Resumo:
Este artigo apresenta análise da concepção e das práticas escolares de oralidade na Proposta Curricular de Língua Portuguesa da rede municipal de ensino de Juiz de Fora (MG). Toma como base os pressupostos teóricos do interacionismo sociodiscursivo, conjugado à perspectiva do continuum oralidade-letramento, bem como os eixos propostos para o trabalho com a oralidade em sala de aula, por meio dos quais se defende o ensino da oralidade com vistas a uma formação cidadã. Fundamentando-se em uma concepção interacionista de linguagem, consideram-se os gêneros como objetos de ensino, que carregam significações sociais e orientam a ação de linguagem. Na escola, para que seja possível ampliar as capacidades de linguagem dos alunos, os gêneros trazem a possibilidade de aprendizagem por meio de situações
discursivas reais. Propõe-se análise documental, estabelecendo categorias baseadas nos pressupostos orientadores do trabalho didático com a oralidade. Os dados indicam que: a) o documento apresenta uma concepção interacionista de linguagem, alinhando-se aos princípios do interacionismo sociodiscursivo; b) tal concepção sustenta uma proposta de ensino de oralidade embasada na perspectiva do continuum e articulada à visão não dicotômica da relação oral-escrito; e c) os gêneros textuais são centrais no desenvolvimento de capacidades de linguagem, configurando-se uma proposta de aprendizagem do oral autônomo. Não obstante, os dados revelam ausência de indicação de atividades sobre retextualização e reflexão linguística no eixo da oralidade, evidenciando predominância da produção oral.
Palavras-chave: oralidade; gêneros textuais; proposta curricular
Abstract:
This paper analyzes the notion and school practices of orality in the Curricular Proposal for the Teaching of Portuguese in the municipal education system of Juiz de Fora (MG). This analysis is based on the theoretical assumptions of socio-discursive interactionism, associated with the perspective of the orality-literacy continuum, as well as the grounds proposed to approach orality in the classroom, through which there is a defense of the orality teaching as means for a citizen formation. Grounded in an interactional notion of language, genres are understood as teaching devices, which carry social meanings and also guide the language action. In school, genres provide a possibility to learn through real discursive situations, enabling an expansion of the students' language skills. Thus, this research proposes a document analysis, defining categories from the principles that guide the didactic work with orality. Data indicate that: a) the document presents an interactional conception of language, aligned to the principles of socio-discursive interactionism; b) such conception supports an orality-teaching proposal based on the continuum perspective and articulated to a non-dichotomous view of the oral-written relation; c) genres are key to the development of language skills, constituting an independent oral learning proposal. Nevertheless, data show no re-textualization activities and linguistic reflection over orality, highlighting the prevalence of the oral production.
Keywords: orality; textual genres; curricular proposal
Introdução
A oralidade como proposta didática para trabalho escolar com a língua materna tem sido tema recorrente na interface linguagem e educação nos últimos anos. A despeito da pouca produção atual no tocante ao tema, se comparada, por exemplo, com as práticas de escrita, a oralidade tem sido focalizada como importante fator de socialização humana e participação na vida cidadã. Ampliar as capacidades de linguagem dos alunos na oralidade é um dos objetivos da educação linguística (Bagno; Rangel, 2005).
Com base nisso, trazemos, neste artigo, fundamentação teórica que defende o ensino de oralidade na escola básica, para, em seguida, apresentar resultado de pesquisa1 que buscou investigar o eixo da oralidade no documento Proposta Curricular da Secretaria de Educação de Juiz de Fora (Juiz de Fora, 2012). A prefeitura de Juiz de Fora começou a elaboração da proposta curricular em 2010 e a publicou em 2012, considerando fundamentos discursivos pertinentes para o ensino de língua portuguesa (LP), consonantes com as propostas nacionais de ensino de LP e preceitos da linguística aplicada, conforme já exposto em Magalhães e Ferreira (2014).
Este recorte que ora apresentamos visa explicitar uma análise das concepções e propostas metodológicas dos eixos que enfocam o desenvolvimento das capacidades linguísticas na modalidade oral. Dessa forma, destacando mais especificamente o eixo da oralidade, apresentamos referencial baseado em Bronckart (1999; 2006), Marcuschi (2001), Leal e Gois (2012), entre outros. Em seguida, realizamos uma breve exposição do documento sob crivo e, por fim, a análise, centrada na relação entre as concepções e a proposta de eixos organizadores. Com este estudo, esperamos poder contribuir com mais uma reflexão, que tem por objetivo a melhoria do ensino de LP na escola básica.
Ensino de língua portuguesa e oralidade
Uma das funções da escola é formar cidadãos. Nas diferentes disciplinas que compõem os currículos escolares, em que as práticas pedagógicas são desenvolvidas, existem objetivos de aprendizagem diversos e específicos das áreas do conhecimento.
Na educação linguística, que envolve reflexões sobre a língua e o ensino de LP, privilegiamos uma formação que envolve um
[...] conjunto de fatores socioculturais que, durante a existência de um indivíduo, lhe possibilitam adquirir, desenvolver e ampliar o conhecimento de/sobre sua língua materna, de/sobre outras línguas, sobre a linguagem de um modo geral e sobre todos os demais sistemas semióticos. (Bagno; Rangel, 2005, p. 63).
Nessa perspectiva de educação, o ensino de LP deve privilegiar a reflexão sobre a heterogeneidade da língua e priorizar objetivos claros, alguns dos quais traçados por Rangel (2010), como desenvolver: a) proficiência oral em produções ligadas à esfera pública; b) habilidades de leitura e escrita para atuação social e cidadã; c) reflexão linguística para monitoramento da própria produção na oralidade e na escrita; d) conhecimento sobre a língua que reverbere em atitudes e valores éticos.
