Resumo:
Este artigo propõe reflexões sobre a formação docente com base em resultados de uma pesquisa, na área de Psicologia da Educação, que desenvolveu formação continuada junto a 13 educadores da rede pública do município de São Paulo-SP. A pesquisa investigou as representações desses professores sobre a profissão docente e possíveis mudanças e conservações nessas representações após a formação. Neste estudo, apresentamos os resultados da análise das narrativas de uma das participantes. As análises foram realizadas qualitativamente, com base na Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento, tendo como suporte o conceito de projetos de vida. Os resultados mostraram que a formação mobilizou (des)(re)construções a respeito do que é ser professor e do lugar que a docência ocupa em seus projetos de vida, apontando ainda para a indissociação entre essas representações. Por fim, defende-se um processo formativo para os educadores que inclua, também, seus projetos de vida e considere seu florescimento enquanto seres humanos completos.
Palavras-chave: formação de professores; Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento; projeto de vida
Abstract:
This study invites reflection on teacher training based on the results obtained through research in educational psychology that developed a program with 13 educators from the public school system in the city of São Paulo (SP). Our study investigated these teachers' representations regarding the teaching profession and the possible adjustments and conservations made in these representations after the program. We also present the results of the analysis of the narratives of one of the participants. The analyses were carried out qualitatively, and were based on the Theory of Organizing Models of Thinking, supported by the concept of life project. The results revealed that the program mobilized (de)(re)constructions on what it means to be a teacher and the place that teaching profession occupies in their life projects, while also pointing out to the inseparability between these representations. Ultimately, we advocate for a professional training for educators that includes their life projects and considers their flourishing as complete human beings.
Keywords: teacher training; Theory of Organizing Models of Thinking; life project
Resumen:
Este artículo propone reflexiones sobre la formación de maestros a partir de los resultados de una investigación en el área de Psicología de la Educación que desarrolló una formación continua con 13 maestros del sistema escolar público brasileño de São Paulo (SP). La investigación enfoca las representaciones de estos maestros sobre la profesión docente, así como posibles cambios y conservaciones en estas representaciones después de la formación. En este trabajo presentamos los resultados del análisis de las narrativas de uno de los participantes. Desde la perspectiva de la Teoría de Modelos Organizadores del Pensamiento, y sustentadas en el concepto de proyectos de vida. Las autoras han estudiado como la formación movilizó (des)(re)construcciones sobre lo que es ser docente y el lugar que ocupa la enseñanza en sus proyectos de vida, apuntando también a la inseparabilidad entre estas representaciones. Finalmente, abogamos por un proceso de formación de maestros que incluya también sus proyectos de vida y considere su florecimiento como seres humanos completos.
Palabras clave: formación de docentes; Teoría de los Modelos Organizadores del Pensamiento; proyecto de vida
Introdução
Em uma de suas célebres frases, António Nóvoa (1992, p. 25) defende que “o professor é a pessoa. E uma parte importante da pessoa é o professor”. Com base nessa premissa, somos lembrados de que há muito mais do que apenas sonhos e angústias profissionais em cada docente - há toda uma vida para além da escola.
Em nossa busca por sentido enquanto seres humanos, construímos projetos de vida centrados na dimensão profissional, mas, também, nas dimensões pessoal e social (Araújo; Arantes; Pinheiro, 2020). Isso quer dizer que, enquanto indivíduos complexos, as três dimensões nos constituem e, sendo assim, nossos planos, sonhos, objetivos, necessidades e angústias perpassam todas elas.
Em pesquisa com cinco professores brasileiros socialmente reconhecidos por seu trabalho, Parra (2018) mostrou que, na construção de seus projetos de vida, essas três dimensões comparecem tão conectadas que, muitas vezes, não é possível sequer separá-las. Em um dos exemplos, um participante avalia que “não posso considerar isso trabalho, é uma atividade que me dá prazer e que me preenche [...] A minha prática de vida é a minha prática espiritual também, não há dissociação por isso que não é trabalho, sabe?” (Parra, 2018, p. 96).
