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A DANÇA DOS SENHORES DAS MÁSCARAS: TRADUÇÃO DO RELATO DE THEODORE KOCHGRÜNBERG SOBRE AS DANÇAS RITUAIS ENTRE OS KOBÉUA DA AMAZÔNIA

THE DANCE OF THE LORDS OF THE MASKS: TRANSLATION OF THEODORE KOCH-GRÜNBERG’S ACCOUNT OF RITUAL DANCES AMONG THE KOBÉUA OF AMAZONIA

Resumo

Traduzo, no que se segue, o texto Die Maskentänze do livro Zwei Jahre unter den Indianern: Reisen in Nordwesten Brasilien de Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) para o português do Brasil. Acompanha esta tradução, uma breve introdução sobre o autor e a significância de sua obra. O texto é complementado por algumas notas explicativas acerca da tradução e do conteúdo do texto, bem como de ilustrações selecionadas, retiradas da referida obra. As notas do autor, de caráter explicativo, também foram preservadas e traduzidas, mas não as de referência interna.

Palavras-chave
Estudos da Tradução; Tradução; Indígenas da Amazônia; Dança de Máscaras; Koch-Grünberg

Abstract

In this article I reflect on my translation of Die Maskentänze from Zwei Jahre unter den Indianern: Reisen in Nordwesten Brasilien by Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) into Brazilian Portuguese. I present a brief introduction about the author and the significance of his work. The text is complemented by some explanatory notes about the translation and the content of the text, as well as selected illustrations taken from the aforementioned work. The author’s notes of explanatory character have also been preserved and translated, but not those of the book internal references.

Keywords
Translation Studies; Translation; Native Peoples from the Amazon; Mask Dance; Koch-Grünberg

Theodor Koch nasceu em 9 de abril de 1872 em Grünberg, no estado de Hessen, na Alemanha, e teve uma formação clássica, habilitando-se em klassische Philologie (o que chamaríamos de “Letras Clássicas”, com algumas diferenças) na Universidade de Gießen em Hessen, vindo a trabalhar como professor em escolas da região ensinando Grego, Latim, Alemão e História. Essa primeira formação clássica é evidente em toda a sua produção e pode ser notada mesmo no pequeno trecho escolhido, como apontei em algumas notas na tradução.

Koch-Grünberg veio pela primeira vez ao Brasil, como “acompanhante voluntário” (Petschelies, 2019Morse, Nancy L.; Salser, Jay K.; Salser, Neva. Diccionario Ilustrado Bilingüe Cubeo-Español Español-Cubeo. Santafé de Bogotá, Alberto Lleras Camargo, 1999., p. 197-8), na expedição dirigida pelo antropólogo e botânico Herman Meyer (1871-1932), que se deu entre 1898 e 1901 e que tinha como objetivo descobrir a fonte do rio Negro, um afluente do Amazonas. Os resultados etnográficos e etnolinguísticos dessa jornada foram posteriormente publicados por Koch-Grünberg em seu livro Anfänge der Kunst im Urwald1 1 “O Início da Arte na Floresta Primitiva”. (Koch-Grünberg, 1905Koch-Grünberg, Theodor. Anfänge der Kunst im Urwald. Indianer-Handzeichnungen auf seinen Reisen in Brasilien gesammelt. Ernst Wasmuth. A.-G. Berlin, 1905.). Ao retornar dessa expedição, com apenas 29 anos, começou a trabalhar como “assistente de pesquisa voluntário” no Königliches Museum für Völkerkunde em Berlim, sob a orientação do americanista mais proeminente de seu tempo, Karl von den Steinen (1955-1929). No ano seguinte, doutorou-se na Universidade de Würzburg com uma tese sobre as línguas Guaicuru2 2 Família linguística falada no norte da Argentina, no oeste do Paraguai e no Brasil (Mato Grosso do Sul). , utilizando tanto dados linguísticos coletados por ele em sua primeira expedição quanto material fornecido por von den Steinen (Petschelies, 2019Petschelies, E. “Theodor Koch-Grünberg (1872-1924): A ‘Field Ethnologist’ and his Contacts with Brazilian Intellectuals”. Revista de Antropologia. (São Paulo, Online), v. 62 n. 1: 196-216 | USP, 2019., ibid.).