Objetivos de ensino são sempre reavaliados em função das mudanças sociais e das pesquisas no campo da educação. Os relativos ao ensino de LP estão sendo redirecionados desde a década de 1980, e várias foram as publicações de autores2 e os documentos oficiais3, bem como políticas de formação de professores4, que defenderam uma concepção de ensino discursiva para sustentar tais objetivos. Atualmente, há uma diversidade de perspectivas de ensino de linguagem, fato que nos indica alguns consensos e dissensos, que não vamos abordar aqui, sobre os eixos centrais, seus objetos de aprendizagem, fruto das intensas discussões empreendidas na esfera acadêmica desde então.
Inserir o aluno no mundo da escrita por meio do letramento escolar em relação com os outros letramentos sociais é uma tarefa da escola, de modo a ampliar seu domínio da língua na oralidade e na escrita em sua multiplicidade de aspectos contextuais, com vistas à atuação social plena. Referimo-nos ao imbricamento entre oralidade e escrita, de modo que o letramento escolar deve envolver práticas reais de uso da língua, por meio dos gêneros orais e escritos. O domínio da língua de prestígio, a norma culta, que se manifesta na oralidade e na escrita nos diferentes contextos de atuação cidadã, é objetivo da escola, materializado em atividades de análise5 linguística (Geraldi, 1984; Mendonça, 2006), de modo a fazer o aluno refletir sobre a linguagem produzida nas diferentes esferas da sociedade.
Tanto na escola quanto fora dela, é imprescindível que o aluno domine as operações discursivas de sua língua, a fim de construir o conhecimento nas diferentes disciplinas escolares, bem como atuar na qualidade de sujeito em suas atividades culturais e sociais e em suas futuras atividades profissionais: em todas essas esferas, estamos em contato direto com operações linguísticas das mais diversas. Assim, para aprender a agir socialmente por meio da linguagem, necessário se faz promover, na escola, momentos de experiências de uso da língua na modalidade oral e escrita, que se materializam na forma de gêneros textuais.
Os gêneros textuais, por meio dos quais interagimos socialmente, são um constructo vastamente estudado na linguística aplicada contemporânea por serem complexos, possibilitando a interação entre os sujeitos pela linguagem. Certamente há diferentes correntes de estudos de gêneros no Brasil atualmente, cujos conceitos e desdobramentos para o ensino de línguas são muito diversos. Entre as discussões das diversas correntes, parece ser consenso a defesa de que o gênero deve ser o objeto central do ensino para a realização de práticas de leitura e compreensão/escuta, produção oral ou escrita e análise linguística, de modo que o discurso seja analisado em sala de aula. Tomamos os conceitos de gênero como “tipos relativamente estáveis de enunciado”, gerados nas esferas de atividade humana (Bakhtin, 1997, p. 285); o gênero é uma ação de linguagem (Bronckart, 2006, p. 129), realizada em modelos pré-construídos legados pelas gerações anteriores e materializada em textos. Como o gênero é construído em uma atividade coletiva, Motta-Roth afirma que:
Se aprender linguagem é o mesmo que analisar discurso, então tanto para a pesquisa quanto para o ensino, as representações sobre a situação de ação de linguagem são um ponto de partida para qualquer ação. Essas representações são uma base de orientação para decidir o gênero do texto, “os tipos de discurso, as sequências, os mecanismos de textualização e os mecanismos enunciativos que comporão o gênero de texto escolhido” (Halliday, 1985) (...) À Escola, cabe oferecer condições de acesso à explanação e à compreensão do modo como situações de interação social mais e menos institucionalizadas acontecem, se organizam e se desenvolvem, como e por quem os papéis são determinados aos participantes, e os significados disponíveis na língua. (Motta-Roth, 2008, p. 375).
Assim, o ensino de oralidade deve privilegiar os gêneros orais da esfera pública, por meio de atividades em que as relações entre fala e escrita sejam vistas na heterogeneidade constitutiva da língua. Para atingir o objetivo de ampliar a capacidade de interação pela oralidade, os gêneros orais da esfera pública como objeto de ensino sustentam a análise e sistematização de conhecimento sobre a heterogeneidade da fala e da escrita, bem como a proposição de situações de produção oral e escuta.
Apesar de essa importância ser atestada, se verificarmos a produção de experiências e estudos com a escrita na escola, veremos que a oralidade no ensino tem sido menos abordada (Bueno; Costa-Hübes, 2015). Ao longo da década de 1990, tivemos trabalhos que defenderam o oral como objeto de ensino (Marcuschi, 1998; Castilho, 1999), ainda que se atestasse que os alunos já sabem falar quando chegam à escola, o que encaminhou a discussão para que as intervenções escolares fossem feitas a fim de ampliar as possibilidades de uso da oralidade mais monitorada (Bortoni-Ricardo, 2004), como em situações de interação em entrevistas, debates, apresentações orais, palestras, entre outras.
Nos anos seguintes, pesquisadores aprofundaram a discussão em torno dos livros didáticos (Silva; Mori-de-Angelis, 2003; Leal; Gois, 2012), das concepções de oralidade presentes nos manuais e em algumas pesquisas com professores (Leal; Gois, 2012; Costa-Maciel, 2014). A obra Gêneros orais e escritos na escola, traduzida em 2004 para a língua portuguesa, contribui bastante para mostrar a transposição didática dos gêneros orais como objetos de ensino (Schneuwly; Dolz, 2004). Nesse avanço, somando-se às pesquisas sobre ensino de gramática e análise linguística, ficou mais evidente que a oralidade deve ser ensinada em uma perspectiva reflexiva (Melo; Cavalcante, 2007).
