RESUMO
Neste estudo, apresentamos uma análise, em perspectiva dialógica, do enunciado Aonde tu vai rapaz, a focar os recursos linguístico-enunciativos. O percurso metodológico consiste em análise dialógica interligada aos conceitos de cronotopo, ideologia, enunciado, dialogismo e axiologias sociais. Os resultados demonstram que as ideologias institucionalizadas tendem a anular as cotidianas, porém encontram enfrentamento na contrapalavra manifestada no ladrão de marabaixo. A entonação refrange a dor, o lamento, a indignação, a raiva, o maldizer e expressa juízos de valores de reprovação, de oposição. A palavra cotidiana reenunciada deixa entrever segregação, denúncia, impotência, silenciamento, apagamento cultural e identitário, mas ressona, também, valores fortalecidos, como: afrodescendência, identidade, resistência, resiliência, reexistência.
PALAVRAS-CHAVE: Dialogismo; Ladrão de Marabaixo; Axiologias sociais
ABSTRACT
In this study, we present an analysis of the utterance Aonde tu vai rapaz [Where’d Ya Go Man], focusing on linguistic-enunciative resources from a dialogic perspective. The methodology consists of a dialogic analysis interconnected to the concepts of chronotope, ideology, utterance, dialogism, and social axiologies. Results reveal that institutionalized ideologies tend to nullify the one in everyday life. However, those results are confronted in some way with the counter word that is manifested by the ladrão de marabaixo chants. Intonation refracts pain, lamentation, indignation, anger, and slander, in addition to expressing value judgments of disapproval and opposition. Re-enunciation of the everyday-life word allows us to take a glimpse at segregation, denunciation, powerlessness, and the silencing of culture and identity. However, at the same time, it reverberates consolidated values such as African descent, identity, resistance, resilience, and re-existence.
KEYWORDS: Dialogism; Ladrão de Marabaixo [Thief of Marabaixo]; Social axiologies
Introdução
Este trabalho faz parte de um estudo mais amplo2 e consiste na análise de um enunciado do gênero ladrão de Marabaixo3, intitulado Aonde tu vai rapaz. A constituição artística e cultural desse ladrão de Marabaixo constitui material verbal sígnico potente para depreendermos os embates sociais e suas refrações axiológicas vivenciados pelos sujeitos afroamapaenses acerca da urbanização da cidade de Macapá, na década de 1940.
Ao refletirmos sobre a relação entre o enunciado e o meio social, trazemos à tona as circunstâncias sociais, históricas, ideológicas e culturais que o constituem, pois “(...) a arte é imanentemente social: o meio social extra-artístico, ao influenciá-lo de fora, encontra nela uma imediata resposta anterior” (VOLÓCHINOV, 2019a [1926], p.113). Essa reflexão vem ao encontro de uma perspectiva humana especialmente como alteridade cultural e como voz de resistência, resiliência e reexistência, que precisa ascender aos espaços de ensino e aprendizagem institucionalizados. As representações étnicas, identitárias emanadas dos enunciados típicos das culturas populares precisam tornar-se, de fato, meio de afirmação e de fortalecimento dos povos originários, como meio de enfrentamento de preconceitos e estereótipos.
Em virtude disso, fincamos base nos estudos do Círculo de Bakhtin: (VOLÓCHINOV, 2019a; VOLÓCHINOV, 2021 [1929]; BAKHTIN, 2016 [1979]) e nos estudos daqueles que se constituem em interlocução e tessitura de contrapalavra, como Pereira e Rodrigues (2014), Menegassi e Cavalcanti (2020), Gomes e Ohuschi (2021), Pereira e Gregol (2022) e outros. Juntamos nossa voz aos ditos enunciados e reenunciados para entoar a palavra e empenhar uma análise, em perspectiva dialógica, do enunciado Aonde tu vai rapaz, versão registrada no Dossiê do Marabaixo4 (BRASIL, 2018), a focar os recursos linguístico-enunciativos.
Para tanto, discorremos sobre: 1) a palavra dialógica na poética do ladrão de Marabaixo e os conceitos axiológicos; 2) a constituição ampla e imediata do gênero discursivo ladrão de Marabaixo a partir do enunciado concreto Aonde tu vai rapaz; e 3) a análise dialógica desse enunciado, focalizando as marcas linguístico-enunciativas autorais ativadas no enunciado.
1 A palavra dialógica na poética do ladrão de Marabaixo
Em A palavra na vida e a palavra na poesia, Volóchinov (2019) discorre sobre como a análise da arte, destituída dos princípios dialógicos, é insuficiente para compreender a dimensão valorativa do conteúdo artístico. Segundo o autor, a palavra tanto na vida como na arte está envolta em aspectos sociológicos, os quais são inerentes ao arcabouço cultural que a gera. Portanto, a palavra, em ambos os contextos, não pode ser dissociada do evento do qual é parte, porque o meio extralinguístico compõe-na, define-a, impregna-a de sentidos, de referências, de valores.
Sob a perspectiva do método sociológico, é necessário compreender não a palavra em si, como invólucro destituído de sentido, mas como ela é refratada na comunicação artística. Realizar essa operação significa considerar criador e contemplador mediados pela palavra no ato de interação, as peculiaridades comunicacionais e estéticas sem negligenciá-las do fluxo social, pois a comunicação estética “(...) participa do fluxo único da vida social, reflete em si a base econômica comum, interage e troca forças com outras formas de comunicação” (VOLÓCHINOV, 2019, p.117).
Por esse motivo, a palavra artística só pode ser depreendida pelo cotidiano, o qual dá contornos extraverbais aos sentidos que podem ser suscitados pela e a partir da arte. O cotidiano completa-a, perfaze-a de imbricações próprias que, do contrário, poderiam ser desconsideradas no ato avaliativo. Isso porque as relações cotidianas dos enunciados são prenhes de avaliações sociais, balizadas por princípios diversos, que “falam” mais fortemente do que a forma linguística em si, o que fica evidente quando há variações linguísticas culturais, regionais, históricas que precisam do enquadramento sociocultural e histórico para serem compreendidas e tornarem os interlocutores de uma enunciação ativos, substancialmente.
O enunciado analisado neste trabalho - ladrão de Marabaixo - constitui um bom exemplo de como as avaliações envolvem aspectos extraverbais. O termo ladrão, ao fundir-se com aspectos próprios da atividade cultural do qual é parte, o Marabaixo, ganha singularidade e refrata positividade na comunidade afroamapaense, à medida que é visto como bem cultural, diferentemente de outros sentidos negativos difundidos pelo mesmo termo, como “gatuno, larápio, afanador”. O sentido não é abstraído apenas do signo linguístico, mas do valor social que lhe é preenchido pelo extraverbal.
Um leitor que desconheça a pujança poética do ladrão Marabaixo precisa compartilhar do cenário enunciativo ativado pelo extraverbal para alcançar o valor social e cultural desse enunciado para o povo originário. Ao enunciar ladrão de Marabaixo, o interlocutor precisa considerar: se o sujeito participante da interação compartilha as experiências culturais relacionadas à expressão; se o contexto do qual ambos enunciam é o mesmo; que avaliações cada um aciona a depender dos seus lugares físicos, temporais, ideológicos e culturais. Para Volóchinov,
A palavra é orientada para o interlocutor, ou seja, é orientada para quem é esse interlocutor: se ele é integrante ou não do mesmo grupo social, se ele se encontra em uma posição superior ou inferior em relação ao interlocutor (em termos hierárquicos), se ele tem ou não laços sociais mais estreitos com o falante (2021, p.204-205).
A partir do ambiente social, o sujeito define suas motivações, formula sua opinião e faz avaliações tendo em vista aspectos, explícitos e subtendidos, que estão embutidos na interação comunicativa, como a projeção social do enunciado. Esses aspectos configuram-se como o espectro de constituição de sentidos e demarcam o lugar de construção deles, o que favorece a entonação (VOLÓCHINOV, 2019a). É no plano da experiência cotidiana que os agentes da interação assumem seus papéis, atuam, compreendem e aferem juízos ao conteúdo da interação. Logo, a palavra dialógica é compreendida como constructo social, histórico, ideológico e cultural, à medida que, por meio dela, a sociedade reflete suas organizações políticas e econômicas (VOLÓCHINOV, 2021). A palavra se torna dialógica ao participar dos discursos: quando se permeia de sentidos, constitui-se como valor social, em seu estatuto de signo ideológico.
Nesses termos, o enunciado concreto Aonde tu vai rapaz5 tem, em sua historicidade, o valor sociocultural que o torna sígnico da cultura afroamapaense: constitui resposta ética desse grupo social em relação aos embates culturais, econômicos, ideológicos, políticos e sociais que marcaram época na história de Macapá-AP e que interferiram factualmente em suas vidas. Compreendê-lo significa ampliar nossa visão de sujeitos sociais acerca de seus posicionamentos culturais, sociais e ideológicos e reconhecer a força de suas palavras no ladrão de Marabaixo, enquanto voz que emerge como resistência, como ato responsivo e ético diante de silenciamentos e apagamentos étnicos e culturais. Para tanto, é preciso que o compreendamos à luz das axiologias sociais.