Koch-Grünberg retornou ao Brasil em 1903, numa expedição financiada pelo Königliches Museum für Völkerkunde de Berlin que durou até 1904. Nessa viagem, ele foi acompanhado pelo brasileiro Otto Schmidt, filho de imigrantes alemães de Vitória, no Espírito Santo. Seguindo a sugestão do diretor daquele museu, Adolf Bastian (1826-1905), iniciou uma viagem explorando os rios Negro e Yapurá, com o objetivo de coletar objetos etnográficos, construir vocabulários das línguas locais, observar os costumes das tribos da região bem como fazer um registro fotográfico de integrantes das famílias indígenas Tukano, Aruak e Maku. As fotos resultantes dessa viagem de campo seriam publicadas em sete álbuns intitulados Indianertypen aus dem Amazonasgebiet3 3 “Tipos de Índios da Região do Amazonas”. (Koch-Grünberg, 1906-1911Koch-Grünberg, Theodor. Indianertypen aus dem Amazonasgebiet. Nach eigenen Aufnahmen während seiner Reise in Brasilien. 7 vol. Ernst Wasmuth, Berlin, 1906–1911. Disponível em: <http://www.etnolinguistica.org/local--files/biblio:koch-grunberg-1906-indianertypen/Koch-Grunberg_1906_Indianertypen_aus_dem_Amazonasgebiet_OCR.pdf >. Acesso: 16/04/2022.
http://www.etnolinguistica.org/local--fi...
).

Volta então para a Alemanha em 1905 e, em 1909, transfere-se para a Universidade de Freiburg em Breisgau, onde obtém sua habilitação, tornando-se Privatdozent, e, logo depois, em 1913, Professor Associado (außerordentlicher Professor). Curiosamente, é depois dessa viagem que o então Theodore Koch (Theo Koch, para os amigos) adiciona o nome de sua cidade natal ao sobrenome, tornando-se Theodore Koch-Grünberg. Em 1915, é nomeado diretor do Museu Linden em Stuttgart.

Koch-Grünberg irá retornar ainda mais três vezes ao Brasil. Entre 1911 e 1913, ele explora a região entre as bacias do rio Branco, no atual Roraima, e os rios Caura, Paráguas e Venturari, na Venezuela, documentando os mitos e as lendas dos índios Pemón, erroneamente identificados por ele com os nomes Arekuna e Taulipang, que são apenas denominações locais para o mesmo grupo, e Yek’wana. Dessa expedição irá resultar o livro que muitos consideram como o mais importante de sua carreira, Vom Roraima zum Orinoco (Koch-Grünberg, 1916Koch-Grünberg, T. Vom Roraima zum Orinoco. Ergebnisse einer Reise in Nordbrasilien und Venezuela in den Jahren 1911–1913. 5 Vol. Strecker und Schröder, Stuttgart, 1916.) em 7 volumes. O relato dessa viagem inspirou Mário de Andrade a escrever sua obra-prima de 1927, Macunaíma.

Em 8 de outubro de 1924, no início de uma quinta expedição, dessa vez acompanhado do geógrafo americano A. Hamilton Rice (1875-1956) e do cinegrafista português Silvino Santo (1886-1970), cujo objetivo era mapear o curso superior do rio Branco, Koch-Grünberg, já com 56 anos, é acometido de malária e acaba morrendo em Vista Alegre, Caracaraí, no Brasil4 4 Essa expedição seria documentada no filme No Rastro do Eldorado, lançado em 1924. Disponível na íntegra no Youtube, <https://youtu.be/xh7r6t104Xk>. . Seu corpo foi posteriormente transferido para Manaus, onde foi sepultado. Esses últimos dias até sua morte foram ficcionalizados no filme de Ciro Guerra de 2015 que concorreu à Palma D’Or em Cannes e ao Oscar em Hollywood como melhor filme estrangeiro, El Abrazo de la Serpiente5 5 O filme acabou ganhando o CICAE Art Cinema Award em Cannes. .

