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AS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DE THE EMPEROR OF ICE-CREAM, DE WALLACE STEVENS

THE BRAZILIAN TRANSLATIONS OF WALLACE STEVENS’ THE EMPEROR OF ICE-CREAM

Resumo

Um dos mais antologizados e discutidos poemas de Wallace Stevens, identificado inclusive pelo autor como um de seus preferidos, “The Emperor of Ice-Cream”, de 1922 e incluído no livro de estreia do poeta – Harmonium, lançado no ano seguinte – possui um lugar de relativo destaque na presença do poeta em língua portuguesa. Diferentemente de outras obras centrais do autor, esse poema foi traduzido por dois nomes de grande destaque do fazer poético-tradutório brasileiro: Décio Pignatari e Paulo Henriques Britto. Após análises do poema em inglês e das duas traduções brasileiras anteriores, apresenta-se uma nova tradução do poema, identificando, igualmente, suas características tradutórias.

Palavras-chave
Tradução poética; Wallace Stevens; Décio Pignatari; Paulo Henriques Britto; poesia moderna

Abstract

One of the most anthologized and discussed poems by Wallace Stevens, singled out by the author himself as one of his favorites, “The Emperor of Ice-Cream”, first published in 1922 and included in the author’s debut collection – Harmonium, released in the following year – holds an arguably distinctive position within the poet’s presence within Portuguese language. Unlike other major works by the author, this poem has been translated by two of the most distinguished Brazilian poet-translators: Décio Pignatari and Paulo Henriques Britto. After analyzing the original poem and both previous Brazilian translations, a new translational endeavor will be presented, while also identifying its key translation characteristics.

Keywords
Poetry translation; Wallace Stevens; Décio Pignatari; Paulo Henriques Britto; Modern American poetry

Mr. Stevens is the master of style. His gift for combining words is baffling and fantastic, but sure: even when you do not know what he is saying, you know he is saying it well.

Edmund Wilson

Pouco se produziu no Brasil com relação à obra de um dos maiores poetas do modernismo estadunidense, Wallace Stevens (1879-1955), tanto em crítica à sua produção poética quanto em termos da tradução de sua obra. Poeta hermético, de difícil compreensão, cria poemas que causam certo desconcerto em quem lê, fazendo uso de intricados jogos de palavras, improváveis relações sonoras, preciso controle rítmico, hábeis manipulações sintáticas e variados jogos alusivos. Conquanto parte da crítica se debruce sobre sua obra a partir de análises semânticas – tentando decifrar suas imagens – isto, por fim, se mostra infrutífero, talvez por se tratar da parte mais inessencial de sua escrita: como propõe Helen Vendler (1984)Vendler, Helen, Wallace Stevens: Words Chosen out of Desire. Knoxville: University of Tennessee Press, 1984., interpretações e decodificações dos símbolos e significados de Stevens são secundários, devendo-se concentrar sobre suas inovações sintáticas (e, adicionaríamos, composições rítmico-sonoras) e as relações que o poeta cria a partir delas, sendo estes aspectos os elementos que trazem vivacidade aos poemas. Forma – diz ela – em Stevens, é sempre um veículo de significado (Vendler, 1984Vendler, Helen, Wallace Stevens: Words Chosen out of Desire. Knoxville: University of Tennessee Press, 1984., p. 54). No Brasil, Augusto de Campos (1997)Campos, Augusto de. “Wallace Stevens: A Era e a Idade”. Folha de São Paulo, 3 ago. 1997. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs030808.htm. Acesso em: 19 out. 2020.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/f...
resume assim o modernista:

um inclassificável fabricante de sonhos verbais, um abstracionista de dicção original e única, um arquiteto de “versos movediços”, que foi capaz de desautomatizar “robôs-palavras” e de dar à sua língua inéditas inflexões. Em meio aos gigantes de sua geração, Wallace Stevens soube extrair do seu harmônico aparentemente anacrônico estranhas dissonâncias e dissidências, destemperando-o e fazendo dele um instrumento de sonoridades imprevistas, sensível às transformações do seu tempo.

