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W. H. AUDEN EM TRADUÇÃO: O VERSO LIVRE DE “MUSÉE DES BEAUX ARTS”

W. H. AUDEN IN TRANSLATION: THE FREE VERSE OF “MUSÉE DES BEAUX ARTS”

Resumo

Publicado em Another Time, no início de 1940, “Musée des Beaux Arts” pertence a um momento crucial da vida do poeta inglês W. H. Auden: sua emigração para os EUA, onde obteve a cidadania norte-americana em 1946. O poema baseia-se em quadros de Bruegel, o Velho, que Auden observou no Museu Real de Belas-Artes de Bruxelas, na Bélgica, em particular na pintura Paisagem com a queda de Ícaro. No texto, Auden aborda os temas da presença do sofrimento na vida cotidiana e da indiferença humana em relação à dor alheia, dois temas pertinentes num mundo que estava às vésperas da Segunda Guerra Mundial, quando o texto foi escrito. Esses temas recebem do escritor um tratamento formal apurado, que revela mestria no manejo da forma do verso livre. Neste artigo, efetuaremos uma análise detida do verso de “Musée des Beaux Arts”, observando o poema com atenção intensa e sustentada, de modo que seus movimentos de forma não nos escapem. Em seguida, apresentaremos nossa tradução do texto para o português brasileiro e comentaremos as estratégias tradutórias, que buscaram recriar, com alguma dose de liberdade, as principais características formais do original.

Palavras-Chave
Tradução de Poesia; Teoria do Verso; Poesia Moderna de Língua Inglesa; W. H. Auden

Abstract

Published in Another Time in 1940, “Musée des Beaux Arts” belongs to a crucial moment in the life of the poet W. H. Auden: his emigration to the United States, where he obtained American citizenship in 1946. The poem is based on paintings by Bruegel the Elder that Auden observed in the Royal Museum of Fine Arts in Brussels, Belgium, in particular the work Landscape with the Fall of Icarus. In the text, Auden addresses the themes of the presence of suffering in everyday life and human indifference to the pain of others, two pertinent themes in a world that was on the eve of World War II when the poem was written. These themes are given a sophisticated treatment in terms of poetic technique, with a masterly use of the resources of free verse. In this article, we will perform a detailed analysis of the verse of “Musée des Beaux Arts”, observing the poem with intense and sustained attention, so that its movements of form do not escape us. We will then present our translation of the text into Brazilian Portuguese and comment on the translation strategies, which sought to recreate the main formal characteristics of the original.

Keywords
Poetry Translation; Prosody; Modern English Poetry; W. H. Auden

Poetry is what gets lost in translation

(Robert Frost)

“Musée des Beaux Arts” é um poema central na obra do poeta inglês Wynstan Hugh Auden (1907-1973)Auden, W. H. “Auden on opera, detective writers, wit, politics, the camera, drugs, poets, and poetry”. Swarthmore alumni issue. (1972): 2-15.. Composto em Bruxelas, no fim de 1939, e publicado no famoso livro Another Time, no início do ano seguinte, o poema pertence a um momento crucial da vida do escritor: sua emigração para os EUA, onde obteve a cidadania norte-americana em 1946. O poema baseia-se em quadros de Bruegel, o Velho, que Auden observou no Museu Real de Belas-Artes de Bruxelas, na Bélgica, em particular na pintura Paisagem com a queda de Ícaro. Pela sua relação com a pintura, pelo fato de que se descrevem obras de arte em seus versos, podemos inseri-lo na tradição da écfrase. Em linhas gerais, Auden aborda no poema os temas da presença do sofrimento na vida cotidiana e da indiferença humana em relação à dor alheia, dois temas pertinentes num mundo que estava às vésperas da Segunda Guerra Mundial, quando o texto foi escrito. Esses temas recebem de Auden um tratamento formal apurado, que examinaremos a partir de agora. Vejamos o poema:

“Musée des Beaux Arts”About suffering they were never wrong,
The Old Masters: how well they understood
Its human position: how it takes place
While someone else is eating or opening a window or just walking dully along;
How, when the aged are reverently, passionately waiting
For the miraculous birth, there always must be
Children who did not specially want it to happen, skating
On a pond at the edge of the wood:
They never forgot
That even the dreadful martyrdom must run its course
Anyhow in a corner, some untidy spot
Where the dogs go on with their doggy life and the torturer’s horse
Scratches its innocent behind on a tree.
In Breughel’s Icarus, for instance: how everything turns away
Quite leisurely from the disaster; the ploughman may
Have heard the splash, the forsaken cry,
But for him it was not an important failure; the sun shone
As it had to on the white legs disappearing into the green
Water; and the expensive delicate ship that must have seen
Something amazing, a boy falling out of the sky,
Had somewhere to get to and sailed calmly on.
(Auden 35Auden, W. H. “Auden on opera, detective writers, wit, politics, the camera, drugs, poets, and poetry”. Swarthmore alumni issue. (1972): 2-15.)

Propomos na tabela1 1 A metodologia utilizada para apresentar os dados prosódicos em forma de tabela foi apresentada pela primeira vez em Britto (2002) e baseia-se em notação proposta por Cavalcanti Proença. abaixo uma análise de aspectos formais do poema:

Tabela 1
Aspectos formais do poema

Na coluna principal, reproduzimos a escansão do poema, com a marcação dos acentos primários (/) e secundários (\) e das pausas sintáticas (| |) no interior de cada verso. Nas duas colunas seguintes, registramos, respectivamente, o número de acentos e de sílabas encontrados no verso em questão. Na próxima coluna, indicamos o esquema de rimas. Na última, representamos as sequências de fonemas que correspondem às rimas.

Quando observamos a tabela, fica evidente que “Musée des Beaux Arts” não possui contrato métrico (um padrão acentual e/ou silábico), nem foi escrito numa forma fixa tradicional. O único elemento estruturante regular é a rima. Trata-se de um poema escrito na forma do verso livre. Mas o que caracteriza o verso livre? Ausência de métrica e ausência de forma? O que significa dizer que um poema é composto em verso livre? De modo geral, pode-se dizer que a categoria “verso livre” é abrangente e engloba formas muito divergentes entre si.

Numa tentativa de esquematizar essas formas, que têm em comum o fato de não utilizarem um contrato métrico regular, Paulo Henriques Britto, baseando-se em prosodistas renomados de língua inglesa, como Chris Beyers e Charles Hartman, elabora uma tipologia do verso livre em inglês e em português, dividindo-o em três espécies principais: o verso livre clássico, o verso liberto e o novo verso livre. Essas espécies derivariam das duas tradições prosódicas da língua inglesa: uma anglo-saxã, que parte do verso aliterativo-acentual, e outra tradicional, que vem do verso inglês medido em pés.

O verso livre clássico é o da poesia de Walt Whitman, que Britto encara como um afastamento calculado do verso anglo-saxão. Grosso modo, este é um verso longo dividido em dois por uma cesura medial, contendo dois acentos fortes em cada hemistíquio, que tendem a recair em sílabas que aliteram — daí ser chamado de aliterativo-acentual. O verso de Whitman, também chamado de verso livre longo por Beyers, possui ainda outros elementos estruturantes, como enumeração, paralelismo, anáfora, expansão, contração e dicção elevada, muitos dos quais Whitman retirou da poesia hebraica do Velho Testamento. O verso liberto, por sua vez, resulta do afrouxamento das regras do verso silábico-acentual tradicional e deriva de um metro convencional. É possível notar a presença de um “metro fantasma (ou mais de um) por trás da aparente ausência de qualquer padrão formal” (Britto, “Para uma tipologia do verso livre em português e inglês”, 143-44Britto, Paulo Henriques. “Para uma avaliação mais objetiva das traduções de poesia”. As margens da tradução, editado por Bernardo Krause. Rio de Janeiro: FAPERJ/Caetés/UERJ, 2002, pp. 54-69), em poemas escritos com essa forma, além de uma dicção que muitas vezes se aproxima da prosa. Já o novo verso livre seria praticamente o oposto do verso livre clássico; por isso também seria chamado de verso livre curto por Beyers. Desenvolvido por William Carlos Williams e por e. e. cummings, consiste em versos curtos com enjambements radicais, abrindo espaço para o uso irregular de vários recursos formais de outros tipos de verso.

