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STORNI, Alfonsina. Sou uma selva de raízes vivas. Seleção, tradução e notas de Wilson Alves-Bezerra. São Paulo: Iluminuras, 2020, 200 p.

STORNI, Alfonsina. Sou uma selva de raízes vivas. Seleção, tradução e notas de Wilson Alves-Bezerra. São Paulo: Iluminuras, 2020. 200

Alfonsina StorniStorni, Alfonsina. Sou uma selva de raízes vivas. Seleção, tradução e notas Wilson Alves-Bezerra. São Paulo: Iluminuras, 2020. (18921938), importante escritora argentina do início do século XX, destacou-se por sua lírica, mas também escreveu poesia em prosa, crônicas, diários, teatro adulto e infantil. Ao longo de sua vida, publicou La inquietud del rosal (1916), El dulce daño (1918), Irremediablemente (1919), Languidez (1920), Ocre (1925), Poemas de amor (1926), Mundo de siete pozos (1935) e Mascarilla y Trébol (1938). Desde seu primeiro livro, Storni distinguiu-se por sua escrita ousada, em que abordava a temática da mulher, o ser mulher, sua sexualidade, seu lugar na sociedade, questionando o papel do homem perante tudo isso. Chamou a atenção, principalmente, porque o fez a partir de suas experiências vividas, expondo seus sentimentos, seus desejos e suas dores, como mulher.

Sou uma selva de raízes vivas é uma antologia de poemas traduzidos de Alfonsina Storni no Brasil. A seleção dos poemas, a tradução e as notas foram realizadas por Wilson Alves-Bezerra. O livro, bilíngue, está disposto da seguinte maneira: “Nota do organizador – Traduzindo a dissonância”; “Sou uma selva de raízes vivas”, seção que apresenta os poemas em espanhol-português; “Em busca do país de Alfonsina”, seção que expõe uma breve narrativa da vida de Alfonsina Storni; “Referências bibliográficas” e “Sobre o tradutor e organizador”.

Wilson Alves-Bezerra, além de tradutor, é poeta, romancista, crítico de literatura e professor. Traduziu livros de Horacio Quiroga (Contos da Selva, Cartas de um caçador, Contos de amor de loucura e de morte e Os desterrados, todos editados pela Iluminuras), Luis Gusmán (Os outros, Hotel Eden e Pele e Osso – finalista do Prêmio Jabuti 2011, na categoria melhor tradução literária espanhol-português , todos editados pela Iluminuras) e Sergio Bizzio (Era o céu, Iluminuras, 2020). É autor dos livros Vertigens (Iluminuras, 2015 prêmio Jabuti na categoria Poesia, Escolha do Leitor), Vapor Barato (romance, Iluminuras, 2018) e O Pau do Brasil (Urutau, 2016-2019), Malangue Malanga (Multinacional Cartonera, 2019), entre outros. Em Portugal, publicou a antologia de poemas Exílio aos olhos, exílio às línguas (Oca, 2017) e, no Chile, Cuentos de zoofilia, memoria y muerte (LOM, 2018). É professor de Letras na Universidade Federal de São Carlos, onde atualmente coordena o Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura.

Em “Nota do organizador – Traduzindo a dissonância”, Alves-Bezerra faz uma pequena apresentação de Alfonsina, e através de um fragmento de uma crônica, ao escrever sobre a postura da mulher e seu lugar na sociedade, nos dá uma ideia de seu caráter audacioso e irônico: “A mulher que se enamora de um homem pelo corte de suas calças é digna da zoologia” (Cositas sueltas, La Nota, 4 de fevereiro de 1919)”. Esclarece que a antologia é composta de cinquenta poemas, os quais contemplam “o corpo sensual, o corpo perturbado, a sexualidade, enunciados por um eu-lírico feminino, que não se dobra às convenções sociais de seu tempo e que, portanto, enuncia-se de modo arrebatado e não submisso.” E que, com esta seleção, buscou ressaltar a potente retórica da poeta, trazendo “da sua lírica o que dialoga com a gente de hoje, uma poesia em fúria e furor.” (Alves-Bezerra, 11). Deste modo, os poemas escolhidos salientam a ruptura com o padrão suposto, no início do século passado, da poesia escrita por mulheres. Ainda destaca as sucessivas transformações ao longo de sua produção poética, tanto quanto às temáticas quanto à forma de sua poesia, que foi mudando enquanto ia se desvencilhando das convenções formais.

