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ENTREVISTA COM LEONARDO FRÓES

O poeta Leonardo FróesFróes, Leonardo. Contos Orientais: baseados em fontes antigas da Ásia. Rio de Janeiro: Rocco, 2004., tradutor de clássicos como Goethe, Swift e Defoe, conta aproximadamente uma centena de textos vertidos, utilizando-se principalmente dos idiomas inglês, francês, espanhol e alemão. Portador de prêmios de literatura e tradução (Jabuti, Paulo Ronai etc.), exibe uma carreira poética sólida iniciada nos anos sessenta. O autor de Sibilitz (1981) e de Chinês com sono seguido de clones do inglês (2005) conta-nos algo de sua trajetória poética, além da configuração conceitual própria do que chama “tradução integral”. Fróes, que já foi objeto de uma tese de doutorado (Fala andarilha: a poesia de Leonardo Fróes em contexto crítico de Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa, UFRJ, 2017) e tema de um documentário (Leonardo Fróes: um animal na montanha [Pucheu, Alberto; Capper, Gabriela; Cohn, Sergio], 2015Pucheu, Alberto; Capper, Gabriela; Cohn, Sergio. “Leonardo Fróes, um animal na montanha”. Youtube. Documentário, 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ne7d_6VbMv4&t=531s. Acesso em jul. de 2020.
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), é também ensaísta e naturalista, tendo participado de uma série de entrevistas, encontros e eventos literários e de tradução. A entrevista abaixo, realizada através de trocas de e-mails no contato entre 19 de junho de 2020 e 27 de julho de 2020, intentou emplacar perguntas que pudessem contribuir para uma nova focalização deste dissonante tropical, podendo muito bem servir, ao mesmo tempo, como uma breve introdução à sua obra e pensamento.

Cadernos de Tradução (CT): Leonardo, gostaria de começar a partir de suas origens como poeta. Conte um pouco de sua história familiar na cultura, que veio a testemunhar o início de sua obra poética, bem como a de Leomar Fróes, seu irmão, já nos anos sessenta, em um contexto plenamente ditatorial.

Leonardo Fróes (LF): Antes dos 15 anos eu já tinha me decidido pela literatura. Claro que não sabia ainda o que iria escrever, mas com 18 anos, mal saído do colégio, comecei a escrever em jornais do Rio sobre literatura e arte. Saí da casa dos meus pais aos 20 anos e passei seis anos no exterior. Quando a ditadura se instalou, em 1964, eu começava a estudar e trabalhar em Berlim, depois de ter morado em Nova York e Paris. Ao voltar para o Brasil, publiquei meu primeiro livro, Língua franca, em 1968, mas pouco me demorei no Rio. Logo me casei e vim morar em Petrópolis, onde estou há quase meio século. Por aí se vê que meus contatos com meu irmão, intensos e sempre muito amigos na infância e na adolescência, tornaram-se bem menos frequentes na idade adulta, porque passei a estar longe. Ele nunca me falou da trajetória dele como poeta, que provavelmente se definiu no tempo que vivi fora.

(CT): Seu irmão, Leomar Fróes, que consta na antologia 26 poetas hoje de Heloísa Buarque de HollandaBuarque de Hollanda, Heloísa. 26 poetas hoje: antologia. Rio de Janeiro: Aeroplano, [1975] 2010., participava ali, dizia a organizadora, de um campo de recusa tanto de um classicismo canônico mais ou menos da forma como vinha sendo feita pelo modernismo, quanto de certas vozes experimentais ortodoxas. Como você se via diante da atuação de seu irmão? Colaboravam entre si? Como vocês enxergavam a denominação “poesia marginal” referenciada nestes e em outros poetas da época?

(LF): Eu e meu irmão, como eu disse antes, estivemos separados na época de minha formação, que se deu principalmente no exterior. Na década de 1970, muito envolvido com meus trabalhos de tradutor, a plantação de meu sítio e a criação dos meus filhos, raramente eu ia ao Rio. Apenas para entregar trabalhos e visitar meus pais, e era em geral na casa deles que eu encontrava meu irmão. Literariamente, nunca colaboramos em nada. Nossas relações sempre foram no âmbito familiar. Morando longe, também nunca participei dos movimentos da “poesia marginal”. Nem sequer conheci, na época, os poetas jovens que fizeram esses movimentos. Meu caminho, por imposições geográficas, sempre foi muito isolado. Até hoje aliás eu raramente vou ao Rio, onde tenho muitos amigos. Mas fui ficando, com o passar dos anos, cada vez mais campestre.