A mesma tipologia aplicada ao exame do verso livre em inglês pode ser utilizada no do verso livre em português, conforme Britto. Sendo assim, pode-se dizer que o verso de Whitman teria inspirado o verso livre clássico de Fernando Pessoa e de Manuel Bandeira; que o verso liberto de T. S. Eliot e de Wallace Stevens seria similar ao da poesia inicial de Mário de Andrade e ao de parte da produção de Jorge de Lima; e que o novo verso livre de Williams e de cummings seria semelhante aos versos curtos de Oswald de Andrade e aos versos de boa parte da poesia brasileira contemporânea, após forma se popularizar no país, nos anos 1960. Hoje, Britto afirma que podemos entender o verso livre como uma convenção, assim como a balada ou a redondilha, o soneto ou o decassílabo; porém como uma convenção, conforme destacamos, muito mais ampla e abrangente do que essas formas, uma vez que não designa um tipo específico de verso, mas

todo um continuum de formas cujos pontos extremos são, de um lado, o verso polimétrico, e, de outro, práticas poéticas que abrem mão do verso, das quais a poesia concreta é a mais importante no Brasil. O que todas essas formas teriam em comum seria a utilização consciente do que chamaremos de ritmo como um dos mais importantes princípios organizadores da escrita, porém sem recorrer a um padrão métrico fixo.

(Britto, “Para uma tipologia do verso livre em português e inglês” 31Britto, Paulo Henriques. “A tradução do verso liberto de T. S. Eliot”. XII Congresso da ABRALIC. Curitiba, 20 jul 2011.)

Ritmo pode ser entendido como qualquer sequência de eventos que gere um padrão distinto capaz de mudanças e de variações. Sendo assim, a liberdade de que o poeta desfruta no verso livre não é a da ausência de regras, mas a de criar as próprias regras, os próprios ritmos. T. S. Eliot, por exemplo, chegava a dizer que não havia fuga do metro, mas apenas mestria; afinal, emendava Ezra Pound, “nenhum verso é livre para o sujeito que quer fazer um bom trabalho” (qtd. in Britto, “A tradução do verso liberto de T. S. Eliot”, 2Britto, Paulo Henriques. “Para uma tipologia do verso livre em português e inglês”. Revista Brasileira de Literatura Comparada. 13. 19 (2011): 127-144.). É nesse sentido que EliotEliot, Thomas Stearns. “Reflections on vers libre”. New Statesman. 3 mar (1917). 17 dez. 2020. Disponível em: <http://tseliot.com/essays/reflections-on-vers-libre>.
http://tseliot.com/essays/reflections-on...
afirmava que não existia algo como verso livre: existia “tão-somente versos bons, versos ruins e caos”2 2 No original: “Conservative Verse and vers libre does not exist, for there is only good verse, bad verse, and chaos”. . Na realidade, não é que o verso livre não existisse de fato, para Eliot; era só que os melhores versos livres, quando examinados a fundo, quase sempre se revelavam menos livres do que pareciam à primeira vista. E isso era basicamente o que pensava Auden, que, diga-se de passagem, foi muito influenciado por Eliot. Ao ser questionado a respeito do que achava do verso livre, Auden afirma:

Todos que já participaram de um jogo, seja ele bridge ou basebol, sabem que não há jogos sem regras. Você pode fazer o que quiser das regras, mas toda sua liberdade e diversão derivam do trabalho com elas. Por que com a poesia deve ser diferente? [...] Quando há regras, tudo é muito mais divertido, pois elas impõem uma espécie de padrão de qualidade métrica e sugerem um monte de coisas em que não tínhamos pensado antes. Isso liberta a gente dos grilhões da nossa personalidade3 3 No original: “Anyone who has played a game, whether it is bridge or baseball, knows you can’t play games without rules. You can make the rules what you like, but your whole fun and freedom come from working within these. Why should poetry be any different? One of the things you so often notice when looking at a lot of poems in free verse is that you can’t tell one author from another, far from thinking one more original. With rules it is so much more fun because they impose some kind of metrical quality, and they often suggest all kinds of things you haven’t thought of before. It does free one a bit from the fetters of oneself.” .