Apesar da limitada presença de Stevens na produção acadêmica e literária brasileira, ao nos voltarmos a um de seus mais célebres poemas, “The Emperor of Ice-Cream”, publicado pela primeira vez em 1922 e nominalmente indicado pelo autor como um de seus preferidos dentre os de sua obra de estreia (Harmonium, de 1923), temos singular oportunidade de contar com duas traduções brasileiras, empreendidas por tradutores de distinto peso e importância dentro do traduzir brasileiro: são eles Décio Pignatari e Paulo Henriques Britto. Eis o poema conforme escrito por Stevens (2001)Stevens, Wallace. Harmonium. Londres: Faber and Faber, 2001.:

The Emperor of Ice-CreamCall the roller of big cigars,
The muscular one, and bid him whip
In kitchen cups concupiscent curds.
Let the wenches dawdle in such dress
As they are used to wear, and let the boys
Bring flowers in last month’s newspapers.
Let be be finale of seem.
The only emperor is the emperor of ice-cream.
Take from the dresser of deal,
Lacking the three glass knobs, that sheet
On which she embroidered fantails once
And spread it so as to cover her face.
If her horny feet protrude, they come
To show how cold she is, and dumb.
Let the lamp affix its beam.
The only emperor is the emperor of ice-cream.

De início notamos o título – sedutor e excêntrico – que alinhado a um refrão de fácil rememoração e imagens até certo ponto acessíveis ajudam a fazer deste um dos mais famosos poemas de Stevens. O autor, ao apontar sua predileção por esses versos, disse que o aprecia por trazer uma roupagem do trivial e, simultaneamente, algo da suntuosidade essencial da poesia1 1 “This wears a deliberately commonplace costume, and yet seems to me to contain something of the essential gaudiness of poetry” (Stevens, 1996, p. 263). . Ainda tratando dele, Stevens diz se tratar do ser [being], em posição ao parecer ser [seeming to be], oferecendo uma centralidade ao sétimo verso – verso cuja leitura não é imediata; ainda assim, insiste:

O poema do sorvete é um bom exemplo de um poema com uma singularidade própria. Mas, no final das contas, o ponto do poema não é seu significado. [...] [Um] poema deve ter uma peculiaridade, como se fosse, momentaneamente, todo o idioma do que o suscita, mesmo que o que o suscite seja apenas a mais vaga emoção2 2 “The ice cream poem is a good example of a poem that has its own singularity. But, after all, the point of the poem is not its meaning. […] [A] poem must have a peculiarity, as if it was momentarily the complete idiom of that which prompts it, even if that which prompts it is the vaguest emotion.” .

(Stevens, 1996Stevens, Holly (Ed.). Letters of Wallace Stevens. Los Angeles: University of California Press, 1996., p. 500).

Vendler (1984, p. 50-51)Vendler, Helen, Wallace Stevens: Words Chosen out of Desire. Knoxville: University of Tennessee Press, 1984. aponta este poema como característico de Stevens no que ele oculta, em sua narrativa implícita – “the secrecy of the implied narrative”. Assim, inconspicuamente presente, o autor apresenta detalhes, acontecimentos de um determinado dia, de forma crua, direta, mas entrecortada, enquanto apresenta uma narrativa, observável, se costurarmos seus recortes. Vendler, deste modo, reapresenta o que está sendo contado, explicita a narrativa implícita tecida pelo autor, em um citação infelizmente longa, mas de notável importância:

Fui, como vizinho, à uma casa para ajudar a preparar o corpo de uma velha senhora que morreu sozinha; fui ajudar nos preparativos do velório doméstico. Entrei, de maneira familiar, não pela porta da frente, mas pela cozinha. Fiquei abismado ao entrar, dado o festival de desordem que lá reinava: um vizinho grande, musculoso, que trabalhava na fábrica de charutos foi chamado para bater o sorvete, diversos vizinhos mandaram suas domésticas para ajudar e também os garotos que ajudam nas tarefas diárias, que levaram flores dos seus jardins embrulhadas em jornais para enfeitar a casa e o lugar em que o corpo será apresentado. As domésticas aproveitaram a situação para flertar com os garotos na cozinha enquanto esperavam o sorvete ficar pronto. Tudo isso me pareceu grosseiro, escandaloso, sórdido e insensível na casa da senhora morta – todo aquele apetite, aquela concupiscência.

