Open-access COUDREAU E OS INDÍGENAS DA GUIANA FRANCESA: EXPEDIÇÕES DO SÉCULO XIX

COUDREAU AND THE INDIGENOUS PEOPLE OF FRENCH GUIANA: EXPEDITIONS OF THE NINETEENTH CENTURY

COUDREAU ET LES AMERINDIENS DE LA GUYANE FRANÇAISE : EXPEDITIONS DU XIXE SIECLE

Resumo

Este artigo discorre sobre o capítulo “Os indígenas da Amazônia” (Les indiens de l’Amazonie) contido na obra Os franceses na Amazônia (Les français en Amazonie) de Henri A. Coudreau, publicado em 1887. A versão utilizada foi consultada a partir do acervo digital da Université de Guyane (UG) e consta de imagens e registros feitos para fins didáticos e escolares do final do século XIX. Tratamos sobre o processo de tradução do francês antigo para o português brasileiro, considerando a perspectiva apresentada pelo geógrafo sobre os indígenas na Amazônia, especialmente, na Guiana Francesa, bem como evidenciamos o pensamento determinista da época em que se registra o posicionamento eurocêntrico, durante as expedições pela região, posto que as anotações de Coudreau se tornaram textos adaptados aos livros didáticos da Guiana Francesa, integrantes da concepção de educação nacional. Para entender o capítulo traduzido e as informações sobre as etnias mencionadas, tomamos como referência os estudos de Jean Moomou (2011) e Isabelle Léglise (2017).

Palavras-chave Tradução; Etnografia; Indígenas; Guiana Francesa; Amazônia

Abstract

This article discusses the chapter “The indigenous of the Amazon” (Les Indiens de l’Amazonie) contained in the work The French in the Amazon (Les français en Amazonie) by Henri A. Coudreau, published in 1887. The version used was consulted from the digital collection of the Université de Guyane (UG) and consists of images and records made for didactic and school purposes of the late nineteenth century. We deal with the process of translating old french into brazilian portuguese, considering the perspective presented by the geographer on indigenous peoples in the Amazon, especially in French Guiana, as well as evidence the deterministic thinking of the time when the Eurocentric position is recorded, during the expeditions through the region, since Coudreau’s notes have become texts adapted to the textbooks of French Guiana, conception of national education. To understand the translated chapter and the information about the mentioned ethnicities, we take as reference the studies of Jean Moomou (2011) and Isabelle Léglise (2017).

Keywords Translation; Ethnography; Indigenous; French Guiana; Amazon

Resumé

Cet article a été écrit à partir du chapitre “Les indiens de l’Amazonie” choisi de l’oeuvre Les Français en Amazonie écrit par Henri A. Coudreau, publié en 1887. La version prise pour la traduction, elle a été prise de la bibliothèque numérique de Université de Guyane (UG) dans laquelle on compte des images et enregistrement faits pour l’utilisation didactique dans les écoles de la fin du XIXème siècle. Essentiellement, il s’agit du processus de traduction du français ancien pour le portugais brésilien en prenant en compte la perspective présentée par le géographe sur les amérindiens de l’Amazonie, notamment, dans la Guyane française bien qu’on a mis en évidence la pensée déterministe de l’époque laquelle on a l’enregistrement la position eurocentrée pendant les expéditions dans la région. Coudreau a écrit les notes qui se sont devenues des textes adaptés aux livres didactiques de la Guyane française en faisant partie de l’éducation nationale. Pour comprendre le chapitre traduit et les informations sur les ethnies mentionnée, on a pris par référence les études Jean Moomou (2011) et Isabelle Léglise (2017).