(Auden, “Auden on opera, detective writers, wit, politics, the camera, drugs, poets, and poetry”, 2Auden, W. H. Another Time. Londres: Faber and Faber Limited, 2019.)

Como veremos a partir deste momento, “Musée des Beaux Arts” é um belo exemplar de um poeta em pleno domínio da técnica e de um verso livre longe de ser completamente livre. Os versos casuais e irregulares do poema, versos de dicção coloquial e ensaística ao mesmo tempo, possuem duas características fundamentais: o contraponto entre verso visual e verso sonoro e as rimas. Contraponto é a relação de aproximação e de afastamento que se estabelece entre “o verso como elemento gráfico, delimitado na página pelo corte do verso, e o grupo de força, a porção de texto que se costuma ler em voz alta sem pausa” (Britto, “Para uma tipologia do verso livre em português e inglês”, 132Britto, Paulo Henriques. “Para uma tipologia do verso livre em português e inglês”. Revista Brasileira de Literatura Comparada. 13. 19 (2011): 127-144.) — entre o verso como unidade gráfica e o verso como unidade sonora. Trata-se de um conceito proposto pelo professor e poeta norte-americano Charles Hartman.

Numa de suas aulas de poesia, Hartman realiza um experimento com seus alunos. A fim de demonstrar a relação existente entre verso livre e contraponto, seleciona um conjunto de poemas em verso livre e desfaz a organização original dos versos, recriando-os a seguir em formato de prosa. Seu objetivo não é demonstrar que verso livre e prosa são duas coisas semelhantes, mas investigar uma questão fundamental: até onde vai o verso de um poema escrito com versos livres? Como esses versos são divididos e determinados no corpo do poema? Um dos poemas escolhidos por Hartman, para levar adiante o experimento, é justamente “Musée de Beaux Arts”, de Auden. Assim, o professor apresenta o texto de Auden remodelado como prosa, sem que a classe saiba de que se trata. Em seguida, ordena aos alunos que transformem o bloco de texto corrido em versos, com objetivo de observar onde cada verso será cortado. A única informação sobre o texto original que Hartman transmite é que ele possui duas estrofes de tamanhos distintos. Os alunos então apresentam seus trabalhos, e o que se vê é intrigante: quase todo mundo cortou os versos nos mesmos lugares. Segundo Hartman, “todos sentiram que eles deveriam ser razoavelmente longos” (75)Hartman, Charles. Free verse: an essay on prosody. Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press, 1980.. Eis o resultado final:

About suffering they were never wrong, the Old Masters:
how well they understood its human position;
how it takes place while someone else is eating
or opening a window or just walking dully along;
how, when the aged are reverently,
passionately waiting for the miraculous birth,
there always must be children
who did not specially want it to happen,
skating on a pond at the edge of the wood:
They never forgot that even the dreadful martyrdom
must run its course anyhow in a corner,
some untidy spot
where the dogs go on with their doggy life
and the torturer’s horse scratches its innocent behind on a tree.

In Breughel’s Icarus, for instance:

how everything turns away quite leisurely from the disaster;
the ploughman may have heard the splash,
the forsaken cry,
but for him it was not an important failure;
the sun shone as it had to on the white legs
disappearing into the green water;
and the expensive delicate ship
that must have seen something amazing,
a boy falling out of the sky,
had somewhere to get to and sailed calmly on.