Abandonei a sexualidade e gula da cozinha e fui até a morte no quarto. O cadáver da senhora estava exposto sobre a cama. Meu primeiro impulso foi buscar um lençol para cobri-la; me aproximei da velha cômoda de pinho, mas foi difícil abri-la pois em cada uma das gavetas faltava um puxador; ela devia estar muito enferma para ir até a loja e comprar outros puxadores de vidro. Mas peguei um lençol e observei que ela havia bordado caudas de pavões nele; ela queria enfeitar o lençol, mas era muito pobre e tinha que bordá-los e cortá-los para aproveitar ao máximo a quantidade de tecido. E cortou-os tão curtos que, quando puxei o lençol para cobrir seu rosto, seus pés ficaram descobertos. Era quase pior ter que olhar para seus pés cheios de calos que para seu rosto; de alguma forma, seus pés eram mais mortos, mais mudos, que sua face.

Ela está morta, e este fato não pode ser encoberto por qualquer tipo de lençol. O que permanece após a morte, sob a luz fria da realidade, é a vida – toda aquela vida, com sua musculosidade chula, apetite áspero e concupiscência ávida que havia na cozinha. O único deus do mundo é o deus da vida e apetite contínuos, persistentes; e eu devo enfrentar, sem titubear, esse quadro vivo, repulsivo mas verdadeiro – a vida animal da cozinha, o corpo no quarto dos fundos. A vida não oferece outro quadro da realidade uma vez que ultrapassamos as aparências3 3 Tradução nossa. .

(Vendler, 1984Vendler, Helen, Wallace Stevens: Words Chosen out of Desire. Knoxville: University of Tennessee Press, 1984., p. 50-51).

O poema é escrito de forma impessoal, como alguém comandando as ações das comemorações fúnebres, aos moldes de um diretor. E é exatamente essa descrição seca, sem a expressão de choque, de lástima, do luto, que aponta para uma necessidade absoluta do choque, da lástima e do reconhecimento da realidade dura. Não há escapatória, e assim Stevens nos apresenta os dois lados da mesma realidade, inscritos na forma do poema: duas estrofes, dois cômodos da casa, um da gula e lascívia, dos músculos, alimento e sexo, da vida dentro da cozinha; o outro, no quarto, com a morte, pés calosos, retorcidos, fria e muda. Não há espontaneidade – não há espaço para a imaginação ou para o amor romântico, da aflição e dos ais –, ainda assim, todos os elementos da elegia convencional estão presentes: o cadáver, o sudário, flores, pranteadores, o banquete do velório, a menção ao destino inexorável, a permanência da vida frente à morte. O “eu” da elegia, no entanto, é suprimido, numa brutal refuta do posicionamento de Poe, que diz que a morte de uma linda mulher é o assunto por excelência da poesia: novamente, um topos clássico é pichado pelo grafite da modernidade (Vendler, 1984Vendler, Helen, Wallace Stevens: Words Chosen out of Desire. Knoxville: University of Tennessee Press, 1984., p. 52).

Cook (1988, p. 90-92)Cook, Eleanor. Poetry, Word-Play, and Word-War in Wallace Stevens. Princeton: Princeton University Press, 1988., numa tentativa de escapar às alegorizações mais costumeiras feitas acerca desse poema, propõe expor o jogo de alusões que Stevens tece, partindo dos ecos vocabulares até a alusão temática. Começa pelos dois versos finais de cada estrofe, tidos pela autora como resposta a Hamlet.