As considerações acerca das axiologias sociais na perspectiva dialógica decorreram de nossos estudos centrados nas obras “A palavra na vida e a palavra na poesia” (VOLÓCHINOV, 2019a), Marxismo e filosofia da linguagem (VOLÓCHINOV, 2021) e Os gêneros do discurso (BAKHTIN, 2016). Para Volóchinov (2019a), os conceitos axiológicos do extraverbal, entonação e juízo de valor estão atrelados à concepção do enunciado que se consolida como fios discursivos no fluxo contínuo da atividade verbal humana. O enunciado, como elemento discursivo, é parte do fluxo da vida e, junto com a comunicação discursiva, é constitutivo de uma coletividade, ambos imbricados na interação das pessoas em sociedade.
Nesse sentido, o enunciado é preenchido de tons dialógicos. As dimensões socioverbais enunciatárias constituem o cenário enunciativo, moldam as formas linguísticas materializadas no enunciado e embebem de indícios e impressões o sentido no extraverbal. Os enunciados concretos compõem-se, portanto, do material concreto e do não visível que, por ser mais amplo, envolve o cenário da interação ou o plano temático (BELOTI et al., 2020). Assim sendo, o plano verbal refrata, em certa medida, a subjetividade do sujeito, enquanto o subentendido ancora-se nas práticas e valores coletivos.
O extraverbal inclui, portanto, a situação que diretamente influencia a orientação social do enunciado ao seu destinatário, ao seu auditório imediato. Fazem parte dele o espaço, o tempo, o tema, a relação dos sujeitos com o tema, em suma, a situação enunciativa, a qual influencia não apenas a expressão verbal, como também encerra uma avaliação social e se constitui como imprescindível do seu desenvolvimento ideológico sequente (VOLÓCHINOV (2019a, p.285). Assim, o extraverbal constitui o cenário, enquadramento significativo do enunciado que se estabelece no plano do subtendido: “O sentido depende por inteiro tanto do ambiente mais próximo, gerador imediato do enunciado, quanto de todas as causas e condições sociais mais longínquas da comunicação discursiva” (VOLÓCHINOV, 2019c, p.283).
O caráter extraverbal do enunciado organiza, portanto, as refrações do sentido e pode ser concebido a partir de três aspectos: a) o horizonte espacial comum dos falantes, que compreende a situação compartilhada pelos envolvidos; b) o conhecimento e a compreensão da situação comum aos interactantes, os quais envolvem os interlocutores, o conhecimento do objeto da interação e o entendimento da situação comunicativa que vivenciam; c) a avaliação da situação, inerente aos coparticipantes da ação comunicativa, que avaliam constantemente o outro e a partir da qual modulam e modelam sua linguagem tendo em vista o outro e o objetivo da interação (VOLÓCHINOV, 2019a).
Faraco (2009) explica que mesmo pequenos fatos delimitados ao cotidiano imediato podem se integrar ao quadro maior da interação de um grupo social, em reciprocidade aos movimentos, crenças e atitudes coletivos. Nesse contexto, os enunciadores não são apenas sujeitos empíricos, mas representantes de posições axiológicas demarcadas no grupo. Nesse caso, os cantadores ou ladronistas (VIDEIRA, 2008), no contexto do Marabaixo, não estão apenas na posição de entoar o ladrão, mas, como tais, circunscrevem suas posições sociais avaliativas na cadeia discursiva.
Como vemos, a avaliação é constitutiva do enunciado. A entonação é concretização da avaliação social e está no limiar do verbal e do extraverbal, entre o visível e o aludido. É por ela que a palavra é vivificada e atualizada, embebida no refrão social que lhe consente a existência do sentido: “A entonação criativamente produtiva, segura e rica é possível apenas com base em um ‘coro de apoio’ pressuposto” (VOLÓCHINOV, 2019a, p.124).
Para Bakhtin (2016), a entonação é um expediente emocional do sujeito com o objeto de seu discurso e só ocorre enquanto enunciado, pois como unidades da língua são destituídas de entonação. Assim, as escolhas que fazemos das palavras são referenciadas pelo tom social embutido nelas. Selecionamos as palavras a partir de outros enunciados e realizamo-las na teia da realidade objetiva fora do material verbal, onde a fagulha da entonação acontece e reaviva de sentido e valores as palavras enunciadas. Nesse contexto, os signos verbais ganham vida quando são verbalizados: “A relação do enunciado com sua situação e seu auditório é criada, primeiramente, pela entonação” (VOLÓCHINOV (2019c, p.287).
O tom é o meio pelo qual a palavra-signo se ergue já repleta de sentido. No ladrão Aonde tu vai rapaz, o tom de lamentação do canto evidencia as avaliações dos sujeitos acerca do acontecimento social, cultural, econômico decorrentes das decisões do governo à época da remoção das famílias afroamapaenses da Vila de Santa Engrácia, Praça de Cima e Largo de São João (VIDEIRA, 2008). Para os pensadores do Círculo, a entonação “é a expressão sonora da avaliação social” (VOLÓCHINOV, 2019c, p.287), em vista da situação e do auditório social, razão pela qual requer uma palavra condizente com o lugar ocupado na cadeia sintática do enunciado: “A entonação que expressa a orientação social não só exige palavras ou expressões de um estilo determinado, não só atribui a elas um certo sentido, mas também aponta o seu lugar e as posiciona no todo do enunciado” (VOLÓCHINOV, 2019c, p.300).
A entonação é, portanto, a expressão valorativa (VOLÓCHINOV, 2019a, p.216) que refrata a avaliação social. Primariamente, ela participa do diálogo interior, constitui a metáfora gestual e a modulação da voz - e amplifica-se para fora, conectando-se com o material físico em contato com o corpo, chega ao vocábulo linguístico e refrata-se em ondas sonoras. Assim, a entonação é o fio condutor da expressão de valor que os signos representam no seio social, pois, nesse cenário, há sempre, em sua organicidade e gênese, um tom avaliativo que o caracteriza como “social-avaliativo, social-expressivo e social-axiológico” (PEREIRA; GREGOL, 2022, p.486).
Para Bakhtin (2016), as escolhas linguístico-discursivas e enunciativas são determinadas pela força volitiva do falante, que determina as escolhas estilístico-composicionais, assim como sua expressividade. Por essa razão, não há enunciado neutro, pois todos carregam consigo uma apreciação, um juízo de valor. Gomes e Ohuschi (2021) explicam que o julgamento de valor é como um constructo social crivado pela ideologia de épocas e lugares distintos que constituem o sujeito e a coletividade do qual faz parte.
De acordo com essa compreensão, o conceito de juízo de valor, para o Círculo, é referente ao de valor ideológico, uma vez que cada sujeito enuncia e avalia a partir de sua posição ideológica (PEREIRA; RODRIGUES, 2014; MENEGASSI; CAVALCANTI, 2020). Logo, o juízo de valor não reflete a individualidade do sujeito, mas reifica o corpóreo social que lhe dá seguridade em sua existência. Dessa maneira, na expressão da palavra ecoa a expressão alheia, que passa a representar a voz do outro como posição valorativa própria (BAKHTIN, 2016).
Sob essa perspectiva, a neutralidade implicaria o não envolvimento do sujeito com seu discurso, o que é impossível, porque a relação valorativa tem contornos emocionais e só pode ser caracterizada no discurso concreto. Toda vez que começamos a pensar sobre algo, acionamos a imagem valorativa do grupo: o nosso discurso interior se manifesta, seja questionando, perguntando, respondendo, afirmando, negando, em suma, tornando-se réplica das vozes sociais, fundidas a outras opiniões e avaliações do grupo que nos significa (VOLÓCHINOV, 2019a).
Todos os enunciados serão construídos justamente do seu ponto de vista; as suas opiniões e avaliações possíveis determinarão tanto o som interior (ou exterior) da voz (entonação), quanto a escolha das palavras e a sua distribuição composicional em um enunciado concreto (VOLÓCHINOV, 2019c, p.276-277).
Com tudo isso, empreender movimentos de análise da valoração significa considerar elementos relacionados ao extraverbal, à entonação e aos juízos de valor que representam os sujeitos e suas ideologias. Sob esse viés, a ideologia pressupõe a significação das atividades humanas e de seus produtos para além das fronteiras de sua natureza funcional. Para Volóchinov (2021), a significação é o que dá sentido ao signo ideológico, pois ele tem um caráter simbólico de representação e substituição do que está no exterior. Pereira e Gregol (2022) explicam que a ideologia são os modos de conceber e avaliar a existência social. No que tange à ideologia do cotidiano, base da forma artística, compreendemos que ela envolve as necessidades fundamentais que movem o sujeito.
Nesse plano ideológico, a palavra está intimamente relacionada ao extraverbal, a funcionar como um “piloto automático” da coletividade social, de modo que os sentidos, decorrentes de opiniões e avaliações, atribuídos às palavras, fundem-se ao contexto. Essa relação entre os sujeitos, a palavra e o contexto é fundamental para entendermos como essa ideologia se transforma em ideologia enformada. Volóchinov (2019a, p.119) explica que o enunciado cotidiano “(...) sempre conecta os participantes da situação, como coparticipantes que conhecem, compreendem e avaliam a situação do mesmo modo” e, ao propiciar essa conexão, ocorre a compreensão ideológica, estendendo-se entre as consciências individuais coparticipantes de modo a uni-las, no processo de interação. Assim, o ladrão de Marabaixo Aonde tu vai rapaz constitui material sígnico por meio do qual o autor-criador reverbera visões, concepções e avaliações da situação social comum, que atingiu as suas existências culturais, étnicas, identitárias. Ao ser preenchido pelo conteúdo ideológico cotidiano, na roda de Marabaixo, dá forma a outra expressão ideológica.