(CT): Sabe-se por sua obra, mas também por meio de entrevista concedida à Escamandro (Maciel; PackerMaciel, Sergio; Packer, Rob. “Entrevista com Leonardo Fróes”. Escamandro. 28/07/2018. Disponível em: https://escamandro.wordpress.com/2018/07/28/entrevista-com-leonardo-froes/. Acesso em jul. de 2020.
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), de sua predileção pelo tipo de poema que “não fecha o sentido”. Gostaria de puxar o fio do novelo da linguagem em geral. O que para você poderia provocar tal disposição de imagens multifacéticas? Seria possível dizer que a humanidade das últimas décadas esteve cada vez mais enroscada no bombardeamento de imagens unidimensionais, o que inviabilizaria ou tornaria difícil certas poesias, mesmo as de temas mais fechados?

(LF): Sim, creio que gosto de deixar poemas em aberto, deixando por conta do leitor as imaginações que bem queira para completar os sentidos. Essa é talvez uma característica essencial da poesia, o que mais a distingue do discurso utilitário. O poema não quer provar nada, não garante coisa alguma, não tem no fundo o que dizer. É uma simples insinuação de procura. É um objeto feito com palavras. À sua última pergunta eu não saberia responder. Se for uma hipótese, como entendi — “Seria possível?” —, posso no máximo dizer que todas as hipóteses, até prova em contrário, me parecem plausíveis.

(CT): Que vozes atualmente são dissonantes da normose ululante, poetas de reconhecida força, verdadeiros “criadores de problemas” – expressão esta utilizada no documentário Leonardo Fróes, um animal na montanha (Pucheu; Capper; CohnBuarque de Hollanda, Heloísa. 26 poetas hoje: antologia. Rio de Janeiro: Aeroplano, [1975] 2010.)? E o que viria a ser o poeta “criador de problemas” no Brasil contemporâneo?

(LF): Hoje, todos os meus amigos mais próximos, os que vêm à minha casa e me oferecem seus livros, são pessoas da metade de minha idade para baixo. Todos são “dissonantes”, como eu, e “criadores de problemas”. A poesia, que está sempre “inventando moda”, é um antídoto contra o comodismo. O poeta “criador de problemas”, no Brasil atual, é o que se insurge contra a estupidez do poder central do país. Que se opõe à liberação do posse de armas, por exemplo, à devastação da Amazônia, às tentativas de opor limites à liberdade de ensino, de estudo e de opinião. E que é a favor de uma distribuição de renda mais justa, dos direitos e da obrigação de zelarmos pelos que sofrem mais, seja por falta de dinheiro ou por opções sexuais que não se encaixam nas visões obtusas. Defender a natureza, o que nos resta de matas, rios, montanhas, mares, e dar a mais completa proteção aos seres que a povoam, é uma plataforma em que me encontro com todos os amigos com os quais convivo, em geral poetas ou professores.

(CT): Ainda segundo entrevista à Escamandro, você diz: “[...] pela literatura, que é minha grande paixão e a minha grande ocupação, vivi e vivo até hoje em diferentes épocas”. Poderia comentar sobre sua visão do tempo e do espaço na poesia? O que acredita ter mudado, se é que mudou significativamente, desde, por exemplo, Sibilitz? As mudanças, deslocamentos de tempo e espaço engendrados seriam uma forma privilegiada de o poeta fazer política em um sentido amplo?

(LF): Pois é, nunca me limitei a ler obras contemporâneas. Romances e poemas antigos, muitos dos quais já traduzi, de autores como George Eliot, Shelley, Goethe, para dar apenas alguns poucos exemplos, levam-me a viver em outras épocas. Os tempos passam, mas a literatura persiste, abordando problemas que muitas vezes são os mesmos. E das formas já praticadas sempre sobra um sumo de experiência humana que para mim tem sido da maior importância. Na antiga Roma, na China antiga ou na velha Pérsia, tal como no Romantismo brasileiro, em tudo acho áreas de interesse, não consigo me especializar numa coisa só. Muita coisa mudou, é claro, desde o Sibilitz,Fróes, Leonardo. Sibilitz. Belo Horizonte: Chão da Feira, [1981] 2015. que já tem mais de 40 anos. Eu também devo ter mudado bastante. Mas, a esse respeito, gosto de uma frase de Sartre, que disse a seu próprio respeito: “Mudei no interior de minha permanência”. Como poeta, embora não possa falar pelos outros, sempre estou “fazendo política” no sentido mais amplo da expressão. Até já escrevi poemas escancaradamente políticos, como “Recado ao rei”, “O xerife e os guajajaras” ou “Preocupações palacianas”, embora essa linha não seja uma das mais evidentes em meu trabalho.