Let be be finale of seem.
The only emperor is the emperor of ice-cream.
Let the lamp affix its beam.
The only emperor is the emperor of ice-cream.

Eis Hamlet: “Your work is your only emperor for diet”. Além da prosódia semelhante, Hamlet também está em frente a um cadáver, Yorick. A mesma peça traz também a fala, igualmente dita pelo personagem-título: “‘Seems’, madam? Nay, it is. I know not ‘seems’” (grifos nossos), ideia fortemente presente no sétimo verso, central ao poema. Outra alusão, também de Shakespeare, adviria de The Winter’s Tale, quando Perdita diz “Good sooth, she is / the queen of curds and cream.” Ora, não é difícil encontrar todos estes aspectos presentes no poema de Stevens: “queen” como “emperor”, os “curds” batidos pelo musculoso torcedor de charutos e o “cream”, cuja temperatura e função foram mudados, mas a palavra é mantida4 4 Cook (1988, p. 91) ainda propõe que as imagens ao final de The Winter’s Tale podem ser, ponto a ponto, contrastadas com o poema em voga, revertendo, também, as imagens e trama de Hamlet. . Ainda, na cena de ressurreição da mesma peça, temos: “warm life, / As now it coldly stands [...] Let be, Let be! [...] If this be magic, let it be an art / Lawful as eating […] I saw her, / As I thought, dead.” (grifos nossos) Mas Stevens rejeita a regeneração de The Winter’s Tale enquanto modifica a cena do cemitério de Hamlet.

Ainda assim, a crítica cita outras possíveis fontes alusivas para este curto poema de Stevens. Novamente em Shakespeare, Carrier (1974, p. 232-234)Carrier, Warren. “Commonplace Costumes and Essential Gaudiness: Wallace Stevens’ ‘Emperor of Ice-Cream’”. College Literature, 1(3), p. 230-235, 1974. propõe que o jogo alusivo tenha sido traçado a partir de The Phoenix and the Turtle. Para tal, cita duas partes deste poema alegórico escrito sobre a morte do amor ideal. A primeira é “Truth may seeme, but cannot be...” (grifos nossos), cuja reversão é central aos versos de Stevens. Já a segunda traz a diferença entre as personagens de cada poema, mas sempre regidas por um imperativo ordenador. Em Shakespeare (Carrier, 1974Carrier, Warren. “Commonplace Costumes and Essential Gaudiness: Wallace Stevens’ ‘Emperor of Ice-Cream’”. College Literature, 1(3), p. 230-235, 1974., p. 233):

“Let the bird of loudest lay […] herald sad and trumpet be”

“Let the priest […] be the swan.”

“And thou treble dated Crow […] amongst our mourners shalt thou go.”

“To this urn […] let those repaire…

Já em Stevens:

“Call the roller of big cigars […] and bid him whip”

“Let the wenches dawdles

“[…] let the boys bring flowers”

“Take from the dresser of deal”

“spread it so as to”

“Let the lamp affix its beam.”

De um lado, a altivez de um pássaro que canta a tristeza, um padre posto como cisne e um corvo para os que pranteiam; ao fim, uma urna para cicatrizar o luto. De outro, um homem musculoso para fazer um doce, raparigas zanzando, garotos com flores mal-ajambradas, uma cômoda barata e uma lâmpada para dar ainda mais realidade, mais relevo ao corpo frio: deve-se ser, não parecer.

Essas personagens de grau não elevado, costumeiras, com objetos do dia-a-dia para ilustrar um velório e a morte ainda partilham essas características com outro poema moderno dos Estados Unidos, “Tract”, de William Carlos Williams, escrito cinco anos antes. Ao redor da morte, itens palpáveis, reais, ordinários (Cook, 1988Cook, Eleanor. Poetry, Word-Play, and Word-War in Wallace Stevens. Princeton: Princeton University Press, 1988., p. 91). Ambos os poemas com traços anti-poéticos – Britto (Stevens, 2017Stevens, Wallace. O imperador do sorvete e outros poemas. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 131) alude ao verso final de cada estrofe como “fortemente irregular, prosaico mesmo” –, realistas, opostos ao que se costuma ver em poemas fúnebres, acentuando a realidade da ocasião.