Na perspectiva do Círculo de Bakhtin, o enunciado é determinado pela situação social imediata, por seu contexto extraverbal, que inclui aspectos como o espaço e o tempo em que se dá a interação, isto é, pelo cronotopo6. Oliveira e Pereira (2022) esclarecem que a noção de cronotopo surge na esfera literária para designar a associação espaço-temporal. Para Volóchinov (2019a), todo enunciado constitui um momento do fluxo discursivo, assim como a vida e a história, e compõe-se de duas partes, a verbal e a extraverbal. Essa última engloba as condições e os diferentes ambientes em que o enunciado acontece a envolver três aspectos: o espaço e o tempo, o tema e a avaliação dos sujeitos. Ao encontro dessa perspectiva, Jurach, Schröder e Brocardo (2020) explicam que a importância do cronotopo decorre da compreensão da língua enquanto enunciado concreto, ancorada em um contexto social, histórico e ideológico.
Para essas pesquisadoras, o cronotopo influencia a própria organização do gênero por meio de relações dialógicas inerentes à interação e direciona a compreensão temática do enunciado. Dessa maneira, a análise cronotópica importa porque orienta a compreensão e a produção de sentidos do enunciado, situado em um espaço e em determinada época. A relação dialógica entre tempo, espaço e gênero forja as escolhas discursivas, linguísticas, enunciativas e refrata uma concepção de ser humano numa dada realidade. Logo, as investigações relacionadas a questões culturais, étnicas, identitárias não podem ignorar a importância do cronotopo porque as ações humanas se transformam e o espaço-tempo é lugar da autoria constituída nas práticas sociais.
Ao seguir a proposição teórico-metodológica de Pereira e Gregol (2022), o estudo da valoração precisa considerar elementos como cronotopo, ideologia, a expressividade dos enunciados refletidos em conteúdo, estilo e composição, seguido da compreensão dos sentidos que esses aspectos linguísticos, discursivos e enunciativos acrescentam/mobilizam no e a partir do enunciado. Coerente a isso, trazemos à cena deste enunciado o ladrão de Marabaixo Aonde tu vai, rapaz, de Raimundo Ladislau, com intuito de desvelar os movimentos valorativos nos versos desse enunciado.
2 A constituição do enunciado discursivo ladrão de Marabaixo
Para os estudiosos do Círculo de Bakhtin, o enunciado enlaça os dizeres passados atrelando-se aos que estão por vir, reenuncia vozes enquanto se projeta como individualidade do sujeito numa relação de alteridade entre o eu e o outro. Como material constituído de palavra, adere e pode remeter a outras posições axiológicas e a memórias sociais, tipificadas em um gênero, caracterizado por sua forma, por seu conteúdo, pelos elementos linguísticos (re)enunciados e selecionados para compô-lo.
Nosso discurso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive as obras criadas), é pleno de palavras dos outros, de um grau vário de alteridade ou de assimilabilidade, de um grau vário de aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos e reacentuamos (BAKHTIN, 2016, p.54).
Compreender o ladrão de Marabaixo é entender a própria história do Marabaixo, cuja concepção tem laços afrodescendentes, étnicos, culturais e religiosos7. Videira (2008) propõe a compreensão do Marabaixo a partir de conhecimentos gnósticos da filosofia africana, destacando os conceitos de africanidades brasileiras e afrodescendência em suas relações históricas e sociais. Segundo a pesquisadora, a história do Marabaixo remonta a valores de relevada importância, como “a palavra, a ancestralidade, a comunidade e a religiosidade” (VIDEIRA,2008, p.3). Logo, o Marabaixo tem íntima relação com a pertença comunitária e com o valor religioso que decorrem do que a autora chama de “Catolicismo de Preto” (VIDEIRA, 2008, p.3).
A ancestralidade é demarcada pela reverência histórica, pela hierarquia dos membros na organização das festas e a palavra é marca, inscrição verbal que legitima a transmissão de saberes às gerações do porvir. Como tal, constitui-se signo ideológico porque refrata as pertenças e sabedorias, conhecimentos e tradições que demarcam os signos verbais e semióticos. Nesse contexto, os objetos significam, constituem-se signos, “o tambor fala” (VIDEIRA, 2008, p.3) e a palavra cria, porta saberes, conhecimentos e poder. Segundo Bakhtin (2016), a expressividade de certas palavras, por ser típica de gênero, ecoa a expressão individual alheia, completando o enunciado do outro.
Martins (2012) sinaliza que a possível origem do que hoje é denominado ladrão de Marabaixo está no poema, identificado pelo autor-poeta como écloga8, manuscrito identificado em arquivos dos Condes da Cunha, em Coimbra, “História da verdadeira sucedida Praça de Mazagam nos despejos que fizeram os africanos em março de 1769 que se contarão - 11 do dito mês de março e ano” (VIDAL, 2008, p.72 apud MARTINS, 2013, p.66). O conteúdo temático do enunciado e sua entonação deixam entrever a “lamúria e decepção dos mazaganenses” em relação ao translado e que se assimilaria ao lamento ainda hoje expressado em ladrões de Marabaixo (MARTINS, 2012, p.66). Em razão dessa compreensão, Coelho (2021) defende que o nome mais apropriado seria elegia, ao invés de écloga.
Oliveira (2015), ao investigar a natureza dos cantos que se presentificam em manifestações como o Marabaixo, propõe uma classificação tipológica9 ao considerar a dinâmica cultural de produção e circulação desses enunciados, a saber: as situações, os eventos e os atos de fala oral. O pesquisador concluiu que os ladrões são atos de fala que ocorrem no contexto do Marabaixo, em sua parte profana10 ou lúdica, como definem Reis, Maciel e Pereira (2021). O ladrão é considerado canto lúdico porque a situação de realização desse ato de fala é de exclusividade do momento do Marabaixo manifestado na informalidade, em atos de lazer e diversão.
Como tal, está intimamente interligado à dança, cujo auditório age ativa e responsivamente, tanto com o corpo como com a voz, por meio do refrão, acompanhado de instrumentos, ritmos e performance próprios, constituindo-se, portanto, nas rodas de Marabaixo e de Batuque11. Coelho (2021) se refere ao ladrão como canções tradicionais; enquanto Videira (2010) se refere a esse enunciado como cantigas: “(...) as frases musicais curtas presentes nas cantigas de Marabaixo e bandaias12 de Batuque representam outra característica da cultura afroamapaense que possivelmente se assemelha à tradição Bantu” (VIDEIRA, 2010, p.78).
Desse modo, o ladrão de Marabaixo filia/inscreve-se nos fios discursivos do canto, da cantiga, transforma-se e adquire nuanças próprias das comunidades e grupos os quais se responsabilizam por sua vivificação. Um exemplo disso são as distinções quanto à produção desses enunciados. Coelho (2021) explica que o ladrão, na roda, surge do improviso, do “roubo” de vivências cotidianas ou da apropriação do canto do outro. Oliveira (2006), porém, explica que, na atualidade, os ladrões são apenas repetidos, não sendo mais criados de improviso, como outrora. Independente do contexto, as lamentações e as labutas diárias encorpam os dizeres cantados, entrelaçando sagrado e lúdico, na malha temática que perfazem os ladrões (COELHO, 2021).
Oliveira (2006), ao estudar o Marabaixo do Curiaú13, explica que o termo ladrão tanto dá nome ao refrão repetido pelo coro como ao todo composicional. Neste trabalho, usamos o termo ladrão para nos referirmos ao enunciado. Durante sua enunciação, em geral, o coro é entoado pelos cantadores, representado pelo conjunto de dançadores do Marabaixo, em geral mulheres, que repetem, na roda, o refrão após a entoação de cada estrofe cantada pelos puxadores do ladrão que, em geral, eram (são) também os tiradores de ladrão, aqueles que se constituíam como autores dos enunciados, ainda que não alfabetizados (OLIVEIRA, 2006).
A estrutura composicional dos ladrões é tecida em versos e estrofes. Não há uma regularidade na quantidade de versos (OLIVEIRA, 2006): as estrofes do ladrão tanto podem ter um ou mais versos; não há limites quanto à quantidade de estrofes. Porém, pode ocorrer de uma mesma estrofe compor ladrões diferentes. Ademais, a construção composicional pressupõe que refrão e estrofes sejam combinados, sem obrigatoriedade de continuidade temática. “As estrofes apresentam certa fixidez na forma, na maioria absoluta dos cantos. Apresentam a estrutura de quatro versos, seguidos sempre do refrão. De forma geral, apresentam rima irregular” (OLIVEIRA, 2015, p.151).
Quanto ao conteúdo temático, Oliveira (2006), em estudos do Marabaixo no quilombo do Curiaú, identifica as experiências arraigadas ao cotidiano, o bucolismo, com ênfase na flora e na fauna amazônicas amapaenses, e a religiosidade católica. Já em seus estudos posteriores, sobre cantos afro-amazônicos registrados por meio da oralidade, em Mazagão, Oliveira (2015) identifica abordagens temáticas como: a vida cotidiana entrelaçada pelo vivido e pelo imaginado; a identidade e a resistência, como causa social, quando versam sobre a origem africana e o sofrimento escravo.