Como ilustra a narrativa do docente, a busca por sentido na vida é constituinte de cada ser humano (Frankl, 2008). Tal busca nos move para o futuro, por meio de uma força psicológica que nos motiva e nos orienta em busca de nossos sonhos. Porém, ao contrário dos exemplares estudados por Parra (2018), muitos professores têm dificuldade em alinhar sonhos pessoais e profissionais no trabalho (Ronkainen et al., 2023).
A superação de tal dificuldade requer, em nossa opinião, práticas formativas que propiciem a tomada de consciência e um profundo processo de autoconhecimento e de trocas com o outro, no sentido de “assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar” (Freire, 2011, p. 28-29).
Com base nessas reflexões, buscamos investigar como a formação de professores pode contribuir para a construção dos projetos de vida de docentes, oportunizando a eles mobilizar as três dimensões de seus projetos em sua busca por sentido. Para isso, desenvolvemos uma formação continuada junto a 13 professores da educação básica na rede pública de São Paulo. Neste artigo, apresentamos o processo e os resultados de tal formação mediante uma análise profunda das narrativas de uma das participantes, buscando demonstrar a dinamicidade do psiquismo humano, bem como apontar caminhos para a formação de professores.
Bases teóricas para uma formação com sentido
O projeto de vida é um constructo psicológico que orienta, organiza e motiva os planos e as ações do sujeito no seu cotidiano. Isso acontece porque o projeto de vida responde a grandes porquês, como: Por que faço isso? Por que isso é importante para mim e para o mundo? (Damon, 2009).
Dessa forma, o trabalho com projetos de vida pressupõe a busca por sentido, o que envolve a exploração das dimensões pessoal, social e profissional da vida do indivíduo. No caso dos professores, a docência parece ser um elemento considerável nessa construção. Em pesquisa com 2 mil professores da educação básica que atuam na rede pública brasileira (Arantes; Guedes; Bolsarin, 2023), 1.669 deles (83%) apontaram que a educação é central em seus projetos de vida, com planos de seguir atuando como docentes. Para os outros 17%, a educação não comparece ou não tem centralidade, e tal grupo compreende justamente indivíduos com planos de se aposentar ou trocar de carreira, por exemplo.
Diante de dados como esse, parece-nos essencial incluir na pauta de formação de professores seus projetos de vida, de forma a oportunizar aos indivíduos refletir sobre o papel que a profissão e a carreira têm em suas vidas, e como elas contribuem (ou não) para sua busca de sentido.
Dessa forma, os projetos de vida contribuem não só para a plenitude pessoal do educador, mas também para pensar o impacto de seu trabalho junto aos alunos e à comunidade. Isso porque o constructo de projeto de vida é compreendido como “uma intenção estável e generalizada de alcançar algo que é ao mesmo tempo significativo para o eu e gera consequências no mundo além do eu” (Damon, 2009, p. 53). Assim, o projeto de vida contribui para a busca de sentido do próprio indivíduo ao mesmo tempo que implica o desejo de fazer a diferença no mundo.
Com base na definição de Damon (2009), Tirri (2018, p. 222, tradução nossa) define que “professores com propósito são profissionais éticos com um compromisso de longo-termo com seus alunos e objetivos educacionais que eles almejam alcançar em seu ensino”. Além disso, como pontua Ronkainen et al. (2023), com base no estudo de Tirri, Moran e Mariano (2016), o ensino do professor deve beneficiar também seus colegas e a sociedade como um todo.
Tendo em vista essa dupla característica do projeto de vida (individual e coletivo), entendemos que uma formação, para fazer jus a essa complexidade, precisa abordar não somente o sentido pessoal, mas, também, princípios que norteiam essa relação de impacto com o mundo. Por essa razão, adotamos como tema condutor da formação o conceito de “bom trabalho” (Gardner; Csikszentmihalyi; Damon, 2004; Gardner, 2009), que defende que todo bom trabalho segue três princípios nobres: a ética, a excelência e o engajamento.
