RESUMO
Este trabalho busca problematizar as representações da população carcerária construídas pela imprensa hegemônica brasileira. A partir de um caso específico - as mortes em série de detentos em unidades prisionais no início de 2017 -, a análise se concentrará na representação do preso enquanto vítima em três jornais impressos de alcance nacional. A construção narrativa do preso-vítima aparece como o contraponto do detento dito “selvagem”. A perspectiva adotada é a de que tal distinção foi feita revalorizando semanticamente uma parte dos detentos sem, no entanto, deixar de reforçar outra representação, tão difundida quanto estigmatizante.
Palavras-chave:
representação; imaginário social; presidiários; facções criminosas; imprensa
ABSTRACT
Oriented Empathy: The Representation of the Inmate as a Victim in the 2017 Penitentiary Crisis News Coverage seeks to problematize the representations of the inmate population made by the Brazilian hegemonic press. Based on a specific case - the mass murders of inmates in prison unities at the beginning of 2017 -, this analysis will be centered on the representation of the inmate as a victim in three nationwide range newspapers. The inmate-victim appears as the antithesis of the so-called “savage” inmate. The perspective adopted here is that this distinction was made by semantically revalorizing some of the inmates without, however, avoiding reinforcing another representation of the inmate, as widespread as it is stigmatizing.
Keywords:
representation; social imaginary; inmates; criminal gangs; press
Introdução
As mortes em massa de detentos em penitenciárias de três estados, Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte, no início de 2017, geraram mais um momento de comoção episódica quanto à questão do encarceramento no Brasil1 1 Este artigo utiliza parte da dissertação de mestrado de Fabiano Oliveira, Representações no discurso do campo jornalístico: A cobertura da crise penitenciária de 2017, defendida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) em 2019 (OLIVEIRA, 2019). . Esse é um enredo bem conhecido. Relegada ao esquecimento e longe dos olhos da sociedade, a população carcerária torna-se objeto de atenção quando suas mazelas explodem em levantes, rebeliões e conflitos invariavelmente marcados por mortes violentas, predação de instalações já precárias e tensões, por vezes traduzidas em enfrentamento concreto entre lideranças carcerárias e autoridades. Tem sido assim no Brasil desde os anos 1980; trata-se de um padrão há muito reconhecido por todos que fazem parte do sistema, como autoridades, gestores, funcionários ou apenados. É desse mesmo período que o abandono, a violação das normas de execução penal e a privação de condições básicas para o cumprimento das penas são recenseados e apontados por uma série de estudos de natureza sociológica (RAMALHO, 1979RAMALHO, José Ricardo. O mundo do crime: A ordem pelo avesso. Rio de Janeiro: Graal, 1979.; COELHO, 2005COELHO, Edmundo Campos. “A Oficina do Diabo: Crise e conflitos no sistema penitenciário do Rio de Janeiro (1987)”. In: COELHO, Magda Prates (org). A Oficina do Diabo e outros estudos sobre criminalidade. Rio de Janeiro: Record, 2005, pp. 27-196.). Como também registrado na literatura, é nas rebeliões, e somente nelas, que as condições de encarceramento são tratadas como um problema político e chegam aos olhos do grande público no Brasil.
Aliada à sua forte carga dramática e duração prologada, o episódio de 2017 tem peculiaridades dignas de nota. Todos os 123 mortos no conflito foram presos assassinados por outros detentos. Além disso, o conflito não ocorreu a partir de reivindicações por melhorias no sistema ou protestos contra suas condições de funcionamento, mas foi assumido abertamente por seus protagonistas como parte de uma disputa de facções vinculadas ao crime pelo controle de unidades prisionais. Ao mesmo tempo que as facções evidenciavam o caráter secundário do Estado na gestão da rotina no sistema, a cada capítulo da crise enviavam um recado aos rivais.
À precariedade já largamente estudada por pesquisadores e denunciada por ativistas desde o último quarto do século passado, soma-se um elemento relativamente novo, cada vez mais evidente e dramático: o conflito armado intramuros por grupos conectados direta e inequivocamente às atividades criminais do mundo do crime externo ao sistema penitenciário (OLIVEIRA e KRÜGER, 2018OLIVEIRA, Giovanni França; KRÜGER, Caroline. “As relações de reciprocidade e dívidas morais entre o presídio e a rua: A expansão e transnacionalização do Primeiro Comando da Capital (PCC) na fronteira Brasil-Bolívia”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, vol. 11, n. 1, pp. 28-52, 2018.). A literatura já dispõe de alguns elementos explicativos para esse fenômeno que tem nos conflitos e rebeliões de 2017 seu marco performático. O acirramento da política punitiva, que leva ao encarceramento em massa encampado pelo Estado brasileiro nas últimas décadas, acentua problemas estruturais já conhecidos. O aumento da população carcerária se dá em direção inversa à capacidade do Estado de administrar e prover as condições necessárias para o devido cumprimento das medidas penais (CÂMARA, 2007CÂMARA, Paulo Sette. “A política carcerária e a segurança pública”. Revista Brasileira de Segurança Pública, ano 1, vol. 1, pp. 64-70, 2007.). Como contrapartida, essa mesma população se organiza e se torna mais articulada, até testemunharmos no interior do sistema prisional de São Paulo o surgimento e crescimento do Primeiro Comando da Capital (PCC), considerado, hoje, a maior facção criminal do país (SALLA, 2006SALLA, Fernando. “As rebeliões nas prisões: novos significados a partir da experiência brasileira”. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16, pp. 274-307, 2006.; MANSO e DIAS, 2017MANSO, Bruno Paes; DIAS, Camila. “PCC sistema prisional e gestão do novo mundo do crime no Brasil”. Revista Brasileira de Segurança Pública, vol. 11, n. 2, pp. 10-29, 2017.; ALVARES, SALLA e DIAS, 2013). Processo semelhante ocorre em outros estados, mas quando essa mesma organização - também em função de políticas punitivas discutíveis - se espalha pelas prisões do país, temos o início de um processo de disputa por poder que evidencia o caráter abúlico do Estado e a radicalidade dos confrontos travados no interior das prisões brasileiras. Os episódios de 2017 são a expressão cabal desse cenário.
Nessa concertação, a grande imprensa costuma cumprir um papel importante. Cabe a ela, em grande medida, dar ressonância aos episódios, acompanhar cada fase dramática do processo e conferir inteligibilidade ao que se passa. Também ela, no seu papel de núcleo de produção narrativa, costuma seguir certos padrões. Como admite Nils Christie (2007CHRISTIE, Nils. Limits to Pain: The Role of Punishment in Penal Policy. Eugene, Oregon: Wipf & Stock Publishers, 2007.), o sistema penal é concebido e desenhado para infligir dor àqueles para os quais foi erigido. No contexto de revoltas e sublevações no sistema carcerário, cabe à imprensa dar visibilidade à dor própria do sistema. Ela o faz a partir da construção de performances, lances dramáticos, histórias e enredos que marcam metonimicamente a natureza e as configurações do sistema carcerário. Há algo na cobertura da mídia a esses episódios que faz com que a dor seja estetizada.
Os jornais impressos que integram a imprensa hegemônica2 2 Trata-se dos veículos com maior distinção no campo jornalístico, com pretensões de terem leitores em nível nacional, e que detêm o maior número de assinantes no país (PODER360, 24/01/2019). brasileira, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo, retrataram os episódios de 2017 criticando os atos de violência, geralmente descritos no campo semântico da “barbárie”, e a ineficiência do poder público para gerir os presídios e conter as facções criminosas3 3 As coberturas desses três jornais concentraram a atenção no poder extramuros das facções e atribuiu uma relação direta de causalidade entre os massacres e a disputa pelo monopólio do tráfico de drogas. . Para reforçar o caráter absurdo das mortes em grande escala nas unidades prisionais, esses veículos de comunicação adotaram estratégias com estruturas semelhantes. Em vez de retratarem todos os presos como bárbaros desprovidos de identidade que operam exclusivamente pela linguagem da violência, conforme o estereótipo do preso no Brasil4 4 Na dissertação de um dos autores (OLIVEIRA, 2019, pp. 80-92), esse personagem foi chamado de preso-bárbaro, para se referir àqueles detentos identificados como os responsáveis materiais - não intelectuais - pelas mortes no período analisado. Já os indivíduos apontados como os mentores dos ataques foram chamados de presos-líderes. , esses veículos formularam uma representação diversa, apresentando alguns detentos como vítimas. Houve, assim, uma abordagem claramente dualista em que se contrapuseram, de um lado, o preso bárbaro - violento, alinhado a uma facção criminosa - e de outro as suas vítimas, que também cumpriam pena e foram veiculadas como presos vitimados pela sanha de seus iguais e pela indigência estatal. Este último enquadramento será o tema deste artigo.
Atrelada à imagem do preso-vítima, está a de seus familiares e esposas, cujas vozes aparecem nos textos dos jornais fazendo apelos e exigindo a atuação do poder público; é por meio dessas pessoas do lado de fora dos muros - em geral mulheres - que a imprensa buscou transmitir em alguma medida o que é a experiência da vida intramuros5 5 Há uma extensa literatura dedicada a familiares de presos, seu papel e a estigmatização de que são objeto. Destacamos aqui Sinhoretto, Silvestre e Melo (2013) e Bassani (2011). . Se o discurso dos especialistas (por exemplo, integrantes do Judiciário, do Ministério Público, pesquisadores acadêmicos) confere legitimidade em termos de análise conjuntural, as pessoas ligadas aos presos-vítimas servem para mostrar - com aspecto de verdade irrefutável - o que é estar lá dentro e o impacto daquelas mortes. A partir dos primeiros, identificamos a marcação racional, pretensamente isenta e analiticamente precisa sobre as mazelas e fragilidades do sistema prisional e seus mecanismos de controle. Das pessoas ligadas aos presos vítimas, compõem-se as intervenções de cunho emocional. Enaltecendo os vínculos entre preso e família, os veículos de comunicação buscaram dar valor àquelas vidas perdidas, enquanto reforçaram o estigma contra a massa carcerária em geral, sem abordar problemáticas inerentes ao modelo carcerário adotado no país. A torção semântica operada na qualificação do preso-vítima, contudo, acaba por reforçar a demonização da comunidade carcerária como um todo, mais uma vez identificada nas figuras dos amotinados e nos seus gestos macabros.