O estilo do gênero compõe-se de recursos linguístico-expressivos que mobilizam o léxico inerente às variedades linguísticas regionais do cotidiano. A variedade de registro está relacionada à informalidade. Pode apresentar rimas, paralelismo e métrica (OLIVEIRA, 2015). Como tem sua raiz numa cantiga, refrata os comportamentos sociais, virtudes e valores relacionados à existência da comunidade. Esse modo de agenciar saberes configura-se na oralidade, cujo auditório real são as rodas de Marabaixo. Por ser de natureza oral, “(...) é determinado pelo atrito da palavra com o meio extraverbal e pelo atrito da palavra com a palavra alheia (das outras pessoas)” (VOLÓCHINOV, 2019c, p.270). Cientes de que o conhecimento acerca de um enunciado se dá a partir do gênero, analisamos o viés axiológico no enunciado concreto Aonde tu vai rapaz, de Raimundo Ladislau (BRASIL, 2018).
3 Análise das ressonâncias valorativas no enunciado
Pereira e Gregol (2021), ao discutirem e refletirem sobre os conceitos de valoração nos estudos do Círculo, constatam que o lugar de onde enunciam os sujeitos refletem na linguagem e na língua tanto a subjetividade avaliativa dos sujeitos como os campos ideológicos que compartilham. A partir disso, os autores analisam conceitos dialógicos que se entrecruzam com o de valoração/avaliação social na perspectiva do Círculo e analisam propostas metodológicas para análise da valoração.
Dentre essas propostas, Pereira e Rodrigues (2014) sugerem a análise da valoração em interface a quatro estâncias: a) cronotopo; b) ideologia; c) enunciado; d) dialogismo. Como discutimos, o cronotopo permite entrever a representação do sujeito em sua realidade temporal a partir de um olhar axiológico e ideológico. A ideologia pressupõe o entendimento do entrelaçamento entre as ideologias institucionalizadas e a ideologia do cotidiano, balizadora da avaliação crítica de toda produção ideológica. Logo, o entrelaçamento da ideologia do cotidiano é balizadora da avaliação crítica de toda produção ideológica enformada. O enunciado, unidade real da comunicação verbal, evento único, irrepetível e dialógico presume o nascedouro vivo da emoção, do tom, dos juízos de valor que se realizam por meio da língua em exercício. O dialogismo pressupõe os elos com os fios anteriores e posteriores, bem como a compreensão das conexões de sentido concretizadas por meio dos enunciados, atualizados em uma interação de forma a estabelecer relações semântico-axiológicas (PEREIRA; RODRIGUES, 2014; PEREIRA; GREGOL, 2021).
Assim, optamos por esse encaminhamento metodológico para analisar a valoração no enunciado concreto Aonde tu vai rapaz. Assumimos, para tanto, as questões norteadoras propostas por Pereira e Rodrigues (2014) e organizadas por Pereira e Gregol (2021), para encaminhar nossas reflexões.
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1- Como se constitui a imagem de homem tendo em vista as determina ções valorativas oriundas do tempo e do espaço em que está inserido? Como essa amplitude espaço-temporal projeta visões de mundo?
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2- Como a ideologia do cotidiano e os sistemas ideológicos organizados revelam as atitudes valorativas em uma situação de interação?
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3- Como as ideologias do cotidiano e os sistemas ideológicos organizados são moldados por atitudes valorativas/posições avaliativas?
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4- De que forma os aspectos constituintes do enunciado, em ligação com a situação concreta, (de)mostram os posicionamentos axiológicos?
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5- Como o todo enunciativo é valorado tendo em vista a situação de interação?
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6- Como as relações semântico-axiológicas, relações dialógicas, susci tam/provocam sentidos dos/aos enunciados? (PEREIRA; GREGOL, 2021, p.488).
Dados os encaminhamentos sobre a metodologia de análise, trazemos à cena enunciativa o enunciado concreto a ser analisado. Trata-se do ladrão de Marabaixo Aonde tu vai rapaz, de tradição oral, versão de autoria de Raimundo Ladislau (BRASIL, 2018), um dos líderes de uma das comunidades negras de Macapá na década de 1940.
Aonde tu vai rapaz Aonde tu vai rapaz Por esses campos sozinho Vou construir minha morada Lá nos campos do Laguinho Quando vim da minha casa Me perguntou como passou Rapaz eu não tenho casa Tu me dá um armador Destelhei a minha casa Com a intenção de retelhar Mas a Santa Engrácia não fica Como a gente pode ficar? Estava na minha casa Conversando com a companheira Não tenho pena da terra Só tenho do meu coqueiro Largo de São João Já não tem nome de santo Hoje é reconhecido Por Barão do Rio Branco A Avenida Getúlio Vargas Tá ficando que é um primor Essas casas foram feitas Pra só morar os doutor Dia primeiro de junho Eu não respeito o senhor Eu saio gritando viva Para o nosso governador (Raimundo Ladislau. Versão registrada no Dossiê do Marabaixo pelo IPHAN, 2018, p.18-19.)O ladrão de Marabaixo em análise apresenta uma tipologia artística, poética, organizada em sete estrofes com quatro versos, sendo a primeira, o refrão. Por meio dessa composição, o autor-criador comunica-se com seu auditório real, os participantes da roda de Marabaixo. Para isso, arregimenta recursos linguísticos que dão acabamento ao seu projeto de dizer a produzir uma crítica social, com tom de lamento. Mendes-Polato, Ohuschi e Menegassi (2020) explicam que há três possibilidades de compreender um enunciado quanto ao seu projeto de dizer: objetivo, finalidade e intenção discursiva, os quais se distinguem e se fundem a contemplar a significação possibilitada pelo leitor/ouvinte. Assim, o objetivo do autor-criador é a fruição do seu dizer, de forma lúdica, a envolver cantoria e dança. A finalidade social é publicar seu descontentamento em relação aos atos do governo e a intenção comunicativa do autor-criador é denunciar a segregação racial e social imposta ao povo afroamapaense, conforme demonstramos a seguir.
Para Bakhtin (2016), cada gênero assume um tom próprio, incluindo em sua composição uma carga de entonação expressiva. Com isso, entendemos que o enunciado Aonde tu vai rapaz constitui-se como atitude responsiva do autor-criador e de seu coro social. Refrata uma avaliação de insatisfação, revolta, indignação acerca do remanejamento de cidadãos afroamapaenses que, na prática, resultou em segregação cultural, racial, social. Essa condição real de enunciação é seu nascedouro e a esse respeito passamos a discorrer, à luz de Pereira e Gregol (2021), considerando-a como cronotopo enunciativo original, a constituição do Território Federal do Amapá, em 1943, quando da reforma urbana da cidade de Macapá.
Os sujeitos que viviam nesta região eram praticamente esquecidos do restante da nação. À época, o Brasil era proeminentemente rural, regido sob a batuta ditatorial do Estado Novo, comandado por Getúlio Vargas (MADUREIRA, 2019). Na década de 1940, a região Amazônica passou a despertar interesse do Estado Nacional sob o lema “Integrar para não entregar”, a palavra de ordem era “conquistar a terra, dominar as águas, sujeitar a floresta” (VARGAS, 1941, p.229). Assim, a colonização da Amazônia foi entendida como estratégia para os interesses nacionais e com previsões de investimento em obras estruturais de urbanização, como saneamento básico e atendimento à saúde pública. Nesse contexto, a implementação de um projeto de saneamento da Amazônia visava combater doenças como a malária, vista como entrave à integração da Amazônia ao restante do país (ANDRADE; HOCHMAN, 2007).
Esses acontecimentos refletiram na reforma urbana de Macapá, a partir da constituição do Território Federal do Amapá, em 1943. O governo nomeado à época, Capitão Janary Gentil Nunes, tinha a missão de urbanizar a cidade. Os atos nesse sentido levaram os moradores da Beira a locais distantes do centro (à época) - “lá nos campos do Laguinho”, dando origem aos bairros do Laguinho14 e Favela15, ambos espaços consolidadores do Marabaixo (BRASIL, 2018). Videira (2008) explica que a comunidade negra morava, predominantemente, na Vila Santa Engrácia - atual praça Barão do Rio Branco, Praça de Cima e Largo São João no centro da Vila de São José de Macapá, hoje área nobre da cidade, quando foi desapropriada de suas terras e remanejada para os “campos do Laguinho”, local escolhido pelos remanejados por ser território de suas roças.
A desapropriação da comunidade do centro de Macapá e o remanejamento para o bairro do Laguinho tiveram início após a chegada do Capitão Janary Gentil Nunes, governador militar indicado pela ditadura getulista, à cidade de Macapá, em 25 de janeiro de 1944. Não foi uma mudança sem resistências por parte da comunidade. O governo com sua forma autoritária de governar, baseou seu programa de governo na tríade “Sanear, Educar e Povoar” (MACIEL, 2001 apud VIDEIRA, 2008, p.5).
As populações amazônicas de lugares como Macapá, Estado do Amapá, seguiam suas vidas em estreita relação com suas crenças e costumes, com a floresta, com o rio, com a terra, como se lê no verso: “Lá nos campos do Laguinho”; nas marcas lexicais - “destelhar, retelhar, primor”. Era uma época em que a pobreza, a desigualdade social e a baixa escolaridade da população imperavam no país. No Amapá, não era diferente: muitas famílias viviam em palafitas na Beira - atual orla do rio Amazonas. Nesse contexto, o ladrão Aonde tu vai rapaz reflete a forma como a população desses locais foi atingida por essas modificações.