Em sua forma, o poema é dividido, conforme apontado, em duas estrofes, em que o último verso se repete. O andamento dos versos é, em sua maioria, jâmbico, variando de três a cinco pés métricos. Britto (Stevens, 2017Stevens, Wallace. O imperador do sorvete e outros poemas. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 131) contou – excluindo-se o último verso de cada estrofe, por ser prosaico – 11 dos 14 versos como sendo tetrâmetros (ainda que a contagem silábica seja variável) e 26 dos 41 pés como sendo jambos, o que o levou a classificar o metro fantasma5 5 Quanto ao metro fantasma, ver Britto (2011). deste poema como tetrâmetro jâmbico.

Quanto à sonoridade, podemos observar fortes inflexões aliterativas e assonantes, como: “big cigars”, “roller” e “muscular”, “bid him whip”. A totalidade do terceiro verso com: “kitchen cups concupiscent curds”, “wenches dawdle” e “such dresses”, “dresser of deal”, “come” e “cold”, “affix its beam”. Há também uma rima nos dísticos finais, a saber: “seem” e “beam”, sétimo e décimo quinto versos, respectivamente, rimando com “ice-cream”. Considerando que a sonoridade é comumente de vital importância para a poética de Stevens (“acima de tudo mais, poesia são palavras; e palavras são, acima de tudo mais, em poesia, sons”6 6 Citação presente em Stevens (1997, p. 663). ), deve-se almejar a recriação desses aspectos sempre que possível.

Décio Pignatari (2004)Pignatari, Décio. Poesia pois é poesia: 1950-2000. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004., na década de 1980, recriou este poema por “O Rei do Sorvete”:

Chame o enrolador de grandes charutosAquele dobrado, e diga-lhe que bata Os coalhos concupiscentes nas xícaras da cozinha. Que as gurias zaranzem nos vestidos Habituais, e os rapazes tragam flores Em cartuchos de jornais do mês passado. Que ser seja o final de parecer. Só há um rei e esse é o rei do sorvete.

Tire da cômoda de pinho, Que já perdeu três puxadores de vidro, aquele lençol Que ela bordou um dia com caudas de pavão E estenda-o de modo a cobrir-lhe o rosto. Se um pé unhudo sair para fora, é Para mostrar como ela está fria, como está muda. Que a lâmpada afixe o seu filete. Só há um rei e este é o rei do sorvete.

Em termos semânticos, a informação foi passada em sua completude, não tendo excluído nada a partir do veiculado pelo poema em inglês; a diferenciação mais notável se encontra na substituição do imediato “imperador” por “rei” – ambas as palavras partilham de um mesmo campo semântico, o que não influencia tanto a leitura – e na adição da palavra “filete” do décimo quinto verso. Em termos métricos, Pignatari varia das oito sílabas do nono verso até as dezessete (!) do décimo verso – passando por um verso de quinze e dois contando catorze sílabas poéticas. Essa característica, portanto, não foi privilegiada por Pignatari. O último verso de cada estrofe, no entanto, o mais longo e irregular no inglês, foi transposto como decassílabo, mantendo, ainda assim, sua característica prosaica. Os primeiros versos dos dísticos, além disso (sétimo e décimo quinto), apresentam métrica idêntica entre si, o que aumenta sua identidade na formação da correlação entre as estrofes.

Quanto às relações sonoras, há efeitos mais fracos e em menor quantidade. Exemplos disso são as transposições de “bid him whip” por “diga-lhe que bata”, diluindo a relação sonora, antes concentrada; “diga-lhe que bata”, no entanto, faz ressoar o “dobrado”. O terceiro verso, semelhante ao verso aliterativo anglo-saxão, manteve em grande parte a sonoridade dos /k/, somente realocando uma ocorrência, em “xícaras”. Há também “dresser of deal”, que, numa transposição mais literal, tornou-se “cômoda de pinho”.