Documentos oficiais também foram responsáveis por disseminar essas ideias. Os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN (Brasil. MEC, 1998), por exemplo, definiram as atividades de produção oral, escuta e análise linguística da oralidade como eixos no ensino da oralidade em língua materna. As Orientações Curriculares para o Ensino Médio (Brasil. MEC, 2006) ampliam a abordagem da oralidade, mostrando que, além de aprender a falar e compreender por meio dos gêneros textuais no eixo da oralidade, as atividades de retextualização permitem ampliar a reflexão sobre a relação oral-escrito, que também deve ser enfocada. Dois compêndios recentemente publicados também mostram progressos importantes na pesquisa e nas práticas com os gêneros orais na escola (Leal; Gois, 2012; Bueno; Costa-Hübes, 2015).
Posto que a oralidade é um dos elementos centrais da educação linguística, seus desdobramentos estão nas propostas curriculares; entretanto, as dúvidas sobre as estratégias de ensino da oralidade permanecem, fato que justifica nossa pesquisa.
Leal e Gois (2012), no intuito de contribuírem para a discussão sobre as práticas pedagógicas, argumentam que devemos estabelecer objetivos didáticos explícitos, para nos orientarmos no trabalho pedagógico, evitando que as atividades sejam centradas no que tradicionalmente foi feito: conversas livres, discussões em grupo, resposta em voz alta e leitura oral, atividades que não permitem ir além dessa interação que se realiza em sala de aula, uma vez que nelas o oral não é o objeto de ensino. Para além disso, defendem que quatro dimensões devem ser observadas, sob a mediação pedagógica do professor:
- valorização de textos de tradição oral; - oralização do texto escrito; - variação linguística e relações entre fala e escrita; - produção e compreensão de gêneros. (Leal; Gois, 2012, p. 16).
Na primeira dimensão, sublinha-se uma necessidade de se valorizar a cultura oral que o indivíduo traz de sua comunidade, para que se reconheça a importância da linguagem oral nas expressões culturais diversas do País. Além disso, por meio de receitas culinárias, contos de assombração, entre outros gêneros que circulam na comunidade, os discentes aprendem a valorizar mais sua cultura e, consequentemente, a valorizar-se mais. Por meio do trabalho com gêneros, como trava-línguas, parlendas, brincadeiras de roda, os alunos desenvolvem, também, aspectos fundamentais para expressão oral, como a articulação de palavras e fluência. Assim, a valorização de textos de tradição oral é de suma importância nos processos que envolvem o desenvolvimento de capacidades de linguagem. Trata-se de partir do que o aluno já sabe para conhecer e apropriar-se do novo, considerando legítimo seu dizer.
Situada entre o eixo da leitura e escrita, a segunda dimensão proposta é a oralização do texto escrito. Para Leal e Gois (2012), essa faceta é fundamental para o desenvolvimento de aspectos como a fluência de leitura, entonação, gestualidade, postura corporal etc. Talvez essa seja a dimensão mais trabalhada na escola, infelizmente, por meio da leitura de textos em voz alta, assim como da resolução de exercícios. Assim, é válido ressaltar a importância desse processo para integrar leitura, escrita e oralidade e fazer com que o discente tome consciência da necessidade de analisar sua prosódia, seu tom de voz, suas pausas, entre outros aspectos, para produzir texto com sentido, sobretudo em projetos mais amplos - como leitura oral na confecção de uma entrevista com alguém da comunidade ou nas apresentações orais ou debates escolares -, bem como na vida fora da escola.
No que diz respeito à terceira dimensão, as autoras ressaltam que um dos pontos centrais no estudo da fala é a variação, portanto, a reflexão sobre a relação oral-escrito configura-se de importância fundamental no estudo da oralidade. É preciso trazer à tona os diferentes dialetos e as variedades da língua, perpassando a difícil tarefa de desconstruir a forma “correta” de falar, em busca de uma perspectiva das diferenças. Somente por meio da reflexão sobre os diferentes modos de falar será possível combater o preconceito linguístico. Assim, é dever da escola levar aos discentes a noção de adequação linguística, para que contem com o máximo possível de ferramentas que lhes possibilitem participar dos eventos discursivos em que os usos linguísticos mais formais são requeridos. Segundo Bagno (2002, p. 80):
O objetivo da escola, no que diz respeito à língua, é formar cidadãos capazes de se exprimir de modo adequado e competente, oralmente e por escrito, para que possam se inserir de pleno direito na sociedade e ajudar na construção e na transformação dessa sociedade - é oferecer a eles uma verdadeira educação linguística.
Portanto, é fundamental que a escola adote como objeto de ensino as formas mais monitoradas de interação oral, vinculadas à reflexão sobre as menos monitoradas, o que pode facilitar o aprendizado pelo respeito ao aluno que traz, nos seus traços identitários, as variedades populares. Toda essa reflexão deve ser realizada paralelamente a um debate sobre a integração existente entre a fala e a escrita, consideradas, por muito tempo, modalidades muito distintas (Ong, 1998). Hoje, já é consenso que fala e escrita são modalidades em que realizamos nossas práticas sociais de forma integrada, que precisam ser trabalhadas de maneira equilibrada, a fim de que o aluno consiga atuar nas diferentes esferas sociais, utilizando uma e outra no momento oportuno, sem que sejam colocadas em perspectivas dicotomizantes, que valorizem apenas a diferença entre ambas. Como bem afirmam Leal e Gois (2012, p. 19):
É fundamental, portanto, que os alunos percebam as semelhanças entre alguns gêneros orais e escritos, tais como, entre o conto oral e o conto escrito; entre as instruções de jogos escritas e as instruções orais sobre como jogar; entre as reclamações orais e as cartas de reclamação, entre outros. É importante, também, reconhecer que, na produção de alguns gêneros escritos, são recolhidos fragmentos de textos produzidos oralmente, como nas notícias e reportagens.