No excerto 1, trazemos à cena enunciativa deste artigo o título e o refrão para desvelarmos a imagem de homem em relação às determinações valorativas oriundas do tempo e do espaço em que está inserido e a influência da amplitude espaço-temporal projetada nas suas visões de mundo (PEREIRA; GREGOL, 2021)
Excerto 1 Aonde tu vai rapaz Aonde tu vai rapaz Por esses campos sozinho Vou construir minha morada Lá nos campos do LaguinhoO enunciado-título Aonde tu vai rapaz e o refrão dão indício de um homem que se sente perdido, como se vê pelo advérbio “aonde”, pelo verbo “vai”, e pela sintaxe do enunciado em forma de pergunta - Aonde tu vai rapaz; o homem sem saber para onde ir e sem saber com quem contar, como se vê na escolha do adjetivo “sozinho” em: “por esses campos sozinho”, perde seu lugar de referência, sua “morada” e vai para um lugar que não lhe é significativo: “esses campos”. O pronome demonstrativo “esses” indica um lugar que não é o de sua origem e refrata certo distanciamento, o que é confirmado pelo substantivo “campos”, que generaliza um espaço, que não é sua pertença. A “morada” ativa o sentido de existência e transcendência, remete ao tempo duradouro da existência trazidos à tona por outros ditos “morada eterna”, por exemplo, porém, no enunciado em análise, a “morada” é incerta, porque não constitui o lugar identitário do sujeito.
Esses entendimentos advindos das marcas linguístico-enunciativas do refrão nos levam a entender que a ideologia cotidiana desse sujeito refrata apego ao ecossistema, à comunidade, denota pertença ao lugar que é parte de si. No contexto, esse homem, ao ser remanejado, perde um pouco de si, sente-se atordoado, porque ocorre anulação de ideologias cotidianas que valoravam o homem da terra: a moradia, a relação com a natureza, a cultura, a religiosidade e sua própria história. Os aspectos verbais consti tuintes do enunciado, em ligação com a situação concreta, revelam os posicionamentos axiológicos do sujeito/homem atingido pelas mudanças: insatisfação, discordância e certo conformismo que duelavam com o sentimento de pertença à comunidade, de identidade.
O excerto 1 representa a visão do homem afroamapaense, nesse período, em relação ao poder hegemônico: impotente, revoltado, objetado, confrontado pela superioridade do eurocêntrico sobre o afrocêntrico; do colonizador sobre o colonizado; do poder central do Estado em relação ao “caboco” amazônico que, destituído de estudos e de “cultura”, não podia participar das decisões sociais e políticas. Suas crenças, expressões culturais eram tidas como inferiores ou mesmo como maléficas, impróprias16. É nesse cronotopo que esse homem afroamapaense, clivado das decisões sociais e ideológicas sobre seu destino, ergue o “gargo”17, entoa o ladrão Aonde tu vai rapaz e irrompe como voz responsiva, consciente, de enfrentamento ao silenciamento imposto pelas ideologias dominantes e como cultura artística faz ouvir sua contrapalavra.
Para Volóchinov (2019a), toda tomada de consciência está relacionada ao exterior do acontecimento, centro organizador de suas condições e circunstâncias. A voz do homem afroamapaense, ribeirinho, marginalizado rompe a caixa do silêncio e irrompe como as águas do Amazonas, ganhando força e volume nas ressonâncias de outros sujeitos que entoam o ladrão Aonde tu vai rapaz, ecoando suas visões de mundo, seu senso de comunidade, impregnando-se do “colorido sociológico e histórico: da época, do meio social, da posição de classe do falante e daquele ambiente real e concreto no qual ocorre o enunciado” (VOLÓCHINOV, 2019b, p.255).
Em sua simplicidade, de boca em boca, o homem, por meio do ladrão, denuncia sua dor, externa sua crítica, visibilizado no todo da estrofe que ressoa e ressoa em diferentes vozes de tal modo que se torna pororoca em linguagem, rouba a cena do poder legitimado e mobiliza outras vozes que, juntas, refletem ideologicamente sua ancestralidade, sua identidade, sua resiliência, sua resistência, tidos como juízo de valor que positivam suas existências. Essas compreensões, advindas a partir do extraverbal, tem seus indícios a partir de marcas linguístico-enunciativas que refratam essa forma de se entender e de refratar suas ideologias que aportam no cotidiano, mas se deslocam para as fronteiras de outros campos, como o cultural, o político e o artístico. Assim, passemos à análise do excerto 2 do enunciado-texto.
Excerto 2 Quando vim da minha casa Me perguntou como passou Rapaz eu não tenho casa Tu me dá um armador Destelhei a minha casa Com a intenção de retelhar Mas a Santa Engrácia não fica Como a gente pode ficar? Estava na minha casa Conversando com a companheira Não tenho pena da terra Só tenho do meu coqueiroAs quatro primeiras estrofes do ladrão de Marabaixo em análise refletem a ideologia cotidiana, a relação do homem com o seu dia a dia: o jeito de falar, as escolhas lexicais e composicionais denotam a subjetividade do autor-criador, seus pertencimentos e ideologias que demarcam seu lugar responsivo e transitam entre o cotidiano, o artístico. “A particularidade dos enunciados da vida consiste justamente no fato de que eles estão entrelaçados por fios ao contexto extraverbal da vida (...)” (VOLÓCHINOV, 2019a, p.121). Assim, demarcam as ideologias do autor-criador as relações extraverbais em conexão com as marcas linguístico-enunciativas: a simplicidade e o senso de comunidade refratados na composição dos versos em forma de diálogo; a preocupação com o lugar onde mora, percebida nas escolhas lexicais: “casa”, “morada”, “armador”18; o sentimento de desproteção e insegurança: “destelhei”, “retelhar”; a preocupação com a família: “companheira”; o sentimento de resistência: “só tenho pena do coqueiro”.
Essas marcas linguísticas referenciam o lugar ideológico de onde o ladronista enuncia: o lugar de segregado, de preto atingido pela desigualdade social, o que fica evidente nos versos: “Mas a Santa Engrácia não fica / como a gente pode ficar?”. A “Santa Engrácia” era uma vila onde os afroamapaenses moravam. Ao trazer essa marca lexical, o autor-criador tanto elucida as diferenças sociais e econômicas, como também identifica sua classe social, a qual não lhe permite o poder de ficar, porque não tinha condições de construir uma casa “boa”. Naquele espaço, ficariam apenas aqueles com condições de se adequar aos padrões prospectados ao conceito de cidade: para usufruir de direitos, eram exigidas certas observâncias (LOBATO, 2015).
Por esse viés, o extraverbal deixa entrever o posicionamento e as avaliações do autor-criador acerca do que acontecia na sociedade amapaense naquela época: seu penar e impotência diante do que ocorria. O conteúdo temático suscita o remanejamento das famílias, a dor da desapropriação e é entendido a partir das escolhas lexicais do plano verbal, cujos sentidos, relações e valores estão intrinsecamente relacionados ao extraverbal. A entonação do autor-criador é marcada pelo lamento de suas perdas: a casa, o coqueiro, a segurança, a proteção e a denúncia do estado diaspórico. Por isso, entendemos que o juízo de valor projetado é de injustiça, inconformismo, indignação.
Gomes e Ohuschi (2021) explicam que os tons mobilizados pelos sujeitos se presentificam em marcas estilístico-enunciativos da língua, cujos conceitos reverberam a filosofia do Círculo de Bakhtin. Nesse sentido, a escolha da palavra implica ativação de ideologias que estão tanto no subentendido como na mobilização de recursos gramaticais que expressam a valoração em dado gênero discursivo, por meio do qual o autor-criador ativa sua responsividade diante de um acontecimento social.
Diante do ocorrido, notamos que as vozes dos sujeitos, até então dispersas, encontram-se no ladrão de Marabaixo e inserem-se num novo contexto de enunciação, a roda de Marabaixo. Diante desse novo auditório social, renovam-se em sentidos e valores, fortalecendo-se à medida que é entoado/cantado, dito e repercutido para a além da roda, para além daquele cronotopo. Para Bakhtin (2016, p.49), “(...) Se uma palavra isolada é pronunciada com entonação expressiva, já não é uma palavra, mas um enunciado acabado expresso por uma palavra (...)”. Além disso, o filósofo destaca que o peso das palavras é diferente quando propagados em situações político-sociais. Consequentemente, a entonação de lamento passa a ser de afronta aos sistemas ideológicos organizados, porque reforça um juízo de reprovação das ações governamentais.
Excerto 3 Largo de São João Já não tem nome de santo Hoje é reconhecido Por Barão do Rio Branco19 A Avenida Getúlio Vargas Tá ficando que é um primor Essas casas foram feitas Pra só morar os doutor Dia primeiro de junho Eu não respeito o senhor Eu saio gritando viva Para o nosso governadorAs estrofes que compõem o excerto 3 trazem como recorte temático a transformação do lugar onde vivia o autor-criador. Traz, em seu bojo, referências ao discurso do outro, refratado por marcas linguístico-enunciativas do discurso político e ideológico hegemônico retratado como o antes e o depois. Vemos que as denominações dos lugares até então reconhecidos pela população vão sendo substituídas por outras. “Largo de São João” é apagado e em seu lugar surge a praça “Barão do Rio Branco”; os caminhos abrem passagem para as ruas, cujos nomes - “Avenida Getúlio Vargas” - rendem homenagem a quem não pertencia ao lugar; as casas deixam de ser moradas de quem nasceu e se criou no lugar, passam a ser ocupadas pelos “doutor”.