Antes de empreender a análise do preso enquanto vítima, serão feitos alguns apontamentos acerca do trabalho jornalístico e da construção discursiva da cobertura de episódios como esse aqui tratado. Argumentaremos que o trabalho dos jornalistas se dá não por meio de descrições de um real unívoco que a eles se revela de forma transparente, mas mediante a utilização de representações, ou seja, da interpretação, significação e comunicação de diversos elementos - para além da constatação dos acontecimentos - apresentados como reais. Tal esforço se mostra válido para indicar a participação ativa e criadora dos veículos de comunicação no estabelecimento da realidade e, portanto, para explicitar como diversos grupos sociais são de fato percebidos. Sendo assim, a crítica a respeito da produção jornalística se repousará menos na falta de acuidade de apreensão do que na simplificação e repetição da maneira de formar a imagem de certos atores.
No caso aqui analisado, é possível vislumbrar uma possibilidade de mudança semântica: este detento, quase sempre já morto, é dotado - vê-se nos textos jornalísticos analisados - de uma série de características e nuances que não são comuns à figura do encarcerado que geralmente aparece nos jornais. Ao contrário, ele parece uma espécie de duplo invertido de seus algozes, oferecendo uma alternativa à descrição corriqueira da figura do preso, ao mesmo tempo que reforça por contraste os traços desse último, figurado nos episódios tratados como promotor da barbárie que se desenrola. Dessa maneira, cabe argumentar que, quando percebe ser necessário, a imprensa confere significados diferentes daqueles já reforçados para os atores sociais, afastando assim a visão de que tais veículos cobrem certos assuntos de uma maneira determinada simplesmente porque estariam presos à chamada “verdade dos fatos”.
Representação e construção da realidade
Esta análise se baseou na leitura de 264 textos jornalísticos6 6 A análise se delimitou aos textos dos cadernos Cotidiano (Folha de S. Paulo), Metrópole (O Estado de S. Paulo) e País (O Globo), deixando de lado aqueles apresentados como opinativos. Nem todos os textos trazem essa representação do preso-vítima, mas tal formulação só foi possível com a leitura de todo o corpus citado para a elaboração da dissertação de um dos autores (OLIVEIRA, 2019). A construção desse personagem se dá mais pela recorrência de determinados traços narrativos que aparecem em várias matérias do que propriamente pela observação de qualquer incidência estatisticamente determinada. Trata-se, portanto, de uma inferência decorrente de uma interpretação, tentativa que se faz possível pela leitura repetida e cruzada de diferentes abordagens das matérias destacadas. publicados entre 3 e 23 de janeiro de 2017 na Folha de S. Paulo, n’O Estado de S. Paulo e n’O Globo, tendo como pressuposto que os veículos de comunicação só conseguem levar adiante seu trabalho de informar por meio de representações, e não fazendo transcrições de coisas-em-si. Representar, no sentido aqui proposto, é a maneira de produzir e compartilhar sentido dentro de uma cultura (HALL, 2016HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Apicuri, 2016., p. 31), é a forma como grupos interpretam elementos como objetos, outros grupos, eventos - não importa se considerados “reais” ou “ficcionais”. Seguindo a proposta de Hall, representar também é como esses atores sociais formulam o que entendem ser esses elementos. Essa produção de sentido se dá por meio da linguagem e é o que permite a referência ao que se chama de “mundo real” (Ibid., p. 34). Levam-se em consideração, dito de maneira simplificada, dois sistemas de representação correlatos: 1) as representações mentais que cada indivíduo porta consigo, ou seja, as conceituações e imagens com as quais compreende o mundo; 2) os signos7 7 Hall (2016) define signo como um “termo geral para palavras, sons ou imagens que carregam sentido” (p. 37). utilizados para a comunicação, sendo o meio pelo qual se compartilha um mapa conceitual (Ibid., pp. 34-37).
É importante destacar que os esquemas portados por cada indivíduo já são construções sociais, não havendo uma espécie de “grau zero” interpretativo; como afirma Pierre Bourdieu (2017BOURDIEU, Pierre. A distinção: Crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2017[1979].[1979], p. 435), “todo conhecimento, e em particular, o do mundo social, é um ato de construção que utiliza esquemas de pensamento e de expressão”, com os seus agentes reagindo a um mundo que possui sentidos construídos por esses sujeitos. Dessa maneira, ter esse corriqueiro conhecimento social é uma tarefa ativa de interpretação de algo cuja formulação se dá com a contribuição do interpretante.
Convém reconhecer que o termo representação é extremamente polissêmico, com diferentes usos em várias áreas do conhecimento (filosofia, sociologia, história, direito, entre outras). É válido retomar aqui a defesa feita por Roger Chartier (2011CHARTIER, Roger. “Defesa e ilustração da noção de representação”. Fronteiras, vol. 13, n. 24, pp. 15-29, 2011.), no âmbito da história, do uso da noção de representação -tanto como objeto de estudo do historiador quanto como ferramenta de trabalho deste. Longe de ser algo a desviar do “mundo real” ou a promover uma distorção do passado (Ibid., pp. 15-16), “o conceito de representação foi e é um precioso apoio para que se pudessem assinalar e articular, sem dúvida, melhor do que nos permitia a noção de mentalidade, as diversas relações que os indivíduos ou os grupos mantêm com o mundo social” (Ibid., p. 20). O autor faz um breve excurso a respeito de significações mais antigas do termo - em dicionários de línguas francesa e espanhola dos séculos XVII e XVIII -, chegando a dois ramos de sentido: 1) o ato de tornar presente algo ausente e 2) a demonstração da própria presença (Ibid., pp. 16-18). Por meio da obra de Louis Marin, Chartier aponta como é possível e desejável para o fazer histórico manter os dois sentidos atrelados: o discurso histórico busca construir o passado no presente, entendendo ter por objeto algo diretamente inacessível, enquanto se expõe como um outro elemento que tem valor em si8 8 Aqui se está a aproximar os ofícios do historiador e do jornalista, na medida em que ambos lidam não exatamente a reboque dos acontecimentos, mas precisam construir o que buscam retratar. .
Embora Chartier chame a atenção para o uso do conceito para o fazer histórico, sua reflexão reforça a importância da noção de representação no entendimento da construção social da realidade e das disputas, sobretudo as simbólicas: “As representações possuem uma energia própria, e tentam convencer que o mundo, a sociedade ou o passado é exatamente o que elas dizem que é” (Ibid., p. 23).
Conforme o que foi exposto, os sentidos não emanam do referente, mas são estabelecidos e compreendidos socialmente, por meio de sistemas de representação, podendo ser fixados a ponto de parecerem naturais (HALL, 2016HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Apicuri, 2016., pp. 41-42). A percepção mais recorrente que se tem do mundo, então, é a da dóxa (BOURDIEU, 2017BOURDIEU, Pierre. A distinção: Crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2017[1979].[1979], p. 438), quando há a adesão de maneira irrefletida a regras que parecem tão óbvias quanto necessárias ao funcionamento do “mundo real” e do “mundo pensado”. Isso implica aceitar que subjaz uma série de relações - e disputas - sociais embutidas no processo de significar o mundo, e não apenas o desvendamento de alguma ordem previamente estabelecida.
O ato de representar, portanto, está umbilicalmente ligado à construção de identidades, de valores socialmente partilhados, e a toda uma rede de relações no que se pode chamar de imaginário social. Como aponta Bronislaw Baczko (1985BACZKO, Bronislaw. “Imaginação social”. In: LEACH, Edmund et al. Anthropos-Homem. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985, pp. 296-332., p. 298), o “imaginário” está longe da concepção de “ilusório” e não se deve pensá-lo como irreal. Não é porque algo não se constitui de maneira física na realidade, ou porque faz menção a um elemento que possa ser considerado falso ou ausente, que não tem consequências reais na vida em coletividade. Dessa maneira, o imaginário é um elemento norteador: “Informa acerca da realidade, ao mesmo tempo que constitui um apelo à ação, um apelo a comportar-se de determinada maneira” (Ibid., p. 311). Além disso, tem forte caráter normativo, pressupondo a adesão a um sistema de valores, modelando comportamentos, principalmente em momentos de crise, quando os indivíduos não querem ter incertezas em relação às suas escolhas (Ibid., pp. 311-312). É por meio do imaginário social que os grupos formam as imagens dos “amigos” e “inimigos”, criam “códigos de bom comportamento”, enfim, formam um ambiente regido por uma ordem na qual cada integrante tem o seu lugar determinado, com as justificativas para tal (Ibid., p. 309).
Dito de outra maneira, a noção de representação é aqui compreendida como o ato de formular e difundir sentidos, interpretações e compreensões a respeito de qualquer elemento que tenha valor social - objetos, sujeitos, acontecimentos, sentimentos etc. É por esse processo que se compreende o que vem a ser chamado de realidade. Assim, não se postula um Real - único e exterior às consciências - a ser percebido, mas se defende que há uma realidade socialmente formulada e difundida.
Nesse cenário, a imprensa tem um papel ativo - ainda que seja possível argumentar que menos determinante do que algumas décadas atrás - de contribuir para a criação, o reforço ou a modificação do entendimento por parte da sociedade de como diversos grupos sociais são. Isso porque, mais do que retratar ou sugerir interpretações, a representação diz o que é, ou seja, aquilo que a parcela social que está a representar defende que seja o representado, havendo certamente disputas pela significação.