Esses 3 Es do “bom trabalho” foram definidos após uma investigação realizada com mais de 1.200 profissionais de diversas áreas, a qual buscou compreender o que caracterizava as atuações consideradas muito boas. O princípio da ética é definido pelo desejo de uma atuação com responsabilidade, que considere o impacto de seu trabalho para outras pessoas e a sociedade em geral. A excelência, por sua vez, implica uma alta qualidade técnica e uma atualização constante do profissional, de modo que ele desempenhe um trabalho que atenda ou exceda os padrões de qualidade. Por fim, o engajamento diz respeito à autorrealização profissional da pessoa, contemplando sua experiência subjetiva (Gardner; Csikszentmihalyi; Damon, 2004; Gardner, 2009).
Considerando esses princípios, o “bom trabalho” é aquele em que os 3 Es comparecem simultaneamente. Na esfera da educação, o “bom professor” é, então, aquele que atua com ética, buscando impactar seus alunos e sua comunidade; com excelência, desenvolvendo um trabalho de alta qualidade pedagógica e sempre atualizado por meio do aprimoramento profissional; e com engajamento, ou seja, encontrando satisfação e realização na sala de aula.
Esses conceitos são compreendidos por nós em uma perspectiva que percebe cada indivíduo como um ser singular, conforme aponta a Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento (TMOP). Para Moreno Marimón e Sastre Vilarrasa (2020, p. 23, tradução nossa), o ser humano é caracterizado justamente pela “possibilidade de construir um modo pessoal de se situar dentro da vida a partir de seu leque de possibilidades”.
Em outras palavras, a realidade é, para cada indivíduo, uma construção pessoal que se dá mediante essas possibilidades, de acordo com fatores como o contexto social e físico, as crenças, a cultura etc. (Moreno Marimón; Sastre Vilarrasa, 2020). Assim, a cada vivência e interação, construímos nossa história pessoal, em um processo singular de compreensão do universo. Nessa perspectiva, compreendemos que toda formação deve também ser ofertada como uma possibilidade de construção pessoal e singular. A seguir, apresentamos a formação desenvolvida e a pesquisa que a sustenta.
A formação continuada
Pautadas no conceito de projetos de vida, nos princípios do “bom trabalho” e nos pressupostos da TMOP, desenvolvemos, no segundo semestre de 2022, uma formação junto a 13 professores de uma escola municipal na cidade de São Paulo-SP. A rede municipal de São Paulo foi escolhida em razão da Jornada Especial Integral de Formação (Jeif), uma jornada de trabalho que contempla 8 horas-aula remuneradas de trabalho coletivo para os docentes. Assim, por viabilizar nossa proposta formativa ao nos permitir desenvolver os encontros com duração de 4 horas-aula por semana na escola, optamos por selecionar uma instituição do município de São Paulo. Os professores participantes fazem parte do maior grupo da Jeif na instituição selecionada.
A formação desenvolvida tinha como objetivo mobilizar as representações da docência de forma singular para cada professor, convidando-os a relacioná-las com seus projetos de vida e (re)pensá-las com base na ética, na excelência e no engajamento. Com isso, a formação visava responder às seguintes perguntas de pesquisa: Quais as representações dos docentes sobre a profissão docente? Quais as possíveis mudanças e/ou conservações nessas representações após a formação?
Para responder a essas perguntas, a proposta da formação consistia em encontros presenciais na escola, planejados com o objetivo de mobilizar quatro grandes temas (projetos de vida, bom trabalho, bem-estar e docência) por meio de diversas atividades e discussões ao longo da formação. Tais encontros contemplavam uma sequência de aprofundamento dos temas, entretanto, não havia pré-requisito para eles, de modo que, mesmo que um participante faltasse em algum encontro, ainda era possível participar dos demais sem prejuízo para a vivência e a compreensão.