Nesse movimento, observamos como a língua investe-se de significados e sentidos à medida que as palavras passam a representar as imposições de uma ideologia sobre a outra: a ideologia governista em detrimento da ideologia do povo; o doutor compartilha valores relacionados ao letramento escolarizado, científico, técnico e por isso merece lugar melhor na sociedade, como se vê pelo termo “primor” e “essas casas foram feitas / Pra só morar os doutor”. O autor-criador não se sente incluído nessa nova organização social.
As ideologias dominantes impõem-se e apagam a memória social, cultural, o que só poderia gerar dor. O autor-criador lamenta isso e já não se reconhece na nomeação dos lugares. Suas referências de lugar, sua religiosidade, são embaçadas pelas brumas da urbanização. É o que vemos no verso: “já não tem nome de santo”, ao mesmo tempo que sua entonação em “hoje é reconhecido / Por Barão do Rio Branco” denota certo distanciamento do novo nome, que não condiz com a identidade do autor-criador.
A data mencionada - “dia primeiro” - especifica uma marca temporal que, historicamente, remete ao tempo dos começos, do recomeço. Ao ser inserida no enunciado, ganha um valor histórico, social que só pode ser preenchida pelo extraverbal: o aniversário de Janary Nunes (governador) - “dia primeiro de junho”. Uma marca que evidencia as tensões e discordâncias do autor-criador em relação às atitudes do Estado, dando materialidade à revolta enunciada: “eu não respeito o senhor”. Para Volóchinov (2019c, p.285), “(...) a expressão verbal - o enunciado - reflete a situação não apenas de modo passivo. Não, ela é a solução, torna-se sua conclusão avaliativa e ao mesmo tempo é uma condição necessária do seu desenvolvimento ideológico posterior”.
O tom de raiva é investido de coragem. Ressoado no verbo “gritando”, remete ao enfrentamento direto aos sistemas ideológicos dominantes e refrata o juízo de valor de crítica e indignação. A interjeição “viva”, em tom de exaltação, direcionada “para nosso governador”, remete, a priori, à figura de alguém popular, benquisto pelo povo, conforme refratado pelo pronome possessivo “nosso”. Destoa, contudo, do tom global do enunciado que é de crítica. Esse é um caso que carece de uma explicação ancorada no extraverbal. A priori, a última estrofe sugere uma aceitação pelo autor-criador do que lhe fora imposto, porém é preciso trazer à cena enunciativa deste estudo que tal termo é uma possível reenunciação dos verbos “morra” ou “briga” que teria sido entoado por aqueles que não concordavam com o governo, como indica Godinho (2018).
Segundo esse autor, a troca ocorreu ou porque havia dissidências entre as famílias remanejadas, ou mesmo como ação ideológica de apagamento/silenciamento dessas marcas linguístico-enunciativas. Isso pode explicar a substituição de um termo pelo outro de sentido oposto, na expectativa de apagar os efeitos decorrentes do verso “Eu saio gritando morra / Por nosso governador”. A substituição do termo “morra” por “viva” demarca claramente o juízo de valor dos enunciadores de oposição e resistência, pois essas marcas ativam sentidos e efeitos de descontentamento ante o vivenciado. Laura Ramos, bisneta de Julião Ramos, em entrevista concedida a Godinho (2018), explica que a reenunciação do verso “Eu saio gritando viva” decorreu em face à perseguição governamental. Segundo a marabaixeira, as enunciações primárias eram outras:
(...) Ele jogava muito pesado com a rapaziada. Aí pra não ficar essa coisa pesada, com eles falando no ‘Coisa’, a gente já cantava de outra forma: Dia primeiro de junho / Eu não respeito o senhor / Eu saio gritando viva / Ao nosso governador. Mas o correto era: Morra o nosso governador (RAMOS, 2018 apudGODINHO, 2018, p.347).
(...) Ladislau criou: No dia primeiro de junho eu não respeito o senhor/Eu saio gritando briga ao nosso governador. Dia 1º de junho era o aniversário de Janary. Os negros que não estavam satisfeitos não gritavam viva. Pra eles era briga (RAMOS, 2018 apudGODINHO, 2018, p.348).
O termo “morra” ou “briga” é coerente com a entonação do enunciado como um todo: o de indignação, e refrata uma avaliação não só de negação, como de reprovação e luta; já o outro termo reenunciado “viva”, por sua vez refrata uma apelação de aprovação ao governo, coerente com as premissas de um governo populista. O reenunciador, porém, não levou em conta que o todo do enunciado “fala”, e por isso é possível perceber a ruptura temática em relação ao todo temático.
Alves e Franco (2020) explicam que a reenunciação de discursos já ditos revela o caráter social da linguagem e levam os autores criadores a avaliarem os seus enunciados. Aqui, a reenunciação tem a perspectiva de mudar a valoração social em prol da ideologia de outro grupo. Volóchinov (2019b, p.262) esclarece que o “estilo do discurso interior deve determinar o estilo do discurso exterior, apesar de este exercer uma influência inversa sobre aquele”, sob o risco de a entonação soar falsa, pouco convincente.
Observamos que os aspectos axiológicos do enunciado Aonde tu vai rapaz, como o extraverbal, a entonação e os juízos de valor, demonstram a visão humana do autor-criador, refratam suas ideologias e visões de mundo. Os resultados evidenciam que as axiologias sociais no ladrão refratam um sujeito que assume papéis diferentes no seu contexto de existência e enunciação: à medida que se desloca no espaço-tempo e é atingido pelos eventos sociais, sai de uma visão/posição cotidiana passiva para outra em que se assume como voz contestadora.
Considerações finais
Neste estudo, apresentamos uma análise, em perspectiva dialógica, do enunciado Aonde tu vai rapaz, a focar os recursos linguístico-enunciativos. Compreendemos que o enunciado se configura como um texto de tradição oral e como tal, é atravessado pela ideologia do cotidiano. No entanto, dadas as circunstâncias da enunciação em seu cronotopo, o discurso cotidiano, então disperso, toma uma guinada e encorpa outros sentidos, que são valorados de forma diferente da do cotidiano, visto que assumem tons e juízos de valores combativos às ideologias organizadas, tornando-se, portanto, reenunciações discursivas investidas de outras conotações ideológicas.
A ideologia do cotidiano trazida à cena enunciativa revela a visão de mundo valorada para o autor-criador: a relação com parentes, amigos e vizinhanças, com a terra, com a moradia, com a religiosidade e com a cultura, bem como com sua própria condição cultural e étnica, que são pilares de sua identidade e tão importantes quanto as dos sistemas organizados, porém não valoradas por esses. As representações de mundo, modificadas pelos acontecimentos históricos e sociais, deixam de ser ditos e significados de forma isolada, e convergem, em uníssono, inicialmente nas rodas de Marabaixo e depois atingem toda a sociedade. Com isso, agrega força e voz, encorpa um posicionamento combativo, de enfrentamento e resistência ante os sistemas ideológicos organizados.
Nesse processo, o cotidiano foi reenunciado de outro modo, com outro tom: a terra, as plantações, a morada, a religiosidade, os amigos tornam-se signos ideológicos de luta, de resistência, de resiliência, de reexistência. O extraverbal deixa entrever os confrontos ideológicos denunciados pelo autor-criador: eurocentrismo, afrocentrismo; colonizador, colonizado; Estado, povo; urbano, rural; escrito, oral, doutores e “cabocos”. Aonde tu vai rapaz consolida-se como um posicionamento ético e responsivo, pois ao projetar a contrapalavra, ressona a impotência, a denúncia, a segregação racial e social, o apagamento cultural e identitário, o silenciamento do povo afroamapaense. Em inter-relação com os recursos linguísticos e enunciativos, a entonação refrata a dor, o lamento, a indignação, a raiva, o maldizer e expressa juízos de valores de reprovação, oposição. Em razão disso, a palavra cotidiana reenunciada passa a vibrar em outros tons e, como tal, ressona outros valores: a identidade, resistência, a resiliência, a reexistência.
Declaração de disponibilidade de conteúdo
Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.
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OLIVEIRA, E. dos S. Da tradição oral à escritura: a história contada no Quilombo de Curiaú. 2006. 195 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, 2006. Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/Busca/Download?codigoArquivo=493708 Acesso em: 16 jun. 2022.
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OLIVEIRA, E. dos S. Devoção, tambor e canto: um estudo etnolinguístico da tradição oral de Mazagão velho. 2015. 262 f. Tese (Doutorado em Semiótica e Linguística Geral) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8139/tde-22122015 101109/publico/2015_EdnaDosSantosOliveira_VCorr.pdf Acesso em: 07 jul. 2022.
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VARGAS, G. O discurso do Rio Amazonas. Revista Brasileira de Geografia, v. 4, n. 2, p.259-262, abr-jun, 1942. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/115/rbg_1942_v4_n2.pdf Acesso em: 24 jun. 2022.