Dois Anos entre os Índios

Os detalhes da expedição que produzira o registro fotográfico publicado em Indianertypen aus dem Amazonasgebiet serão posteriormente retrabalhados e expandidos por Koch-Grünberg nos dois volumes de Zwei Jahre unter den Indianern. Brasilien Reisen in Nord West, 1903-1905 (Koch-Grünberg, 1909-1910), do qual o excerto escolhido para ser traduzido, Die Maskentänze, foi retirado. Pelo que sei, há uma única tradução completa dessa obra em português do Brasil, aquela do padre Casimiro Beksta (Koch-Grünberg, 2005 [1909-1910]Koch-Grünberg, T. Dois anos entre os indígenas: viagens ao noroeste do Brasil (1903–1905). Tradução de Casimiro Beksta. Manaus: EDUA e FSDB, 2005. 627p.), publicada pela Editora da Universidade do Amazonas, a que, infelizmente, não tive acesso, por estar esgotada. Espero que possamos ter, em breve, uma reimpressão dessa tradução, cuja apreciação crítica pode ser conferida na resenha de Montardo (2007)Montardo, Deisy L. O. Dois anos entre os indígenas: viagens ao noroeste do Brasil (1903–1905). Tradução de Casimiro Beksta. Manaus: EDUA e FSDB, 2005. 627p. Resenha. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 16, p. 261-265, 2007..

De acordo com o próprio Koch-Grünberg, na introdução a Zwei Jahre unter den Indianern, a área escolhida para ser explorada na expedição de 1903-05, o noroeste do Brasil, no seu imbricamento com regiões da Amazônia pertencentes à Colômbia e à Venezuela, “colocavam problemas geográficos e etnológicos tanto interessantes quanto importantes” (Koch-Grünberg, 1909Koch-Grünberg, Theodor, Zwei Jahre unter den Indianern: Reisen in Nordwesten Brasilien 1903/1905. Vols. I e II. Ed. Strecker & Schröder. Stuttgart, 1909 (Vol. 1) e 1910 (vol. 2). Disponível em: Biblioteca Digital Curt Nimuendajú: línguas e culturas indígenas sul-americanas. http://www.etnolinguistica.org/biblio:koch-grunberg-1909-zwei-jahre. Acesso: 16/04/2022.
http://www.etnolinguistica.org/biblio:ko...
, p. 10). Ao contrário, porém, de expedições predatórias, comuns à época, Koch-Grünberg assim descreveria o principal, talvez pessoal, objetivo dessa viagem (idem, p. ii)6 6 Ainda assim Koch-Grünberg adquiriu, como ele mesmo admite, uma imensa quantidade de material para o Königliches Museum für Völkerkunde de Berlin, doando uma pequena parte desse acervo ao Museu Goeldi do Pará. :

Ich betrachtete meine Reise jedoch nicht in erster Linie als Sammelreise. Mein Hauptbestreben ging dahin, bei einem oft wochen-, ja monatelangen Aufenthalt unter einzelnen Stämmen und in einzelnen Dörfen, im engen Verkehr mit den Indianern ihr Leben mit zu erleben und in ihre Anschauungen einen tieferen Einblick zu tun; denn bei einem raschen Durcheilen seines Forschungsgebietes gewinnt der Reisende nur zu leicht flüchtige, häufig falsche Eindrücke.

Eu não considerava, contudo, minha viagem como sendo principalmente de coleta. Meu principal objetivo era passar semanas ou mesmo meses entre tribos e aldeias individuais, para compartilhar de suas vidas cotidianas, num contato próximo com os indígenas e, assim, obter uma visão mais profunda de suas visões de mundo, pois, passando apressadamente pela área a ser pesquisada, um viajante só pode ganhar impressões fugazes, e, muitas vezes, falsas.

São, então, os resultados científicos dessa experiência com a vida diária e a cultura das tribos nativas do noroeste da Amazônia que ele (idem, p. iii)

[hat] in den Rahmen der populären Reiseschilderung gebracht, damit der Leser an der Hand der Abbildungen gewissermaßen aus eigener Anschauung das Leben der Eingeborenen kennen lernen und im Verlauf der Reise mit mir seine Erfahrungen sammeln kann.

trouxe para a estrutura da popular descrição de viagem (Reiseschilderung), para que o leitor possa, guiado, por assim dizer, pela mão dos meus retratos, conhecer a vida dos nativos de acordo com a sua própria visão de mundo, e, ao longo da viagem, juntar à minha suas experiências.

