Open-access A importância das revistas científicas na comunicação do conhecimento

Numa das mais importantes reflexões já escritas sobre as instituições de ensino superior na periferia do capitalismo, Darcy Ribeiro (1968) em seu Las Universidades Latinoamericanas identificou três funções centrais que nossas universidades deveriam cumprir: a função docente, que sintetizaria principalmente a formação de alunos e de quadros profissionais necessários para a vida e o progresso da sociedade global; a função criativa, ligada principalmente à pesquisa, que permitiria incorporar o patrimônio de conhecimento atualmente existente, ampliá-lo e adaptá-lo ao desenvolvimento integral do país; e por fim uma função política, que envolveria uma participação das universidade nos problemas prementes da nação, incluindo aí a criação de “instrumentos de comunicação” com esta sociedade mais ampla da qual as universidades são partes constitutivas. As revistas científicas podem ser consideradas como um dos principais veículos para que estas três funções se cumpram da maneira mais completa possível.

A função principal das revistas científicas é a “comunicação da ciência” (Stumpf, 1996), tanto para o público acadêmico quanto para o não-acadêmico. Para Barbosa et al. (2013, p. 6-7), esta função poderia ser assim especificada: as revistas científicas servem para a “[...] divulgação de resultados das pesquisas (do saber científico) pelos cientistas, possibilitando a integração destes que desenvolvem pesquisas em áreas semelhantes, além de favorecer a disseminação e recuperação de informações pelos interessados em suas pesquisas”. A própria dinâmica científica, lembram Silva et al (2016, p. 117), depende em grande parte da comunicação das investigações realizadas no âmbito das “[...] diferentes comunidades científicas, de cada área do conhecimento”.

Na geografia, importantes autores se debruçaram sobre estes circuitos de produção e circulação do conhecimento produzido nas instituições de ensino e pesquisa. Nigel Thrift foi um deles, e para o autor todo tipo de conhecimento é histórica- e geograficamente específico, isto é, o conhecimento é sempre situado, tanto em suas condições de produção, quanto de difusão e “consumo” (Thrift, 1996). Toda sociedade possui certo “estoque de conhecimento”, que é diferentemente distribuído entre seus indivíduos, de acordo com o grupo social ao qual se pertence, assim como em função da proximidade dos atores aos locais de produção e difusão do conhecimento. Outro fator importante destacado por Thrift (1996, p. 104) é que o tipo de conhecimento que é normalmente produzido por instituições de ensino e pesquisa (universidades, associações científicas, etc.) é fundamentalmente dependente da palavra escrita, e dos meios físicos para difundi-la, como foi o caso dos livros e de todas as formas de disseminação do conhecimento que derivaram da invenção da imprensa (brochuras, jornais, panfletos, cartazes, etc), no auge do período medieval na Europa.

Para o autor, a invenção da imprensa teria as seguintes consequências para a disposição e circulação do conhecimento: 1. Aceleração da difusão do estoque de conhecimento disponível; 2. A codificação do conhecimento, que foi tornada possível (e mais do que isso, necessária); 3. A consulta, comparação e escolha entre diferentes itens do conhecimento se tornou também viável pela primeira vez (como o que passa a ocorrer nas bibliotecas); 4. Essa possibilidade de registro, codificação e comparação permitiu aumentar também a acurácia do conhecimento (sobretudo do conhecimento científico, em comparação aos demais tipos – conhecimento prático, religioso, e mesmo o conhecimento “inconsciente”, praticado pela maior parte da população na Europa da Idade Média); e por fim, 5. O aumento do estoque de conhecimento escrito permitiu que o este tipo de saber fosse apreendido pela leitura, isto é, o desenvolvimento de habilidades e consciência “à distância”, mais independente da necessidade da interação “face-à-face” em ambientes especificamente voltados para o ensino (Thrift, 1996, p. 104).

Neste período – antes das revistas científicas se constituírem –, a comunicação das inovações realizadas por cientistas era feita de duas formas principais: através de cartas pessoais (a interlocutores do pensador em questão), ou por meio de atas (ou memórias) de reuniões científicas. As cartas circulavam por grupos muito seletos de indivíduos, e tinham um caráter fundamentalmente pessoal; além disso, eram em geral destinadas a interlocutores que tinham maior disposição a concordar – e não a refutar – as ideias transmitidas, o que diminuía seu poder de fazer avançar o conhecimento (Stumpf, 1996, p. 1).