Assim, deixa-se de lado a ideia de que a produção da imprensa traz relatos objetivos e muito menos neutros; se esta afirmação retira o sentido da crítica de que falta acuidade aos veículos de comunicação, não deve abrir margem para percepções de que estes manipulam como bem desejam suas produções9 9 Como buscou-se defender na dissertação de um dos autores (OLIVEIRA, 2019), a teoria dos campos de Bourdieu permite argumentar que há uma série de restrições e imposições — não necessariamente colocadas de maneira explícita e nem exatamente controladas pelos integrantes do campo jornalístico — que acaba por dar forma às produções da imprensa. Para compreensões gerais a respeito dos conceitos de habitus e de campo que norteiam essa teoria, ver Bourdieu (1983, 1985, 2000[1972]). . A crítica à imprensa pode repousar na repetição e simplificação das representações, que tendem a reforçar estigmas de certos setores e a poupar grupos dominantes. No caso aqui analisado, os detentos aparecem como tipos (types): “qualquer caracterização simples, vívida, memorável, facilmente compreendida e amplamente reconhecida, na qual poucos traços são reforçados e mudança ou ‘desenvolvimento’ são mantidos num nível mínimo” (DYER, 2006DYER, Richard. “Stereotyping”. In: DURHAM, Meenakshi Gigi; KELLNER, Douglas M. (eds). Media and Cultural Studies: Keyworks. Oxford: Blackwell Publishing, 2006, pp. 353-65., p. 355)10 10 Richard Dyer (2006, pp. 355, 363) distingue os tipos entre 1) tipo social (social type), quem vive de acordo com as regras de uma sociedade; 2) estereótipo (stereotype), quem é excluído pelas regras; 3) tipo-membro (member type), diferentemente dos anteriores, que são vinculados a tipos psicológicos, refere-se a grupos ou classes que são exteriores à hegemonia cultural. .
Richard Dyer argumenta que, enquanto esse processo de perceber o outro e a si por meio de poucas características pode ser considerado a maneira como uma sociedade dá conta de se identificar, é preciso levar em consideração que ele é acompanhado por mecanismos de universalização e balizamentos sobre formas de construção da realidade (Ibid., 1999). Ao comentar a proposta teórica de Dyer, Stuart Hall (2016HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Apicuri, 2016., pp. 191-192) indica que uma das consequências práticas do processo de tipificação é a construção da imagem do que uma pessoa de fato é, fixando limites estanques entre o aceitável e o inaceitável, o desejável e o indesejável, o virtuoso e o não virtuoso e assim por diante. Note-se que a tipificação, ainda segundo Hall, geralmente se dá em um processo que envolve relações de forças assimétricas.
Como lembra o autor, pessoas compreendidas como diferentes - encaixadas em um “eles” e não em um “nós” - costumam ter possibilidades duais de representação: “Elas parecem ser representadas por meio de extremos acentuadamente opostos, polarizados e binários - bom/mau, civilizado/primitivo, feio/excessivamente atraente, repelente por ser diferente/cativante por ser estanho e exótico” (Ibid., p. 145). Cabe a referência ao que Koselleck (2006KOSELLECK, Reinhart. “A semântica histórico-política dos conceitos antitéticos assimétricos”. In: Futuro passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006, pp. 191-232., p. 192) chama de “conceitos antitéticos assimétricos”, binômios com nomenclaturas em que não há reconhecimento de ambas as partes, desagradando um dos lados; são maneiras de nomear que servem para conferir unidade a um grupo, delimitando-o e estabelecendo diferenças com relação a outros. No caso das pessoas encarceradas, pode-se afirmar que os jornais operam em parte com binômios como civilizado/bárbaro, expondo apenas o segundo termo, enquanto aquele com conotação positiva permanece implícito nos textos: se presos são chamados depreciativamente de bárbaros - e entendidos como sendo essa a sua maneira de ser, sem levar em consideração uma série de questões sociais -, é porque há a percepção de que ao menos parte da sociedade fora dos muros é essencialmente mais educada, menos violenta, mais civilizada.
O que se defenderá neste artigo é que, no caso das mortes em série dos presídios em 2017, os veículos de comunicação analisados buscaram atribuir certos valores semânticos aos encarcerados entendidos como vítimas, em detrimento dos detentos classificados como algozes. A formulação dos primeiros como acuados, não propensos à vida do crime profissional, cujas mortes geram grande sofrimento às suas famílias, reforça a imagem geral dos presos como membros de um grupo social que merece ser apartado do convívio de maneira mais eficaz, sem gerar um debate a respeito dos limites do modelo carcerário adotado no país.
Antecipando a questão que discutiremos na seção subsequente, podemos colocar o problema da representação, tal como desenvolvido por Hall, nos seguintes termos: se não se compreende a representação feita pela imprensa como um problema em si - deixando de lado uma crítica que advogue pela transcrição do acontecimento tal qual se passou, ou ainda pela representação mais precisa -, como dar sentido à argumentação de que se deveria modificar a representação corrente do preso? Hall apresenta algumas estratégias de contestação de representações dominantes, argumentando especificamente no âmbito da discussão racial. Duas delas, a inversão dos estereótipos e a substituição de imagens negativas por positivas, padecem de problemas similares: grosso modo, não quebram o binarismo da representação, e de alguma maneira permanece aberta a porta para que pessoas negras sejam enquadradas de maneira estereotipada (HALL, 2016HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Apicuri, 2016., pp. 212-218). A terceira estratégia busca se opor a esse binarismo centrando-se no domínio da representação:
Em vez de evitar o corpo do negro, por estar ele tão absorvido pelas complexidades de poder e subordinação dentro da representação, essa estratégia o toma positivamente, como o principal local de suas estratégias representacionais, tentando fazer com que os estereótipos operem contra eles próprios (Ibid., p. 219).
Tal estratégia se configura como uma tentativa de contradizer as representações dominantes, buscando propor novas representações, em vez de apenas mudar seus conteúdos, sabendo da instabilidade inerente dos significados (Ibid., p. 219). No caso da imagem do encarcerado nos veículos de comunicação, parece ser pouco eficaz a publicação de reportagens que mostrem exemplos “positivos” de prisões11 11 Dentre os parcos exemplos nesse sentido destacam-se, por colocar os casos positivos em primeiro plano de maneira a propor alguma reformulação factível para o modelo carcerário, duas reportagens que tomaram a gestão penitenciária do Espírito Santo como bom exemplo: “Reviravolta põe Espírito Santo como modelo contra violência em prisões” (LOBEL, 10/01/2017) e “Espírito Santo vira modelo de recuperação do sistema prisional” (REMÍGIO, 15/01/2017). No entanto, o preso não aparece como personagens nesses textos; em vez disso, autoridades falam das unidades prisionais, dados são citados, mas não se representa o detento. ; como essa representação de menor escala só tem sentido porque aparece contraposta à representação mais geral das prisões como locais da selvageria, mantém-se o binarismo representacional, e o preso pode sempre ser recolocado na ponta estigmatizada. Dessa maneira, durante a cobertura da crise de 2017 ocorreu uma valorização momentânea de parcela dos encarcerados entendidos como vítimas, mas reforçando a agressividade de seus algozes, o que mantém dualidades como vítima/vilão, civilizado/bárbaro, digno de luto/indigno de luto, sem ensejar uma mudança na maneira como a imprensa representa o preso, posto que está presente a imagem geral do detento violento representado como algoz.
Cabe ainda dizer que a acepção de representação aqui utilizada é a de uma atividade que pode ser diversa da representação em seu sentido mais político, do “sentir-se representado”. Em um ambiente de disputas simbólicas por hegemonias de imaginários, grupos podem entender que determinada maneira de representação nos veículos de comunicação não faz jus à visão que têm de si próprios, como ocorre com vários movimentos de defesa de direitos de minorias. Propomos aqui, então, a noção de local enunciativo, isto é, o espaço cedido pelos veículos de comunicação para a entrada explícita de outros discursos em seu próprio - depoimentos, relatos, pronunciamentos, documentos etc. - para dar corpo à argumentação de que as reportagens formulam o real por meio da construção de personagens. Apresentar indivíduos, deixar que falem, não significa abrir um caminho axiologicamente neutro, nem necessariamente modificar identidades sedimentadas no imaginário social. Não se trata aqui de uma noção similar à de “lugar de fala” (RIBEIRO, 2017RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento/Justificando, 2017.), que entende desigualdades estruturais enquanto reivindica uma série de políticas que buscam “reconhecimento” (FRASER, 2002FRASER, Nancy. “Redistribuição ou reconhecimento? Classe e status na sociedade contemporânea”. Interseções: Revista de Estudos Interdisciplinares, ano 4, vol. 1, pp. 7-32, 2002.). Em vez disso, o local enunciativo diz respeito a um aspecto formal dos padrões atuais de texto da grande imprensa direcionado para gerar a sensação de realidade12 12 Está presente aqui a referência ao effet de réel de que fala Roland Barthes (2004[1984]) ao tratar do aparato utilizado pela literatura realista para dotar o texto de um novo tipo de verossimilhança. : são os casos das falas reproduzidas em discurso direto, das informações atribuídas a terceiros, de relatórios de investigações citados.
Convém esclarecer que não entendemos o fazer deste artigo fora do tratamento dispensado à produção jornalística. Não será postulado que a análise simplesmente observou o que emanou dos textos; trata-se também de uma elaboração a partir da leitura das reportagens, defendendo que há uma regularidade na maneira como os jornais analisados retrataram os presos como vítimas na cobertura da crise penitenciária de 2017.