Assim, fala e escrita materializam os gêneros considerando necessidades e atividades socioculturais em que os alunos estão inseridos.
Uma atividade central para o trabalho de reflexão sobre fala e escrita é o processo de retextualização. Esse processo pode ser definido como a transformação do texto oral em escrito e vice-versa. De acordo com Marcuschi (2001), esse processo não é mecânico,
[...] já que a passagem da fala para a escrita não se dá naturalmente no plano dos processos de textualização. Trata-se de um processo que envolve operações complexas que interferem tanto no código, como no sentido e evidenciam uma série de aspectos nem sempre bem compreendidos na relação fala e escrita (Marcuschi, 2001, p. 46).
É possível definir retextualização como uma modificação mais ampla do texto, já que há possibilidade de alteração até mesmo do meio em que é produzido e veiculado. É o que acontece ao transformar uma entrevista oral para uma notícia escrita, por exemplo, ou um texto impresso para uma notícia radiofônica.
Por meio desse processo, podemos explicitar as transformações realizadas de uma modalidade à outra, de modo a fazer os alunos compreenderem fenômenos da linguagem. Trata-se de um excelente exercício de análise linguística (Mendonça, 2006). Ribeiro (2016, p. 13) afirma que:
Em se tratando desse tema, exercício conhecido é, justamente, “transformar” um texto oral em texto escrito. A atividade, conhecida de muitos professores, ajuda o estudante a refletir sobre processos de edição - palavra fundamental no meu dicionário de professora de redação - necessários ao texto escrito, tendo-se como fonte o texto oral; mas também ajuda a compreender os processos textuais da oralidade, assim como levanta questões a respeito das interferências (desejáveis ou não) da oralidade na escrita e vice-versa (e o vice-versa também é fundamental).
Além disso, é pertinente frisar que, ao realizar o trabalho de retextualização, não se pretende fazê-lo para atestar a superioridade da escrita, mas tornar explícitos os mecanismos linguísticos da fala e da escrita, de tal modo que os alunos concluam que, embora façam uso de um mesmo sistema linguístico, as modalidades falada e escrita estão integradas nos usos que fazemos da língua, apresentando certas particularidades. O essencial, então, é abarcar essas singularidades no ensino e demonstrar aos discentes que não existem modalidades “puras” (textos puramente orais ou puramente escritos), nem suportes ou modalidades melhores ou piores que outras, mas apenas diferentes, que se complementam naturalmente no uso, a serviço do sentido que se pretende atingir na interlocução.
Ao abordar essa perspectiva, concluímos que, para tratar a oralidade como objeto autônomo de ensino, é preciso apontar a relação com o eixo da escrita. Dolz, Schneuwly e Haller (2004, p. 199) mostram que a perspectiva do oral autônomo toma os gêneros orais
[...] como objetos de ensino e aprendizagem em si. Não constituem um percurso de passagem para aprendizagem de outros comportamentos linguísticos (a escrita ou a produção escrita) ou não-linguísticos (em relação com outros saberes disciplinares). Também não estão subordinados a outros objetos de ensino-aprendizagem.
A quarta dimensão arrolada pelas autoras está relacionada à produção e à compreensão de gêneros orais. Nesse ponto, a proposta é o desenvolvimento de capacidades de linguagem para uso da língua em situações na escola, o que envolve a produção de debates, seminários, entrevistas, tutoriais, atrelados a projetos de ensino. Isso permite experiências de uso para monitoramento da própria fala, reflexão em atividades de escuta, bem como construção de conhecimentos relacionados aos gêneros produzidos em cada contexto. Em resumo, ao abordar essa dimensão, Leal e Gois (2012) ressaltam a importância de refletir sobre a língua com os discentes, além de torná-los cidadãos aptos a manejar a língua para se integrar, de maneira efetiva e consciente, na sociedade da qual fazem parte, contribuindo para a promoção do diálogo e da troca de ideias e saberes entre os sujeitos.
Em todos os aspectos abordados anteriormente, no tocante ao ensino da oralidade, há muitas pesquisas que podem ser realizadas em documentos e materiais didáticos, ou que podem ter caráter intervencionista, a fim de propor experiências no ensino fundamental e médio, contribuindo para a discussão sobre as práticas pedagógicas eficazes à escola contemporânea. As contribuições das pesquisas exploratórias e das pesquisas-ação podem ser valiosas para demonstrar procedimentos didáticos de êxito.
Este trabalho contribui, então, para ampliar os estudos sobre oralidade na Proposta Curricular de Língua Portuguesa (PCLP), sendo abordados os fundamentos postos na parte teórica do documento e seus desdobramentos no eixo de descritores. Assim, em outras pesquisas, poderemos analisar de que modo o professor realiza práticas de oralidade na escola com base no trabalho prescrito neste documento, bem como propor pesquisa-ação no tocante ao tema. Passamos a descrever, assim, o documento central.