Também explica que os critérios que guiaram a elaboração deste livro abarcam duas frentes: a primeira, “selecionar os poemas em que a mulher surge em seus desejos e contradições, para além da retórica amorosa do enamoramento e da submissão ao macho”, ou seja, que aborda a complexa questão de gênero e a desigualdade sexual, no “discurso amatório”, que está presente em praticamente toda sua obra, da lírica à prosa. A segunda, a de uma proposta autoral, que, como tradutor, buscou reconstruir os poemas em português brasileiro de forma que soassem familiares, “que a Storni brasileira” soasse profundamente atual. Mas diz que, quando houve a necessidade de escolher entre “Alfonsina rimar em português ou fazê-la ser sugestiva e sensual, provocativa”, optou pela segunda (Alves-Bezerra, 12).

Em relação à sintaxe, usa a próclise, bem como a “mescla oral brasileira entre as formas tônicas de terceira pessoa e átonas de segunda” (Alves-Bezerra, 12). No tocante às rimas, decide atenuá-las, preservando as assonâncias e algumas rimas, mas, por vezes, com a intenção de reproduzir a contemporaneidade do poema, prefere eliminá-las. Exemplifica algumas destas escolhas detalhadamente. Afirma destacar as imagens eróticas para enfatizar o que anteriormente era somente insinuado, e que era motivo de duras críticas a Alfonsina. Enfim, o tradutor buscou “uma Alfonsina remixada, fiel a seus princípios sonoros, mas aliviada de certa rigidez à qual se submetia seu verso”.

Quanto à fidelidade, declara ter seguido os princípios de Haroldo de Campos, “assumindo o papel do tradutor como criador”. No entanto, diz não compartilhar com Campos a “noção de tradução como tarefa luciferina”. Pede ao leitor que compreenda, ao ler “esses versos brasileiros de Alfonsina Storni”, não estar à frente de uma tradução fiel, sequer luciferina, mas “de uma tradução amorosa” (Alves-Bezerra, 13). Por fim, comenta a organização dos poemas, os quais estão dispostos em ordem cronológica, por livro, com a finalidade de mostrar as variações estéticas ao longo do tempo, bem como para facilitar a pesquisa das obras em espanhol.

A seção de mesmo nome do livro, “Sou uma selva de raízes vivas”, apresenta os poemas divididos pelos livros publicados, citados anteriormente e, por último, em poemas não publicados em livro, como segue: A inquietude do roseiral (4 poemas), O doce dano (4 poemas), Irremediavelmente (8 poemas), Languidez (4 poemas), Ocre (4 poemas), Poemas de amor (16 poemas), Mundo de sete poços (4 poemas), Máscara e trevo (3 poemas), e Poemas não publicados em livro (7 poemas).

O tradutor apresenta na seção “Em busca do país de Alfonsina” uma breve biografia, ilustrada por fotos tiradas na Suíça, onde esteve com bolsa de residência tradutória do programa Coincidencia, da Casa dos Tradutores Looren e da Fundação Pro Helvetia. Lá, pôde traduzir os poemas e buscar informações sobre as origens da poeta, em Sala Capriasca, terra natal de Alfonsina, onde viveu até os quatro anos de idade. Nesta seção sobre sua trajetória de vida, pessoal e profissional, relata como a pequena Alfonsina, vinda do cantão Ticino, cresceu como um animalzinho sem cuidados (Delgado, 254Delgado, Josefina. Alfonsina Storni: una biografía esencial. Buenos Aires: Debolsillo, 2010.), viveu entre amores e dissabores, e se transformou na grande escritora que, ainda em vida, foi reconhecida.