Mots-clés Traduction; Ethnographie; Amérindien; Guyane Française; Amazonie

Introdução

Henri A. Coudreau (1859-1899) realizou diversas expedições pela Amazônia e por ser professor e pesquisador, na Guiana Francesa, seus estudos no século XIX se tornaram parte de livros didáticos em escolas da capital Caiena, integrando o projeto de educação nacional francês. Essas publicações objetivavam divulgar informações sobre a região amazônica, neste caso, a parte conhecida atualmente como Platô das Guianas e seus habitantes. Por isso, grande parte das anotações oriundas das expedições das quais Coudreau participou tratam sobre os povos indígenas e características da fauna e flora. Há de se registrar que o autor escreveu sobre outras localidades na América do Sul, inclusive estados do norte do Brasil, mas neste artigo nos deteremos somente ao registro referente à Guiana Francesa.

O livro Les français en Amazonie (Os franceses na Amazônia), publicado em 1887, do qual foi retirado o capítulo traduzido Les indiens de l’Amazonie (Os indígenas da Amazônia) trata-se de um livro que foi adaptado para fins didáticos, em escolas de ensino fundamental da Guiana Francesa. Ao considerar esta perspectiva, notamos que a obra consta não somente de anotações sobre os lugares explorados, mas também conta com imagens feitas a partir de desenhos que elucidam o biotipo dos habitantes, bem como suas moradias e itens de uso doméstico. Além disso, ressaltamos que o professor de geografia foi membro da “Sociedade Comercial de Paris” e fez parte do “Comitê da Sociedade Internacional de Estudos brasileiros”, tendo, portanto, a “missão” de explicar, por meio das obras adaptadas ao ensino regular francês, questões relativas à Amazônia, notadamente com o objetivo de instruir e desenvolver o interesse administrativo e comercial em relação a esta região, com a expectativa de uso da força de trabalho a partir da mão de obra dos povos indígenas.

É nesse contexto que Coudreau fez investigações geográficas percorrendo a América do Sul. Ele estudou a Guiana Francesa e outros territórios na Amazônia e a serviço do Ministério da Marinha e das Colônias investigou, nos anos de 1883 a 1885, os territórios então contestados entre a Guiana Francesa e o Brasil. Coudreau realizou trabalho etnográfico com aproximadamente vinte etnias indígenas e em 1895, ele iniciou um serviço de exploração no Estado do Pará, em excursões pelos rios Tapajós, Xingu, Tocantins, Araguaia, Itaboca e ltacaiuna, além da região compreendida entre o Tocantins e o Xingu, o Jacundá e Trombetas, vindo a falecer neste último durante a viagem. Cada incursão feita pelo geógrafo resultou em publicações, nas quais ele relatava a percepção do explorador sobre esses lugares, o comportamento dos ameríndios e populações locais e as práticas da cultura indígena.

Assim como foi feito em traduções anteriores, como por exemplo, no artigo “Uma viagem para nunca esquecer: traduzindo o olhar europeu sobre a Amazônia brasileira” (Harden & Harden, 2021) buscou-se além da tradução recuperar aspectos referentes ao período e o pensamento dos europeus enquanto pesquisadores na Amazônia1.

Os franceses na Amazônia e as escolhas na tradução

A obra Les français en Amazonie (Os franceses na Amazônia, 1987) foi escrita em francês antigo e tem vocabulário que ora mescla termos derivados de anotações, ora os capítulos se apresentam como relato. Ela se divide em sete capítulos, respectivamente: “La colonie française de l’Amazonie” (“A colônia francesa da Amazônia”), “L’Amazonie” (“A Amazônia”), “La capitale de l’Amazonie” (“A capital da Amazônia”), “De l’émigration française dans les prairies de l’Amazonie” (“Da emigração francesa nos campos da Amazônia”), “L’Amazonie contestée entre la France et le Brésil” (“A Amazônia contestada entre a França e o Brasil”), “Les indiens de l’Amazonie” (“Os indígenas da Amazônia”) e o último capítulo “La vie amazonienne: Counani” (“A vida amazônica: Cunani”). Dentre os capítulos mencionados, elegemos o sexto, intitulado “Os indígenas da Amazônia” para destacar o perfil que foi traçado por Coudreau (1887) quando ele se referia aos indígenas considerando a perspectiva etnográfica registrada durante as expedições realizadas pelo autor. A escolha se deu por se tratar de capítulo em que se destaca a visão eurocêntrica acerca de povos e comunidades nativas da Amazônia, ocasião em que mais nitidamente afloram conceitos e pré-conceitos acerca dos contatos culturais e das relações interculturais.