(CT): Em Sibilitz aparecem, de forma insistente, imagens de fluxos de negação veemente de um sujeito que se quer chefe. Parece que o deslocamento poético operado vai na direção explícita de um panteísmo, ou faz uma integração radical com as forças naturais. O que para você inicialmente motivou a interação consciente com estes fluxos? A sua relação próxima com a natureza?

(LF): Gosto da sua expressão “integração radical [ou seja: de raiz] com as forças naturais”. Já não me exponho tanto a elas, porque a idade já não deixa, mas sempre andei na chuva e no vento e até hoje adoro uma cachoeirinha. Essas forças, as elementares, desde que vim viver no campo são para mim muitíssimo mais importantes do que as constrições sociais. Procuro me regular ou, se for preciso, me desregular, conforme o caso, de acordo com elas.

(CT): Sobre sua concepção quanto à forma e o conteúdo em suas poesias: estes se dão de maneira orgânica no tempo de sua escrita, que não tolera muitas alterações? Sendo este reconhecidamente o caso de Sibilitz (entrevista à Hojeemdia), terá sido o dos outros textos? Ou sua produção é responsiva e algum que outro texto foi lapidado à moda, por exemplo, de um João Cabral?

(LF): Não faço separação entre forma e conteúdo. As duas coisas para mim acontecem juntas, e é talvez por isso que há na minha poesia, de livro para livro, uma variedade formal tão grande. Minha postura é totalmente oposta à de João Cabral, um poeta que adoro e que, para meu espanto, gostou do Sibilitz. Ele fez, como talvez ninguém no Brasil, uma estupenda engenharia do verso. Eu tentei me abrir, com toda minha carga de leituras, para a maneira mais espontânea, mais natural, menos mentalizada de escrever. Não lapido nada, tudo sai como vem. E ambos os caminhos são válidos, se o resultado for bom.

(CT): “O nãotô-madose” traz: “[...] ninguém parece mim e no entanto saímos juntos, batalhamos juntos na mesma idiotice cotidiana do trabalho [...]”. Não pude deixar de relacionar a frase diretamente com a epígrafe do livro: “A vida levada a sério é o brinquedo dos adultos” (Karl Krauss). Será o trabalho este brinquedo mortífero e circular antipoético, e a poesia um modo de querer desconjuntá-lo de sua seriedade em possíveis direções exteriores, desembocando no banimento da atual noção de adulto? Pode-se dizer da criança que está poeta, na medida em que ainda não trabalha? Ou seria mesmo (talvez por outros motivos) desejável viver em algum nível o choque do trabalho para a produção poética? (Naturalmente o “desejável” aqui é hipotético, já que nosso tempo histórico está marcadamente referido no trabalho).

(LF): A “idiotice cotidiana” em questão talvez se referisse a algum trabalho específico que o poeta fez ou devia estar fazendo para garantir seu sustento, ou seja, apenas por dinheiro. Não tenho mais como me lembrar em que contexto esse poema foi escrito. Mas colocar o trabalho como um valor absoluto me parece realmente arriscado para a saúde mental. Muitas vezes o trabalho é alienado, alienante e até sem razão de ser. Não convém esquecer que a coisa mais importante para qualquer um de nós é a arte de viver. No fim da juventude este objetivo me pareceu de suma importância e hoje posso dizer que consegui o que eu queria, ou seja, transformei o meu trabalho em prazer. Escrevo, traduzo e leio com a mesma alegria com que pinto e conserto minha casa, cuido das plantas do jardim, planto árvores ou lavo a louça do almoço. Os trabalhos manuais, em geral tão desprezados, me equilibram e por isso são para mim muito importantes.

(CT): Agora pensemos na sua trajetória como tradutor. Como você caracterizaria sua experiência de tradução com autores como D. H. Lawrence e Elisabeth Barrett Browning, cujas obras estão também tão ligadas à natureza e, por consequência, a uma forma positivamente abstrusa de fazer poesia, especialmente após a natureza ter sido “desacreditada” historicamente quando da utilização generalizada das máquinas modernas? Esta experiência, crê, teria alguma relação mais direta com Sibilitz?