Por meio da citação acima, podemos perceber tanto a preocupação de Koch-Grünberg em dar a maior popularização possível aos resultados de sua expedição, escolhendo, para tanto a agradável roupagem de um gênero literário sempre muito em voga na Alemanha, a assim chamada Reiseliteratur, bem como se inserir na tradição de relatos científicos de viagens (wissenschaftliche Reisebericht) que já contavam, desde o séc. XVI, com expoentes como Hans Staden (1525-1576), Georg Forster (1754-1794), Alexander von Humboldt (1769-1859), o príncipe Maximilian de Wied-Neuwied (1762-1867), Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), os estadunidenses Meriwether Lewis (1774-1809) e William Clark (1770-1838), entre tantos outros. Ainda que a prosa de Koch-Grünberg traga a marca da clareza científica, ela não perde em qualidade para nenhum de seus predecessores e, por vezes, atinge um pathos e uma poeticidade que são definitivamente capazes de encantar e prender seu leitor.

Mais interessante, contudo, é como, na citação acima, Koch-Grünberg utiliza o termo Reiseschilderung, literalmente, “retratos de viagem”, e como, logo em seguida, fala que o leitor será “guiado pela mão por meio das imagens (Abbildungen)”, sendo que, nesse contexto, Abbildung tanto pode estar utilizado no seu sentido concreto (“ilustração”, “foto”, “figura”), já que seus dois volumes estão repletos delas, quanto mais abstrato (“descrição”, “imagem mental”), uma vez que se esforça para pintar com palavras quadros vívidos das comunidades nativas que visita. Também porque, diferentemente de seus antecessores, Koch-Grünberg foi um exímio fotógrafo, realizando os primeiros, e em alguns casos os únicos, registros fotográficos de populações indígenas da Amazônia profunda. Como muito bem ressalta Frank (2010, p. 154), ainda que seja lembrado por seus relatos de viagem e pela imensa coleção de etnografica que reuniu, e que hoje se encontra espalhada por vários museus do mundo7 7 Muito de sua coleção, doada a diversos museus, perdeu-se, sobretudo durante os bombardeios da Segunda Guerra Mundial, e, ironicamente, apenas as fotos, bem como seus diários e extensa correspondência (mais de 7500 cartas), das quais se recusara a abrir mão, foram totalmente preservados e, puderam, assim, ser doados por uma neta sua ao Departamento de Antropologia da Universidade de Marburg, onde estão disponíveis (Frank, 2010, p. 154). Frank (ibid.) complementa: “Dos diversos rolos de filme que gravou em 1911-1913, por exemplo, meros 15 minutos resultaram ainda aproveitáveis quando, nos anos 1960, Otto Zerries os editou para o Instituto de Filmagem Científica de Göttingen. E dos 50 cilindros de gravações musicais que, em 1991, o fim do ‘bloco’ socialista trouxe de volta ao Museu Etnológico de Berlim, somente 30 peças, com um total de 50 minutos de gravação, podiam ainda ser digitalizados”. Alguns registros cinematográficos podem ser encontrados no Leibniz Portal for Science and Technology University Library (TIB-AV Portal), como esse registro de sua expedição ao Orinoco, em Roraima e adjacências: <https://av.tib.eu/media/9045>. Acesso em 19 de abril de 2022. ,

(...) poucos sabem que foi também um experiente fotógrafo e um dos pioneiros da cinematografia etnográfica, ou que, na sua expedição de 1911-1913, ele gravou inúmeras peças musicais (canções, danças dos povos Macuxi, Taurepang, Wapishana e Maiongong [Yekuana]) em um gramofone trazido da Alemanha.

Nesse sentido, no trecho selecionado para a tradução que acompanha esse artigo, o leitor irá notar o cuidado e a meticulosidade com que Koch-Grünberg descreve a confecção das máscaras indígenas, desde preparação das matérias-primas, até a confecção e os diversos passos aí envolvidos: pintura, adereços, ausência ou presença de determinados elementos etc. Da mesma forma, como descreve, de maneira vívida e detalhada, as diferentes danças indígenas e o papel específico de cada máscara ou deidade envolvidos nos rituais dos nativos. Um outro ponto de destaque é o meticuloso cuidado que emprega em transcrever da maneira mais fidedigna possível a fonologia das línguas em que os cantos que cita foram compostos, preservando-lhes não apenas a pronúncia correta mas igualmente seus acentos e ritmos.