A formação foi composta por 19 encontros1, que foram divididos em dois momentos semanais, com diferentes objetivos e metodologias. No primeiro encontro de cada semana, a proposta era promover reflexões e mobilizações psíquicas a partir dos conteúdos propostos pelas pesquisadoras, centrados nos projetos de vida, no bom trabalho e no bem-estar, conforme Quadro 1.
Tais conteúdos foram mobilizados segundo uma epistemologia construtivista (Dewey, 1959; Piaget, 1994; Freire, 2011), com base em metodologias de exposição dialogada, práticas morais (Puig, 2004) e metodologias ativas (Savery; Duffy, 1996; Hmelo-Silver, 2004; Ideo, 2009; Araújo; Sastre Vilarrasa, 2009; Guerra et al., 2017; Pinheiro; Arantes, 2017). De forma complementar, os professores foram convidados também a ouvir seus alunos a respeito de problemas na escola e desenvolver coletivamente projetos para solucioná-los.
No segundo encontro semanal, as discussões e atividades eram centradas em temas trazidos pelos próprios participantes. Nesse segundo eixo de trabalho, os professores foram convidados a mobilizar suas projeções e representações a respeito do que significa para eles ser professor da educação básica na rede pública de ensino, por meio de práticas inspiradas no trabalho de Moreno Marimón, Sastre Vilarrasa e Ros (2016).
A pesquisa: em busca de uma formação com sentido
A presente pesquisa segue as normas éticas estabelecidas pela Resolução CNS nº 466/2012 para pesquisas envolvendo seres humanos e conta com a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa via Plataforma Brasil, sob número CAAE 58578022.1.0000.5391.
A formação foi desenvolvida durante um período de dez semanas. Pedimos aos professores participantes que respondessem a um questionário antes do início da formação e, novamente, após sua finalização, de modo que nos permitisse avaliar conservações e mudanças em sua organização psíquica a respeito de seus projetos de vida, bem-estar e modelos de docência. Para isso, o questionário contemplava nove questões centradas em seus projetos de vida e representações sobre a docência. Além disso, também convidamos professores de uma escola vizinha (que não sofreu nenhum tipo de intervenção) para responderem ao mesmo questionário, com o intuito de se ter um grupo controle. Com isso, pudemos analisar possíveis impactos da formação nos participantes em comparação com um grupo que não vivenciou a intervenção proposta.
Suas respostas foram analisadas com base na TMOP (Moreno Marimón et al., 1999; Moreno Marimón; Sastre Vilarrasa, 2020), que, para além de se constituir um referencial teórico-metodológico que abraça a singularidade do funcionamento psíquico, também oferece um modelo explicativo funcional de como se dá esse processo, o que nos permite investigar com profundidade as representações dos professores sobre a docência e seus projetos de vida, conduzindo a análise por meio de categorias que emergiram das próprias respostas, sem a presença de categorias prévias.
Nesse processo, a TMOP tem como pressuposto que, a cada situação vivenciada, o indivíduo seleciona elementos da experiência (excluindo, ignorando ou mesmo criando outros elementos), atribui significados a esses elementos e estabelece ainda implicações e/ou relações, em um processo simultâneo, que constitui um sistema organizado:
Concebemos um modelo organizador como uma particular organização que o sujeito realiza dos elementos que seleciona e elabora a partir de uma determinada situação, dos significados que lhes atribui e das implicações que dele se originam. Tais elementos procedem das percepções, das ações (tanto físicas como mentais) e do conhecimento em geral que o sujeito possui sobre uma certa situação, assim como das inferências que a partir de tudo isso realiza. O conjunto resultante é organizado por um sistema de relações que lhe confere uma coerência interna, a qual produz, no sujeito que o elaborou, a ideia de que mantém também uma coerência externa, ou seja, uma coerência com a situação do mundo real que representa. (Moreno Marimón et al., 1999, p. 78).