Elementos de empatia
O tipo aqui nomeado preso-vítima se refere aos detentos que foram alvo da violência letal de outros encarcerados no correr dos quase 30 dias de crise aguda nas penitenciárias do Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte, em 2017. Para categorizar tais atos na linha semântica da selvageria, do horror, da barbárie, os jornais analisados acentuaram o valor das vidas perdidas, distinguindo os indivíduos mediante expedientes discursivos capazes de produzir empatia nos leitores. Os presos considerados vítimas foram retratados como pessoas com nomes, trajetórias, dores, planos, vontade de seguir uma vida fora do crime e, principalmente, famílias. Parentes (quase sempre mulheres) e esposas serão chamados aqui de porta-vozes, e são a referência central desse processo de construção discursiva por meio da qual se opera uma redefinição semântica desses presos.
A formulação da figura do detento como vítima se deu quase totalmente por meio desses atores: são as porta-vozes que os apresentam, contam por que eles foram presos, o que eles estavam fazendo para mudar de vida, denunciam a situação de miséria e de abusos a que estavam reduzidos. Como a análise da representação desse encarcerado é praticamente a análise do que não está lá - algo de que muito se fala, mas que pouco é mostrado, a não ser quando da sua morte -, optamos por discorrer conjuntamente sobre essas duas representações: o preso-vítima e suas porta-vozes. Segundo a construção narrativa aqui analisada, um só existe em função do outro.
Pode-se estabelecer algumas características básicas desses tipos: 1) o preso-vítima é veiculado como objeto de um ato violento, em geral cometido de maneira injusta. Ele não é vinculado ao mundo do crime organizado e poderia não estar preso. Compartilha de valores bem vistos no imaginário social difundido pela imprensa (apreço pela família, pelo trabalho, pela educação formal e pela religião); 2) a parente porta-voz luta por vários direitos - à informação, a condições mais dignas de vida nas prisões -, sofre por causa da morte do familiar, da falta de estrutura no Instituto Médico Legal (IML) para dar informações, da falta de condições financeiras para fazer o enterro, também se desvincula das relações com facções criminosas e por vezes empreende meios mais ativos para se fazer ouvir, como manifestações capazes de interferir no fluxo de veículos nas imediações das unidades prisionais. E o mais importante: esse papel é desempenhado majoritariamente por mulheres. São mães, irmãs e esposas, sobretudo, aquelas que apresentam os elementos de humanização das vítimas letais dos episódios aqui analisados13 13 Sobre os papéis desempenhados pelas mulheres, mães e irmãs de preso ao longo do tempo que eles cumprem sentenças, ver Duarte (2015). .
De início, é importante indicar que notamos um padrão na seleção de discursos pelos jornais. As pessoas ligadas afetivamente aos presos - ou em raras vezes os próprios detentos - emergiram quando portaram algo de testemunhal em sua fala, ou seja, quando denunciaram alguma violência sofrida (ameaça da polícia, falta de informação sobre parentes presos, falta de estrutura na espera do reconhecimento do corpo) ou presenciada (falta de mínimas condições de dignidade humana nos presídios). Em muitos casos, o local enunciativo das porta-vozes simplesmente expressa afetos - na linha da tristeza, angústia ou do sentimento de injustiça - que, além de serem percebidos como elementos que trazem mais verdade ao texto jornalístico, por partirem das pessoas percebidas como diretamente envolvidas no acontecimento, são características que o campo jornalístico entende não poder portar em sua própria voz: “‘Tive com meu filho antes do Natal. Ia voltar neste sábado pra levar uma sandália que ele pediu e comida feita: arroz, bife, macarrão. Ia levar também refrigerante, um bolo feito. Ele comia lá com os outros’” (HERDY, 04/01/2017). Aqui, cria-se a imagem da relação de uma mãe com seu filho nos moldes de uma família considerada padrão, deslocando a situação de criminoso/presidiário para o segundo plano. Ela não sabia se o filho estava vivo e a reportagem se põe na perspectiva dos familiares:
(...) duas histórias possíveis afligiam quem aguardava sob o sol em frente ao prédio da polícia científica estadual: nas próximas horas receberiam a triste notícia de confirmação da morte do ente querido, ou ganhariam o alívio de saber que, na verdade, ele era um sobrevivente (Ibid.).
Elementos com poder de gerar empatia não faltam: a descrição do sofrimento físico em busca de informações - “sob o sol em frente ao prédio” -, a referência ao preso como “ente querido” e a afirmação de que descobrir que ele não estava morto seria um “alívio”.
Além disso, as porta-vozes muitas vezes carregaram em seu local enunciativo alguma crítica ao trabalho das autoridades: “‘Ninguém sabe, não tem como saber se é de vivo ou de morto [a lista de nomes no IML]. E aí?’” (VALENTE, 04/01/2017); “‘Não tenho notícia do meu marido. Ninguém passa informação e ninguém dos direitos humanos veio nos ajudar’” (O ESTADO DE S. PAULO, 16/01/2017). A denúncia também pode ser relativa às péssimas condições de vida nas prisões; os parentes dos detentos, apesar de não vivenciarem aquela realidade como os encarcerados, vão rotineiramente ao local e têm alguma experiência física do que é estar ali dentro. Além disso, têm uma rede de contatos e recebem várias informações sobre o que se passa por trás dos muros. Assim, é possível fazer a denúncia a distância, como fez a mãe de um presidiário do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus: “Ela declarou ter visto na internet imagens das celas do ‘seguro’14 14 Espaço dentro de uma unidade penitenciária reservado a presos mais propensos a serem alvos de atos de violência por parte de outros detentos. , incendiado e destruído, e soube que ‘todos morreram’. ‘Não tem como ele ter escapado’, disse” (Ibid.).
Para recontar a violência intramuros, recorre-se a uma espécie de repasse de “matéria-prima”15 15 O termo foi utilizado por Beatriz Sarlo ao citar a análise de Giorgio Agamben (2008) sobre textos de Primo Levi. (SARLO, 2006, p. 34) da experiência, já que aquele que vivenciou a situação morreu, ou então não se tem acesso a ele. Ademais, há que se considerar a dificuldade de se representar determinados aspectos de episódios extremos: algumas circunstâncias são por demasiado inacreditáveis, o que torna precária a compreensão, por parte das pessoas externas a elas, do que determinado acontecimento representou. É o que afirma Sarlo sobre os relatos de Primo Levi a respeito do dia a dia em Auschwitz: “A memória tende a resgatar os ‘episódios singulares, clamorosos ou terríveis’, mas esses episódios ocorriam num tecido totalmente desfeito, que perdera quase por completo suas qualidades sociais” (Ibid., p. 35). Um exemplo desse relato terceirizado da experiência é a denúncia da falta de condições mínimas de higiene e alimentação: “‘Os presos que são de fora, que não têm parentes aqui para trazer comida, só eles comem a comida do presídio. Ninguém come aquilo, nem porco come’” (VALENTE e BERGAMO, 06/01/2017), disse um dos parentes.
Há ainda casos em que se configurou uma admissão terceirizada de culpa, uma confissão pelo outro: essa porta-voz assume que o preso realmente cometeu crime, mas deixa claro que ele não compartilhava do ethos16 16 Optamos pela utilização do termo sem acento por conta de seu emprego sociológico, que se põe entre as noções de caráter - êthos (ἦθος) - e de costume - éthos (ἔθος) -, traduções possíveis para os conceitos. Ver Fusulier (2011). do criminoso, apenas queria cumprir a pena e seguir a vida. Faz-se necessário estabelecer o que se entende por confissão e testemunho. Susannah Radstone (2006RADSTONE, Susannah. “Cultures of Confession/Cultures of Testimony: Turning the Subject Inside Out”. In: GILL, Jo (org). Modern Confessional Writing: New critical essays. Nova York: Routledge, 2006, pp. 166-79.) usa a metáfora de uma situação em um tribunal para distinguir os dois conceitos: o réu, que pode portar em sua fala a confissão, reconhece ou não a própria culpa, suas respostas tratam de suas ações ou motivações; a testemunha, por sua vez, tendo como alvo de seu depoimento outra pessoa (o réu) ou algum acontecimento, fala sempre de algo externo a si:
No caso da testemunha cuja palavra diz respeito a um ato que supostamente lhe foi perpetrado, o depoente fornece evidências do que foi feito contra ele, e busca descrever acontecimentos testemunhados para esclarecer quem é culpado do quê. No caso do réu/aquele que confessa, seu discurso diz respeito a se foi ele quem perpetrou determinado ato ou não (Ibid., p. 168)17 17 “In the case of the witness whose testimony concerns an act that has allegedly befallen them, the testifier supplies evidence of that which has been done to them and seeks to describe witnessed events in order to clarify who is guilty of what. In the case of the defendant/confessant, their discourse concerns whether or not it was they who were the perpetrators of that act” (RADSTONE, 2006, p. 168, tradução nossa). .
Fica clara a distinção entre, de um lado, um discurso (confissão) que só faz menção a si: o self é sujeito e objeto; de outro, um discurso (testemunho) centrado em algo externo a quem fala e que só joga luz em seu autor se for para indicá-lo como vítima ou testemunha de algum mal (Ibid., p. 169). No que diz respeito aos elementos de confissão percebidos nos relatos analisados, pode-se dizer que possuem uma peculiaridade em comparação com a definição acima: os familiares dos presos confessam pelos detentos, parecem agir compreendendo que os julgamentos, sobretudo morais, que costumam recair sobre os presos também recaem sobre eles.