Notamos, em termos didáticos, que as palavras empregadas pelo explorador tendem a demonstrar uma análise de perfil que visava, intencionalmente, pensar os povos indígenas considerando que se destacasse o objetivo capital, econômico e comercial. Em outra edição da revista Cadernos de Tradução, “Traduzindo a Amazônia II” (Guerini, Torres & Fernandes, 2022), no artigo “O olhar de uma francesa exploradora na Amazônia na virada do século XX: tradução comentada de Voyage au rio curua, de Octavie Coudreau” (Santos & Marini, 2022) já apontou uma análise sobre um relato de viagem que foi fruto de uma das várias missões exploratórias realizadas pela autora ao lado de seu marido, Henri Anatole Coudreau, trabalho esse que continuou sozinha após a morte do esposo.

Ao organizar uma obra que garantisse o registro de informações consideradas relevantes sobre a colonização da Guiana Francesa, destinada também a outros exploradores, Dangoise & Pottereau (1905), dessa vez um geógrafo e um engenheiro, escreveram sobre as “raças”, línguas e cultura indígena na mesma perspectiva apontada por Coudreau (1887), naturalmente por serem contemporâneos. Dangoise & Pottereau (1905, p. 44, tradução nossa)2, também membros da Sociedade Geográfica de Paris, fizeram a seguinte afirmação: “[...] as tribos indígenas estão disseminadas sobre diversos pontos da colônia; muitas dentre elas completamente selvagens, tais como os Oyacoulets, os Trios e os Aramichaux, que estão estabelecidos sobre o Tapanahoni [rio] et o Awa”. Os exploradores registraram ainda que, ao adentrar na floresta, poderiam ser encontrados outros povos, como os Galibis, os Emerillons, os Roucouyennes e os Waiãpi, que eram considerados povos mais numerosos. Ao se referir aos indígenas, destacamos o posicionamento de Dangoise & Pottereau (1905, p. 45, grifos nossos, tradução nossa):

Todos esses indígenas são pacíficos e vivem da cultura agrícola, da pesca, da caça, eles são muito hábeis com o manuseio do arco; mas eles se embriagam rápido com tafia [rhum], ficam entorpecidos pelo álcool e amam a preguiça, da mesma forma com a embriaguez; eles são muito apáticos, filósofos e em geral indiferentes a tudo, salvo seus cachorros que os previnem contra a picada de serpente pela inoculação, que eles treinam para abater toda a caça [...]

(Dangoise & Pottereau, 1905, p. 45, grifos nossos, tradução nossa)3.

Importa dizer que é feita, ainda, uma distinção entre “tribos” negras e indígenas e, assim como Coudreau (1887), a nosso ver, os autores tendem a destacar nas respectivas obras do século XIX os “meios” de lidar com esses povos e aproveitar suas características culturais em benefício administrativo e do colonizador. Por exemplo, destacam-se que as “tribos negras”, que podemos considerar como comunidades quilombolas, estabelecidas ao longo da calha do rio Maroni e seus afluentes, são muitas e em geral elas são compostas de pessoas trabalhadoras, industriais e que tem habilidade com arco da mesma forma que têm com as armas de fogo. Além disso, destaca-se ainda que os povos manuseiam muito bem pequenos barcos nos rios e são perceptivos ao perigo.

Em se tratando de tribos “indígenas”, voltemos ao processo de tradução do capítulo em tela. Neste artigo, fizemos algumas escolhas relacionadas ao emprego dos tempos verbais, uma vez que o texto foi escrito, conforme assinalamos, em francês antigo, e por isso a linguagem é representativa da época de sua produção – final do século XIX –, além de refletir o posicionamento ideológico de Coudreau (1887). Por esse motivo, acreditamos ser importante destacar algumas referências deterministas, bem como a grafia de algumas palavras e expressões que foram adaptadas na tradução para a língua portuguesa do Brasil, sem intenção de “modernizar” o texto fonte, mas sim expressar de forma transparente os sentidos compreendidos a partir das anotações estudadas.