Proposta Curricular de Língua Portuguesa da rede municipal de ensino de Juiz de Fora (MG): uma breve descrição
A elaboração da proposta curricular da rede municipal de ensino de Juiz de Fora foi iniciada em 2010 e a publicação se deu em 2012. Tal processo foi marcado pela colaboração entre especialistas assessores, professores da rede e representantes da secretaria de educação.
O processo de construção da proposta, inicialmente elaborada pela equipe de professores da secretaria de educação, parece ter sido conduzido de maneira participativa, inclusive com divulgação de proposta preliminar, seminários de discussão, sugestões de alteração do documento produzidas nas escolas e coletadas pela equipe de especialistas e elaboração da versão final, conforme consta na Apresentação.
O conjunto de propostas curriculares é composto por: proposta curricular de arte, ciências, matemática, língua portuguesa, línguas estrangeiras, história, geografia, educação infantil e educação de jovens e adultos, em um total de nove volumes publicados em cadernos impressos, também disponíveis on-line6. Tais documentos foram construídos com base na necessidade de implementação do ensino fundamental de nove anos, em um “processo simultâneo de valorização e divulgação das ideias e do trabalho realizado por vários profissionais em diferentes escolas” (Juiz de Fora, 2012, p. 4).
Como sabemos, analisar propostas curriculares é tarefa do campo da educação, uma vez que os documentos relevam concepções de aprendizagem, de linguagem, de conhecimento e objetivos que se pretende alcançar com a escolarização, possivelmente revelando, ainda, o tipo de sujeitos que se pretende formar para a atuação cidadã.
O documento afirma que:
A existência de documentos de referência, que são utilizados pelos professores em todas as etapas do ensino fundamental, educação infantil e EJA, constitui a base para o desenvolvimento de muitas experiências, cujos resultados são a eles incorporados, num movimento contínuo de alimentação, enriquecimento e fortalecimento das concepções e abordagens estabelecidas no processo de ensino e aprendizagem. (Juiz de Fora, 2012, p. 4).
Assim, consideramos que a leitura e análise deste documento conferem uma visão, neste trabalho, da reflexão linguística que se quer empreendida nas escolas da rede municipal.
Apresentamos, na seção seguinte, o detalhamento da perspectiva metodológica adotada.
Metodologia
Nossa metodologia, que se vincula à tradição qualitativa de pesquisa, consiste em um estudo documental (Moreira, Calefe, 2006). A pesquisa se dedicou a analisar um documento para produzir visão exploratória e descritiva da concepção de oralidade e das práticas a ela relacionadas, de modo a esclarecer os princípios condutores da PCLP, com vistas à formulação de futuros projetos educacionais.
Elegemos categorias de análise advindas das diferentes correntes teóricas anteriormente elencadas, a saber:
-
- concepção de oralidade
-
- gêneros orais na produção oral
-
- escuta/compreensão
-
- reflexão linguística sobre oralidade
-
- retextualização
-
- valorização dos textos de tradição oral
-
- leitura oral (ou leitura oralizada)
A proposta de LP está dividida em seções, como podemos verificar no Quadro 1:
Nas seções 1 a 5 (1ª coluna), denominadas na presente pesquisa como teóricas, estão os textos que abarcam as concepções teóricas e os fundamentos, trazendo o aporte de diversos estudos da linguagem, predominantemente embasados na perspectiva da Escola de Genebra (Magalhães; Ferreira, 2014). As seções 6 e 7 (1ª coluna) foram denominadas seção dos descritores, uma vez que apresentam eixos organizadores do ensino, bem como quadros com sugestões de trabalho para sala de aula, com conhecimentos estruturados em gêneros textuais e um quadro com “conhecimentos e atitudes” e seus desdobramentos em encaminhamentos para atividades de linguagem (a proposta não traz exercícios em si).
Vemos, de acordo com os eixos, que os gêneros constituem um constructo estruturador da proposta, o que pode ser visto como interessante para que o professor proponha atividades de produção e circulação do discurso produzido pelos alunos, sem evidenciar exclusivamente as atividades analíticas dos gêneros, com meras identificações e classificações. As concepções teóricas apresentadas no documento encaminham o professor para a elaboração de exercícios de uso e reflexão, conforme propõem os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil. MEC, 1998).
Passemos, então, à análise de dados.
Concepção de oralidade no documento
A oralidade na PCLP constitui-se como eixo de trabalho, o que consideramos muito pertinente de acordo com os referenciais teóricos, na medida em que o documento anterior ao analisado neste artigo não apresentava esse eixo e não adotava uma concepção de oralidade como objeto autônomo de ensino (Magalhães, Ferreira, 2014).
Dessa forma, o oral autônomo apresenta-se como a concepção fundante da proposta e possui como uma de suas referências Dolz, Schneuwly e Haller (2004), autores que adotam a seguinte perspectiva:
A escola deve levar o aluno a ultrapassar as formas de produção oral cotidiana - uso espontâneo, informal da língua oral - para que possa refletir sobre seus diferentes usos, confrontá-los com outras formas mais institucionais, públicas, que sofrem outros tipos de restrições para a sua produção. (Juiz de Fora, 2012, p. 41).
Além disso, propõem, para o processo de análise e avaliação, o modelo didático7 e o agrupamento de gêneros (Schneuwly, Dolz, 2004). Essas propostas têm como objetivo o desenvolvimento das capacidades de linguagem dos alunos. Os autores adotam, então, por meio dos modelos didáticos, a ruptura com o modelo tradicional, enfatizando
[...] o trabalho com exemplares de gêneros orais e escritos de cada um dos agrupamentos, distribuídos em cada ano do ensino fundamental. A ideia é a de que, respeitadas as especificidades etárias e cognitivas, os alunos tenham oportunidade de ler, escrever, ouvir e produzir oralmente gêneros de cada agrupamento, num movimento de retomadas e aprofundamentos - abordagem em espiral do ensino. (Juiz de Fora, 2012, p. 46).
