Resumo
O objetivo deste artigo é apresentar uma proposta de tradução do poema “A Montezuma” do poeta e teólogo camaronês Engelbert Mveng (1930-1995) e contextualizar, em seguida, dois aspectos da teologia de Mveng que se fazem notar no poema: o debate, por um lado, sobre a inculturação da mensagem católica no contexto africano, por outro, a ética cristã que Mveng faz recuar à compreensão das preces africanas como berço de um monoteísmo “transcendente e absoluto”.
Palavras-chave Engelbert Mveng; Poesia Africana; Teologia Cristã; Inculturação; Ritmo
Abstract
The aim of this article is to present a translation of the poem “A Monteczuma” by the Cameroonian poet and theologian Engelbert Mveng (1930-1995) as well as contextualize two aspects of his theology that could be noted in the poem: the debate, on the one hand, on the inculturation of the Catholic message in the African context, on the other, the Christian ethics that Mveng pushes back to the understanding of African prayers as the cradle of a “transcendent and absolute” monotheism.
Keywords Engelbert Mveng; African Poetry; Christian Theology; Inculturation; Rhythm
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Entre 2010 e 2012, vivi nos Camarões onde fui Leitor de Língua e Civilização brasileira na Université de Yaoundé. Nesse período, conheci a poesia de Engelbert Mveng (1930-1995) das mãos de meus alunos, que estudavam o seu livro Balafon, publicado em 1972, para as provas de acesso ao ensino superior. Em sua reedição de 2010 da Imprimerie Saint-Paul, de que provém o texto acima, é o que explica o dossiê pedagógico que percorre a trajetória de Mveng, poeta, artista e teólogo, cuja formação cristã no Seminário de St. Joseph d’Akono o conduziria ao Noviciado Jesuíta de Djuma, na República Democrática do Congo, em 1951, à Wépion, na Bélgica, entre 1954 e 1957, à Paris, ao Philosophat de Chantilly e ao Théologat de Fourvière, em Lyon, nos anos 1960, para ordenar-se padre jesuíta em 1963. Trata-se de uma trajetória por diferentes países que se pressente, no livro Balafon, no modo epistolar assumido por seus quatro poemas iniciais e na paisagem internacional evocada. O posfácio à edição, elaborado por Gilbert Doho e Marcelin Vounda Etoa, menciona ainda detalhes da luta anticolonial camaronesa a partir das greves de 1945 e a resposta de Mveng contra o que chamou de “holocausto colonial”, com menção ao discurso que proferiu no momento das independências africanas em defesa de uma teologia da libertação, discurso publicado em Théologie, libération et cultures africaines, pelas editoras Présence Africaine e Editions Clé, em 1997, um dos centros para compreender o diálogo entre América Latina e África no poema “A Montezuma”. Engelbert Mveng, para quem o cristão deveria ser “um eterno contestador e um profeta”, segundo Jean-Claude Djéréké, foi estrangulado em sua casa na aldeia Nkolfané, próxima à capital Yaoundé, em 23 de abril de 1995.
O poema “A Montezuma” lembra-nos da dicção de autores como Pablo Neruda, em “Las masacres” ou “Agonias” de seu Canto geral de 1950, e da forma do “verset” das Cinco grandes odes, de 1910, do poeta francês Paul Claudel, presente em autores da negritude como Léopold Sédar Senghor, segundo Michel Autrand. Propõe-nos ainda o diálogo com dois episódios do texto bíblico: com o Livro de Joel, no qual se indicam o vale de Jeosafá e a congregação de todos os povos; e com a parábola do grão de mostarda na pregação de Jesus no Evangelho de São Marcos, com que se opõem a pequenez do grão e as “folhas de mostarda”/sénevé já grandes, sob as quais os pássaros viriam fazer seus ninhos e cantar. É a mesma palavra que se repete noutro poema de Engelbert Mveng, intitulado “Pentecostes na África” (Mveng 63). Em ambos há o sentido de uma esperança que será a de uma voz capaz de falar a todos os povos. No texto do Evangelho de São Marcos, a continuação à parábola do grão de mostarda explicita o intuito de Jesus de adaptar-se — “anunciava-lhes a Palavra por meio de muitas parábolas como essas, conforme podiam entender” (MC 4-33) — em oposição à fala destinada aos apóstolos.