Outro importante geógrafo que propôs uma interpretação sobre as condições de produção e difusão do conhecimento científico foi David Livingstone (2003), em seu Putting Science in its place. O objetivo central do livro é demonstrar a “inescapável natureza espacial da ciência”, argumentando que o desenvolvimento desta depende de “sítios” ou “locais” particulares, mas também de configurações regionais (regional settings) assim como ambientes nacionais (national environments) propícios. No que diz respeito aos sítios de produção da ciência, Livingstone mostra que junto da gradual institucionalização das universidades, locais como igrejas, museus, jardins botânicos, hospitais, juizados, funcionavam em grande parte como “laboratórios”, acumulando instrumentos, dispositivos, livros, e toda sorte de equipamentos que tornavam possível a coleção, manipulação e difusão de informações relevantes para o avanço do conhecimento científico. Estes locais se transformariam paulatinamente em poderosos “centros de acumulação” e de “cálculo” (termo tomado de Bruno Latour) de toda sorte de objetos materiais e imateriais necessários para a produção sistemática do saber erudito, como livros, instrumentos de precisão, ideias, espécimes (animais e vegetais), etc. (Livingstone, 2003).

O autor assim mostra que, ao longo da história, tão importante quanto a produção do conhecimento, era sua circulação e seu “consumo”. A circulação se dava a partir das universidades, sociedades científicas, das academias literárias, livrarias circulantes, e através delas era possível reforçar a importância de certos locais (nodal points) nestas redes em formação; estas redes, por sua vez, eram constituídas para tratar o conhecimento gerado tanto para fins especulativos (o “conhecimento pelo conhecimento”), mas também par fins pragmáticos, geopolíticos: não é uma coincidência que algumas das principais universidades europeias foram também pontos de apoio e de legitimação de gigantescas estruturas coloniais, como foram o caso inglês e francês (principalmente). A conquista imperial do globo desde o período mercantil europeu foi em grande parte otimizada em função destes locais originais de produção de conhecimento científico (Livingstone, 2003, p. 171). Sendo ao mesmo tempo parte da cultura das diferentes sociedades e também do estoque universal do conhecimento, a ciência – como qualquer outro atributo humano – tem uma inegável natureza geográfica: “[...] like other elements of human culture, science is located. It takes place in highly specific venues, it shapes and is shaped by regional personality; it circles the globe in minds, on paper and digitized data” (Livingstone, 2003, p. 179).

Durante os séculos XVII ao XIX, as revistas foram paulatinamente se tornando um veículo de comunicação legítimo dos avanços científicos, em grande parte competindo com os livros (que até então eram o principal meio desta comunicação). A publicação das inovações em revistas teria duas vantagens principais: 1. elas se davam de forma mais “rápida”, fazendo avançar os debates e concedendo o justo reconhecimento da prioridade / originalidade das ideias aos seus autores; e 2. Era uma forma mais “barata”, já que os livros eram custosos para serem impressos e distribuídos (principalmente os mais volumosos) (Stumpf, 1996, p. 2).

Foi só no século XIX que as revistas adquiriram suas feições contemporâneas. Dentre outras características que se consolidaram no período, podemos destacar: 1. a periodicidade (mais ou menos regular) com que passam a ser publicadas; 2. as formas de financiamento passam a ser de dois tipos principais: as próprias associações que organizavam as revistas cobriam seus custos de publicação; ou elas se mantinham pela cobrança de subscrições (assinaturas) para os membros das associações científicas que desejassem receber os números; 3. Houve significativa especialização de parte das revistas em campos do conhecimento específicos (física, biologia, geografia, história, etc.). Já no início do século XX, o crescimento do número de revistas segue acelerado, principalmente pelo fato de que elas passam a ser publicadas não só por associações “específicas”, mas também por universidades, faculdades, editoras comerciais e pelo próprio Estado (interessado em fomentar discussões científicas em áreas de seu interesse estratégico) (Stumpf, 1996, p. 3)

A dinâmica de editoração, publicação e divulgação das revistas seria profundamente alterada a partir da década de 1970, com o uso mais sistemático das técnicas da informação durante todo o processo editorial. No início desta década, tanto nos EUA quanto na Inglaterra, as revistas se constituíram em “centros de processamento editorial” (Stumpf, 1996, p. 4), que visavam otimizar toda a “cadeia” de editoração, desde a recepção das submissões de artigos, a designação e avaliação por pareceristas, até a editoração e impressão da revista1 .

Na década de 1990 este processo é ainda mais intensificado, quando as revistas vão paulatinamente se tornando totalmente digitais, com o uso da internet para a disponibilização de seus números de maneira online (e não mais em exemplares físicos). Esta digitalização tanto facilitou o desenvolvimento e a criação de novos periódicos científicos, assim como a formação de redes de investigação internacionais, lembram Silva et al. (2016, p. 118). Para os editores dos periódicos, esta digitalização traz sobretudo duas grandes vantagens: 1. A maior velocidade e eficiência com que o processo de editoração se dá; 2. A diminuição brutal dos custos envolvidos em cada etapa, mais especialmente na economia com as fases da impressão (praticamente abolida) e da distribuição (feita agora principalmente online)2 . Para Barbosa et al (2013, p. 5), estas vantagens podem ser assim pormenorizadas: “disponibilização na grande rede (internet), gratuidade (em boa parte deles), divulgação veloz e num espaço ilimitado, baixo custo no que se refere à produção, além de beneficiar o contato entre leitores e autores por meio de e-mail”. À estas vantagens, podem ser somadas ainda as seguintes: um número muito maior de pessoas interessadas pode ter acesso e ler instantaneamente e simultaneamente os artigos; as bibliotecas podem dispor de mais espaços físicos em suas instalações, dado o fato de que as revistas são todas condicionadas em memórias de computadores (e não mais nas estantes e arquivos) (Ferreira e Caregnato, 2008, p. 172).