Iniciamos, então, tratando sobre a primeira escolha feita para substituir termos elementares do texto: índio e indígena. No Brasil, emprega-se frequentemente “indígena” para designar povos autóctones e “índio” é um termo que, por definição dicionarizada, ainda existe, contudo não tem o emprego recomendado, por ter cunho pejorativo. Vejamos a referência ao uso deste termo de acordo com a explicação encontrada: “[Etnologia] Indivíduo que faz parte de alguma denominação indígena, dos povos nativos e originários de um país (este uso é considerado obsoleto, a forma preferencial para esta acepção é indígena); aborígene, autóctone”4. Ou seja, apesar de encontrarmos nos capítulos o emprego do termo “índio”, em contexto histórico-linguístico, ele aportava sentido vinculado à selvageria, que entendemos não ser mais adequado. Por esse motivo, manter a utilização do termo “índio” não condiz com a proposta de permanência e repetição de uma ideia, conforme assinalada, obsoleta.

No capítulo traduzido, encontramos, por vários trechos, referências à condição das mulheres nas etnias, inclusive Coudreau (1887) registrou de forma evidente que essas mulheres eram tomadas como “objeto” pelos exploradores, conforme podemos ler na citação a seguir: “[...] quando as embarcações da Normandia e da Bretanha aportavam no Brasil, os perfeitos aliados ofereciam aos nossos marinheiros as mais belas moças das tribos” (Coudreau, 1887, p. 166, tradução nossa)5. Essa inscrição no relato reforça o imaginário criado sobre os povos indígenas do Brasil, assinalada desde a Carta de Pero Vaz de Caminha. Acreditamos que essa ideia consolida o aspecto vulnerável que os indígenas se encontravam no processo de colonização do território, bem como os relatos registraram que os próprios indígenas contribuíam para a relação de exploração, não somente da natureza e da terra, como também de seus habitantes, ditos “selvagens”. Vejamos no excerto que segue, conforme Coudreau (1887, p. 166, tradução nossa):

Os capuchinhos franceses do Maranhão tiveram, certa vez, a ideia de proibir este costume consagrado, os caciques indígenas queixaram-se: ‘Eles estimam-se’, disse Claude d’Abbeville, “que era um desprezo por eles e um grande descontentamento pelas suas moças, algumas das quais, estavam desesperadas, diziam querer retirar-se na floresta, porque os franceses são seus bons companheiros (assim elas os chamavam) não as queriam ver mais

(Coudreau, 1887, p. 166, tradução nossa)6.

Coudreau (1887), além de fazer seus registros, também menciona no capítulo seus antecessores. Por vezes, ele escreve que a relação dos indígenas com os franceses é mais amistosa do que com qualquer outro estrangeiro. Notamos ainda que uso do termo “branco”, mantido por nós, no lugar de não indígena, destaca o lugar do colonizador e seu papel de civilizador: “[...] os indígenas gostavam somente de nós, eles estavam em guerra com todos os outros brancos” (Coudreau, 1887, p. 169, tradução nossa)7. Além de um lugar no estamento social da época, a manutenção do termo “branco” assinala o recorrente racismo, que oriundo do determinismo biológico e geográfico daquele momento avançou, em nossos tempos, para o racismo estrutural e sistêmico, quando ainda vislumbramos a marca étnico-racial como determinante para subestimar e subjugar os povos e comunidades amazônicas.