O que surge como problema – esperado – são as rimas dos dísticos. O primeiro aposta em uma possível rima toante entre “parecer” e “sorvete”, mas ainda assim não chega a se completar: a sonoridade ascendente do verbo não parece evocar a descentente do substantivo, apesar da repetição das vogais finais. O que se poderia argumentar é que as consoantes do final de “parecer” ressoam no começo de “sorvete”. A segunda ocasião apresenta uma rima completa, mas, por força da pequena quantidade de rimas úteis para “sorvete”, enxertou-se, na recriação, a palavra “filete”. Observa-se, nessa primeira tradução, já a dificuldade da transposição dessa rima.

No segundo caso, Paulo Henriques Britto, revendo tradução anterior própria, retraduziu assim o poema, mantendo, como título, “O imperador do sorvete”:

Chama o enrolador de charutos,
O musculoso, e pede-lhe que bata
Em xícaras caseiras cremes lúbricos.
Que as raparigas andem com as roupas
Que costumam usar, e os rapazes
Tragam flores em jornais do mês passado.
Que parecer pereça em ser somente.
O único imperador é o imperador do sorvete.
Pega no armário de pinho, onde
Faltam três puxadores de vidro, o lençol
Em que ela outrora bordou pombas
E cobre o corpo dela até o rosto.
Se um pé cheio de calos ficar de fora,
Verão como está fria e muda, agora.
Que fixe a lâmpada de seu feixe quente.
O único imperador é o imperador do sorvete.

Conjugando o imperativo a partir do “tu”, em oposição ao mais familiar “você” usado por Pignatari, Britto usa versos mais curtos, variando de oito a doze sílabas poéticas (isso se o décimo verso for lido sem a cesura sobre a vírgula), mantendo-se, assim, dentro de uma variação esperada correlata às variações do poema em inglês. Nos versos derradeiros de cada estrofe, manteve a ordem das palavras e traduziu prosaicamente, de maneira bem afeita à de Stevens. Semanticamente, houve total transposição do texto, sendo feitas adições: “somente”, “agora” e “quente”, nos sétimo, décimo quarto e décimo quinto versos, respectivamente.

Em termos sonoros, ainda que não tão presente como nos versos de Stevens, Britto emprega diversas paronomásias. Assim, temos “raparigas andem com as roupas”, “pega no armário de pinho”, “calos ficar de fora” e o excelente verso “e cobre o corpo dela até o rosto”, com um hermetismo e condensação sonoros muito afeitas ao poeta estadunidense.

Há de se ressaltar um precioso achado empregado por Britto no sétimo verso. Ao traduzir “Let be be finale of seem” de Stevens, o tradutor desloca a recorrência de “be be” para outros componentes da frase, a saber, “finale of seem”. Com isso, traz a repetição do poema em inglês para uma quase idêntica reiteração sonora de palavras agora diferentes, “parecer pereça”. Isso, note-se, sem malabarismos ou inversões pesadas ao verso.

Quanto às rimas, Britto considerou a parelha “come” e “dumb” como rima importante e ativa no poema, o que levou à adição de “agora” ao décimo quarto verso. Quanto aos dísticos, as duas ocasiões necessitaram de um enxerto: “somente” e “quente”, palavras ausentes no poema em inglês e que se prestaram somente a compor a rima final, ainda que de maneira toante, não conformando rimas completas.

É possível observar, portanto, como a rima para “sorvete”, dado o campo semântico almejado aqui, é custosa. Em um caso, Pignatari não conseguiu resolver a rima e no outro precisou adicionar uma palavra, estratégia pela qual Britto optou em ambos os casos.