Nesta investigação, buscamos identificar os elementos, seus significados e as possíveis relações e/ou implicações entre eles que apareciam nas representações dos professores participantes. Nesse processo, emergiram os elementos si mesmo, família, profissão docente, instituições, alunos, relação professor versus aluno, e formação do aluno, com base nos quais analisamos os significados e as relações e/ou implicações estabelecidas entre todos eles. O Quadro 2 detalha esses elementos.
A seguir, apresentaremos a análise das narrativas da professora Anália2, uma das docentes participantes da formação que oferecemos, buscando compreender seu funcionamento psíquico a partir de pontos principais que emergiram no processo analítico.
A professora Anália tem 35 anos e atua no ensino fundamental I, tendo se dedicado à docência por mais de 17 anos, sendo 14 deles na rede pública. Na formação, Anália participou de todos os encontros. A seguir, apresentamos os elementos, os significados e as relações e/ou implicações mais expressivos de suas narrativas presentes nos questionários pré e pós-formação, destacando o que se conservou e o que se alterou após a formação desenvolvida. Para analisar a formação, utilizamos também os feedbacks da professora a respeito dos encontros.
Análise das narrativas: transitando pelas vozes de Anália
Quando pensamos no trabalho docente, há uma série de funções que o professor desempenha, muitas das quais agregadas ao cenário contemporâneo, que inclui desde atividades mais pedagógicas a tarefas mais burocráticas, como preenchimento de diários (Esteve, 1999). Diante dessa realidade, não nos surpreendeu que um dos tópicos centrais levantados pelos docentes na formação tenha sido os diferentes papéis do professor.
Por meio da análise com os modelos organizadores do pensamento, chama a atenção a centralidade da profissão docente na narrativa da professora Anália em seu questionário inicial. Além disso, soma-se, ainda, a presença de significados a respeito dos diversos papéis do professor em quatro elementos distintos: na profissão docente, nos alunos, na relação professor versus aluno e na formação dos alunos, conforme apontamos no Quadro 3.
Diante do exposto, entendemos que os significados por nós identificados são centrais nas representações da professora sobre a docência e sobre si mesma, estando as representações quanto à profissão e às próprias ações tão interconectadas que parece impossível separá-las. Como exemplo, identificamos que a maioria dos trechos do quadro utiliza pronomes na primeira pessoa (eu/nós) para tratar de suas representações.
Durante a formação, a temática dos diferentes papéis a serem desempenhados pelo profissional docente foi discutida em várias ocasiões pelos participantes em geral, que afirmaram, no oitavo encontro, que o professor tem uma responsabilidade muito grande, já que ele acaba por exercer papéis que seriam da família, do governo e de outros atores. Diante disso, para eles, quanto mais o professor assume outras funções, “menos ele consegue ser professor”.
Desde a segunda semana da formação, Anália mobilizou esse tema em suas avaliações sobre os encontros, como se observa no Quadro 4.
Ao longo de suas avaliações, percebemos que Anália inicia com o exercício da reflexão, compartilhando sentimentos negativos a respeito da questão (inexistentes no primeiro questionário), e avança, no decorrer dos encontros, defendendo um limite e um equilíbrio em sua atuação profissional. Dessa forma, entendemos que Anália mobiliza seus significados sobre a temática, de forma que suas narrativas apontam para uma ressignificação desses papéis e das relações e/ou implicações que eles trazem para ela própria.
Após a formação, no segundo questionário, Anália incorpora novos significados sobre a profissão docente e, para além disso, estabelece novas relações entre os variados papéis do professor, os papéis de outros atores e seus próprios sentimentos em relação a essa demanda:
Não gosto de ter que dar conta das outras demandas que deveriam ser responsabilidade do governo ou das famílias. [...] Com maior valorização na carreira e com uma escola pública de boa qualidade e com boa estrutura. [...] A mudança começa em mim. Fiz uma reflexão sobre o que realmente é a minha função e o que não é. Coisas que antes me angustiavam hoje não são mais tão desesperadoras assim. Ouvir o outro, compreender que o bem-estar está relacionado com o processo de desenvolver melhor o meu trabalho fez toda a diferença! (Anália).