As questões linguísticas e estereótipos

Outro registro no texto que evidenciamos como algo que ainda permanece, mesmo que de forma velada e menos perceptível na Guiana Francesa, após mais de cem anos da publicação de Os franceses na Amazônia é o desprezo que os exploradores têm sobre as pessoas que falam outros idiomas e, principalmente, o khéoul, língua indígena que ainda é falada na região por várias etnias. Segundo Léglise (2017), dentre as principais línguas faladas na Guiana, destacam-se as línguas ameríndias (arawak, teko, kali’na, palikur, wayana, wayanpi), as línguas crioulas com base lexical do francês (dentre elas o crioulo guianense, haitiano da Martinica, Guadaloupe e de Saint Lucie), as línguas crioulas de base lexical inglesa (aluku, ndyuka, pamaka, sranan tongo), a língua crioula de base inglesa e que foi relexificadas no português (saamaka), além de algumas variedades de línguas europeias (francês, português do Brasil, inglês da Guiana, neerlandês e espanhol). Por fim, existem ainda os que falam línguas asiáticas (hmong e chinês).

A busca legítima por esse melting pot (caldeirão de raças e culturas) factual, na Guiana Francesa, é um movimento que requer ainda muita luta e persistência, a exemplo do que houve em 2017 com uma paralisação de greve geral no território, encabeçada pelo Movimento dos 500 Irmãos. Ainda hoje, mesmo sendo território ultramarino francês e tendo o status de zona da comunidade europeia, a Guiana Francesa carece de água encanada e eletricidade para boa parte de seus 250 mil habitantes, além disso existe desemprego e a Guiana apresenta maior índice de homicídios dentre os territórios franceses ultramarinos. E vale ressaltar que grande parte de sua população é mestiça, descentes de negros escravizados dentre os quais destacamos as minorias francesas, haitianas, surinamesas, brasileiras e asiáticas. E para entender uma das origens desse descaso é necessário compreender a visão sobre o território e suas populações desde as anotações que foram feitas pelo explorador e que refletem o pensamento colonizador, daí a importância de observarmos a construção das traduções.

Na tradução efetuada por nós, por exemplo, observamos que termo quéole designava a língua falada entre os mestiços com herança indígena. Para além das questões linguísticas, destacamos outro termo. A palavra moraille que é uma palavra antiga e tem entre seus sentidos, um mais literal, qual seja: alicates usados pelo ferreiro para dominar um cavalo, que seve para apertar as nádegas. O outro sentido é mais expansivo: “tormenta”. Por isso, analisando o contexto apresentado preferimos o último.

Nessa linha de dominação do Outro pela língua e a consequente caracterização como algo que atormenta o colonizador, pode-se observar que no caso brasileiro existe a preocupação com a inclusão da língua indígena no cenário da educação local paraense e amazonense, pelo menos, o mesmo não existindo na Guiana Francesa, mesmo havendo, ainda hoje, grande diversidade de povos indígenas e suas línguas: talvez isso decorra da ideologia francesa de que todos os habitantes de um território nacional são cidadãos da nação, no caso francesa; por outro lado, essa pseudo-inclusão oculta a exclusão dos diversos, postos como “selvagens” a serem domesticados. Ao fazer comparativo entre o estudo de línguas indígenas no Brasil e na Guiana Francesa, Coudreau (1887, p. 184, tradução nossa) destacou que:

O Brasil atribui uma grande importância a este conhecimento das línguas indígenas que no Pará e Manaus têm, cada uma, uma cadeira de língua geral subsidiada pela província. Esses cursos de línguas tupi tornaram os dialetos indígenas familiares a um grande número de brasileiros. A maior parte dos líderes indígenas foram sucessivamente estudantes, logo tornaram-se titulares dessas cadeiras de língua indígena. Na Guiana Francesa, seguramente, não se encontrava dez pessoas falando somente galibi

(Coudreau, 1887, p. 184, tradução nossa)8.