Marcuschi (2001), que também é apresentado como um dos autores que fundamentam o documento, possui uma proposta baseada na integração entre oral e escrito, denominada por ele próprio continuum de gêneros. De acordo com o autor, fala e escrita são modalidades pertencentes a uma mesma língua. Dessa forma, não devem ser consideradas de maneira dicotômica. A PCLP frisa essa ideia, ao definir que:
Oralidade e escrita configuram, assim, um continuum tipológico, caracterizado, de um lado, pelas peculiaridades de cada uma dessas modalidades e, de outro, pelas semelhanças percebidas em diversos gêneros - o que faz com que, às vezes, se torne bastante difícil definir o limite entre elas. Assim, por exemplo, um bilhete, apesar da forma escrita, guarda muitas semelhanças com uma conversa informal, e uma conferência, embora oral, traz marcas da escrita que atende a um contexto formal. (Juiz de Fora, 2012, p. 39).
Outro aspecto importante presente no documento analisado é a relação entre alfabetização e letramento. Considerando a concepção coerente com Soares (2004), a proposta é que os trabalhos de alfabetização e letramento sejam realizados conjuntamente, para que as capacidades orais e escritas dos alunos possam ser desenvolvidas, pois “[...] alfabetizar e letrar são entendidos como processos distintos, mas complementares na formação do usuário competente da língua” (Juiz de Fora, 2012, p. 42). A proposta enfatiza o aspecto social, em detrimento do desenvolvimento de habilidades individuais e técnicas, reforçando a necessidade de que as experiências de uso da linguagem pelos alunos como autores de seus próprios textos estejam materializadas em projetos para interação na escola e fora dela. Daí a relação alfabetização/letramento focalizando as práticas, e não as atividades analíticas, tradicionalmente presentes nas aulas de LP.
Os gêneros sugeridos para o trabalho nas séries iniciais e finais são apresentados no Quadro 2.8
Com base na leitura e análise da PCLP, concluímos que o documento apresenta uma perspectiva de ensino de língua com foco nos gêneros textuais, definidos como práticas de linguagem que se materializam em textos nas interações humanas. São sugeridos vários gêneros para que o professor crie situações na escola em que o aluno tenha experiências de produção de linguagem. Dessa forma, ao adotar essa concepção, os autores do documento pautam-se na reflexão e no uso da língua, com o principal objetivo de ampliar as capacidades de linguagem do aluno para que ele exerça seu papel de cidadão capaz de participar efetivamente das diferentes esferas discursivas presentes na sociedade.
Gêneros na produção oral
Considerando a leitura e análise da proposta, foi possível concluir que o foco do documento está na produção oral por meio dos gêneros textuais. Esse pode ser considerado mais um dos aspectos positivos, já que o ensino com base nos gêneros se apresenta como a maneira mais eficaz para o desenvolvimento das capacidades dos alunos, conforme defendemos na fundamentação teórica. Assim, para desenvolver as capacidades de linguagem dos discentes, o documento propõe atividades para:
Preparar a fala adequadamente levando em conta, no planejamento, os objetivos de quem fala, as expectativas e disposições de quem ouve, o ambiente em que acontecerá a fala: simulação de jornais falados, entrevistas e debates na TV e rádio, entrevistas com pessoas da comunidade, apresentações em eventos escolares, campanhas públicas etc (Eixo 5). (Juiz de Fora, 2012, p. 74).
Essa ênfase na produção oral, em detrimento dos outros itens (escuta e análise linguística, abordados mais à frente), se comprova, por exemplo, no Eixo 5 do documento, que é dedicado à oralidade e denomina-se “Produção oral e gêneros”: em pouquíssimos trechos, o eixo em questão e seus desdobramentos englobam atividades de escuta.
Escutar com atenção e compreensão; participando de situações (saudações, instruções e relatos) em que a escuta seja necessária e em eventos, tais como: seminários, palestras, contação de histórias, filmes, apresentações teatrais. (Juiz de Fora, 2012, p. 73).
Participar de situações, em que ocorre intercâmbio oral, que requeiram: ouvir com atenção [...] explicar e ouvir explicações. (Juiz de Fora, 2012, p. 73).
[...] escutar ativamente diferentes textos produzidos na comunicação direta ou mediada por telefone, rádio ou televisão [...]. (Juiz de Fora, 2012, p. 74).
Dessa forma, acreditamos que a nomenclatura mais adequada para o Eixo 5 seria “Oralidade e gêneros”, pois, assim, incluiria as atividades de escuta que, juntamente com as de produção e análise, são de demasiada importância para ampliação de capacidades de linguagem dos alunos. Por um lado, o nome dado ao eixo é coerente por a quase totalidade de conhecimentos e atitudes ser voltada à produção. Por outro, é incoerente por deixar de abordar a oralidade de forma mais ampla (produção oral, escuta e análise linguística).
Observamos, também, com base na análise, que a seção dos descritores apresenta-se em coerência com a seção teórica, que trata do trabalho com as capacidades dos alunos:
O professor deve entender que as atividades de usos da língua oral em sala de aula precisam ir além da mera participação em respostas curtas a perguntas do professor. Focando sua prática dessa forma, o professor promove o letramento de seu aluno, que passa a usar com consciência, com propriedade a língua oral, como prática social, juntamente com a leitura e escrita. (Juiz de Fora, 2012, p. 41).