(LF): Traduzi uma dezena de livros, por aí, por iniciativa própria e só depois de prontos os levei às editoras. Esses dois autores estão nesse caso. Identifiquei-me tanto com seus trabalhos que me dei ao prazer de recriá-los, como se pela voz deles eu também falasse um pouco. É o mesmo processo dos meus Clones do inglês, que estão no livro Chinês com sono. Aqui, em vez de um conjunto de poemas de um mesmo autor, traduzi um poema de cada um, de Thomas Wyatt, do século XVI, a Douglas Dunn, do século XX. Todos são poemas que, por assim dizer, eu gostaria de ter escrito. À exceção desses trabalhos, as outras traduções que fiz foram-me encomendadas, mas por sorte sempre traduzi bons autores. Se essa experiência tem alguma relação com Sibilitz, publicado originalmente em 1981, é algo que eu não saberia dizer. Mas posso informar que tanto a tradução de Lawrence quanto a de Barrett Browning são bem posteriores ao Sibilitz, respectivamente de 1985 e 2011.

(CT): Em Contos Orientais você apresenta um panorama de recriação que automaticamente me remete à recriação típica da tradução literária cada vez mais longe da dureza das transformações mais propriamente linguísticas, por sua vez, mais afetas a traduções de textos científicos. As recriações nestas duas instâncias estão mesmo próximas? Estaria a escrita de Contos Orientais, no que respeita seu espaço de liberdade na criação, disposta entre a tradução literária e sua obra poética autônoma?

(LF): Reescrevi os Contos orientais porque são materiais muito antigos, frequentemente de autoria anônima. E adotei essa postura porque às vezes eu tinha o mesmo conto em diferentes traduções para línguas ocidentais, inglês, francês, espanhol e alemão, traduções que na maioria das vezes não coincidiam de todo. Agi um pouco à moda de La Fontaine, que partiu de temas anteriores para escrever suas fábulas. Não tenho por que não considerar os Contos orientais uma obra de criação. É um livro que adorei fazer e com o qual aprendi muito, pois ele encerra doses generosas da milenar sabedoria do Oriente. Os contos provêm de quatro países: Índia, China, Japão e Coreia.

(CT): Ítalo Calvino dizia que a tradução produz a leitura privilegiada do texto vertido. Que opina da tradução como prática de leitura e estudo? Será que ela ainda hoje poderia ser indicada para um aprofundamento da leitura de clássicos, assim como ocorria na Antiguidade, fora do contexto de uma educação de massas? Como percebe sua leitura, estudo de clássicos como Swift, Defoe e Goethe após tê-los traduzido?

(LF): É provável que ninguém leia um livro, por mais atento que seja, tão bem como um tradutor, que é obrigado a desmontá-lo em suas partes componentes, enquanto o refaz letra por letra. O trabalho é exaustivo, mas prazeroso e cheio de ensinamentos. Sempre aprendo e sempre estudo quando estou traduzindo, pois ao mesmo tempo leio outros livros do autor ou sobre ele e sua obra. Muitos dos livros que traduzi, em decorrência disso, contêm ensaios que escrevi para apresentá-los. Isso aconteceu com Swift, Goethe, Shelley, D. H. Lawrence, Elizabeth Barrett Browning, para ficar nos que você mencionou. Chego a uma tal intimidade com os autores que traduzo que acabo por considerá-los bons e influentes amigos.

(CT): Em Tertúlia – Encontros da Literatura (Sesc-PompeiaSesc-Pompeia. “Tertúlia: Encontros da Literatura”. Youtube. 13/09/2009. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=9m05Gwchjbk&list=PL3B9D27B4F3A3D599. Acesso em jul. de 2020.
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), você determina: “Se está confuso no original, a função do tradutor é manter confuso. Gosto de ver o tradutor como um instrumentista, um músico que executa uma partitura. Ele tem a seu lado ou à sua frente uma partitura; ele tem que se basear nela, mas é claro, ele dará uma interpretação pessoal”. O tratamento tradutório é bastante preciso e profícuo, não obstante as editoras estejam por definição cercadas nos limites da indústria cultural, e tendam por isso à simplificação malograda conhecida. O Brasil de hoje e sua geração associada consegue ainda lançar consideráveis bons músicos na tradução literária? Que traços desejáveis do tradutor foram se perdendo no tempo? Quais traços, se há, foram se adicionando? Gostaria que expandisse acerca de sua qualidade: ela é ampliada necessariamente com a pesquisa, seja ela acadêmica ou autodidata, aliada a uma certa aura de identificação com o autor?