Um outro aspecto pelo qual o trabalho etnográfico de Koch-Grünberg se destaca é pelo humanismo e o respeito pelos índios, algo que pode ser notado pelo leitor ao final da sua longa descrição das danças de máscaras aqui traduzida. Já na introdução ao primeiro volume de Zwei Jahre unter den Indianern, ele faz uma crítica à maneira como o homem branco europeu tende a ver os índios e sua cultura (Koch-Grünberg, 1909Koch-Grünberg, T. Indianermärchen aus Südamerika. Eugen Diederichs, Jena 1920., p. iii):

Häufig ist der Laie geneigt, auf diese ,,Wilden“ verächtlich herabzusehen, weil sie nackt gehen und eine andere Hautfarbe haben, besonders wenn sich die ,,ethnographischen Kenntnisse“ auf Erinnerungen an die zweifelhafte Literatur der ,,Indianergeschichten“ beschränken, die man in der Jugend verschlungen hat. Hoffentlich kann ich mit meinen Schilderungen dazu beitragen, diese Vorurteile zu beseitigen und auch weitere Kreise einer gerechten Beurteilung der so viel verkannten Naturvölker näherzubringen.

Frequentemente, o leigo tende a olhar para estes “selvagens” desdenhosamente, de cima para baixo, porque andam nus e têm uma cor de pele diferente, especialmente se o seu “conhecimento etnográfico” se limita às lembranças de uma duvidosa literatura de “histórias indígenas”, que possa ter consumido na juventude. Espero poder contribuir com minhas descrições (Schilderungen) para eliminar esses preconceitos e também aproximar círculos mais amplos de uma avaliação justa desses tão mal compreendidos povos da natureza.

Reconhecendo nos nativos seus iguais, conta-nos como conseguiu ganhar a sua confiança e, assim, ser capaz de adentrar em suas aldeias, casas e corações, para, de uma forma respeitosa, poder acessar o valioso conhecimento acerca de suas culturas (idem, p. iii-iv):

Vor allem aber gilt mein Dank den eigentlichen Herren des Landes, den Indianern. Weitab von jeder europäischen Niederlassung habe ich mich, nur von meinem Diener begleitet, sicher unter diesen nackten Leuten bewegt. Ohne Waffen habe ich ihre Dörfer betreten, auch wenn die Bewohner nie vorher Weiße gesehen hatten. Nie ist mir der Gedanke gekommen, daß sie mir feindselig entgegentreten könnten, und mein Vertrauen wurde mit Vertrauen belohnt. Ihre Zuneigung und Treue haben mich in manchen Gefahren beschützt und mir auch über manche Stunde trüber Gedanken, die auf solcher Reise nicht ausbleiben, hinweggeholfen. (…).

Daher kommt es, daß der vorurteilsfreie Reisende, der den Indianer nicht als Versuchsobjekt für seine wissenschaftlichen Studien, sondern von vornherein als Menschen betrachtet, auch den Menschen in ihm findet, und zwar einen Menschen mit ausgesprochener Individualität. Nie darf man vergessen, daß, abgesehen von den verschiedenen Kulturstufen, alle Menschen von einem Geiste beseelt sind, wenn es auch unter dem Einfluss der modernen Kultur oft schwer ist, in den naiven Gedankengang dieser Naturmenschen einzudringen.

Mas, acima de tudo, meus agradecimentos vão para os verdadeiros Donos da Terra, os índios. Longe de qualquer povoado europeu, acompanhado apenas pelo meu ajudante [Otto Schmidt], movi-me com segurança entre essas pessoas nuas. Entrei em suas aldeias desarmado, mesmo que os habitantes nunca tivessem visto brancos antes. Nem nunca me ocorreu que eles pudessem me ser hostis e, assim, minha confiança foi recompensada com confiança. Seu afeto e lealdade me protegeram de muitos perigos e também me ajudaram a superar muitas horas de pensamentos sombrios, que são inevitáveis em tais viagens. (...).