A tradução aqui proposta levou em consideração essa dificuldade apresentada pela simplicidade das palavras utilizadas por Stevens aos finais dos dísticos e a virtual ausência de palavras que se prestem, dado o campo semântico estabelecido pelo poeta, a rimar com a trivial “sorvete” (mesmo tendo sido elaborada sem consulta às traduções já existentes). Almejando igualmente uma recriação afeita à impressão de Edmund Wilson exposta na epígrafe, ou seja, tentando manter beleza rítmico-sonora e não facilitar a compreensão de passagens por vezes obscuras ou de díficil compreensão, propõe-se a seguinte tradução:

O Imperador do PicoléChame o torcedor de charutos fartos,
Aquele musculoso, e faça-o sovar
Na copa concupiscentes copos de coalhada.
Deixe as raparigas vagarem em vestidos
Como os de costume, e os garotos
Trazerem flores em jornais de outros meses.
Faça o ser ser fim do que parecer é.
O único imperador é o imperador do picolé.
Tome da copeira de pinho,
Sem três puxadores de vidro, a toalha
Em que ela certa vez bordou pavões
E deponha-a como a cobrir seu rosto.
Se seus pés retorcidos avultarem, virão
Mostrar como está fria, e muda.
Afixe o feixe de luz do tripé.
O único imperador é o imperador do picolé.

O título já expõe a diferença central: as escassas rimas a “sorvete” ocasionaram sua substituição por “picolé”. De início, mantem-se no mesmo campo semântico, não obstante a troca do significado imediato (picolé, em inglês, seria “popsicle” ou “ice pop”); segundo, como funcionalidade, as características de doçura e efemeridade (ambos derretem, afinal) são comuns a sorvete e picolé; mantêm-se título e versos finais de alguma maneira inusitados; conseguiu-se ao menos uma rima completa, levando ao mínimo a introdução de vocábulos ausentes no poema em inglês; ainda assim, não foi possível alcançar uma tradução sem novas introjeções vocabulares.

Nos dísticos isolados, desta maneira, lê-se:

Faça o ser ser fim do que parecer é.
O único imperador é o imperador do picolé.
Afixe o feixe de luz do tripé.
O único imperador é o imperador do picolé.

No primeiro caso, bastou uma inversão, posicionando o verbo ao final do verso. Longe de ser ideal, resguarda-se por se tratar de um verso já de decodificação semântica trabalhosa em inglês, o que é potencializado pela repetição da palavra “be” (“Let be be finale of seem”); tal artifício foi mantido na tradução (“ser ser”). Já no segundo, recorreu-se à adição de uma palavra não presente no poema em inglês para que a rima fosse mantida. Nos dois casos, no entanto, a rima é completa.

Com isso, contudo, surge um fator que talvez possa ser considerado mais problemático à tradução. Conforme apontado anteriormente, Stevens goza – infelizmente – de restrita presença no ideário brasileiro da poesia estadunidense, relegado não raro apenas a menções nominais à sua pessoa. Quando, informalmente, seus poemas são aludidos (os mais famosos), o são metonimicamente: fala-se do poema do jarro (“Anecdote of the Jar”), do poema do melro/blackbird (“Thirteen Ways of Looking at a Blackbird”), do comediante (“The Comedian as the Letter C”) e, igualmente, o poema do sorvete. Ora, o “poema do sorvete”, na tradução aqui apresentada, perderia tal alcunha, tal referencial externo (o mesmo não ocorreria, por exemplo, em Portugal; a tradução presente naquele país, feita por Jorge Fazenda Lourenço (Stevens, 2006Stevens, Wallace. Harmónio. Tradução de Jorge Fazenda Lourenço. Lisboa: Relógio D’água, 2006.), traz o título de “O Imperador dos Gelados”). Apesar disso, buscou-se priorizar uma proposta minimamente invasiva, visando uma menor adição de elementos não presentes no poema em inglês, com foco nas relações sintáticas e sonoras criadas pelo poeta estadunidense.