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VIDEIRA, P. L. Batuques, folias e ladainhas [manuscrito]: a cultura do quilombo do Cria-ú em Macapá e sua educação. 2010. 260 f.- Tese (Doutorado em Educação Brasileira) - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2010. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/3177 Acesso em: 24 jun. 2022.
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» http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/46983 - VOLÓCHINOV, V. N. Palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica [1926]. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução do russo, ensaio introdutório e notas Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. 1ed. São Paulo: Editora 34, 2019a. p.109-146.
- VOLÓCHINOV, V. N. Estilística do discurso literário I: O que é a linguagem/língua? [1930] In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução do russo, ensaio introdutório e notas Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. 1ed. São Paulo: Editora 34, 2019b. p.234-265.
- VOLÓCHINOV, V. N. Estilística do discurso literário II: A construção do enunciado [1930]. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução do russo, ensaio introdutório e notas Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. 1ed. São Paulo: Editora 34, 2019c. p.266-305.
- VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2021 [1929].
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2
Tese de Doutorado em andamento, do Programa de Pós-Graduação em Letras - PPGL, da Universidade Federal do Pará (UFPA), que desenvolve um estudo teórico-prático sobre a análise linguística em perspectiva dialógica na formação continuada de professores do Ensino Fundamental na Amazônia amapaense”. O ladrão de marabaixo foi o gênero discursivo escolhido para o trabalho com os professores, por ser uma manifestação cultural afroamapaense, tombada como patrimônio imaterial do Brasil, mas ainda pouco presente nos contextos escolares do Estado do Amapá.
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3
Ladrões de Marabaixo são versos cantados de forma ritmada ao som do batuque de tambores durante o Marabaixo, a mais significativa expressão cultural e popular destes rincões da Amazônia amapaense. Sua expressão envolve religiosidade, cultura, africanidades e a presença de elementos como as ladainhas, as procissões, a dança e a poesia (BRASIL, 2018). Discorremos mais especificamente sobre o assunto na seção 2.
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4
Como se trata de conteúdo oriundo da cultura oral popular, há registros de outras versões do mesmo ladrão de Marabaixo.
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5
O título do enunciado está grafado tal qual seu registro no Dossiê do Marabaixo (IPHAN, 2018) e, por ser oriundo da cultura popular oral, evidencia sua natureza. Por essa razão, optamos por manter a ausência de concordância e de sinais de pontuação em respeito à sua identidade.
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6
Para ampliar a compreensão do tema, sugerimos a leitura de Pereira e Oliveira (2020, cf. referências).
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7
Para conhecer mais sobre o Marabaixo, acesse https://www.youtube.com/watch?v=ba4K9uNMO90 (IPHAN, 2019). Acesso em 12.06.2023
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8
Poema em forma de diálogo ou de solilóquio sobre temas rústicos, cujos intérpretes são, em regra, pastores.
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9
A pesquisadora faz essa classificação à luz de Hymes (1972;1975 apud OLIVEIRA, 2015), considerando como categorias a situação de fala, o evento de fala e o ato de fala.
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Oliveira (2015) categoriza os cantos entoados no Marabaixo como religiosos e profanos. Estes são relacionados ao Marabaixo enquanto atividade cultural que envolve a dança, os ladrões de Marabaixo, o toque dos tambores e caixa de Marabaixo, as comidas e bebidas, como a gengibirra - cachaça e gengibre e aqueles relacionados aos cânticos religiosos. Cid e Coutinho (2020) trazem a voz de uma cantadeira de Marabaixo para explicar que o termo é avaliado como “aquilo que não é de Deus”, sentido não aceito pelos marabaixeiros, que se identificam melhor com o termo lúdico, pois significa alegria do encontro. Em respeito à opção dos marabaixeiros, adotamos, daqui para frente, o termo “lúdico”.
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11
Batuque é outra manifestação cultural do Amapá, própria de comunidades remanescentes do quilombo do Curiaú e que se caracteriza por ter ritmo mais acelerado que o Marabaixo, acompanhado apenas por tambores e pandeiros, enquanto no Marabaixo há, também, a caixa de Marabaixo (OLIVEIRA, 2006).
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12
Cantos do Batuque (OLIVEIRA, 2015).
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13
Curiaú é uma comunidade oficialmente reconhecida como remanescente de quilombo e que integra a Área de Preservação Ambiental - APA do Curiaú e Área de Relevante Interesse Ecológico e Cultural - ARIEC. É considerada uma comunidade tradicional, a envolver a relação socioambiental, as expressões religiosas e culturais como o Batuque e o Marabaixo, ambos de origem afro-brasileira (OLIVEIRA, 2006).
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14
Historicamente, o bairro do Laguinho é um território de maioria afrodescendente e conhecido como “Nação Negra”. Foi no contexto de mudança para o lugar que o Marabaixo se fortaleceu, tornando o bairro um dos mais representativos da cultura do Marabaixo em Macapá-AP.
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15
Atual bairro Santa Rita. Naqueles idos, esse lugar ficava muito longe do centro urbano de Macapá. Os discordantes/resistentes a irem para o Laguinho fizeram essa opção como ato de resistência, pois não queriam ver nem de longe o governador. Nesse lugar, existia uma mata que o separava da Cidade e passou a ser denominado de Favela (LUNA, 2017).
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16
O Marabaixo foi considerado como profano pela Igreja Católica.
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17
Diz-se do que tem “garganta” boa, voz para puxar o ladrão nas rodas de Marabaixo: “os puxadores - são os que são dotados de bom “gargo”, como diz Sebastião. Isto significa ter boa voz, ou seja, um tom de voz alto e firme o suficiente para ser ouvido para além do som dos instrumentos (...)” (OLIVEIRA, 2006, p.47).
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18
Armador de rede; instrumento/lugar de atar a rede para se deitar.
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19
Em 1898, José Maria da Silva Paranhos Júnior, Barão do Rio Branco, foi encarregado de resolver um assunto diplomático, a questão do Amapá com a França. Apresentou seus estudos à sentença arbitral, de 1º de dezembro de 1900, a qual foi favorável ao Brasil e o nome de Rio Branco alcançou plano de grande popularidade.
Parecer I
Sobre o autor do parecerSCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGSParecer I
1. Adequação do título ao artigo:
O título do artigo é adequado, pois remete ao dado/unidade de análise, ao objetivo do trabalho e à perspectiva teórica adotada.
2. Explicitação do objetivo do trabalho e coerência de seu desenvolvimento no texto:
Quanto ao objetivo do trabalho, “refletir sobre os conceitos axiológicos do extraverbal, da entonação e do juízo de valor imbricados em recursos linguístico-enunciativos no enunciado ladrão de Marabaixo, Aonde tu vai rapaz” necessita ser mais bem delineado, para que possa responder à proposta de análise e aos pressupostos teórico-metodológicos da perspectiva teórica adotada. No trabalho, empreende-se um movimento de análise sob perspectiva dialógica. Os conceitos axiológicos são orientadores da proposta de análise e não é sobre eles que se reflete, mas sobre os sentidos do enunciado em sua inserção social. Assim, a semântica do verbo escolhido para consubstanciar o objetivo - “refletir” - não reponde integralmente ao desenvolvimento do trabalho por duas razões: a) o objetivo do artigo não é refletir sobre os conceitos axiológicos, mas analisar o enunciado eleito, à luz da orientação dos conceitos axiológicos, pois sob a guia de uma análise de perspectiva dialógica, categorias prontas não são aplicáveis, ou foco de depreensão, mas apenas orientam o movimento interpretativo, que visa a apreensão do(s) sentido(s). Assim, sugerimos a reelaboração do objetivo geral preconizado no resumo e na introdução do texto, a considerar o que pontuamos.
3. Conformidade com a teoria proposta, demonstrando conhecimento atualizado da bibliografia relevante:
O trabalho apresenta fundamentação teórica consistente e fundamentada em discussões originais de Bakhtin e o Círculo, coadunadas a interpretações de pesquisadores brasileiros caudatários. Lançamos, no entanto, algumas observações sobre palavras e expressões empregadas, para que os autores reflitam sobre a produtividade e adequação de seu uso. Passamos a numerá-las, com indicação de páginas, a apresentar comentários reflexivos a serem considerados pelos autores.
1) p.2 - refrações valorativo-axiológicos - Se mantiverem o termo composto, vide regra de concordância nominal. Entendemos “axiológico” como conceito que envolve a valoração e sua concretização entonacional em dado extraverbal. Nem toda análise que tem o conceito orientador da valoração como baliza à análise envolve a abordagem da entonação. No entanto, se a análise envolve a abordagem de aspectos entonacionais como orientação para produção de sentido(s), a entendemos como axiológica. Assim, bastaria o termo “refrações axiológicas”, a partir do qual já se subentende o envolvimento da valoração.
2) p.2 - No trecho, “Essa reflexão vem ao encontro de uma perspectiva de homem”. A teoria do Círculo foi produzida praticamente na primeira metade do século XX. Os interpretadores precisam atualizá-la, a responder aos reclames da vida contemporânea. Assim, em razão de estarmos num cronotopo em que os estudos de gênero enquanto construção social, para além do binarismo de sexo, vêm de encontro à cultura patriarcal, inclusive a simbolicamente alimentada pelos usos da linguagem, sugerimos não usar “homem” como sinônimo de “sujeito” ou como sinônimo de “humanidade”, embora haja, nos escritos do Círculo várias menções a “homem”.