Desta seção, ressaltarei a recepção e as críticas apresentadas, as quais demonstram a resistência à aceitação da escrita de uma mulher que escreve de outro lugar que não o estipulado a ela. Alves-Bezerra inicia contando que, em 1921, a obra de Alfonsina chegou ao Brasil, por intermédio de Horacio Quiroga, que havia enviado ao amigo Monteiro Lobato o livro Irremediablemente (1919) juntamente com recomendações e encômios. Em setembro, a Revista do Brasil, então dirigida por Lobato, publica uma resenha de meia página sobre o livro. Nela, percebe-se que Lobato não se entusiasmou com Alfonsina como Quiroga, pois não faz uma análise crítica e omite o que há de mais erótico na poeta, apresentando o soneto “Tanta doçura...”, mais tradicional e assinalando apenas “a despreocupação com os preceitos de escola, a individualidade e a modernidade da poeta”. O tradutor conclui que este fato demonstra a pequena receptividade da obra da poeta entre os leitores brasileiros, bem como, “o desconcerto próprio de sua poesia em uma sociedade patriarcal como a brasileira”, denotando que não seria “lida nem avaliada entre nós”. Lobato, que “tinha o poder de colocar em cena e circulação alguns escritores do país vizinho”, como havia feito com Quiroga, não fez o mesmo com Alfonsina (Alves-Bezerra, 152). Assim, a poeta permaneceu inédita em nosso país.

Segue comentando que, na Argentina, o crítico Luis María Jordán tinha feito críticas diretas a Irremediablemente, e não apenas aos poemas. Em artigo publicado em maio de 1919, na revista cultural Nosotros, Jordán afirmou que ela escrevia como um homem, e que por isso deveria ser lida por eles e não por moças. Alfonsina não considera negativa essa opinião, e, em uma entrevista publicada em 1931 pela revista El hogar, apropria-se do afirmado por Jordán, para opor-se à resignação imposta às mulheres. Mas as críticas “não se limitavam a seu erotismo frontal”, pois, em 1925, na revista Proa, Borges falaria, de forma pejorativa de sua escrita, que, segundo o tradutor, foram motivadas por preconceitos de gênero e classe social (Alves-Bezerra, 153).

Mais recentemente, Alfonsina foi criticada em um pequeno estudo realizado por Beatriz Sarlo, em que salienta a “falta de qualidade estética de sua poesia”, mas admite o “potencial provocativo e transgressor” das temáticas abordadas, ao mesmo tempo em que aponta “o fato de ela supostamente não se filiar aos cânones da vanguarda martinfierrista” da época, reforçando os preconceitos anteriormente citados. E, como reitera o tradutor, como se sua obra fosse “fruto de uma falta de escolha, de uma carência intelectual, e não resultado de escolhas estéticas”. Assim, para Alves-Bezerra, todos estes juízos mostram um desconforto gerado pelo “fato de ela ser mulher, e de falar de sua condição de mulher, do corpo feminino, do lugar da mulher na sociedade, colocando em dúvida os padrões estabelecidos no Rio da Prata.” (Alves-Bezerra, 154).

Com o propósito de ilustrar alguns resultados da tradução, mas tendo em vista a limitação do espaço, elegi três excertos de poemas distintos para apreciação e análise, tanto onde o tradutor cumpriu com sua proposta, quanto onde é passível de questionamento. O primeiro excerto foi extraído do poema “Capricho”, de O doce dano, em que o tradutor consegue ressaltar o erótico na poesia da poeta como almejava, conforme vemos nas estrofes a seguir.

Escrútame los ojos sorpréndeme la boca,
Sujeta entre tus manos esta cabeza loca;
Dame a beber veneno, el malvado veneno
Que moja los labios a pesar de ser bueno.
Traduzida em “Capricho” como:
Penetre-me os olhos, surpreenda-me a boca,
Agarre forte com suas mãos esta cabeça louca,
Dê-me de beber veneno, o veneno maldito
Que lhe lambe os lábios apesar de inofensivo.

No próximo excerto, as duas primeiras estrofes do poema “La loba”, de A inquietude do roseiral, escolhi dois pontos distintos para análise, pois destacarei o êxito do tradutor em sua tarefa, como também lançarei uma objeção à tradução do verso final.