É por isso que o viajante sem preconceitos, que não considera o índio como um objeto de pesquisa dos seus estudos científicos, mas, desde o início, como um ser humano, também nele irá encontrar um ser humano, e, de fato, um ser humano com uma individualidade pronunciada. Nunca devemos esquecer que, além dos diferentes níveis de cultura, todas as pessoas são animadas por um só espírito, mesmo que muitas vezes seja difícil, sob a influência da cultura moderna, penetrar no ingênuo modo de pensar desses povos da natureza.

As Danças de Máscaras e sua tradução

Entre 4 de agosto de 1904 e 1º de janeiro de 1905, Koch-Grünberg entrou na terceira parte de sua expedição, ao visitar a problemática área às margens do rio Uaupés8 8 Conhecido como Vaupés na Colômbia, esse rio corre por cerca de 1.375 quilômetros de extensão. De sua foz no Rio Negro até sua confluência com o Rio Papuri, o Uaupés está localizado em território brasileiro e percorre cerca de 342 quilômetros. Entre a foz do Papuri e a foz do Querari, o rio Uaupés serve de fronteira entre o Brasil e a Colômbia por mais de 188 quilômetros. De lá até sua cabeceira, ele está localizado em território colombiano e percorre mais de 845 quilômetros. , na Amazônia colombiana. Problemática porque, pelo menos desde o início de 1904, haviam se espalhado notícias de conflitos sangrentos entre os seringueiros colombianos e os índios kobéua (ou cubeo, como se escreve o nome modernamente). Segundo o relato dos indígenas, os colombianos haviam matado a tiro um dos seus e violentado mulheres da aldeia, levando à desforra dos índios, que mataram alguns deles a pauladas. Devido a esses conflitos, um pouco antes da chegada de Koch-Grünberg, em maio de 1904, os índios haviam mandado um recado através de dois comerciantes que tiveram sua incursão em território kobéua barrada: qualquer branco que entrasse em suas terras seria morto a pauladas. Essas notícias não demoveram o etnólogo de seu propósito. Como ele diz (Koch-Grünberg, p. 3):

Die Kobéua, so erzählten diese Helden, mordeten jetzt alle Weißen, die sich in Ihr Gebiet wagten. Sie rieten mir dringend ab, meine Reise zu unternehmen. Als ich ihnen erklärte, ich würde trotzdem nicht davon abstehen, denn die Indianer würden mir nichts tun, da sie keine Bestien seien und wohl einen Unterschied machten zwischen guten und schlechten Weißen, schüttelten sie mitleidiglächelud [sic] den Kopf. Sie hielten mich für einen Menschen, der mit offenen Augen in sein Verderben rennt.

Os kobéua, me disseram esses cavalheiros, matavam todos os brancos que ousavam entrar em seu território. Eles me aconselharam insistentemente a não empreender minha jornada. Quando lhes expliquei que não desistiria, porque os índios não me fariam mal, já que não eram feras e sabiam distinguir muito bem entre brancos bons e maus, balançaram a cabeça, sorrindo com compaixão. Eles me tinham por um homem que, de olhos abertos, corria para a morte.

Mais uma vez, Koch-Grünberg estava certo ao acreditar que os índios tratavam os brancos como eram por eles tratados e, ao chegar na maloca dos kobéua em Namocolíba, teria sido recebido amistosamente. É aí, então, que ele observa e descreve com riqueza de detalhes as suas sofisticadas e complexas danças de máscaras bem como os rituais e mitos com elas associados. Dá, ainda, informações sobre a feitura e características de mais de 50 tipos de máscaras e sobre os espíritos – a que chama de “demônios”, utilizando-se da palavra grega daím?n, que significa uma entidade, não necessariamente maligna – que as animavam.