A vontade de não estar vinculado a uma imagem de sujeito desviante apareceu com certa recorrência, ainda que não de maneira exaustiva, em relatos selecionados pelos veículos de comunicação. Para isso, foram trazidos à tona elementos que criaram uma imagem do detento distinta daquela consolidada no imaginário social mais geral. De moralmente reprovável, desprovido de identidade própria e subsumido à imagem de barbárie, o preso-vítima é humanizado. Pela voz de mães, irmãs e esposas, principalmente, ele se torna alguém passível de despertar empatia. O vínculo familiar é o canal explícito que articula uma economia discursiva em que a identidade do preso é veiculada a de um indivíduo que estava estudando, queria trabalhar, participava de uma comunidade religiosa: “‘Meu filho estava estudando, passou no Enem e queria passar no vestibular de engenharia’” (VALENTE, 04/01/2017). A reportagem afirma que esse preso tinha um filho de um mês de idade, além de ter se convertido a uma igreja evangélica. É possível supor que os veículos de comunicação entendam que com tais elementos seja possível que o leitor (e talvez os próprios jornalistas envolvidos no processo) sinta empatia e de alguma maneira aceite as denúncias ali apresentadas, reprovando a violência do massacre. O objetivo parece ser romper com a visão geral de que se trata de pessoas cuja possibilidade de vida em sociedade é posta em xeque e com relação às quais não se deveria estabelecer qualquer sensação de injustiça.
Essa representação fica explícita no título de outra reportagem, “Filho, pai, irmão” (HERDY, 09/01/2017). Nela, as relações familiares do preso-vítima morto são trazidas à tona, a ponto de o texto começar descrevendo a filha dele em uma cena feita para comover: “Vestindo sapatilhas amarelas e um vestido cor-de-rosa, a menina de 7 anos estava com os olhos vidrados no giro dos cataventos de plástico que enfeitavam lápides do Cemitério Campo da Saudade. Mal percebia o caixão do pai” (Ibid.). Impossível não supor que o efeito buscado não seja o de fazer com que o leitor estabeleça um laço afetivo com pessoas ligadas à vítima e, por extensão, com o preso-vítima. O texto segue mostrando que o detento não era um criminoso perigoso, usando a fala de sua irmã para reforçar o argumento: “‘Ele era cabeça de vento, Maria vai com as outras, era muito bobo, meu irmão’” (Ibid.).
Uma reportagem da Folha de S. Paulo explicita essa tentativa de conferir identidade aos presos-vítimas e indicar que eles eram, em sua maioria, detentos de menor potencial ofensivo. O texto afirma que a maior parte dos assassinados, somando os casos de Manaus e Roraima, estava encarcerada por roubo - 35 dos 69 mortos identificados até aquele momento. Especificamente em Manaus, apenas dez eram acusados por homicídio (FOLHA DE S. PAULO, 08/01/2017). A reportagem traz fotos, nomes completos (sem apelidos18 18 Como sugerido na dissertação de Oliveira (2019, p. 95), o apelido aparece como um dos raros traços de distinção por parte dos jornais em relação aos presos fora da condição de vítima. No entanto, nesse universo, ele tem valor negativo ao atrelar fortemente o detento ao crime organizado. ), o crime motivador da prisão e, nos casos das vítimas de Manaus, a idade. Logo no início narra dois casos de estupro em que os presos, ou suas famílias, negavam as acusações; em um deles, a reportagem sugere uma comoção popular por causa da morte do detento: “Errailson Ramos de Miranda, 33, havia sido condenado sob acusação de estuprar e matar uma criança de quatro anos. A família não o abandonou no presídio. No seu enterro, havia mais de 50 pessoas” (Ibid.). Mesmo ao tratar de uma acusação tão grave, a reportagem afirma que havia pessoas apoiando o detento. Há ainda o caso de um ex-policial civil entre os assassinados, que havia denunciado “um suposto esquadrão da morte comandado pelo então deputado estadual pelo extinto PL [Partido Liberal] Wallace Souza” (Ibid.). Aqui se aponta mais uma injustiça cometida contra alguém que, apesar de estar preso, tinha sido protagonista de um ato valoroso e não recebeu a segurança necessária por parte do Estado.
Em outros momentos ficou mais clara a tentativa de desvincular o preso-vítima do mundo do crime, afastando-o das facções criminosas, como na reportagem que traz no título o depoimento de um parente: “‘Ele nunca teve envolvimento com facção’, diz irmão de vítima” (O ESTADO DE S. PAULO, 05/01/2017); no corpo do texto, a intervenção é complementada por: “Não era esse tipo de pessoa de crime também’” (Ibid., grifo nosso). Aqui está implícita a noção de que existem definições razoavelmente estritas em relação a quem é do mundo do crime e quem não é, que se desdobra em uma tipologia do caráter dos indivíduos. A reportagem também refaz o momento em que o preso-vítima mandou a última mensagem para a família, pedindo ao irmão para cuidar dos familiares, dando mais elementos para gerar empatia: “Maciel pressentiu a eclosão da briga que estava por vir, mas não conseguiu escapar. Foi uma das 56 vítimas” (Ibid.). Além disso, o irmão do preso-vítima teve espaço para dizer que não havia nada que o detento pudesse ter feito: “‘Se falasse [sobre a iminência do confronto], corria o risco de morrer antes mesmo” (Ibid.). Sem retirar a sua condição de preso, ele é enquadrado como uma figura oprimida pelos outros detentos violentos. O relato do irmão traz outro elemento já comentado aqui, a crítica às autoridades: “‘o governo estadual poderia ter evitado tudo isso’, se tivesse provido uma melhor segurança no sistema carcerário” (Ibid.).
Ao trazermos o pensamento de Michel Foucault, a noção de desvio, aqui colocada em evidência, é importante para se entender a força do controle social por meio da ameaça a todos da possibilidade de passagem a esse estado indesejado, sendo a população pobre a mais propensa a isso. Analisando essa distinção no autor, Paulo Vaz (2016VAZ, Paulo. “O processo de normalização”. In: RODRIGUES, Heliana de Barros Conde; PORTOCARRERO, Vera; VEIGA-NETO, Alfredo (orgs). Michel Foucault e os saberes do homem: Como, na orla do mar, um rosto na areia. Curitiba: Prismas, 2016, pp. 487-503.) lembra que a cultura é o elemento que diferencia o certo e o errado, sendo a distinção entre normal e anormal apreendida em um processo de socialização visto por seus participantes não como restrições da maneira de pensar e ser, mas como uma descoberta pessoal que leva à liberdade (pp. 488-489). Vaz (Ibid., p. 489) indica que, para Foucault, essa classificação provoca uma divisão no interior do sujeito e na relação com os outros, já que no anormal se acumulam desejos desviantes e desprezo social, ou seja, o desvio e sua punição. Segundo o autor, Foucault propõe que por meio dessa condição de anormal pode ser operada uma relação entre poder e morte calcada na positividade, quando se reforça a percepção da iminência daquilo que se quer evitar: “essa forma de poder, para ser efetiva, precisa incessantemente fazer existir a ameaça, pois só assim sua intervenção é demandada e legitimada” (Ibid., p. 499).
Na perspectiva carcerária, para Foucault, lembra Vaz, o poder se exerce não exatamente ao se punir com os suplícios, como no passado, mas com a constante possibilidade de restringir a liberdade daqueles que não se enquadrarem nas diversas regras estabelecidas na cultura (Ibid., p. 493): “a sociedade disciplinar massifica, pois constitui em todos a virtualidade de ser anormal e suscita, assim, o desejo e o esforço de cada um em evitar essa atualização” (Ibid., p. 496). Tal esforço fica patente na maneira como os jornais usaram os relatos das porta-vozes apresentados até o momento. A título de reforço: para a presente análise, esses depoimentos dizem mais sobre os veículos de comunicação - como querem representar o ocorrido e os seus atores - do que sobre os indivíduos que têm alguma relação com os presos-vítimas. Entendendo a escrita jornalística em um plano de construção da realidade, defende-se que os relatos presentes nos textos são o resultado de um esforço ativo dos profissionais da imprensa, e não o produto inevitável do encontro com a verdade.
Com os elementos trazidos em boa parte por quem está sendo chamado aqui de porta-vozes dos detentos - críticas às condições de vida na prisão, individualização do preso como sujeito com apreço por certos valores e cuja morte gera trauma, além do afastamento do detento da condição de criminoso profissional -, os veículos de comunicação puderam estabelecer uma representação do preso enquanto vítima, sendo este um indivíduo que se mostra assustado, não propenso a atos violentos e muito menos apto ao dia a dia das prisões: “O neto da aposentada Maria Joaquina da Silva Sena, de 76 anos, esperava julgamento na unidade. ‘Eles estão com medo, gritando tanto que dá para ouvir. Isso tem que ser resolvido’” (HISAYASU e CARVALHO, 04/01/2017).
A única representação com destaque de um preso-vítima como autor de um relato também figurou a imagem de formulou um detento acuado. A Folha de S. Paulo ouviu diretamente um homem que havia fugido antes da deflagração do conflito no Compaj, em Manaus, e foi recapturado depois dos assassinatos em massa. Sua fuga foi contada sob a justificativa - via o depoimento do próprio preso - de que ele recebia ameaças e sua morte seria iminente: “‘Estavam falando que iam me matar aqui dentro. Aí eu pulei um muro, fui pelo mato, corri numas casas, peguei uma carona e fui para a cidade’” (VALENTE e BERGAMO, 06/01/2017). Além disso, o texto atribui a ele apreço pelo trabalho considerado lícito e pela família: “O detento disse que se escondeu por alguns dias e depois passou a trabalhar como carregador na feira central de Manaus, onde recebia cerca de R$ 80,00 por dia. ‘Esse dinheiro era para sustentar meu filho de seis anos’” (Ibid.). Ainda que não tenha confessado sua condição de criminoso, negando culpa na condenação por estupro, ele admite a fuga, que o contexto construído pela reportagem faz parecer compreensível. É em um cenário de reforço do preso-vítima como sujeito cuja vida é válida que o detento pôde até mesmo denunciar irregularidades cometidas contra ele: “‘A gente está com medo de virem aqui arrebentar a porta e matar todo mundo’” (Ibid.). No texto, percebe-se o tom de denúncia à falta de condições do poder público de manter o mínimo de segurança no local. Além disso, a reportagem abre espaço para outra reclamação: “A. diz ter sido condenado a cinco anos e quatro meses de reclusão e que já estaria ‘há mais de sete anos na cadeia’” (Ibid.). Assim, o próprio detento acusa o Estado de deixá-lo preso por mais tempo do que deveria e, por isso, obrigá-lo a passar por uma situação aberrante.
