida de finalidades, sem método, ao sabor das ondas do acaso. As produções artísticas em que nos pautamos dão margem a inúmeras interpretações do navegar, razão pela qual faz-se necessário delimitar as margens de nossa proposta metafórica para a pedagogia, aplicando a ela as qualidades da metáfora Percurso Indeterminado, em contraste com os atributos da metáfora Percurso Determinado e Determinável.

A navegação não se faz sem um destino, a não ser quando praticada por lazer; a docência não se confunde com este significado, pois se trata de uma atividade profissional que requer o estabelecimento de fins e meios bem fundamentados. Mesmo equipada com mapas e outros recursos para assegurar o destino, a navegação está sujeita a intempéries cuja superação exige o uso da inteligência, da razão, do espírito inventivo e da capacidade de deliberar - reparar o barco sem interromper o trajeto. Toda embarcação tem um imediato, o profissional encarregado de auxiliar o comandante por possuir habilidades únicas e autoridade advindas da experiência. Suas qualidades são reconhecidas pela tripulação e o torna merecedor da confiança do comandante e dos passageiros, tal qual o professor que angaria o respeito de seus pares e dos estudantes.

As águas em que o barco navega são desafiadoras, muitas vezes angustiantes, como é o processo de educar, mas em tais situações, parafraseando Paulinho da Viola, é preciso manter o rumo e desfrutar da caminhada, ancorando a confiança no que é provisório e na intuição. Educar requer a intrepidez do lusíada que persiste em mares desconhecidos para realizar um projeto pessoal e coletivo, com a coragem dos marinheiros melvilleanos que perseveram no combate a teorias e projetos elitistas que ameaçam o conteúdo humano e político do fazer pedagógico. Na educação inspirada na Sofística, o professor funde seu corpo e seu intelecto ao trabalho de educar, e ambos se tornam uma criatura só, um ser cujo sentido individual é indistinguível da experiência coletiva em um mundo instável e imprevisível - uma metáfora para a vida em ambiente democrático.

Ao realizar essa operação, o professor, que possui metaforicamente os atributos do imediato, deixa de ser o único responsável pela embarcação, pois o ambiente democrático propõe que todos - a tripulação e os passageiros - assumam igual responsabilidade pelos destinos de uma trajetória comum. Ao liberar o potencial criativo dos estudantes, a educação inspirada na Sofística sugere uma navegação compartilhada, sem desprezar aqueles que possuem mais conhecimento e experiência e, por isso, autoridade, mas sem desprezar também o valor daqueles que se apresentam dispostos a embarcar na busca pelo conhecimento. O que se espera é que a navegação seja fonte de prazer para todos e que os conduza igualmente ao mesmo porto seguro.

Considerações Finais

As análises desenvolvidas neste artigo visaram contribuir para o entendimento da metáfora como estratégia discursiva destinada a explicar e a difundir os aparatos conceituais que sustentam as doutrinas em geral e as doutrinas educacionais em particular. Visaram também questionar a metáfora que se considera fundamental na educação, tomando por base a sua suposta origem na Sofística, movimento filosófico e pedagógico ao qual procuramos atribuir uma nova expressão metafórica. Ao substituir cultivo por navegação, almejamos conferir novos significados tanto à prática dos sofistas quanto ao ofício de educar no decorrer da história e na atualidade.

Esperamos que tais análises ensejem novos estudos dedicados a examinar criticamente outras metáforas operantes na atualidade, muitas das quais, a exemplo de cultivo, são subsumidas pela metáfora Percurso Determinado e Determinável. É o caso da pretensa similaridade entre a mente do educando e os programas de computador, como também da analogia entre as condutas dos alunos e dos consumidores de mercadorias. Em cada uma delas é possível identificar os lugares comuns que, uma vez aceitos pela audiência, muitas vezes passivamente, influenciam os comportamentos e os métodos de trabalho dos professores e dos gestores, atingindo também os estudantes e suas famílias.

As eventuais contribuições deste artigo abrangem o campo teórico da educação, podendo incentivar os debates acadêmicos e a elaboração de projetos de pesquisa, mas o desafio de maior alcance não se situa neste plano. O verdadeiro desafio é o que se apresenta a quem deseje adotar novas metáforas para a educação, relações analógicas transgressoras da tradição pedagógica, como proposto nestas páginas, e atuar por intermédio delas na formação inicial e continuada de professores. Esta ousadia enfrentará dupla dificuldade: de um lado, operar persuasivamente contra uma mentalidade fortemente estabelecida; de outro, inventar meios instrucionais para que os formandos acreditem em si mesmos, como pessoas, como profissionais e como cidadãos capazes de deliberar, criar e agir.

Referências

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  • 1
    Trabalho decorrente de pesquisas subsidiadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
  • 2
    Para grafar as metáforas, recorremos à tipografia SmallCaps utilizada por Lakoff e Johnsen (2003LAKOFF, George; JOHNSEN, Mark. Metaphors We Live By. London: The University of Chicago, 2003. ).
  • 3
    Scheffler (1974SCHEFFLER, Israel. A Linguagem da Educação. Tradução de Balthazar Barbosa Filho. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1974. ) foi um dos primeiros a analisar o impacto das metáforas na educação, destacando os limites e as possibilidades das metáforas Cultivo, Jardim da Infância, Argila e Arte, muito utilizadas para caracterizar essa área.
  • 4
    Perelman (1987).
  • 5
    Encontra-se esse raciocínio nas proposições de Comenius, Platão e tantos outros que acreditam, cada qual a seu modo, que o percurso educacional pode ser perfeitamente planejado e realizado em um tempo ideal conhecido previamente (Mazzotti, 2002, p. 4).
  • 6
    Proposições como as de John Dewey, dentre outros, cada qual com suas peculiaridades, exemplificam essa maneira de conceber a educação (Carvalho; Silva; Cunha, 2014CARVALHO, Danielle Cristina; SILVA, Tatiane; CUNHA, Marcus Vinicius. A metáfora fundamental do discurso de John Dewey. Educação e Cultura Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, n. 25, p. 142-162, 2014.)
  • 7
    Frazier (1996).
  • 8
    Oikós diz respeito à administração da casa, mas inclui também os campos e as posses, onde quer que estivessem localizados, mesmo fora dos limites da cidade (Crick, 2015, p. 233).
  • 9
    Foucault (1994FOUCAULT, Michel. The subject and power. In: RABINOW, Paul; ROSE, Nikolas (Org.). Essential Foucault: selections from the essential works of Foucault. New York: New Press, 1994.).
  • 10
    Assim como Górgias, Protágoras também rompe com a tradição poética ao fazer da poesia um objeto de análise crítica, como se pode ver na passagem de Platão (338e-348a) em que ele e Sócrates discutem sobre Simônides.

Editado por

Editor-responsável: Luís Armando Gandin

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2020
  • Aceito
    21 Jun 2021
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