Quanto a este último aspecto, a sonoridade, tentou-se ao máximo incutir nos versos aliterações e assonâncias sem comprometer os aspectos semânticos. Deste modo, temos “charutos fartos”; para o forte “bid him whip”, “faça-o sovar”, em que as vogais se repetem invertidas (/a/ e /o/; /o/ e /a/), enquanto as circundam consoantes fricativas, num jogo espelhado (/f/ e /s/ e depois /s/ e /v/); o terceiro verso manteve todas as palavras começando em /c/7 7 Cook (2007, p. 61) menciona que Stevens, ao ver traduções francesas deste verso, preferiu “des laits libidineux” a “des crèmes délectables”; ao nosso ver, por manter a aliteração. ; as “raparigas vagarem em vestidos” – mantendo também uma possível dualidade de “wenches”, que significa tanto “moça jovem” quanto “prostituta” –, “como os de costume”, “copeira de pinho”, entre outros exemplos. Já com relação aos aspectos métricos, os versos variam de oito (nono verso) a treze sílabas (o terceiro verso, que privilegiou a aliteração), salvo pelo último de cada estrofe que, com o objetivo de soar prosaico, somou quinze sílabas poéticas.

Por fim, é importante salientar que esse esforço tradutório não se faz em oposição aos esforços anteriores, mas inclusive por causa dos outros. Longe de excluirem-se ou de proporem uma suposta tradução “definitiva”, a pluralidade de (re)visões sobre um poema específico, ainda mais dessa importância e centralidade na poética de um autor tão potente, só pode fazer com que poema e poeta se valorizem. Valoriza-se, igualmente, a língua de chegada, quanto mais inundada for por aportes poéticos externos – agora feitos internos. Toda nova tradução de Stevens é ao mesmo tempo uma celebração desse poeta – relegado a um virtual esquecimento no Brasil – e um esforço que visa sua maior presença em nossa vida, língua e poesia.

  • 1
    “This wears a deliberately commonplace costume, and yet seems to me to contain something of the essential gaudiness of poetry” (Stevens, 1996Stevens, Holly (Ed.). Letters of Wallace Stevens. Los Angeles: University of California Press, 1996., p. 263).
  • 2
    “The ice cream poem is a good example of a poem that has its own singularity. But, after all, the point of the poem is not its meaning. […] [A] poem must have a peculiarity, as if it was momentarily the complete idiom of that which prompts it, even if that which prompts it is the vaguest emotion.”
  • 3
    Tradução nossa.
  • 4
    Cook (1988, p. 91)Cook, Eleanor. Poetry, Word-Play, and Word-War in Wallace Stevens. Princeton: Princeton University Press, 1988. ainda propõe que as imagens ao final de The Winter’s Tale podem ser, ponto a ponto, contrastadas com o poema em voga, revertendo, também, as imagens e trama de Hamlet.
  • 5
    Quanto ao metro fantasma, ver Britto (2011)Britto, Paulo Henriques. “Para uma tipologia do verso livro em português e inglês”. Revista Brasileira de Literatura Comparada, 13(19), p. 127-144, 2011..
  • 6
    Citação presente em Stevens (1997, p. 663)Stevens, Wallace. Wallace Stevens: Collected Poetry and Prose. Ed. Frank Kermode and Joan Richardson. Nova York: Library of America, 1997..
  • 7
    Cook (2007, p. 61)Cook, Eleanor. A Reader’s Guide to Wallace Stevens. Princeton: Princeton University Press, 2007. menciona que Stevens, ao ver traduções francesas deste verso, preferiu “des laits libidineux” a “des crèmes délectables”; ao nosso ver, por manter a aliteração.

Referências

  • Britto, Paulo Henriques. “Para uma tipologia do verso livro em português e inglês”. Revista Brasileira de Literatura Comparada, 13(19), p. 127-144, 2011.
  • Campos, Augusto de. “Wallace Stevens: A Era e a Idade”. Folha de São Paulo, 3 ago. 1997. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs030808.htm Acesso em: 19 out. 2020.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2022
  • Aceito
    20 Nov 2022
  • Publicado
    Dez 2022
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