Encontramos ainda alusões ao processo de colonização no que se refere à questão das raças, fato que evidencia o pensamento determinista que instituiu a geografia como ciência. Vejamos no exceto as palavras de Coudreau (1887, p. 170, tradução nossa):

É necessário percorrer uma obra elementar de estatística para se perceber que, nos estados continentais da América tropical, é a raça indígena que foi a mais poderosa auxiliar da civilização. Os indígenas e os mestiços de brancos que formam nesta América quente mais de três quartos da população local. Tomamos apenas o exemplo de dois países absolutamente semelhantes à nossa Guiana Francesa, quanto às condições de povoamento, a Venezuela e o Brasil, surpreende-nos em primeiro lugar ver que cada um deles é cinco vezes mais densamente povoado do que a nossa colônia

(Coudreau, 1887, p. 170, tradução nossa)9.

A perspectiva apresentada no texto sobre os indígenas transparece a ideia de posse não somente sobre a terra, mas também das pessoas. Podemos compreender a partir dos termos de Coudreau (1887, p. 174, grifo nosso, tradução nossa): “[...] hoje o número total dos nossos indígenas foi reduzido à 20.000 no máximo”10. Há de se notar também a perspectiva apontada sobre os líderes indígenas, sempre considerando as formas como os colonizadores poderiam se beneficiar das relações com os povos encontrados. No trecho traduzido, o geógrafo e professor distingue a função do líder entre os indígenas, que ele nomeia com os termos “meio civilizados” e “selvagens”: “[...] a missão principal do líder consiste: 1º para entreter as relações com os caciques das tribos meio-civilizadas, (aldeadas, mansas); 2º que convoque a civilização a apelar à civilidade dos indígenas selvagens (boçaes, bravos)”11 (Coudreau, 1887, p. 179, grifos nossos, tradução nossa).

O caráter colonizador do registro é notório quando se faz o comparativo entre educar indígenas mais jovens que os adultos: “[...] a domesticação de adultos é laboriosa, ela é bem mais frutuosa de acontecer entre as jovens gerações”12 (Coudreau, 1887, p. 180, tradução nossa). Esta orientação oculta a necessidade de se estabelecer educandários indígenas, tomando jovens gerações do convívio de suas nações de origem, lançando-os no processo “civilizatório”, que implica no esquecimento de sua língua e ethos: o que já foi visto no próprio Brasil e no Canadá. Destaca-se que os indígenas são como pessoas a serem moldadas pelo processo educacional e a resultante dessas ações poderiam facilitar as relações com a terra e a ocupação do território.

Notamos, ainda, que entre as etnias mencionadas no texto, destacamos os Oyacoulets, e nossa opção foi manter a palavra em língua francesa por não encontrar o correspondente em língua portuguesa. Contudo, ao fazermos uma busca nos estudos de Jean Moomou (2011) verificamos que o termo foi reescrito em francês da seguinte forma: Oyaricoulet; que se refere aos Wayaïkulé povo primitivo que vivia no Oulémari e teve conflito com os Wayana, por volta dos anos de 1840. Dangoise & Pottereau (1905), ao explicarem as características dessa etnia, ressaltam que ao contrário dos indígenas da Guiana que “tinham pele de cobre” e não usavam barba, os Oyacoulets, que viviam na foz do rio Awa, tinham a pele branca e “[...] os olhos abertos como os Europeus; o nariz deles são dobrados como o bico da arara. A barba deles é geralmente longa” (Dangoise & Pottereau, 1905, p. 46, tradução nossa)13. Eles afirmam ainda que esse povo é gigante, eles são grandes como os europeus e tem um vigor incomparável. Certamente, para além de suas visões centradas, os textos franceses referidos trazem a informação que, do contrário nunca saberíamos, acerca de nosso melting pot originário, que pode ter o Platô Guianense como catalisador de trânsito e movências de populações ameríndias desde o período pré-colombiano.