Como podemos ver, o poema de Auden refeito pelos alunos de Hartman, embora possua as mesmas palavras do original, é um texto completamente diferente. Na opinião do professor de poesia, ele parece ter saído do interior de um guia de museu entediado, alguém que já o teria apresentado inúmeras vezes anteriormente. O poema é um fracasso. Só de ter sido rescrito com a sintaxe típica de uma obra convencional, perdeu toda a verve que possuía. Ao ter os versos divididos nos lugares em que a sintaxe e às vezes a pontuação os dividiria, ficou enfadonho e previsível. Para piorar, os novos cortes dos versos reforçam acentos que a própria sintaxe destacaria, e as reflexões que se desenrolam em orações mais longas não são capazes de dar profundidade ao texto. Para Hartman, ainda que a dicção casual e entediante da nova versão contradiga em tom trivial a profundidade do poema e que esse detalhe seja coerente com o que se diz no poema — “que as pessoas reagem desse jeito às tragédias dos outros” (76) —, isso seria um tipo ruim de coerência, que exemplificaria a “falácia da forma imitativa”. Na visão do professor, a forma apenas deve imitar o conteúdo se, e somente se, o poema não deixar de ser um poema em consequência disso. É evidente que todas as qualidades que não identifica na versão de seus alunos, Hartman acredita que existam no poema original.

Sua análise do poema de Auden destaca aquilo que os cortes dos versos produzem como efeito de sentido. Hartman afirma que tais cortes ora produzem acentos inesperados em determinadas palavras, ora reforçam os acentos de outras, o que daria a essas palavras uma força que elas jamais teriam se o poema tivesse sido escrito em prosa — e seria aí, na prosódia criada pelo contraste entre o verso visual e o verso sonoro, que residiria a mágica do poema de Auden. Quando um termo então tem a acentuação reforçada pelo corte do verso, ele passa a sugerir tudo aquilo que ele exclui. O corte do segundo verso do poema, por exemplo, ao reforçar o acento de “human”, no início do verso seguinte, põe em relevo o que Auden deixa de fora: o sofrimento não tem uma “animal position”, tampouco pertence ao divino. Ele só tem lugar na vida humana. Assim, as coisas que ficam de fora ajudam-nos a entender melhor o que Auden quer dizer com “sofrimento” no poema, pois “a informação deriva de um acento criado pela versificação” (Hartman 78Hartman, Charles. Free verse: an essay on prosody. Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press, 1980.). Desse modo, tanto palavras de início de verso, como “human” (no terceiro verso), quanto palavras de fim de verso, a exemplo do modal “may” (no verso quinze), passam a ter o significado potencializado quando entram na luz dos holofotes do poema, que aparecem toda vez que um corte de verso contradiz uma pausa sintática. Toda vez que um contraponto é estabelecido entre o verso visual e o verso sonoro.

Para Hartman, inclusive, é o contraponto que nos faz perceber melhor as rimas do poema, uma vez que, em poemas com poucos versos curtos e com rimas distantes umas das outras, como é o caso do texto de Auden, nossa tendência é não perceber as rimas, por mais completas4 4 Rimas completas são aquelas que apresentam equivalência fonológica e prosódica a partir da sílaba tônica. que sejam, como são as do original (salvo a do verso dezessete). O crítico literário Edward MendelsonMendelson, Edward. Early Auden, Later Auden: a critical biography. Nova Jersey: Princeton University Press, 2017. resume bem a função da rima em “Musée des Beaux Arts”:

por trás da aparente desordem [de versos casuais e irregulares], percebe-se que há um padrão que entrelaça todo o poema. As rimas pouco assertivas, que passam facilmente despercebidas numa primeira leitura, deixam o poema bem amarrado: elas parecem afirmar, assim como Bruegel, que o sofrimento não deixa de ser importante só porque não está perto de nós ou só porque estamos muito ocupados para percebê-lo5 5 Grifo nosso. . (417)