3) p.3 - “aspectos contextuais extraverbais”. Entendemos a expressão como redundante, porque o extraverbal da enunciação envolve o que se entende por contexto, ou o que em termos dialógicos estamos entendendo como situação imediata de interação, que, por sua vez, é somada à situação ampla, para formar a situação extraverbal do enunciado, seu subentendido, sua atmosfera axiológica.
4) p.4 - “em vista aspectos, explícitos e/ou subtendidos”. Suprimir a vírgula e eliminar a barra “e /ou”, pois em perspectiva dialógica não existe análise que dissocia o verbal/semiótico do subentendido (extraverbal). Em nossa visão, também não se trata de “explícito”, termo que advém de outra orientação teórica. Não há correspondência direta e estanque entre termos advindos de diferentes orientações teóricas. Tampouco o subententido (extraverbal) da perspectiva dialógica corresponde à ideia de subtendido de outra orientação teórica. Portanto, a ideia de concretude linguística ou verbal/semiótica, a ideia de material, não pode ser equiparada à noção de explícito, ou reduzida à noção de “visível”, como aparece também no texto. De todo modo, não é possível considerar que uma análise dialógica pode se dar nos termos opcionais de se colocar em foco o linguístico/semiótico e/ou o subentendido (extraverbal), ou o explícito e/ou subtendido, como preferiram os autores. O detalhe da escolha vocabular e do conectivo com barra, a sugerir opção, compromete os fundamentos da teoria.
5) p.6 - “a avaliação da situação, inerente aos coparticipantes da ação comunicativa, que avaliam constantemente - mesmo que inconscientemente - o outro...” Nos termos da teoria dialógica, tanto nos escritos de Volóchinov quanto nos de Bakhtin e Mediédev, o sujeito não avalia inconscientemente, mas a partir de sua consciência socieiodeológica, constituída no processo de interação discursiva entre sujeitos datados e situados, pela mediação dos signos ideológicos. A noção de inconsciente advém de outra orientação teórico-metodológica e não pode ser trazida para uma discussão de perspectiva dialógica, sob pena de estar contrariando a própria teoria. Então, em nossa visão, é necessária uma correção obrigatória no que se refere ao termo utilizado.
6) p.8 - “Como material constituído de palavra, adere e pode se remeter a outras formações discursivas e à memorias social.” Formação discursiva não é uma categoria própria do dialogismo. Pertence à vertente da AD francesa. Seria importante os autores pensarem em termos mais dialógicos desvinculados, como “posicionamentos axiológicos ou partidas ou orientações ideológicas, respectivamente”. Defendemos não haver correspondência direta entre termos de diferentes orientações teóricas e, portanto, o empréstimo de termos deve ser feito com o devido cuidado.
Comentário adicional:
Além dessas especificações, chamamos atenção para dois aspectos complementares à teoria:
7) A discussão empreendida pelos autores acerca dos conceitos de “cronotopo” e “ideologia” são muito incipientes. Houve, no resumo, promessa de discussão desses conceitos, por sua importância à análise. No caso da discussão que envolve o conceito de ideologia, à página 12 do artigo, por exemplo, seria necessário explorar um pouco mais no que se constitui a própria ideologia do cotidiano e como ela se relaciona com a ideologia enformada, pois é um aspecto teórico de relevância para compreender a importância do trabalho, visto o enunciado de análise ser uma expressão da cultura popular. Quatro linhas do artigo tentam definir ideologia cotidiana e enformada, sem definição do que representa uma e outra e sem explicação da relação de mútua influência entre elas. Os autores, ainda, poderiam deixar no texto, referências importantes que ajudam a remeter o leitor a trabalhos que abordam com maior precisão os conceitos citados.
4. Originalidade da reflexão e contribuição para o campo de conhecimento:
A contribuição é original e tem grande relevância, especialmente porque o enunciado analisado é uma expressão da cultura popular, tão cara ao Círculo, por sua importância nas relações sociais. Embora tenhamos feito apontamentos sobre aspectos teóricos do texto, a análise é bem feita, rica e responde aos delineamentos teórico-metodológicos balizadores da discussão. Daí a pertinência do texto.
5. Clareza, correção e adequação da linguagem a um trabalho científico:
O texto é bem escrito e há clareza e adequação da linguagem ao trabalho científico, embora tenha, obrigatoriamente, que passar por uma revisão de língua, para sanar, especificamente, duas pequenas inadequações que não comprometem a riqueza da discussão: alguns casos de concordância nominal e adequação do plural de palavras compostas. Todos esses aspectos ficam apontados na forma de destaque e comentários no texto original, que segue anexado a esta avaliação.
Em face às ponderações expressas neste parecer, recomendamos que o trabalho seja aprovado com restrições, embora estas se constituam em detalhes que podem ser facilmente corrigidos pelos autores. No entanto, algumas das ponderações teóricas explicitadas não podem se desconsideradas, em especial aquelas nas quais apontamos incongruências teóricas em razão de escolhas vocabulares/conceituais dos autores. APROVADO COM RESTRIÇÕES [Revisado]
- recomendação: aceitar
Histórico
-
Parecer recebido em
24 Fev 2023
Parecer II
Sobre o autor do parecerSCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGSParecer II
Comentários Gerais
Nosso parecer segue as orientações de avaliação propostas nas informações da revista para os avaliadores.
Adequação do título ao artigo - O título está adequado à análise realizada no artigo, possibilitando ao leitor uma imagem inicial de seu conteúdo.
Explicitação do objetivo do trabalho e coerência de seu desenvolvimento no texto - O objetivo do artigo está explicitado na Introdução e apresenta coerência em seu desenvolvimento na análise realizada pelos autores.
Conformidade com a teoria proposta, demonstrando conhecimento atualizado da bibliografia relevante - Nos vários itens apresentados é possível compreender que o referencial proposto diz respeito a noções presentes nas obras de M. Bakhtin e V. Voloshinov, as quais serão devidamente utilizadas na análise dos dados. Acrescente-se que a bibliografia sobre o tema é esclarecedora de seu significado e de sua contextualização no espaço e tempo.
Originalidade da reflexão e contribuição para o campo de conhecimento - O artigo contribui com uma reflexão relevante para o campo de conhecimento dos estudos da linguagem, principalmente se considerarmos o campo da Linguística Aplicada, no qual cada vez mais surgem reflexões sobre temas que visam dar visibilidade a questões relacionadas à desigualdade social, em várias de suas dimensões.
Clareza, correção e adequação da linguagem a um trabalho científico - Do ponto de vista da norma culta, há adequação da linguagem, respeitando-se os parâmetros exigidos ao gênero discursivo “artigo científico”.
Conclusão: A partir dessas observações, consideramos que o presente texto atende às exigências de um artigo científico, dessa forma, somos de parecer favorável à sua publicação. APROVADO
Parecer editorial
Considerando os pareceres acima, o artigo está APROVADO COM RESTRIÇÕES. Solicitamos que as autoras reescrevam o texto, com atenção aos problemas apontados principalmente pelo primeiro parecerista.
Informamos, ainda, que existe a possibilidade de interação com a primeira parecerista - Dra. Adriana Delmira Mendes Polato, disponibilizada em outro email.
- recomendação: aceitar
Histórico
-
Parecer recebido em
24 Fev 2023
Parecer III
Sobre o autor do parecerSCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGSParecer III
“O tambor fala, a palavra cria”: ressonâncias valorativas no ladrão de Marabaixo Aonde tu vai rapaz
Trata-se de um relevante trabalho analítico em perspectiva dialógica, que busca compreender a constituição axiológica de um enunciado do gênero ladrão de Marabaixo, intitulado “Aonde tu vai rapaz”. Como caraterizado em nota de rodapé do trabalho, “os Ladrões de Marabaixo são versos cantados de forma ritmada ao som do batuque de tambores durante o Marabaixo” (BRASIL, 2018) e constituem-se numa expressão cultural e popular da Amazônia amapaense.
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O título do artigo é adequado, pois remete ao dado de análise, ao objetivo do trabalho e à perspectiva teórica adotada.
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O objetivo do trabalho está bem delineado, refrata-se e reflete-se a todo o desenvolvimento da proposta, nas dimensões teórica, metodológica e analítica.
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O trabalho apresenta fundamentação teórica consistente e bem fundamentada em discussões originais de Bakhtin e o Círculo, as quais são coadunadas a interpretações de pesquisadores brasileiros partidários da mesma perspectiva dialógica de trabalho com a linguagem.
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A contribuição é original e tem grande relevância aos estudos da linguagem/cultura, especialmente porque o enunciado analisado é uma expressão da cultura popular, tão cara a Bakhtin e o Círculo, uma vez que se liga à ideologia cotidiana, cuja importância nas relações sociais se assenta na dinamicidade própria às vivências e seu caráter transformador. Ademais, o estudo ainda prospecta a caracterização de um gênero discursivo antes não estudado, o Ladrão de Marabaixo, que envolve em sua expressão elementos de religiosidade, cultura, africanidades, dança e poesia.
-
O texto é bem escrito e há clareza e adequação da linguagem ao trabalho científico.
Em face às ponderações expressas neste parecer, recomendamos que o trabalho seja aprovado. APROVADO
- recomendação: aceitar
Histórico
-
Parecer recebido em
06 Abr 2023
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Set 2023 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2023
Histórico
-
Recebido
05 Jan 2023 -
Aceito
18 Jun 2023