Outro caso raro de preso na posição de denunciante se deu com uma acusação que acabou por levar à destituição do diretor interino do Compaj (podemos nos perguntar se teria havido registro jornalístico sem essa consequência prática). Nesse episódio, de acordo com os relatos nos jornais, dois detentos escreveram 20 dias antes da chacina do início de 2017 uma carta afirmando que o diretor interino recebera dinheiro de presos integrantes da Família do Norte (FDN)19 19 Facção criminosa apontada pelos jornais analisados como rival do PCC nos casos das mortes em massa nos presídios de Manaus e Boa Vista. para facilitar a entrada de armas, drogas e celulares no complexo prisional. A acusação só foi publicada nos jornais depois que os denunciantes acabaram mortos no massacre. Há diferenças entre as abordagens feitas pelos jornais O Globo (LUCAS, 11/01/2017) e O Estado de S. Paulo (CARVALHO e OLIVEIRA, 11/01/2017) para o episódio. O primeiro faz um relato com mais espaço para citações da carta, enquanto o segundo cobra ação de órgãos que teriam competência para analisar o caso, como a Vara de Execuções Penais (VEP) e o Ministério Público. Apesar disso, a representação dos presos é similar, com os nomes completos divulgados e ênfase na possibilidade de se ter evitado as mortes dos denunciantes, cujas vozes não foram ouvidas a tempo. No entanto, as reportagens parecem se concentrar mais na crítica às autoridades do que nas condições de vida dos presos, já que a cobrança foi feita somente depois das mortes e sem críticas ao modelo carcerário, tanto que os títulos das reportagens dão destaque à destituição do diretor.
Todo o expediente para conferir elementos de empatia a esses presos e denunciar as injustiças cometidas contra eles foi levado adiante tendo a morte como sinal externo e irrefutável da condição de vítima, ou seja, de certa maneira os homicídios foram um fator indireto de humanização. Ainda assim, houve um interesse dos jornais em, de alguma maneira, reificar esses encarcerados ao expor textualmente o resultado das mortes em série, fazendo análises post mortem dos corpos mutilados e/ou carbonizados e descrevendo detalhadamente quantos foram decapitados, além de trazerem as consequências práticas das mortes - IML sobrecarregado, demora na identificação -, sem, no entanto, apontar possíveis causas estruturais ligadas à própria condição de encarceramento. Os textos dissecam os corpos com o que parece ser a intenção de reconstruir o acontecido: “nenhuma vítima foi poupada de perder alguma parte do corpo. Os relativamente menos afetados perderam um membro; os mais, foram esquartejados, com os órgãos retirados e acabaram até carbonizados” (CARVALHO, 04/01/2017, grifo nosso); “30 presos foram decapitados, alguns ainda vivos. Alguns deles tiveram o coração arrancado e os olhos furados” (O GLOBO, 07/01/2017); “Quase todos os corpos foram decapitados. Dois foram carbonizados e outro foi parcialmente carbonizado” (CARAZZAI e COSTA, 16/01/2017). Depois das mortes, sobrou o tecido orgânico sobre o qual recai uma atenção incomum, como se o corpo por si só pudesse recontar o que se passou dentro dos muros. Nota-se, então, uma atenção voltada à estrutura material dos corpos, a ponto de se falar em “relativamente menos afetados” em uma situação em que todos aqueles afetados foram mortos. Se Foucault (2013FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2013[1975].[1975], p. 13) defende que na lógica contemporânea da repressão penal “desapareceu o corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espetáculo”, parece haver uma inversão do princípio após as mortes, com uma fixação da imprensa com o que sobrou dos presos-vítimas.
A estratégia argumentativa adotada merece discussão. O que representaria exatamente a abordagem de humanização do preso-vítima por meio da combinação de dados de sua vida e de sua trajetória com a descrição de seu corpo dilacerado? Não haveria algo de paradoxal nesse tipo de cobertura? A interpretação que sugerimos é que mediante tal recurso, a barbárie do “preso comum”, o paroxismo das condições de cumprimento de pena e as inumeráveis brechas do sistema carcerário são mais acentuadas do que seriam de qualquer outro modo. O corpo supliciado investido de identidade, vínculos afetivos, trajetória de vida acaba por reforçar a imagem comum do preso já sedimentada no imaginário social brasileiro.
Nesse processo de representação do preso-vítima, as porta-vozes, além de terem seus relatos utilizados para a construção da imagem desses encarcerados, também tiveram uma imagem formulada pelos jornais, ainda que com certas divergências. A maioria delas eram mulheres em situação de fragilidade física e/ou emocional, passando por um trauma, apresentando em vários momentos certa postura passiva. No entanto, também houve a representação de mulheres agindo ativamente ao fazerem protestos por mais informações ou ao cobrarem energicamente meios para uma vida mais digna dentro das unidades prisionais, e que acabavam tendo que lidar com o mundo do crime, às vezes sendo associadas às facções. Poucas vezes a versão comum no mundo do cárcere segundo a qual a mulher (mãe, esposa, irmã etc.) cumpre a pena junto com o condenado foi confirmada de forma tão dramática.
Não foram raras as menções às porta-vozes em circunstâncias de desespero, vocalizando demandas e críticas (replicadas pelos jornais) ao poder público: “Cerca de cem pessoas tentavam chegar ao complexo penitenciário [Anísio Jobim, em Manaus] nesta segunda atrás de informações sobre os presos. Algumas mães gritavam em desespero e várias choravam” (VALENTE, 03/01/2017). No mesmo texto há espaço para a denúncia específica ao Judiciário ao apontar que um detento, encarcerado por tráfico de drogas, provavelmente vítima do massacre, não deveria estar preso: “[A mãe] disse que Rodrigo já estava para ser liberado. ‘Há três meses ele já podia ter saído, mas a juíza não liberou. Nossa Justiça não faz nada por nós” (Ibid.).
Houve uma atenção especial dos jornais com relação à rotina de espera e aos clamores das porta-vozes: “Eu não sabia de nada, a gente primeiro ficou na frente da cadeia, depois viemos para o IML, mas sem certeza de nada, e mesmo depois que tive certeza de que meu filho tinha morrido eu continuei sem ter muitas informações” (OLIVEIRA, 06/01/2017).
Em pranto convulsivo, a dona de casa Terezinha Nascimento, de 50 anos, era motivo de preocupação para mães de outros detentos na entrada da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, a maior de Roraima, palco do massacre de 31 pessoas na madrugada de ontem: “Eu tava ontem (quinta) com meu filho no hospital, com pneumonia. Pedi tanto para deixarem ele internado, mas não deixaram... voltou chorando no carro! Ontem era mais de meia-noite e ele ligou para dizer que mataram dois da cela dele, mas que tava muito bem! Mas não ligou mais” - lamentou entre soluços (HERDY, 07/01/2017, p. 5).
Além do reforço da representação do preso-vítima como acuado e inofensivo, esta passagem aponta para a solidariedade entre essas mulheres; embora o texto afirme que houve alguma assistência do governo para as famílias que aguardavam por informações (cadeiras de plástico, água, café da manhã e almoço), o destaque é para o nível emocional e o acolhimento que uma buscava dar à outra.
Em outras vezes, as porta-vozes foram representadas de maneira mais ativa, agindo de forma organizada, conseguindo informações e também causando algum distúrbio para chamar a atenção:
Sempre atentas a qualquer movimentação na frente dos presídios, elas bloqueiam vias, dispõem-se a informar os demais parentes e atualizam umas às outras com as notícias que recebem via celular. Em alguns momentos são as primeiras a terem informações sobre o que se passa no interior dos presídios (O GLOBO, 09/01/2017, p. 3).
Apesar de descreverem alguns atos potencialmente violentos levados a cabo por elas - “gritaram palavras de ordem e queimaram colchões e pedaços de madeira” (Ibid.) -, sua motivação é tratada de maneira geral como justificável. Mesmo nas ações consideradas mais enérgicas não se criticou abertamente essas porta-vozes: “quando o Batalhão de Choque da PM [Polícia Militar] chegou ao presídio, parentes dos detentos protestaram, queimando colchões e pedindo a saída do governador José Melo (PROS). Os agentes revidaram com spray de pimenta” (LUCAS, 09/01/2017, p. 3); “Mulheres e parentes de presos (...) por duas vezes tentaram romper o cerco feito por PMs em uma estrada de acesso ao presídio. Elas foram rechaçadas com empurrões e spray de pimenta” (VALENTE, 03/01/2017, p. B1). Ainda que os atos das porta-vozes não fossem reprovados explicitamente, tampouco se criticou a ação da polícia, ficando a impressão de que os jornais optaram pela postura de somente descrever o que se passou, tentando demonstrar isenção e neutralidade:
No início da noite, familiares protestaram fechando o acesso ao presídio com uma barricada feita de entulhos e lixo e depois com fogo. O movimento foi rapidamente dispersado por policiais militares, com spray de pimenta e tiros para o alto, e por agentes da Força Nacional, que reforçam a segurança na região (CARVALHO, 19/01/2017, p. A14).
Não se pode dizer, no entanto, que a representação não criminalizante das porta-vozes foi unânime no período observado. Há passagens dos textos jornalísticos em que se aponta a conexão das mulheres, ou de algumas delas, com o crime organizado. Tais sugestões apareceram, por exemplo, na abordagem da prática de cobrir o rosto, adotada por elas em algumas ocasiões. Uma reportagem afirma que as mulheres em Manaus estavam sendo chamadas de “mulheres de véu”: “O rosto coberto é a forma encontrada por elas de se proteger e não serem identificadas, por medo de represálias de facções rivais e até mesmo de autoridades” (O GLOBO, 09/01/2017, p. 3).