De forma complementar, a profissão docente deixa de ser central em sua narrativa, dando lugar a novos significados no elemento si mesmo, que não existiam no primeiro questionário, e estabelecendo relações entre eles, como ilustrado no trecho:
Cuido mais do meu tempo, dou prioridade à saúde (me exercitando todos os dias), ocupo meus momentos livres com atividades que me fazem bem. Levo o meu trabalho com muita responsabilidade, porém tomo muito cuidado para não sobrecarregar a minha vida pessoal. (Anália).
Tal relação é explicitada ainda em outros momentos, em suas projeções para o futuro: “Com saúde, ainda com muita disposição para desempenhar bem o meu trabalho”.
Diante dessas relações, fica clara a interconexão entre as representações sobre a docência e os projetos de vida da professora Anália. Assim, ao confundir as representações com as próprias ações e os projetos de vida, a ressignificação de Anália sobre a profissão impacta, também, suas ações e seus projetos de vida.
Nesse processo de (re)pensar suas responsabilidades, a professora faz uma reflexão que lhe traz mais agência sobre sua vida: “A mudança começa em mim. Fiz uma reflexão sobre o que realmente é a minha função e o que não é”. Assim, com significados emergindo pela primeira vez no elemento si mesmo após a formação, tal movimento ganha tanta força que assume a centralidade da narrativa da professora Anália. Nesse processo, o bem-estar (que já aparecia timidamente como um valor), torna-se central também para a docente.
No primeiro questionário, o bem-estar aparecia apenas nos elementos família e profissão docente, por meio de um desejo mais distante: “Atualmente trabalho em duas redes, porém, devido ao desgaste, pretendo me organizar de forma a conseguir manter um único cargo, inclusive para ter mais tempo para cuidar da família e da minha saúde física e mental”. Com isso, percebemos que o bem-estar aparecia como um valor, porém, sem muita agência da professora, assumindo um caráter mais de sonho do que de plano.
Durante a formação, a professora expressa, de forma consciente, sentimentos em relação às suas angústias com a profissão, defendendo, ao final dos encontros, a necessidade de limites e equilíbrio (Quadro 4). Além disso, o bem-estar é citado de forma nominal no décimo terceiro encontro, quando ela o apresenta como feedback da experiência que a mobilizou a pensar sobre “Encontrar o ‘bem-estar’ nas pequenas coisas”.
Já pós a formação, no segundo questionário, Anália agrega mais significados a respeito do bem-estar, atingindo o elemento si mesmo (além da família e da profissão docente). Com isso, como citamos anteriormente, ganha destaque a indissociação entre os elementos, em um processo de retroalimentação entre diferentes elementos - si mesmo, família e profissão docente. Em outras palavras, Anália agrega bem-estar nos três elementos, de forma que o bem-estar para si mesma enquanto indivíduo, enquanto membro de uma família e enquanto professora se nutrem mutuamente de forma positiva.
Além disso, como apontam os trechos em destaque no Quadro 5, a professora assume agência nesse processo e, com isso, o bem-estar deixa de ser apenas uma projeção para um futuro incerto e passa a ser representado por meio de ações também.
Em consonância com a retroalimentação entre esses três elementos, mais uma vez, a representação sobre a profissão docente e os projetos de vida se confundem, especialmente nas relações entre saúde e bem-estar (si mesmo) e profissão docente, na medida em que a expansão da busca do bem-estar para si mesmo coincide com a incorporação de novos significados sobre o bem-estar dos alunos (tornar a vida de alguém melhor, dar esperança de futuro bom, legado de coisas boas, melhorar a sociedade).
Considerando ainda que as três dimensões dos projetos de vida - pessoal, profissional e social - perpassam o projeto de vida de Anália, bem como suas representações sobre a profissão docente, verificamos que a retroalimentação viabiliza que um significado nutra o outro, integrando as dimensões e ampliando o bem-estar para a docente e para os alunos, como ilustra a Figura 1.