Na interpretação de Mendelson, as rimas mimetizam, na forma do poema, o que se transmite no conteúdo, de maneira análoga, como acabamos de ver, ao que acontece com determinados cortes de verso. Em outras palavras, a forma também significa. E o resultado da união entre a letra e o sentido, entre a forma e o fundo, é a expansão do campo semântico do poema. No caso da rima, além do leque de significados que abre para o texto, ela cumpre um propósito básico para Auden, que vai na esteira do que ele afirmou ao opinar sobre o verso livre: ela impõe regras ao jogo. Dito isso, analisemos agora detalhes da nossa tradução:

“Musée des Beaux Arts”Estavam certos quanto ao sofrimento
Os Velhos Mestres; sabiam muito bem o seu lugar
Na vida humana: o quanto ele aparece diariamente
Enquanto todos fazem refeições, abrem as janelas ou passeiam à beira-mar;
Sempre que os velhos estão esperando, fervorosos e reverentes,
O milagroso nascimento,;
Há crianças, bastante indiferentes,
Que não dão a mínima, patinando no lago da floresta.
Eles jamais deixavam de notar
Que, inclusive, o martírio mais atroz
Pode vir a ocorrer, sem mais nem menos, em algum lugar imundo,
Onde os cães levam suas vidas de cão, e o cavalo do algoz
Coça num tronco o traseiro inocente.
No Ícaro de Brueghel, por exemplo: todo mundo,
Pachorrento, volta as costas à desgraça; o lavrador
Até teria ouvido o baque, o grito de dor,
Mas isso não o fez perder o alento; o sol fazia o seu papel
De sempre e iluminava as pernas que sumiam, cada vez mais,
No verde das águas; e o brigue de bom gosto mais ao fundo,
Que, com certeza, viu o impossível, um rapaz cair do céu,
Seguiu em frente, sem olhar atrás.

Assim como fizemos com o poema original, apresentamos na tabela abaixo um estudo de atributos formais da tradução:

Tabela 2
Estudo de atributos formais da tradução

O primeiro aspecto que gostaríamos de comentar é a tradução das rimas. Como já se falou, “Musée des Beaux Arts” possui rimas completas em praticamente todos os versos, com exceção dos versos 17 e 21, que apresentam rima incompleta, e do terceiro verso, que não rima com nada. O esquema de rimas fica mais compacto à medida que se aproxima da segunda estrofe, e as rimas terminam menos espaçadas nessa estrofe, que chega a apresentar dois pares de rimas emparelhadas (vv. 14-15 e vv. 18-19). Isso pode sinalizar um esforço maior de Auden para percebermos a rima ou um aumento de tensão nos versos finais até chegar ao desenlace. Seja como for, o mais importante é que as rimas são quase todas completas. Isso acontece porque, não custa repetir, num poema com versos livres relativamente longos, se as rimas não são completas, fica difícil percebê-las.

Já que as coisas são assim, cabe ao tradutor respeitá-las na tradução; por isso optamos por ser um pouco mais católicos que o Papa, e nossa tradução, feita com rimas completas, não apresenta nenhuma incompleta e só possui um verso sem rima, o oitavo. Todas as oito rimas diferentes do original aparecem na tradução, porém não na mesma ordem. Infelizmente, só conseguimos reproduzir uma parelha da segunda estrofe do original, e não duas. Mas algo importante foi alcançado: a recriação das rimas completas sem fugir do sentido dos versos, por mais que nossa versão possua uma beira-mar que eles não têm — ossos do ofício. Agora chegamos a uma singularidade da tradução: o metro fantasma. Quem possuir ouvido atento a coisas desse tipo não deixará de notar a cadência do decassílabo por trás do poema. Embora não saltem tanto aos olhos na tabela de análise, decassílabos de diferentes configurações foram “escondidos” na tradução. Às vezes ocupam um verso inteiro, como no caso do decassílabo heroico que abre o poema, “Estavam certos quando ao sofrimento”; às vezes sobressaem no contraponto entre o verso visual e o sonoro, como no sáfico de “o sol fazia o seu papel/ De sempre” (vv. 17-18); outras vezes se encontram no primeiro grupo de força de um verso, como no gaita-galega de “Sempre que os velhos estão esperando [...]” (v. 5); e daí por diante. Para facilitar a visualização do que estamos falando, examinemos a tradução com algumas marcações:

“Musée des Beaux Arts”Estavam certos quanto ao sofrimento
Os Velhos Mestres; sabiam muito bem o seu lugar
Na vida humana: o quanto ele aparece diariamente
Enquanto todos fazem refeições, abrem as janelas ou passeiam à beira-mar;
Sempre que os velhos estão esperando, fervorosos e reverentes,
O milagroso nascimento,
Há crianças, bastante indiferentes,
Que não dão a mínima, patinando no lago da floresta.
Eles jamais deixavam de notar
Que, inclusive, o martírio mais atroz
Pode vir a ocorrer, sem mais nem menos, em algum lugar imundo,
Onde os cães levam suas vidas de cão, e o cavalo do algoz
Coça num tronco o traseiro inocente.
No Ícaro de Brueghel, por exemplo: todo mundo,
Pachorrento, volta as costas à desgraça; o lavrador
Até teria ouvido o baque, o grito de dor,
Mas isso não o fez perder o alento; o sol fazia o seu papel
De sempre e iluminava as pernas que sumiam, cada vez mais,
No verde das águas; e o brigue de bom gosto mais ao fundo,
Que, com certeza, viu o impossível, um rapaz cair do céu,
Seguiu em frente, sem olhar atrás.

Em azul, estão marcados os decassílabos heroicos (de notação 6-10, isto é, de acento obrigatório na sexta e na décima sílabas); em amarelo, encontram-se os gaita-galegas (de notação 1-4-7-10); em verde, os martelo-agalopados (de notação 3-6-10); em cinza, os sáficos (de notação 4-8-10). Existem ainda outros versos tradicionais na tradução, como o alexandrino “o lavrador/ até teria ouvido o baque” (v. 15), em rosa. Já “Onde os cães levam suas vidas de cão” (v. 12), em amarelo escuro, é um decassílabo capenga, de notação 1-3-7-10. E há também repetições de pés métricos para efeitos de ritmo, como no encadeamento de troqueus — pé binário formado por uma sílaba tônica e uma sílaba átona (/-) — que reverbera no interior dos heptassílabos de “todo mundo,/ Pachorrento, volta as costas à desgraça” (vv. 14-15), em vermelho.

Nada disso existe no poema de Auden. Realmente tomamos uma liberdade maior na tradução. A ideia, ao criar um metro fantasma e ao lançar mão de outros recursos de ritmo, era não apenas seguir à risca a máxima de Pound — não há vers libre para o sujeito que quer fazer um bom trabalho —, mas também fazer algo que o próprio Auden seria capaz de fazer, se estivesse em nosso lugar, já que ele adorava criar regras de jogo, como vimos. Achamos que nossas escolhas refletem uma prática tradutória que vai ao encontro do projeto estético de Auden e da visão que ele tinha do verso livre. E acreditamos que o fato de o decassílabo aparecer diluído no interior de versos mais longos (apenas cinco versos gráficos são decassílabos) ou no contraponto entre verso visual e verso sonoro alivia o peso do metro na tradução — para ouvidos não treinados, o poema soa como um texto escrito em verso livre.

No fundo, é como se traduzíssemos pela cartilha de Eliot, para quem

o fantasma de algum metro simples deve sempre esconder-se atrás do cortinado até mesmo do verso mais ‘livre’, para avançar ameaçadoramente quando dormimos e retirar-se quando acordamos. Ou: a liberdade só é verdadeiramente livre quando aparece contra o pano de fundo de uma limitação artificial6 6 No original: “[…] the ghost of some simple metre should lurk behind the arras in even the ‘freest’ verse; to advance menacingly as we doze and withdraw as we rouse. Or: freedom is only truly freedom when it appears against the background of an artificial limitation”. .