Outra reportagem (CHAGAS, 08/01/2017, p. B1) afirma que parentes de presos que ficaram 15 horas em frente à cadeia para onde haviam sido levados integrantes do PCC contaram que vinham sendo ameaçados. A menção é breve: “as mulheres e outros familiares que ficam das 7h às 22h afirmam que sofrem ameaças. ‘Tem um carro amarelo mandando a gente ir embora e ameaçando matar se ficarmos. Mas nem todas aqui são de facção, não’, diz uma mulher que não quer se identificar” (Ibid., grifos nossos). Aqui, ao mesmo tempo que se dá relevância à denúncia, já que a pessoa vivenciou o recebimento da ameaça, a denunciante é colocada em dúvida, quando o texto diz que mulheres e familiares “afirmam que sofrem ameaças”. Outro ponto digno de comentário é a escolha de uma fala em que uma mulher afirma que nem todas as que ficavam do lado de fora da cadeia pertenciam a facções criminosas. O relato escolhido para compor a reportagem, ao mesmo tempo que desvincula algumas mulheres da imagem desviante do crime profissional, incrimina outras.
As porta-vozes também apareceram expostas a uma violência causada por elas mesmas, em um transbordamento do conflito que se desenrolava dentro dos muros de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte: “as mulheres dos presos ameaçavam umas às outras, dependendo do lado do presídio de cada parente. ‘Não posso ir para o outro lado, senão elas me matam’, disse a vendedora Rita (nome fictício)” (MACHADO e PRADO, 18/01/2017, p. B3). Ainda que o texto, publicado na Folha de S. Paulo, traga o relato de uma mulher enquadrada como vítima, a expressão “umas às outras” permite ao leitor inferir que se trata de um comportamento difundido.
Um exemplo extremo de ligação das porta-vozes com o mundo do crime foi encontrado em outro texto da Folha, a respeito dos parentes dos presos de Alcaçuz, intitulada “Guerra familiar” (MACHADO e PRADO, 19/01/2017). O texto defende que, assim como os detentos estavam em guerra entre si, seus familiares participavam da duplicação desse conflito do lado de fora dos muros, chegando a afirmar que “duas batalhas ocorreram no presídio de Alcaçuz”, sendo “uma dentro e uma fora” (Ibid., p. B3). O texto não só iguala em grande medida as mulheres aos presos, como também as mulheres de facções distintas - nesse caso o PCC e o Sindicato do Crime. As demandas e reclamações de ambos os lados se tornam iguais e igualmente assimiladas a um contexto de pessoas em confronto criminoso, cujo capital simbólico20 20 Para uma delimitação do conceito de capital simbólico, ver, entre outros, Bourdieu (2007). é altamente negativado. O texto afirma que elas “dormem ao lado do presídio”, recorrem a jornalistas para se movimentar na região por acreditarem que “a presença de repórteres ou fotógrafos pode inibir um ataque rival”, mas também criticam a imprensa dizendo “que os jornalistas só mostram o outro lado, ou seja, o lado do governo ou a versão do grupo inimigo” (Ibid.). Especialmente no início da reportagem, é apresentada uma série de depoimentos curtos dessas mulheres, boa parte em tom de confronto: “‘A gente não ousa pisar no lado delas, mas não aceitamos elas aqui’”; “‘A regra deles (presos) vale para nós. É matar ou morrer’”; “‘É a mesma coisa deles, tudo ou nada’”, “‘Nós vamos ganhar essa guerra’” (Ibid.). Ainda que haja espaço para apontar relações de afeto entre as mulheres e os presos - “‘A gente sofre assim é por amor, porque somos as únicas pessoas na vida deles’” (Ibid.) -, a profusão de intervenções violentas justifica o argumento de que parentes e presos lutam a mesma luta (criminosa).
Sustentando o argumento de que a imprensa tem uma participação ativa na produção da realidade e que não age meramente a reboque dos acontecimentos, compreendemos que os jornalistas deram inteligibilidade ao caso da crise penitenciária de 2017 dotando familiares e esposas dos detentos de um ethos do crime utilizando sobretudo o seu discurso direto. Tal recurso produz um efeito de real inequívoco que permite ao veículo de comunicação esquivar-se de críticas a respeito da veracidade de sua produção, já que pode manter a retórica de que apenas retrata o que lhe aparece.
Conclusão
Como apontado neste artigo, os episódios ocorridos nas penitenciárias de Roraima, Amazonas e Rio Grande do Norte em 2017 distinguem-se significativamente da maior parte das rebeliões verificadas historicamente no Brasil. Em geral, elas se dão em razão da reação dos presos, ou de parte deles, ao sistema ou a determinadas medidas tomadas por autoridades. Embora eventualmente atinjam outros presos, os amotinados voltam-se geralmente contra funcionários, a polícia ou a administração penitenciária.
No caso em questão, as rebeliões foram assumidas abertamente como um conflito entre facções criminosas rivais pelo controle das unidades onde ocorreram. Não havia demandas ou pautas por melhorias nas condições prisionais; foram capítulos de uma guerra que se dá no sistema prisional, mas não se restringe a ele, com o foco da violência e da brutalidade dos amotinados voltando-se aos presos da facção rival. Desde o início desses conflitos, que se estenderam por cerca de um mês, apareceu, um novo personagem, forjado pela abordagem da grande imprensa e que também apresenta singularidades em relação a coberturas de episódios semelhantes do passado. Esse novo personagem é arrastado, na condição de vítima fatal, pela violência dos rebelados, aparecendo como uma das vítimas preferenciais da violência das rebeliões. Ele é figurado como não pertencente à lógica das facções, portador de um projeto de vida para depois do cumprimento da pena e tendo familiares, quase sempre mulheres - mães, irmãs, esposas ou companheiras - como verbalizadoras de seus infortúnios e seu desenlace final.
Todas essas características, atribuídas pelos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo a fim de formar as representações do que chamamos de presos-vítimas e suas porta-vozes, parecem longe de constituir um momento de mudança perene na cobertura da vida penitenciária por esses três jornais. A modificação semântica na avaliação dessa parcela de detentos deu mais peso de violência aos atos praticados intramuros, dentro dos moldes narrativos que esses veículos de comunicação já levavam adiante. Sendo assim, se há um ato classificado como bárbaro, selvagem, é porque - na perspectiva desses jornais - foram tão graves a ponto de fazerem vítimas de maneira cruel. O tratamento diferente dispensado aos presos-vítimas foi diverso daquele mais difundido no imaginário social sem, no entanto, eliminá-lo.
Compreende-se que ao longo de toda a cobertura tenha havido uma dificuldade física de acesso a esses atores, porém, tem-se em mente que há certa resistência dos grandes veículos de comunicação em representá-los de maneira próxima e empática. O caso analisado pode se configurar como um momento de exceção parcial, não somente pela amplitude e intensidade do conflito e da crise penitenciária, mas também porque detentos foram retratados tanto como vítimas quanto como algozes. Os aqui chamados presos-vítimas foram representados nos textos como indivíduos que, apesar de estarem no espaço do crime, não eram integrantes habituais dele, não portavam o ethos criminoso, estavam buscando um outro caminho - atrelado a valores como família, trabalho e religião - e foram vítimas de alguma injustiça na prisão, seja por não terem recebido a segurança necessária seja por não precisarem estar encarcerados.
Essa representação do preso enquanto vítima é uma distinção na construção da imagem do encarcerado até certo ponto porque continua havendo a presença constante da visão tradicional do preso: violento, moralmente reprovável, alguém por quem não se deve ter empatia. Assim, a representação do preso-vítima, embora tenha aberto uma janela momentânea de possibilidade de interpretações mais amplas a respeito do detento, tendeu a reforçar a visão estigmatizante da população carcerária em geral: os acontecimentos são formulados e dispostos de tal maneira a ensejar que quem percebe a gravidade do problema - as mortes - o faz em geral tendo como causa direta os presos, sem propor discussões que fossem além da necessidade de construir mais unidades prisionais, ou seja, sem ir além do reforço do modelo já implementado.
Esse processo de representação dos presos-vítimas foi feito em larga medida por meio do discurso das porta-vozes. A respeito desse tipo, seu local enunciativo aparece como uma espécie de testemunho: 1) do descaso do poder público para repassar informações; 2) das ameaças recebidas; 3) da dor de terem tido familiares vítimas da violência; 4) da violência inominável das relações dentro dos presídios a que foram submetidos seus familiares. De maneira associada à utilização dos relatos das porta-vozes, foi construída a sua representação (ambígua): mulheres, por vezes em estado de sofrimento, que não podem fazer muito além de manifestar luto; mulheres que buscaram justiça, agindo de maneira enérgica, por vezes recorrendo à violência, também inseridas em um contexto de violência, sendo algumas vezes enquadradas como integrantes do mundo do crime.
É possível supor que, nessa operação para prover de afetos a imagem do preso-vítima, os veículos de comunicação analisados tenham dado destaque aos relatos testemunhais por conta de certas regras do campo e preferências formuladas pelo seu habitus. Uma possibilidade é que esses profissionais percebam que tais falas são aceitas como fonte de sensação de realidade - para si e para o público -, o que fornece credibilidade e mantém determinado jornal em posição de relevância no debate dos assuntos tidos como importantes, conferindo-lhe capital simbólico. O uso de tais testemunhos, portanto, é mais um artifício discursivo em um processo de produção dentro de um regime de verdade. Esse expediente retórico, em si, não é compreendido como um demérito, mas a repetição das representações simplificadoras e estigmatizantes, além da presunção de alcançar a verdade objetiva e a expectativa do público de receber uma parcela do real tal qual aconteceu, são no mínimo um entrave para uma produção jornalística que ofereça visões de mundo mais plurais e para o aprofundamento de debates sobre a questão carcerária. No caso analisado, os jornais puderam ainda se colocar na posição de denunciantes da opressão, aqueles que combatem as injustiças, mas se mostrando como apenas um canal para outras vozes.