Na Figura 1, percebemos que as três dimensões se unem de tal forma, que não é possível estabelecer com clareza as delimitações das dimensões nem o que é causa e o que é consequência nesse processo. O que fica claro, porém, são as relações entre os significados apontados e o impacto que todos eles têm no modo como Anália significa a profissão docente.
Nesse movimento que mobiliza os elementos si mesmo, família e profissão docente, a professora ressignifica suas representações sobre a docência, incluindo o bem-estar na dimensão social de seu trabalho. Para ilustrar essa ressignificação em suas narrativas sobre a docência, o Quadro 6 traz a resposta da professora Anália para a quarta questão do questionário (“Na sua opinião, o que é ser professor?”), em que emergem significados de bem-estar (em destaque) no segundo questionário.
A formação e as múltiplas vozes
Como buscamos apresentar, a professora Anália expressa, em suas narrativas, possíveis impactos da formação em seus projetos de vida e representações sobre a docência. Escolhemos apresentar neste artigo os resultados dessa docente justamente porque ela ilustra, de forma expressiva, esse movimento de ressignificações que integram as dimensões pessoal, profissional e social de seus projetos de vida.
Com apoio na mesma metodologia de análise aplicada às narrativas da professora Anália por meio da TMOP, verificamos que tais ressignificações expressivas compareceram com grande frequência nas narrativas dos participantes da formação, o que não ocorreu no grupo controle.
Nesse processo, identificamos nas respostas dos participantes uma maior integração entre pensamentos, sentimentos, representações de ações e projeções futuras nas três dimensões de seus projetos de vida. Em outras palavras, desejos, sonhos e ações parecem se relacionar e até mesmo se nutrir, de forma que a profissão, a vida social e a vida pessoal parecem se beneficiar mutuamente. Analisando as expressões dessa integração, as regularidades encontradas apontam para professores que passaram a associar realização profissional e pessoal, autocuidado e bom trabalho, e desenvolvimento pessoal e profissional. Nesses casos, elementos e significados que antes apareciam de forma isolada nas narrativas passaram a apresentar relações e/ou implicações entre si, gerando, com isso, dinâmicas mais profundas por meio dessa integração. Além da integração, os participantes da formação apresentaram com maior regularidade em suas narrativas dois possíveis impactos (ilustrados por Anália também): o fortalecimento da presença de significados relacionados ao bem-estar e uma maior expressão de agência.
Em relação ao bem-estar, verificamos uma incidência expressiva de significados envolvendo preservação ou busca de saúde física e mental, autocuidado, desenvolvimento pessoal, viagens e lazer em geral, qualidade de vida, relacionamentos positivos, entre outros.
Nesse movimento em que emergem mais significados sobre o bem-estar, também aparece com regularidade entre os participantes da formação uma maior agência em seus projetos de vida, o que foi constatado a partir do surgimento de ações nas narrativas, tanto para o presente (com o professor relatando algo que passou a fazer) quanto em projeções futuras. Assim, as narrativas passaram a contar com a presença de objetivos mais concretos e de ações relacionadas às projeções para o futuro, como metas específicas e organizadas, e prazos estabelecidos. Além disso, os significados do bem-estar passaram a se relacionar mais com o participante do que com eventos externos, em um movimento em que o professor assume mais a responsabilidade por esse processo, em vez de depender de pessoas ou situações alheias. Em conjunto, essas duas tendências (bem-estar e agência) revelam nas narrativas uma dinâmica de surgimento de ações voltadas ao bem-estar, que antes não estavam presentes ou apresentavam-se somente como um valor ou um desejo distante.
Por fim, tais ressignificações impactaram ainda as representações sobre a docência, indicando, no grupo da formação, o mesmo processo de retroalimentação que destacamos na análise da professora Anália. Com isso, houve, também, uma ressignificação da docência e do papel do professor, com a incorporação de significados voltados a uma educação integral, pautada em uma preocupação com a relação professor versus aluno e com o impacto da educação no bem-estar do aluno também, incluindo, ainda, nas necessidades do professor, a importância de uma busca contínua por aprendizado. Nesse processo, tais ressignificações emergem das vozes dos docentes de forma que cada professor expressa sua singularidade, ao mesmo tempo que há uma dinâmica comum em que significados pessoais, sociais e profissionais extrapolam suas dimensões originais para dar novo sentido às demais dimensões.