Escolhi esse trecho para traduzir porque, além da sua beleza e do conteúdo interessantíssimo, ele é um exemplo contundente da riqueza cultural dos povos nativos da América do Sul, especialmente da Amazônia, neste caso. Ainda que, como o próprio Koch-Grünberg diz, muitas das crenças possam nos parecer pueris, enquanto habitantes de uma sociedade moderna e industrializada, elas demonstram uma enorme sintonia do homem nativo com a realidade da floresta, seus desafios e maravilhas. Como Lévis-Strauss (1990 [1962], p. 33 seq.)Lévi-Strauss, C. La Pensée Sauvage. Agora. Plon: Paris, 1990 [1962]. pontua, é apenas analogicamente que o sistema cultural das sociedades indígenas pode ser classificado como “primitivo”, na medida em que ele não deve ser analisado de acordo com a lógica e as pressões ambientais do homem “civilizado”. A sociedade dos nativos sul-americanos, com sua mitologia, sua divisão do trabalho, seus sistemas de classificação botânica, seus hábitos alimentares, suas indumentárias, está totalmente adequada à realidade na qual se insere e para a qual evoluiu, possuindo uma lógica interna não menos rigorosa que aquela do pensamento científico moderno, ainda que se estruture de outra forma e sob outros princípios.

No que tange à experiência tradutória com esse trecho, foram poucos os problemas encontrados. O alemão de Koch-Grünberg, como já disse, é simples e fluído, agradável de ler e sem torneios de sintaxe característicos de um estilo mais acadêmico. A meu ver, isso reflete o desejo do autor em difundir os resultados de sua obra, como já vimos. Alguns dos desafios encontrados tiveram mais a ver com a tradução de certos termos utilizados que não têm um equivalente necessariamente corrente em português e que precisam, apesar disso, ser traduzidos com a acurácia que o autor intentou no original.

Esse é o caso, por exemplo, do substantivo (der) Bast que designa o tecido vegetal logo abaixo da casca das árvores, responsável pela transmissão de água e nutrientes através do tronco9 9 Assim o Duden, s.v. Bast, “1. pflanzlicher Faserstoff zum Binden u. Flechten”. Robert de Brose. Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: robert.de.brose@ufc.br. https://orcid.org/0000-0001-8591-4861. e que, na biologia, recebe a denominação científica de floema secundário. Em português, há algumas opções, alburno, samo, entreforro e entrecasca sendo os principais. Alguns dicionários dão ráfia como a tradução de Bast, no entanto, rigorosamente falando, ráfia, além de designar um gênero de plantas não lenhosas, seria o tecido formado pelas fibras de uma palmeira do mesmo gênero, o que definitivamente não é o significado aludido por Koch-Grünberg em seu texto, algo claro também pelas fotografias que mostram a preparação do Bast pelos índios. Dessa forma, alburno, além de ser um termo pouco conhecido e remete, ademais, à brancura típica do floema vegetal (< lat. albus, branco), quando os índios também usam um Bast vermelho sólido, não me pareceu o termo mais adequado. Resolvi-me, portanto, por entrecasca, autoexplicativo e claro.

Um outro termo interessante é aquele usado para descrever o objeto de estudo dessa seção: a máscara (Die Maske). Do relato de Koch-Grünberg, podemos deduzir que aquilo a que se refere como uma Maske aproxima-se mais do que identificaríamos com uma fantasia (que em alemão seria Das Kostüm ou Die Verkleidung), uma vez que ela cobre todo o corpo daquele que a veste, e não apenas o rosto. Parece-me, no entanto, que o autor prefere o termo “máscara” para salientar seu uso religioso nas danças e rituais indígenas onde o elemento lúdico, mais afim ao termo “fantasia”, teria um caráter secundário, como ele deixa claro no último parágrafo do texto traduzido. Talvez antropólogos e etnólogos tenham mais a dizer sobre essa questão, que, por complexa, decido não explorar aqui.

Finalmente, um dos aspectos mais difíceis na tradução desse trecho foi o de preservar a correta grafia dos cantos indígenas, transcritos com extremo cuidado por Koch-Grünberg, o que envolveu o uso de diversos sinais diacríticos para marcar não apenas as sílabas tônicas mas também o ritmo de cada uma das canções, que pode ser facilmente deduzido e experimentado pelo leitor. Como o próprio autor diz, muitas dessas canções, compostas em kobéua e káua, línguas do grupo Tucano (e com algumas palavras em aruak, do grupo Arauak, aqui e acolá), já eram ininteligíveis para os próprios indígenas, com exceção de uma ou outra palavra. Infelizmente, ignoro tanto a língua, quanto em que estágio estaria o seu estudo, e, portanto, não pude oferecer uma tradução para o leitor neste momento; espero, contudo, que, algum dia, possamos ter uma tradução desses textos, ou, ao menos, saber se podem ou não ser traduzidos.