São dois aspectos da teologia de Mveng que a leitura desse poema, dedicado ao imperador asteca Montezuma, reencena. O primeiro deles, o desejo do eu de tornar-se, como no poema “Pentecostes na África”, uma “semente matinal de toda língua da terra”/ “semence matutinale de toute langue sur la terre” (65), desejo de um Pentecostes com tam-tams, balafons, tambores, instrumentos corais de uma mensagem cristã ao povo africano. São conhecidos os estudos de Mveng, formado na Nova Teologia pré-Vaticano II, sobre a noção de inculturação. Em L’Art d’Afrique noire: liturgie cosmique et langage religieux, de 1964, aprofunda um debate já presente em sua tese de doutorado sobre Santo Agostinho, intitulada Paganisme et christianisme: christianisation de la civilisation païenne de l’Afrique romaine d’après la correspondance de saint Augustin. Pergunta-se sobre a possibilidade de Deus de “comunicar aos africanos” (Mveng 45) ou sobre a “encarnação do Verbo de Deus numa civilização humana, a civilização africana” (Mveng 45). A resposta será a mesma do poema: a celebração do canto, da música, dos ritmos, do simbolismo — simbólica e ritmo seriam duas “estruturas fundamentais de nossa arte” (Mveng 8) — na direção de uma mensagem de fraternidade universal. Considerar esse povo africano como destinatário da mensagem faz dele o eixo articulador da duplicidade central do poema, com sua dupla América, eixo que está na oposição entre a catástrofe colonial e sua desertificação humana, com cemitérios e necrópoles, a que se seguiriam povos novos. À desertificação da América corresponderia, assim, o povoamento africano, com suas tribos, com o sentido preciso de uma civilização cristã de homens novos. A África dos balafons, espécie de xilofone, instrumento harmônico-percusivo, é vista na perspectiva de seus ritmos, para pensar como Roger Bastide — “como já dissemos, a África é o ritmo, essa nova poesia vai dançar, girar, deslocar-se segundo ritmos antes desconhecidos” (Bastide 53) — mas também como lugar desse “homem novo”.
Este é o segundo aspecto do poema “A Montezuma”. Trata-se de pensar o lugar desse povo africano na mensagem cristã. Éloi Messi Metogo (5) afirmou que “o cristianismo está presente na África desde os tempos apostólicos”. Engelbert Mveng faz recuar esse diálogo às relações que identifica entre o mundo de Jesus e os egípcios. Vê na ética cristã da luta da vida contra as forças da morte uma herança africana que explicitará num conjunto de estudos, um deles intitulado “A Bíblia e a África negra”, de que extraio o seguinte fragmento:
Nós viemos de longe, do fundo da África, e vocês poderão ler nossos nomes em nossos rostos… Somos o povo dos crentes da África, o povo da Bíblia, o de que fala o profeta Isaías e que para além dos rios de Cuxe levará a Yahvé sua oferenda no Monte Sião, lá onde é adorado seu Nome… Viemos aprender a Sagrada Escritura, a mensagem da Bíblia, que é nossa mensagem, porque somos o povo da Bíblia, porque a África é a Terra da Bíblia e que o segundo rio do Paraíso se chama Géon e que ele cerca a terra de Cuxe, isto é, a África Negra. Desde o Gênesis, a África e os Africanos estão presentes na Bíblia; a mensagem da Bíblia é nossa mensagem e o Povo da Bíblia é nosso Povo. Nós também, nós somos herdeiros da Bíblia e responsáveis por sua mensagem ontem, hoje e amanhã. Viemos aprender a decifrar essa mensagem que é nossa tanto quanto de vocês.
(Pocouta 33-34).1
Não temos condições de desdobrar aqui os lugares complexos dessa leitura, com sua menção ao Reino de Cuxe. Pauline Pocouta (34) evidenciou, por exemplo, como Mveng afasta-se da interpretação de Cuxe sob signo da maldição de Cam, compreendendo-a como posterior à Bíblia. Em L’Art d’Afrique noire: liturgie cosmique et langage religieux, situaria aí o berço de um monoteísmo “transcendente e absoluto” (Mveng 19). Traça não apenas um percurso que vai do cristianismo ao homem novo, vislumbrado nos povos africanos, porém identifica em formas de uma linguagem teologico-simbólica africana o caminho para a revelação cristã. Vê, por exemplo, num ornamento frequente às máscaras africanas a cruz inscrita num círculo: a cruz das quatro direções do mundo, o círculo da totalidade. Para afirmar que, por um lado, a catequese Banto poderá investir o signo da cruz de suas máscaras com as “riquezas da revelação cristã”: “o iniciado africano que traz a símbolo do cosmos marcado pela cruz assume em liberdade a luta da vida e da morte” (30); por outro, que o africano já trazia consigo um projeto de homem religioso cuja visão de mundo se organizava num eixo dialético, opondo o aqui e o transcendente (6). A prece, que será o modo enunciativo de outros poemas de Balafon, traria, nesse sentido, uma estrutura marcada pela divisão entre a liberdade criadora e determinismo do mundo. O triunfo da liberdade preludiaria, “o triunfo da vida sobre a morte”. É com ele, “grande riso solar”, que conclui o poema “A Montezuma”, com essa resposta ao sofrimento, a uma comunidade do sofrimento — dos judeus e africanos — para a qual o homem, afirma-nos, traria a linguagem da prece e da arte.