Em complemento a estas dinâmicas sobrescritas, um último ponto merece destaque, que tem relação com o acesso às revistas acadêmicas: a postura histórica da GEOUSP, que sempre se preocupou em ser um veículo de comunicação da ciência geográfica brasileira público e gratuito, como mostram os editorais de Antas Junior (2022) e de Juliasz e Garcia (2024) em números anteriores da GEOUSP. Com esta postura, a revista se insere num esforço recente de construção de círculos de produção e difusão do conhecimento que são cientificamente relevantes e socialmente legítimos, por tratarem de temas que interessam à população brasileira como um todo (e não à apenas uma classe de indivíduos ou instituições). Este caráter público, aliás, é um compromisso que todas as revistas que têm ligações diretas com instituições de ensino superior públicas deve(ria)m ter, já que a maior parte do financiamento destas atividades vêm de fontes públicas, sejam elas federais ou estaduais (Parker, 2011). Como mostram Silva et al. (2016, p. 119).

[...] o modelo de acesso aberto considera que as pesquisas científicas são bens de interesse público, especialmente se tiverem sido financiadas por meio de fundos públicos, e devem estar acessíveis sem nenhum tipo de barreira para acesso a todos aqueles que desejarem e se interessarem pelos conteúdos. O acesso aberto à informação científica facilita a comunicação na sociedade científica, além de promover uma igualdade de acesso entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento e seus diversos públicos de pesquisadores e leitores.

Esta preocupação maior com o bem comum atua no sentido de ampliar ao máximo o acesso deste conhecimento ao público em geral (acadêmico e não-acadêmico), o que contribui, por sua vez, à própria legitimação social das universidades públicas no país. Trata-se de uma preocupação que, segundo Kuramoto (2008, p. 870-871), reforçará a dinâmica da pesquisa científica nas universidades, assim como poderia trazer consequências positivas para os seguintes processos: 1. Aumentar a internacionalização da informação científica produzida localmente; 2. redução da chamada “exclusão cognitiva” na sociedade; e por fim 3. Contribuir para a redução das desigualdades sociais3 .

Este nos parece ser também o espírito de todos os artigos que a GEOUSP oferece neste número, permitindo aos seus leitores refletir sobre inovações recentes propostas por pesquisadores brasileiros e latinoamericanos, que trabalharam com rigor sobre temas importantíssimos para a geografia e a sociedade contemporânea.

  • 1
    Este modelo, aliás, até hoje serve como base para alicerçar o rigor e o prestígio das revistas científicas; como mostra Parker (2011, p. 30), “o caráter científico dos periódicos advém dos artigos denominados originais, que comunicam resultados de pesquisa inédita e são aceitos para publicação após processo de revisão por pares e em consonância com suas políticas editoriais”.
  • 2
    Como mostra Antas Junior (2022, p. 1), “Até meados da década de 2000 ou pouco depois, a maioria das publicações em periódicos científicos era impressa, o que impunha ao editor deter noções de um conjunto de especificidades e dificuldades inerentes, como o trabalho mais moroso, a periodicidade média com que se publicava a maioria dos artigos, menos artigos por número, acesso mais difícil a essas publicações... e o acúmulo de centenas de volumes em papel em algum depósito, por anos, devido à falta de transporte aos lugares de maior interesse.”
  • 3
    Como lembra ainda Parker (2011, p. 36), “O acesso aberto ao conhecimento científico ocorre por meio da publicação dos resultados da pesquisa científica na web, sem barreiras de acesso. Fundamenta-se na concepção do conhecimento científico como bem público, no fato de ser a pesquisa financiada, em grande parte, por recursos públicos. Além disso, tem como objetivo precípuo aumentar a visibilidade e acessibilidade da produção científica. O acesso aberto é considerado especialmente importante para os países em desenvolvimento”.
  • Como citar este artigo: CONTEL, F. B. A importância das revistas científicas na comunicação do conhecimento. Geousp, v. 28, n. 2, e228325. 2024. https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2024.228325pt

Referências

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Editado por

  • Editora do artigo
    Paula Cristiane Strina Juliasz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2024
  • Aceito
    26 Ago 2024
Creative Common - by 4.0
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/), que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.
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