Na tradução proposta, percebemos também que a expressão petits nègres, em contexto de francês popular, era de sentido pejorativo e pouco valorativa a quem era referida, e não necessariamente designava negros infantes ou de menor idade. Há também a distinção feita pelo geógrafo para designar “negro” e “indígena”, na qual, ele assinala que “[...] os negros são uma raça vaidosa e os indígenas uma raça da indústria”14 (Coudreau, 1887, p. 183, tradução nossa). Quanto aos mamelucos o que se compreende é um elogio à mistura de raças, em que se diz que os imigrantes portugueses, unindo-se às mulheres do país, deram origem à nova e admirável raça, a dos mamelucos. Esta se distinguia das tribos selvagens não somente pela cor mais clara, mas, principalmente, pela dedicação à agricultura e às artes industriais. No relatório da Assembleia Provincial, de 1852, registrou-se que as magníficas explorações que já testemunhavam do alto grau da indústria e da civilização que os mamelucos alcançaram. Conforme podemos ver na citação que segue: “Na Amazônia, o futuro é dela” (Coudreau, 1887, p. 192, tradução nossa)15.

Considerações finais

Na tradução proposta, de modo geral, estudamos outras referências da época como a obra Notas, ensaios e estudos sobre a Guiana Francesa e o desenvolvimento de suas fontes variadas e especialmente as suas riquezas auríferas, filonianas e aluvionais (no original Notes, essais et études sur la Guyane française et le développement de ses ressources variées, et spécialement de ses richesses aurifères, filoniennes et alluvionnaires (Dangoise & Poterreau, 1905) justamente para que em comparação pudéssemos identificar questões relativas aos povos indígenas mencionados, bem como o pensamento dos exploradores.

Importa lembrar que o capítulo traduz de forma adaptada termos que se referem aos processos de colonização, bem como as pessoas envolvidas nele. Assim, há de se perceber que os povos indígenas eram dominados para que fossem aproveitados para “uso” e favorecimento do capital projetado para a colônia. Além disso, eles eram vistos pelos exploradores como suas propriedades e seres inferiores. É importante registrar que o contexto histórico determinista, que envolveu as anotações dos exploradores na Guiana Francesa e também as adaptações aos livros escolares do sistema francês, reforçou a necessidade de construção de obras didáticas que tinham o objetivo de ensinar como lidar com os povos autóctones, bem como “tirar proveito” dessa relação.

A nosso ver é fundamental a tradução de textos históricos, como o presente capítulo, para que os processos que envolveram os territórios colonizados não sejam obliterados. É urgente que o pensamento e as condições a que os nativos ameríndios foram submetidos, no período em questão, seja desvelada pelas traduções do original, uma vez que o efeito perdura até os dias atuais. Trata-se não somente de estudar e analisar historicamente esses autores, mas também problematizar o que permaneceu após esses processos e as formas, posto que ainda hoje temos que repensar esses discursos, que naturalizam a subjugação como condição precípua dos povos originários e tradicionais, reforçando-se estereótipos: mas os estudos da tradução desconstroem essa condição ancestral e podem e devem ser aliados poderosos na confrontação dessas realidades.