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“Nous sommes venus de loin, du fond de l’Afrique, et vous pouvez lire nos noms sur nos visages... Nous sommes le peuple des croyants d’Afrique, le peuple de la Bible, celui-là dont parle le prophète Isaïe et qui par-delà les fleuves de Kush apportera à Yahvé son offrande sur le Mont Sion, là où est adoré son Nom... Nous sommes venus apprendre l’Ecriture Sainte, le message de la Bible, qui est notre message, parce que nous sommes le peuple de la Bible, parce que l’Afrique est la Terre de la Bible et que le second fleuve du Paradis s’appelle Géon et qu’il entoure le pays de Kush, c’est-à-dire l’Afrique Noire. Depuis la Genèse, l’Afrique et les Africains noirs sont présents dans la Bible; le message de la Bible est notre message et le Peuple de la Bible est notre Peuple. Nous aussi, nous sommes les héritiers de la Bible et responsables de son message hier, aujourd’hui et demain. Nous sommes venus apprendre à déchiffrer ce message qui est notre message comme il est le vôtre.” Tradução minha.
Referências
- A Bíblia de Jerusalém São Paulo: Paulus, 1980.
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Autrand, Michel. “La négritude et son chant selon Claudel et Senghor.” Revue d’histoire littéraire de la France, [s.l], vol. 88, no. 2, 1988, p. 185–200. Disponível em: <www.jstor.org/stable/40529219>. Acesso em: 26/09/2019.
» www.jstor.org/stable/40529219 - Bastide, Roger. Poetas do Brasil Prefácio de Antonio Candido, organização e notas de Augusto massi. São Paulo: Edusp/Duas cidades, 1997.
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Djékéré, Jean-Claude. “Il y a 20 ans était assassiné Engelbert Mveng”. Cameroonvoice, [s.l], avril 27, 2015. Disponível em: <https://cameroonvoice.com/opinion/2015/04/27/il-y-a-20-ans-etait-assassine-engelbert-mveng/>. Acesso em:26/09/2019.
» https://cameroonvoice.com/opinion/2015/04/27/il-y-a-20-ans-etait-assassine-engelbert-mveng/ - Metogo, Éloi Messi et alli “Cristianismos africanos”. Concilium: Revistas internacional de Teologia, [s.l]. número 317, Petrópolis: Editora Vozes, 2006/4.
- Mveng, Engelbert. Balafon, avec dossier pédagogique par Gilbert Doho et Marcelin Vounda Etoa. Yaoundé: Édition CLÉ, 2010.
- Mveng, Engelbert. L’art d’Afrique noire: liturgie cosmique et langage religieux Paris: Point Omega/Mame, 1964.
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Pocouta, Paulin. “Engelbert Mveng: une lecture africaine de la Bible”. Nouvelle Revue Théologique, [s.l], 120-1 (1998), p. 32-45. Disponível em: <https://www.nrt.be/fr/articles/engelbert-mveng-une-lecture-africaine-de-la-bible-355>. Acesso em: 26/09/2019.
» https://www.nrt.be/fr/articles/engelbert-mveng-une-lecture-africaine-de-la-bible-355 -
Sagadou, Jean-Paul. “Saint Augustin et les païens/Engelbert Mveng et saint Augustin: Un Africain face à un ‘Africain’”. Itinéraires Augustiniens n°38 : Le chemin spirituel › IV. Augustin aujourd’hui. Disponível em: <https://www.assomption.org/fr/mediatheque/revue-itineraires-augustiniens/le-chemin-spirituel/iv-augustin-aujourd-hui/saint-augustin-et-les-paiens-par-jean-paul-sagadou>. Acesso em: 26/09/2019.
» https://www.assomption.org/fr/mediatheque/revue-itineraires-augustiniens/le-chemin-spirituel/iv-augustin-aujourd-hui/saint-augustin-et-les-paiens-par-jean-paul-sagadou
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Mar 2020 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2019
Histórico
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Recebido
03 Out 2019 -
Aceito
20 Nov 2019 -
Publicado
Dez 2019