(LF): Temos hoje no Brasil um grande número de tradutores da maior competência. Houve um enorme progresso durante as últimas décadas, e é bem provável que isso seja fruto, em grande parte, dos progressos ocorridos no ensino universitário. Até meados do século XX, malgrado várias exceções, nossas traduções eram muito descuidadas. Livros provindos de línguas menos conhecidas aqui, como o russo e o alemão, em geral eram retraduzidos do francês ou do espanhol. Tudo tem melhorado muito. Dessas duas línguas, por exemplo, hoje temos excelentes tradutores. Quanto maior a identificação com o autor, naturalmente, melhor será o resultado. Pode-se estudar tradução, muitos agora já têm como fazê-lo, mas nada me parece tão bom quanto os ensinamentos da prática, como talvez seja o caso também nas artes musicais.

(CT): Ainda em Tertúlia você menciona a necessidade da despersonalização. Em que proporção seu processo de despersonalização para traduzir se encontra com a crítica do sujeito abstrato cotidiano em sua obra poética? Como aparece o encontro de despersonalizações entre esta necessidade e a própria despersonalização detectada no próprio autor sendo vertido? Não há aí um paradoxo entre o estado de total vigília requerido para a tradução e o delírio xamânico, a ayahuasca, “[o] urro da aceitação animal” como em “Se me quiser como eu sou, estou às ordens”, povoados tanto no tradutor quanto possivelmente no autor vertido?

(LF): Quando falei disso, eu devia estar pensando na necessidade do tradutor não se sentir tentado a sobrepor sua personalidade à do autor que está traduzindo. Despersonalizar-se, no caso, é revestir-se da personalidade do outro. Para o poeta que eu represento no mundo, a questão é mais complexa: suas experiências demonstram que o conceito de personalidade é apenas uma convenção social como qualquer outra. Quando o poeta mergulha no mar ou chega ao cume da montanha, depois de um imenso esforço, sua ideia de si, ou seja, sua personalidade, se liquefaz ou se desmancha. Por isso a personalidade, para ele, não é um motor que funciona bem ou mal e pode ou não ser consertado: é um simples conjunto de ilusões a seu próprio respeito.

(CT): Quanto à tradução de romances e contos, você chama a atenção em Tertúlia para seu conceito de “tradução integral” ao falar de George Eliot (Mary Ann Evans), isto é, um conceito que se encontra na caracterização do instrumentista. Percebe-se rapidamente que aplicar a tradução integral em textos como o de Faulkner, Woolf e Lowry é realmente muito desafiador. É possível dizer que a tradução integral é ensinável, considerando-se cada caso em particular? Ou esta forma de traduzir ganharia maiores possibilidades de concretização apenas por meio da experiência sistemática?

(LF): Acho que sim, que a tradução de autores muito complexos é ensinável, se bem que eu mesmo não tenha nenhuma experiência a respeito. Para deixar mais claro o conceito de tradução integral, cito um exemplo: dei certa vez com um livro de Faulkner traduzido para o francês; onde havia, no original em inglês, uma sequência de sete ou oito páginas sem pontos, sem vírgulas, sem traços, sem nenhuma pontuação, o tradutor francês meticulosamente pôs aos montes todos esses sinais, achando provavelmente que facilitaria a leitura. Mas é claro que ele traiu o autor em algo que para este era fundamental. Em Virginia Woolf, o uso de travessões, para dar outro exemplo, é sistemático. E isso também precisa ser respeitado. O fato de pontuar de certo modo, ou deixar de pontuar, é parte integrante da realidade do texto.

(CT): Parece-me que sua incursão na tradução de modernistas como Faulkner e Woolf está alegremente coligada com sua predileção pelos modernistas brasileiros, “[seus] maiores amigos da juventude”, conforme você dizia no documentário Leonardo Fróes, um animal na montanha (Pucheu; Capper; CohnBuarque de Hollanda, Heloísa. 26 poetas hoje: antologia. Rio de Janeiro: Aeroplano, [1975] 2010.). Este encanto ainda é significativo? Que tipo de tradução vem fazendo e quais gostaria de fazer?

(LF): Sim, é um encanto que ficou para sempre, devo aos mestres modernistas muitos dos primeiros momentos mais prazerosos de minha formação. Pensei, ao dizer isso, nos mestres brasileiros, dos quais Faulkner e Woolf foram contemporâneos. A literatura do século XX nos deixou obras monumentais. Basta pensar em Guimarães Rosa ou em Graciliano Ramos, tão diferentes entre si, mas ambos tão grandiosos. Terminei em 26 de junho último minha tradução mais recente, começada em 2 de janeiro. A pedido da editora, não devo dizer qual é. Planos para o futuro? Por ora é melhor não tê-los. Estou descansando dessa longa jornada e aproveitando a folga para tentar organizar meus próprios trabalhos.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Jun 2022
  • Aceito
    31 Out 2022
  • Publicado
    Nov 2022
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