(s/p)

Assim, ao eleger o decassílabo como metro fantasma da tradução, aproximamos o falso verso livre dela do verso liberto que Eliot emprega em muitos de seus poemas. De acordo com Paulo Henriques Britto, como vimos, o verso liberto é uma das três principais espécies de verso livre, ao lado do verso livre clássico e do verso livre novo. Forjado na tensão entre a fixidez e o fluxo, o verso liberto é exatamente aquele que possui um metro fantasma por trás e que corresponde ao que os franceses denominavam de vers libéré — “não exatamente livre, e sim liberto, por ser derivado de uma forma fixa anterior” (Britto, “A tradução do verso liberto de Eliot” 5). No caso de Eliot, a forma fixa por trás de suas principais obras poéticas é o pentâmetro jâmbico, o metro mais tradicional da poesia de língua inglesa, que consiste no verso de cinco pés jâmbicos — pé binário formado por um sílaba átona seguida de uma tônica. Em português, o metro que corresponde ao pentâmetro jâmbico é precisamente o decassílabo, motivo por que adotamos esse verso como o metro fantasma da tradução, priorizando o tipo heroico, o metro mais clássico da poesia de língua portuguesa.

  • 1
    A metodologia utilizada para apresentar os dados prosódicos em forma de tabela foi apresentada pela primeira vez em Britto (2002)Britto, Paulo Henriques. “Para uma avaliação mais objetiva das traduções de poesia”. As margens da tradução, editado por Bernardo Krause. Rio de Janeiro: FAPERJ/Caetés/UERJ, 2002, pp. 54-69 e baseia-se em notação proposta por Cavalcanti Proença.
  • 2
    No original: “Conservative Verse and vers libre does not exist, for there is only good verse, bad verse, and chaos”.
  • 3
    No original: “Anyone who has played a game, whether it is bridge or baseball, knows you can’t play games without rules. You can make the rules what you like, but your whole fun and freedom come from working within these. Why should poetry be any different? One of the things you so often notice when looking at a lot of poems in free verse is that you can’t tell one author from another, far from thinking one more original. With rules it is so much more fun because they impose some kind of metrical quality, and they often suggest all kinds of things you haven’t thought of before. It does free one a bit from the fetters of oneself.”
  • 4
    Rimas completas são aquelas que apresentam equivalência fonológica e prosódica a partir da sílaba tônica.
  • 5
    Grifo nosso.
  • 6
    No original: “[…] the ghost of some simple metre should lurk behind the arras in even the ‘freest’ verse; to advance menacingly as we doze and withdraw as we rouse. Or: freedom is only truly freedom when it appears against the background of an artificial limitation”.

Referências

  • Auden, W. H. Another Time Londres: Faber and Faber Limited, 2019.
  • Auden, W. H. “Auden on opera, detective writers, wit, politics, the camera, drugs, poets, and poetry”. Swarthmore alumni issue (1972): 2-15.
  • Britto, Paulo Henriques. “Para uma avaliação mais objetiva das traduções de poesia”. As margens da tradução, editado por Bernardo Krause. Rio de Janeiro: FAPERJ/Caetés/UERJ, 2002, pp. 54-69
  • Britto, Paulo Henriques. “A tradução do verso liberto de T. S. Eliot”. XII Congresso da ABRALIC Curitiba, 20 jul 2011.
  • Britto, Paulo Henriques. “Para uma tipologia do verso livre em português e inglês”. Revista Brasileira de Literatura Comparada 13. 19 (2011): 127-144.
  • Eliot, Thomas Stearns. “Reflections on vers libre”. New Statesman 3 mar (1917). 17 dez. 2020. Disponível em: <http://tseliot.com/essays/reflections-on-vers-libre>.
    » http://tseliot.com/essays/reflections-on-vers-libre
  • Hartman, Charles. Free verse: an essay on prosody Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press, 1980.
  • Mendelson, Edward. Early Auden, Later Auden: a critical biography Nova Jersey: Princeton University Press, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2022
  • Aceito
    28 Jun 2022
  • Publicado
    Ago 2022
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