  • 1
    Para mais informações, consulte as edições especiais Traduzindo a Amazônia I (Guerini, Torres & Fernandes, 2021) e Traduzindo a Amazônia II (Guerini, Torres & Fernandes, 2022).
  • 2
    No original: “Les tribus indiennes sont disséminées sur divers points de la Colonie ; plusieurs d’entre elles, complètement sauvages, telles que les Oyacoulets, les Trios et les Aramichaux, sont établies sur le Tapanahonyet l’Awa” (Dangoise & Pottereau, 1905, p. 44).
  • 3
    No original: “Tous ces Indiens sont paisibles et se livrent à la culture, à la pêche, à la chasse, ils sont tous très habiles au maniement de l’arc ; mais ils s’enivrent vite avec du tafia, s’abrutissent par l’alcool et aiment la paresse, à l’égal de l’ivrognerie ; ils sont très apathiques, philosophes et en général indifférents à tout, sauf à leur chien, qu’ils prémunissent contre la morsure du serpent par l’inoculation, qu’ils dressent à chasser tout gibier [...]”(Dangoise & Pottereau, 1905, p. 45).
  • 4
  • 5
    No original : “Quand les navires normands et bretons abordaient au Brésil, les parfaits alliés offraient à nos matelots les plus belles filles des tribus.”
  • 6
    No original: “Les capucins français du Maranhâo ayant eu une fois l’idée d’interdire cette coutume consacrée, les chefs indigènes s’en plaignirent vivement. ‘ Ils estimoient ’ dit Claude d’Abbeville, « que c’estoit un mépris pour eux et un grand mécontentement pour leurs filles, quelques-unes desquelles, comme toutes désespérées, disoient se vouloir retirer dans les bois, puisque les François qui sont leurs bons compères (ainsi les appellent-ils) ne les vouloient plus voir” (Coudreau, 1987, p. 166, grifos nossos).
  • 7
    No original: “Les Indiens n’aimaient que nous, ils étaient en guerre avec tous les autres blancs” (Coudreau, 1987, p. 169).
  • 8
    No original: “Le Brésil, lui, attache une si grande importance à cette connaissance des langues indigènes que Pará et Manáos ont chacune une chaire de lingua geral subventionnée par la province. Ces cours de langue tupi ont rendu les dialectes indigènes familiers à un grand nombre de Brésiliens. La plupart des directeurs d’Indiens ont successivement été élèves, puis titulaires de ces chaires de langue indienne. En Guyane française on ne trouverait assurément pas dix personnes parlant seulement le galibi” (Coudreau, 1887, p. 184).
  • 9
    No original: “Il suffit de parcourir un ouvrage élémentaire de statistique pour s’apercevoir que, dans les États continentaux de l’Amérique tropicale, c’est la race indigène qui a été le plus puissant auxiliaire de la civilisation. Les Indiens et les métis de blancs et d’Indiens forment dans cette Amérique chaude plus des trois quarts de la population totale. Pour ne prendre l’exemple que de deux pays absolument similaires à notre Guyane française, quant aux conditions de peuplement, le Venezuela et le Brésil, on est frappé tout d’abord de voir qu’ils sont chacun cinq fois plus densément peuplés que notre colonie” (Coudreau, 1887, p. 170).
  • 10
    No original : “Aujourd’hui le nombre total de nos indigènes est réduit à 20.000 au plus
  • 11
    No original : “La mission principale du directeur consiste : 1° à entretenir des relations avec les chefs des tribus mi-civilisées, (aldeadas, mansas) ; 2° à appeler à la civilisation les Indiens sauvages (boçaes, bravos).
  • 12
    No original : “La domestication de adultes est laborieuse, il est bien plus fructueux d’agir sur les jeunes générations
  • 13
    No original: “les yeux ouverts comme les Européens ; leur nez est recourbé comme le bec de l’ara leur barbe est généralement longue” (Dangoise & Pottereau, 1905, p. 46).
  • 14
    No original: “ Les nègres sont une race de vanité et les Indiens une race d’industrie.
  • 15
    No original: “En Amazonie, l’avenir est à elle” (Coudreau, 1887, p. 192).

Referências

  • Coudreau, Henri. “Les indiens de l’Amazonie”. In: Coudreau, Henri (Ed.). Les français en Amazonie Paris: Librarie d’éducation nationale, 1887. p. 165-193.
  • Dangoise, Arthur & Pottereau, L. Notes, essais et études sur la Guyane française et le développement de ses ressources variées, et spécialement de ses richesses aurifères, filoniennes et alluvionnaires. Paris: Librairie Générale et Internationale G. Ficker, 1905.
  • Guerini, Andréia; Torres, Marie Helene Catherine & Fernandes, José Guilherme. “Traduzindo a Amazônia I”. Cadernos de Tradução, 41(esp.1), 2021. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2021.e84962
    » https://doi.org/10.5007/2175-7968.2021.e84962
  • Guerini, Andréia; Torres, Marie Helene Catherine & Fernandes, José Guilherme. “Traduzindo a Amazônia II”. Cadernos de Tradução, 42(esp.1), 2022. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e91851
    » https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e91851
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2023
  • Aceito
    02 Out 2023
  • Publicado
    Out 2023
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