Dedico, por fim, este artigo e tradução a todos os diversos grupos indígenas que habitaram e ainda habitam o Brasil e espero que um dia possamos demonstrar por eles e por sua cultura o mesmo respeito e admiração que este alemão, vindo de uma terra tão distante e de uma sociedade tão diferente, um dia lhes dedicou.

  • 1
    “O Início da Arte na Floresta Primitiva”.
  • 2
    Família linguística falada no norte da Argentina, no oeste do Paraguai e no Brasil (Mato Grosso do Sul).
  • 3
    “Tipos de Índios da Região do Amazonas”.
  • 4
    Essa expedição seria documentada no filme No Rastro do Eldorado, lançado em 1924. Disponível na íntegra no Youtube, <https://youtu.be/xh7r6t104Xk>.
  • 5
    O filme acabou ganhando o CICAE Art Cinema Award em Cannes.
  • 6
    Ainda assim Koch-Grünberg adquiriu, como ele mesmo admite, uma imensa quantidade de material para o Königliches Museum für Völkerkunde de Berlin, doando uma pequena parte desse acervo ao Museu Goeldi do Pará.
  • 7
    Muito de sua coleção, doada a diversos museus, perdeu-se, sobretudo durante os bombardeios da Segunda Guerra Mundial, e, ironicamente, apenas as fotos, bem como seus diários e extensa correspondência (mais de 7500 cartas), das quais se recusara a abrir mão, foram totalmente preservados e, puderam, assim, ser doados por uma neta sua ao Departamento de Antropologia da Universidade de Marburg, onde estão disponíveis (Frank, 2010Frank, E. “Objects, pictures and sounds: the ethnography of Theodor Koch-Grünberg (1872-1924)”. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi: Ciências Humanas. 5, 2010., p. 154). Frank (ibid.) complementa: “Dos diversos rolos de filme que gravou em 1911-1913, por exemplo, meros 15 minutos resultaram ainda aproveitáveis quando, nos anos 1960, Otto Zerries os editou para o Instituto de Filmagem Científica de Göttingen. E dos 50 cilindros de gravações musicais que, em 1991, o fim do ‘bloco’ socialista trouxe de volta ao Museu Etnológico de Berlim, somente 30 peças, com um total de 50 minutos de gravação, podiam ainda ser digitalizados”. Alguns registros cinematográficos podem ser encontrados no Leibniz Portal for Science and Technology University Library (TIB-AV Portal), como esse registro de sua expedição ao Orinoco, em Roraima e adjacências: <https://av.tib.eu/media/9045>. Acesso em 19 de abril de 2022.
  • 8
    Conhecido como Vaupés na Colômbia, esse rio corre por cerca de 1.375 quilômetros de extensão. De sua foz no Rio Negro até sua confluência com o Rio Papuri, o Uaupés está localizado em território brasileiro e percorre cerca de 342 quilômetros. Entre a foz do Papuri e a foz do Querari, o rio Uaupés serve de fronteira entre o Brasil e a Colômbia por mais de 188 quilômetros. De lá até sua cabeceira, ele está localizado em território colombiano e percorre mais de 845 quilômetros.
  • 9
    Assim o Duden, s.v. Bast, “1. pflanzlicher Faserstoff zum Binden u. Flechten”.
    Robert de Brose. Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: robert.de.brose@ufc.br. https://orcid.org/0000-0001-8591-4861.

Referências

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  • Kraus, M. Aus der Frühzeit des Homo Ethnologicus: Der Nachlass des Südamerikaforschers Theodor Koch-Grünberg. Philipps-Universität Marburg, Stand: 2008, Disponível em: https://www.uni-marburg.de/de/fb03/ivk/fachgebiete/sozial-und-kulturanthropologie/ethnographische-sammlung/nachlass-koch-gruenberg/homo-ethnologicus Acesso: 16/04/2022.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2022
  • Aceito
    27 Set 2022
  • Publicado
    Nov 2022
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