Considerações finais: ecos para além de si
Retomando a importância da busca por sentido na vida para cada ser humano (Frankl, 2008), desenvolvemos a formação continuada visando mobilizar esse sentido e oportunizar a reflexão a respeito de o que significa, para cada participante, ser um professor da rede pública brasileira na educação básica - considerando seus sonhos, seus desejos, suas angústias e necessidades profissionais, pessoais e sociais.
Segundo Frankl (2021), somos e vivemos em uma sociedade coletiva, na qual encontramos outros seres e outros sentidos e, nesse movimento, transcendemos a nós mesmos. Com isso, entendemos que experiências como uma formação de docentes pautada em relações e diálogos pode propiciar a (des)(re)construção de nós mesmos e de nossas representações no contato conosco e com os outros, em um processo que nos permita assumir a nós mesmos (Freire, 2011).
Ao vivenciar esse processo, a professora Anália ilustra a complexidade do funcionamento psíquico e de suas representações que lhe permitem dar sentido à sua vida - em que sua profissão é apenas um dos elementos presentes. Conforme mostramos, tal experiência possibilitou à professora o contato mais íntimo com seus pensamentos e sentimentos, que culminou em um processo de ressignificação das representações sobre o que é ser professor e quais são seus projetos de vida. Tal processo apresentou-se como uma regularidade na dinâmica das representações dos professores no segundo questionário, o que parece sinalizar possíveis resultados da formação, especialmente considerando a presença marcante dos temas norteadores (projetos de vida, bom trabalho e bem-estar) nas múltiplas vozes participantes da formação.
Tendo em vista as perguntas de pesquisa, sobre as representações da docente acerca da profissão e das possíveis mudanças e/ou conservações nessas representações após a formação, verificamos que, antes, Anália reconhecia a diversidade de papéis que precisava assumir enquanto professora em seu contexto particular. Ao longo dos encontros, essa diversidade foi ressignificada por meio de uma reflexão singular, porém, dialógica, por meio das relações com os demais docentes participantes.
Após a formação, esse movimento culminou em uma ampliação da complexidade e da integração dos diversos significados e elementos presentes em seu funcionamento psíquico. Tal ampliação é centrada no bem-estar e permitiu à professora integrar as dimensões pessoal, profissional e social de seu projeto de vida, bem como ressignificar a sua profissão, em direção a uma vida com qualidade, associada, ainda, a um trabalho de qualidade dedicado aos alunos e à melhoria da sociedade. Nessa ampliação, a agência de Anália emergiu com mais força também. Embora esse processo tenha sido singular para cada professor, como ilustra Anália, a regularidade da dinâmica de integração dos projetos de vida se apresentou para a grande maioria deles.
Assim, considerando que “os professores nunca estão ‘acabados’ ou ‘completos’ em suas identidades profissionais, capacidades ou desenvolvimento profissional” (Unesco, 2022, p. 82), um novo contrato social para a educação precisa incluir a formação continuada de professores, a fim de oportunizar seu amplo desenvolvimento. Por fim, diante dos resultados, acreditamos que essa formação docente deve estar alinhada ao florescimento de indivíduos e comunidades (Seligman, 2002), em direção a um desenvolvimento profissional, social e pessoal que conceba o professor como um ser humano completo.
Com base nesse processo de desenvolvimento, que é, ao mesmo tempo, individual e coletivo, na medida em que o professor se constitui e é constituído por meio da relação com os alunos e a sociedade, acreditamos que uma formação docente que mobilize os projetos de vida dos professores é essencial para a reflexão acerca de qual o sentido particular e social da docência para eles.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
12 Dez 2023 -
Aceito
04 Jul 2024