Yo soy como la loba.
Quebré con el rebaño
Y me fui a la montaña
Fatigada del llano.
Yo tengo un hijo fruto del amor, de amor sin ley,
Que no pude ser como las otras, casta de buey
Con yugo al cuello; ¡libre se eleve mi cabeza!
Yo quiero con mis manos apartar la maleza.
Traduzidas em “A loba” como:
Eu sou como a loba.
Deixei o rebanho
E parti à montanha
Cansada do campo.
Eu tenho um filho fruto do amor, amor sem lei,
Que como as outras não pude ser, casta de grei
Com o jugo no pescoço, livre ergo minha testa!
É com as mãos que eu afasto a mata.

O primeiro aspecto que destaco é o do “eu” característico de Alfonsina, a mulher que declara sua posição, seu lugar na sociedade, que não se sujeita às convenções sociais, que a princípio é mantido na tradução, confluindo com um dos objetivos propostos pelo tradutor. No entanto, o segundo aspecto se refere justamente ao oposto, pois observo que há uma ruptura nesse aspecto no último verso. Em “Yo quiero con mis manos apartar la maleza”, traduzido como “É com as mãos que eu afasto a mata”, debilita o tom do “eu” da poeta pela supressão dos pronomes “yo” e “mis”, e do verbo “quiero”. O verso pode adquirir outro sentido sem esses cortes, mais próximo à intenção referida anteriormente, como, por exemplo, esta opção que segue: “Eu quero com minhas mãos afastar a erva daninha”.

Por último, selecionei para comentar um excerto de um dos poemas mais conhecidos de Alfonsina, “Tú me quieres blanca”, de O doce dano, que trata da desigualdade sexual, no qual ela repreende os homens pela exigência desigual que apresentam (Delgado, 89Delgado, Josefina. Alfonsina Storni: una biografía esencial. Buenos Aires: Debolsillo, 2010.). O poema, nesta tradução, teve seu efeito reverberado com uma profusão de imagens, conforme desejado pelo tradutor.

Tú me quieres alba,
Me quieres de espumas,
Me quieres de nácar.
Que sea azucena
Sobre todas, casta.
De perfume tenue.
Corola cerrada.

Tú que hubiste todas
Las copas a mano,
De frutos y mieles
Los labios morados.
Tú que en el banquete
Cubierto de pámpanos
Dejaste las carnes
Festejando a Baco.

Tú que el esqueleto
Conservas intacto
No sé todavía
Por cuáles milagros,
Me pretendes blanca
(Dios te lo perdone),
Me pretendes casta
(Dios te lo perdone),
¡Me pretendes alba!

Traduzido em “Você me quer branca” como:

Você me quer clara,
me quer de espuma,
me quer de nácar.
Que seja de açucena,
e mais que tudo, casta.
De perfume tênue.
De corola fechada.
...
Todas as taças
passaram por sua mão,
frutas e mel
seus lábios mancharam.
Você que no banquete
coberto de ramos
deixou as carnes
festejando Baco.
...
Você que o esqueleto
mantém intacto,
não sei ainda,
por qual milagre ou magia,
você me quer branca
(Deus te perdoe),
me quer casta
(Deus te perdoe)
você me quer alva.

Finalmente, cabe observar que se algumas escolhas, em certos momentos, fazem o tradutor se distanciar um pouco da poética storniana, Alves-Bezerra alcança o objetivo pretendido, pois consegue, através de seu projeto de tradução, evidenciar a expressividade vigorosa e marcante da poeta, trazendo seus poemas reconstruídos em português brasileiro para nosso tempo.

Referências

  • Delgado, Josefina. Alfonsina Storni: una biografía esencial Buenos Aires: Debolsillo, 2010.
  • Storni, Alfonsina. Sou uma selva de raízes vivas Seleção, tradução e notas Wilson Alves-Bezerra. São Paulo: Iluminuras, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Set 2021
  • Aceito
    07 Nov 2021
  • Publicado
    Fev 2022
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