Dessa forma, o documento analisado propõe nos desdobramentos um trabalho capaz de ampliar as possibilidades discursivas dos alunos, principalmente em instâncias públicas. Assim, é dever da escola instrumentalizar os alunos para que sejam capazes de:
Saber manter postura adequada frente a uma plateia: tom de voz, postura corporal, uso do espaço físico de apresentação e de recursos audiovisuais. (Eixo 5). (Juiz de Fora, 2012, p. 74).
Desenvolver a capacidade de interagir verbalmente segundo as regras de convivência dos diferentes ambientes e instituições, manifestando experiências, sentimentos, de forma clara e ordenada (Eixo 5). (Juiz de Fora, 2012, p. 73).
Consideramos que essa categoria de análise apresenta coerência entre o que propõe a teoria que embasa o documento e seus desdobramentos, pois as sugestões de gêneros para criação de propostas em sala de aula indicam um trabalho com foco nas ações de linguagem materializadas nos textos orais, com objetivo de que os alunos tenham experiências de produção de linguagem na escola.
Entretanto, aspectos relativos à avaliação da produção oral ficam atrelados aos critérios do modelo didático de gênero, que deve ser elaborado pelo professor. Não há aprofundamento sobre a ferramenta modelo didático de gênero nem sobre a avaliação da produção oral.
Escuta/compreensão
O tópico escuta/compreensão está presente no Eixo 5 do documento, de produção oral e gêneros. Com base na análise, concluímos que a categoria que engloba a escuta/compreensão aparece diluída no eixo em questão, com apenas três ocorrências, apresentadas anteriormente. Esse ponto demonstra-se negativo, na medida em que o trabalho com a oralidade envolve tanto atividades de produção como de escuta e análise. Dessa forma, seria muito válido abordar essa categoria de maneira mais aprofundada.
Na seção teórica, a escuta não é citada. São apresentados aspectos da oralidade na interação, destacando a produção. Esse viés de aluno ativo (que produz e não apenas reproduz) é bastante positivo. Apesar disso, a escuta no eixo da oralidade não evoca passividade, mas compreensão ativa dos gêneros orais, o que é fundamental para a participação na sociedade de forma consciente, na oralidade ou na escrita.
Considerando que a integração produção-escuta pode ser captada no documento apenas por inferência, é possível que ela seja esquecida pelo professor. Assim, pouca ênfase se dá ao tema da escuta.
Reflexão/análise linguística sobre oralidade
A questão da reflexão linguística sobre a oralidade encontra-se nos Eixos 5 (Produção Oral e Gêneros Textuais) e 6 (Reflexão Linguística e Gêneros Textuais). Observamos que, no Eixo 5, a reflexão linguística está atrelada aos gêneros e agrupamentos (narrar, relatar...), como é possível observar no exemplo a seguir:
Adequar a linguagem às situações comunicativas mais formais que acontecem na escola: narrar casos e histórias da cultura popular (variedade coloquial cotidiana), expor oralmente o resultado de trabalhos individuais ou em grupo (linguagem formal), dar recados ou avisos, justificar opinião sobre determinada questão polêmica, saber contar oralmente histórias, com base em sequência cronológica de imagens etc. (Juiz de Fora, 2012, p. 73).
No Eixo 6, a reflexão linguística sobre oralidade está distribuída no quadro geral sobre aspectos linguísticos dos gêneros textuais, e não da oralidade especificamente, não havendo uma parte que trate sobre essa questão. Assim, tornam-se bastante adequadas as reflexões a seguir, que podem se dar tanto na oralidade quanto na escrita:
Reconhecer os componentes canônicos (sequências textuais) dos gêneros do narrar e relatar que respondem às questões: QUEM? O QUÊ? ONDE? QUANDO? COMO? POR QUÊ? (Juiz de Fora, 2012, p. 75).
Reconhecer, analisar e empregar: recursos discursivos da exposição oral: organizadores de ordenação e sequência, apresentação prévia à plateia do plano de exposição. (Juiz de Fora, 2012, p. 80).
Perguntas diretas como estratégia de motivação da plateia/leitor, e como controle de atenção e acompanhamento do exposto. (Juiz de Fora, 2012, p. 80).
Outro ponto interessante no Eixo 6 é o fato de que o trabalho com a reflexão linguística encontra-se subordinado aos gêneros textuais. Isso demonstra a valorização de atividades que envolvam o trabalho de análise linguística nos textos, dando sentido ao estudo dos fenômenos linguísticos atrelados aos contextos de uso, e não como unidades isoladas, conforme tradicionalmente a escola abordou (Mendonça, 2006).
Por um lado, o documento é coerente com uma proposta de integração oralidade-escrita (enfoca reflexão na produção oral). Por outro, aspectos específicos sobre reflexão linguística acerca da oralidade (relações oral-escrito e multimodalidade, por exemplo9) não são tratados.
Aspectos não abordados
Os processos de retextualização, conceituados por Marcuschi (2001) como a transformação do texto oral em escrito ou do escrito em oral, apresentam-se como atividade muito pertinente no ensino de língua, uma vez que auxiliam o aluno na compreensão das semelhanças e diferenças relativas às modalidades em questão. Dessa forma, seria de grande valia que a proposta curricular abordasse esse aspecto, o que não verificamos na análise do documento.
Outro aspecto não abordado diz respeito à valorização dos textos de tradição oral. Como já citado na seção 1, o trabalho com textos de tradição oral valoriza a cultura da comunidade, além de fazer com que o aluno seja capaz de identificar algumas características típicas dessa modalidade. Por isso, a presença desses gêneros relacionados é de suma importância no que diz respeito ao ensino de oralidade.