Especialmente em momentos de clamor popular, a imprensa busca se apresentar como um intermediário atento aos anseios de uma representação diferente de setores usualmente marginalizados, tornando públicas as demandas desses grupos e valorizando suas experiências, que não são as dos especialistas, mas sim olhares de quem adquiriu conhecimento por meio da vivência. Em outras palavras, a imprensa busca apresentar suas representações conferindo-lhes certa representatividade. Aqui há duas situações: 1) determinados grupos sociais reivindicam saberes daquilo que experienciam diariamente e desejam repassá-los diretamente, sem a necessidade de tradutores; 2) os intermediários (incluídos os veículos de comunicação), atentos a essa demanda, buscam se utilizar da voz dos excluídos, porém definindo o seu espaço e mediando seus relatos. A questão a ser discutida é se há alguma possibilidade de resposta da imprensa hegemônica que satisfaça essa vontade de representatividade, já que a produção jornalística, por definição, cerra os outros discursos no seu próprio.
Um dos caminhos pode ser propor maior complexidade nas representações construídas pela imprensa; se dotar a representação dos detentos de características positivas não resolve o problema da representação dominante, que legitima subjugar e tratar de maneira violenta parcelas da população, representar buscando fornecer um espectro mais amplo de características, além de adensar o debate a respeito da falta de resultados satisfatórios do atual modelo carcerário e suas constantes crises, parece ser uma via para, aos poucos, mudar de maneira significativa como os presos, as unidades prisionais e a instituição prisional são apresentados e, por conseguinte, como a sociedade os vê.
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» https://www.poder360.com.br/midia/efeito-bolsonaro-bump-foi-timido-e-jornais-tradicionais-perdem-assinantes - REMÍGIO, Marcelo. “Espírito Santo vira modelo de recuperação do sistema prisional”. O Globo, Rio de Janeiro, p. 4, 15 jan. 2017.
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1
Este artigo utiliza parte da dissertação de mestrado de Fabiano Oliveira, Representações no discurso do campo jornalístico: A cobertura da crise penitenciária de 2017, defendida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) em 2019 (OLIVEIRA, 2019OLIVEIRA, Fabiano Gomes Barros. Representações no discurso do campo jornalístico: A cobertura da crise penitenciária de 2017. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2019.).
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2
Trata-se dos veículos com maior distinção no campo jornalístico, com pretensões de terem leitores em nível nacional, e que detêm o maior número de assinantes no país (PODER360, 24/01/2019).
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3
As coberturas desses três jornais concentraram a atenção no poder extramuros das facções e atribuiu uma relação direta de causalidade entre os massacres e a disputa pelo monopólio do tráfico de drogas.
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4
Na dissertação de um dos autores (OLIVEIRA, 2019OLIVEIRA, Fabiano Gomes Barros. Representações no discurso do campo jornalístico: A cobertura da crise penitenciária de 2017. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2019., pp. 80-92), esse personagem foi chamado de preso-bárbaro, para se referir àqueles detentos identificados como os responsáveis materiais - não intelectuais - pelas mortes no período analisado. Já os indivíduos apontados como os mentores dos ataques foram chamados de presos-líderes.
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5
Há uma extensa literatura dedicada a familiares de presos, seu papel e a estigmatização de que são objeto. Destacamos aqui Sinhoretto, Silvestre e Melo (2013SINHORETTO, Jacqueline; SILVESTRE, Giane; MELO, Felipe Athayde de. “O encarceramento em massa em São Paulo”. Tempo Social, São Paulo, vol. 25, n. 1, pp. 83-106, 2013.) e Bassani (2011BASSANI, Fernanda. “Amor bandido: Cartografia da mulher no universo prisional masculino”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, vol. 4, n. 2, pp. 261-80, 2011.).
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6
A análise se delimitou aos textos dos cadernos Cotidiano (Folha de S. Paulo), Metrópole (O Estado de S. Paulo) e País (O Globo), deixando de lado aqueles apresentados como opinativos. Nem todos os textos trazem essa representação do preso-vítima, mas tal formulação só foi possível com a leitura de todo o corpus citado para a elaboração da dissertação de um dos autores (OLIVEIRA, 2019OLIVEIRA, Fabiano Gomes Barros. Representações no discurso do campo jornalístico: A cobertura da crise penitenciária de 2017. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2019.). A construção desse personagem se dá mais pela recorrência de determinados traços narrativos que aparecem em várias matérias do que propriamente pela observação de qualquer incidência estatisticamente determinada. Trata-se, portanto, de uma inferência decorrente de uma interpretação, tentativa que se faz possível pela leitura repetida e cruzada de diferentes abordagens das matérias destacadas.
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7
Hall (2016HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Apicuri, 2016.) define signo como um “termo geral para palavras, sons ou imagens que carregam sentido” (p. 37).
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8
Aqui se está a aproximar os ofícios do historiador e do jornalista, na medida em que ambos lidam não exatamente a reboque dos acontecimentos, mas precisam construir o que buscam retratar.
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9
Como buscou-se defender na dissertação de um dos autores (OLIVEIRA, 2019OLIVEIRA, Fabiano Gomes Barros. Representações no discurso do campo jornalístico: A cobertura da crise penitenciária de 2017. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2019.), a teoria dos campos de Bourdieu permite argumentar que há uma série de restrições e imposições — não necessariamente colocadas de maneira explícita e nem exatamente controladas pelos integrantes do campo jornalístico — que acaba por dar forma às produções da imprensa. Para compreensões gerais a respeito dos conceitos de habitus e de campo que norteiam essa teoria, ver Bourdieu (1983, 1985, 2000[1972]).
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10
Richard Dyer (2006DYER, Richard. “Stereotyping”. In: DURHAM, Meenakshi Gigi; KELLNER, Douglas M. (eds). Media and Cultural Studies: Keyworks. Oxford: Blackwell Publishing, 2006, pp. 353-65., pp. 355, 363) distingue os tipos entre 1) tipo social (social type), quem vive de acordo com as regras de uma sociedade; 2) estereótipo (stereotype), quem é excluído pelas regras; 3) tipo-membro (member type), diferentemente dos anteriores, que são vinculados a tipos psicológicos, refere-se a grupos ou classes que são exteriores à hegemonia cultural.
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11
Dentre os parcos exemplos nesse sentido destacam-se, por colocar os casos positivos em primeiro plano de maneira a propor alguma reformulação factível para o modelo carcerário, duas reportagens que tomaram a gestão penitenciária do Espírito Santo como bom exemplo: “Reviravolta põe Espírito Santo como modelo contra violência em prisões” (LOBEL, 10/01/2017) e “Espírito Santo vira modelo de recuperação do sistema prisional” (REMÍGIO, 15/01/2017). No entanto, o preso não aparece como personagens nesses textos; em vez disso, autoridades falam das unidades prisionais, dados são citados, mas não se representa o detento.
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12
Está presente aqui a referência ao effet de réel de que fala Roland Barthes (2004BARTHES, Roland. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004[1984], pp. 181-90.[1984]) ao tratar do aparato utilizado pela literatura realista para dotar o texto de um novo tipo de verossimilhança.
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13
Sobre os papéis desempenhados pelas mulheres, mães e irmãs de preso ao longo do tempo que eles cumprem sentenças, ver Duarte (2015DUARTE, Thais Lemos. Amor em cárcere: Relações afetivas no sistema penitenciário do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2015.).
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14
Espaço dentro de uma unidade penitenciária reservado a presos mais propensos a serem alvos de atos de violência por parte de outros detentos.
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15
O termo foi utilizado por Beatriz Sarlo ao citar a análise de Giorgio Agamben (2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: O arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008.) sobre textos de Primo Levi.
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16
Optamos pela utilização do termo sem acento por conta de seu emprego sociológico, que se põe entre as noções de caráter - êthos (ἦθος) - e de costume - éthos (ἔθος) -, traduções possíveis para os conceitos. Ver Fusulier (2011FUSULIER, Bernard. “Le concept d’ethos”. Recherches sociologiques et anthropologiques, n. 42-1, pp. 97-109, 2011.).
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17
“In the case of the witness whose testimony concerns an act that has allegedly befallen them, the testifier supplies evidence of that which has been done to them and seeks to describe witnessed events in order to clarify who is guilty of what. In the case of the defendant/confessant, their discourse concerns whether or not it was they who were the perpetrators of that act” (RADSTONE, 2006RADSTONE, Susannah. “Cultures of Confession/Cultures of Testimony: Turning the Subject Inside Out”. In: GILL, Jo (org). Modern Confessional Writing: New critical essays. Nova York: Routledge, 2006, pp. 166-79., p. 168, tradução nossa).
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18
Como sugerido na dissertação de Oliveira (2019OLIVEIRA, Fabiano Gomes Barros. Representações no discurso do campo jornalístico: A cobertura da crise penitenciária de 2017. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2019., p. 95), o apelido aparece como um dos raros traços de distinção por parte dos jornais em relação aos presos fora da condição de vítima. No entanto, nesse universo, ele tem valor negativo ao atrelar fortemente o detento ao crime organizado.
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Facção criminosa apontada pelos jornais analisados como rival do PCC nos casos das mortes em massa nos presídios de Manaus e Boa Vista.
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Para uma delimitação do conceito de capital simbólico, ver, entre outros, Bourdieu (2007BOURDIEU, Pierre. “La noblesse: capital social et capital symbolique”. In: LANCIEN, Didier; SAINT MARTIN, Monique de (org). Anciens et nouvelles aristocraties de 1880 à nos jours. Paris : Éditions Maison des sciences de l’homme, 2007, pp. 385-97.).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Fev 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2022
Histórico
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Recebido
18 Jan 2021 -
Aceito
26 Maio 2021