O último aspecto que não encontramos no documento está relacionado à leitura oralizada. Gostaríamos de ressaltar que a não abordagem desse ponto pode ter sido proposital pelo fato de essa atividade já ser a mais recorrente (se não a única) na sala de aula. Muitos professores acreditam que, ao realizar a leitura oral, já estão trabalhando todos os aspectos para o desenvolvimento da oralidade pública. Conforme já mencionado na seção 1, a leitura oralizada é importante, pois auxilia em aspectos como prosódia, entonação, fluência, postura corporal, entre outros, integrados nos projetos de produção oral dos gêneros, como leitura de trechos escritos em slides nos seminários, leitura de trechos em debates para fundamentar argumentação etc.
Sintetizamos, no Quadro 3, as categorias analisadas, como forma de visualizar a análise apresentada.
Síntese dos Aspectos Analisados na Proposta Curricular de Língua Portuguesa (Juiz de Fora, 2012)
Pretendemos, neste trabalho, apenas apresentar algumas lacunas do documento, a fim de fundamentar a produção de materiais didáticos e projetos de intervenção em futuras pesquisas. Considerando os fundamentos e desdobramentos da PCLP, há muitas sugestões que podem contribuir para futuras pesquisas e para a prática em sala de aula.
Considerações finais
Com base nessa análise, percebemos que a seção de descritores é condizente com a seção teórica do documento, revelando ao professor concepções para o trabalho a ser desenvolvido em sala de aula, principalmente no tocante à produção oral. Vimos, na análise, que a concepção de oralidade é o oral autônomo, ou seja, a oralidade trabalhada como objeto de ensino, não apenas como apoio/caminho para a aprendizagem de diferentes saberes. A proposta, então, avança.
O foco está na integração de atividades de oralidade, leitura, escrita, análise linguística, cujo eixo norteador são os gêneros, tomados como objeto de ensino na PCLP. A escuta/compreensão e as atividades de reflexão linguística no eixo da oralidade ficam alijadas do documento. Aspectos como retextualização, valorização dos textos de tradição oral e leitura oral (ou leitura oralizada) não são abordados. Com base no que observamos, ao tomar o documento como princípio norteador para a prática pedagógica, serão necessárias modificações para inserir atividades de retextualização nos descritores, bem como enfatizar mais a escuta, a relação oral-escrito em sala de aula, necessárias para que o professor atinja os objetivos do ensino reflexivo de oralidade na escola. Aspectos de variação linguística, com valorização dos textos de tradição oral, também precisam ser enfatizados na prática pedagógica.
Com o intuito de trazer reflexões que façam avançar a educação linguística na contemporaneidade, pesquisas são necessárias para focalizar de que modo o professor faz tais adaptações, considerando não apenas os documentos oficiais, mas os livros didáticos, os projetos da escola, as dificuldades dos alunos e os seus próprios saberes, para que tenhamos contribuições efetivas e a escola concretize seu importante papel no desenvolvimento da linguagem dos discentes.
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1
Tal resultado parcial está vinculado a duas pesquisas desenvolvidas no âmbito do grupo de pesquisa Linguagem, Ensino e Práticas Sociais (CNPq), financiadas pela UFJF.
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2
Como exemplo, os autores Geraldi (1984) e Travaglia (1998) estabeleceram eixos de ensino e objetivos do ensino de LP bastante adequados para o trabalho com o texto na sala de aula.
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3
Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN (Brasil. MEC, 1997; 1998), Orientações Curriculares para o Ensino Médio - Ocem (Brasil. MEC, 2006), Guia do Programa Nacional do Livro Didático - PNLD (várias edições).
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4
Pró-Letramento, Gestão da Aprendizagem Escolar (Gestar), Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic).
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5
Usamos reflexão e análise como sinônimos, de acordo com a perspectiva dos autores citados.
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6
Disponíveis em: <https://www.pjf.mg.gov.br/secretarias/se/escolas_municipais/curriculos/index.php>.
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7
Embora o nome sugira um texto exemplar do gênero, um modelo didático de gênero (MDG) é um conceito usado pelo interacionismo sociodiscursivo, que significa um levantamento das dimensões ensináveis de um gênero textual considerando um corpus de diferentes textos do gênero em foco a ser trabalhado (exemplo: debate), para que se possam atestar as características dos gêneros, ou seja, os aspectos mais variáveis, bem como as estabilidades; assim, o professor, antes de realizar o trabalho em sala de aula, analisa os textos e elenca tais dimensões ensináveis, considerando os aspectos mais criativos e dinâmicos da língua. Assim, elaboram-se exercícios para a sala de aula. Tais dimensões também servem à avaliação da produção dos alunos. Para uma conceituação mais ampla sobre MDG, ver Machado e Cristóvão (2006).
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8
Vemos neste quadro que, embora tenhamos feito uma listagem dos gêneros a partir da PCLP-JF, os gêneros sugeridos coincidem com as indicações feitas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil. MEC, 1997; 1998).
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9
Na oralidade, os aspectos paralinguísticos e cinésicos, como qualidade da voz, pausas, risos/suspiros/choro/irritação, bem como as atitudes corporais, os gestos, as trocas de olhares e as mímicas faciais (Melo; Cavalcante, 2007) constituem a multimodalidade do texto oral, ou seja, na compreensão do texto oral, para construir sentido, usamos os diversos modos que compõem a linguagem em interação.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2018
Histórico
-
Recebido
16 Fev 2017 -
Revisado
29 Jun 2017 -
Aceito
28 Jul 2017