Resumo
Neste ensaio busca-se problematizar as relações entre técnica e tecnologia, informação e comunicação, a partir de uma reflexão específica sobre o espaço como meio operacional e meio percebido. O ponto de partida é a ideia de espaço como meio técnico-científico-informacional e o questionamento do que se modifica com a adição do “comunicacional” à expressão consagrada por Milton Santos (1996). Que diferenças e relações podemos estabelecer em termos de espacialidade entre informação e comunicação? Nesse contexto, explicita-se também a importância do conceito geográfico de lugar para uma abordagem geográfica dessas temáticas, conceito que extrapole os limites da contiguidade espacial em direção a escalas mais abrangentes de concepção do fenômeno da comunicação.
Palavras-chave: Técnica; Tecnologia; Informação; Comunicação; Espaço; Meio técnico-científico-informacional
Resumen
En este ensayo se busca problematizar las relaciones entre técnica y tecnología, información y comunicación, a partir de una reflexión específica sobre el espacio como medio operacional y medio percibido. El punto de partida es la idea de espacio como medio técnico-científico-informacional y el cuestionamiento de que se modifica con la incorporación de lo “comunicacional” a la expresión consagrada por Milton Santos (1996). ¿Qué diferencias y relaciones podemos establecer, en términos de espacialidad, entre información y comunicación? En ese contexto, se explicita también la importancia del concepto geográfico de lugar para un abordaje geográfico de esas temáticas, concepto que extrapole los límites de la contigüidad espacial en dirección a escalas más amplias de concepción del fenómeno de la comunicación.
Palabras clave: Técnica; Tecnología; Información; Comunicación; Espacio; Medio técnico-científico-informacional
Abstract
This essay seeks to problematize the relations between technique and technology, information and communication based on a specific reflection of space as an operational and perceived milieu. The starting point is the idea of space as a technical-scientific-informational milieu and the questioning of what changes with the addition of the “communicational” to the expression consecrated by Milton Santos (1996). What differences and relationships can be established in the spatiality between information and communication? In this context, the importance of the geographical concept of place is also explained for a geographical approach to these themes. This concept extends beyond the limits of spatial contiguity toward a more comprehensive scale of conceiving the phenomenon of communication.
Keywords: Technique; Technology; Information; Communication; Space; Technical-scientific-informational milieu
Introdução
Era o ano de 1995 e eu estava de volta ao Brasil após a conclusão do meu doutorado em Viena. Mais especificamente, em São Paulo, realizando pesquisa de pós-doutorado com bolsa de recém-doutor do CNPq na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP). Nesse pouco mais de um ano na cidade, realizei pesquisa sobre processos de uso e apropriação de espaços livres de edificação na Zona Leste, em bairros como Itaquera, Conjunto José Bonifácio e Guaianazes sob a supervisão do Professor Sílvio Soares Macedo.
Nessa época também frequentei a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), mais especificamente sua biblioteca, com muitos títulos na área de Geografia e Planejamento, e também o gabinete do Professor Milton Santos, na mesma faculdade, em busca de seus conselhos e de suas orientações em relação às pesquisas que estava desenvolvendo na cidade. Nessas idas e vindas entre a FAU e a FFLCH no campus da USP, também fui convidado em alguns momentos pelo professor para assistir suas aulas na pós-graduação em Geografia Humana.
Em uma dessas aulas, o debate girava em torno das técnicas e dos objetos técnicos, tema recorrente na obra de Milton Santos (cerca de um ano depois, em 1996, ele publicaria o livro “A Natureza do Espaço”, com o subtítulo: “técnica e tempo, razão e emoção”), quando alguém remeteu a discussão a uma outra noção relacionada ao tema, a de “meio técnico-científico-informacional”, também recorrente nos escritos do professor. Lembro que ele interrompeu o estudante que falava para enunciar um adendo à referida expressão: “Meio técnico-científico-informacional e comunicacional!”
Tomo esse adendo de Milton Santos, em uma de suas aulas, como mote para a discussão que desenvolvo nesse ensaio. Partindo da ideia de espaço como meio técnico-científico-informacional o que se modifica com a adição do “comunicacional” à expressão consagrada? Que diferenças e relações podemos estabelecer em termos espaciais entre informação e comunicação? Acrescento, a título de justificativa para a discussão aqui proposta, que venho pesquisando nos últimos anos as relações entre técnica, tecnologia e lugar com foco no uso e na apropriação das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) na aglomeração metropolitana de Salvador (BA) (Serpa, 2022a).
Meio técnico-científico-informacional (e comunicacional?)
No capítulo 10 do livro “A Natureza do Espaço”, Santos propõe uma periodização das “chamadas relações sociedade-natureza” em três recortes temporais: meio natural, meio técnico e meio técnico-científico-informacional, esse último que se inicia “praticamente após a segunda guerra mundial”, caracterizado pela união entre ciência e técnica que se desenvolve sob a égide do mercado: “neste período, os objetos técnicos tendem a ser ao mesmo tempo técnicos e informacionais, já que, graças à extrema intencionalidade de sua produção e de sua localização, eles já surgem como informação; e, na verdade, a energia principal de seu funcionamento é a informação” (Santos, 1996, p. 190). Complementarmente, nesse período, “o conhecimento exerceria (...) – e fortemente – seu papel de recurso” (Santos, 1996, p. 194).
Citando Ellul (1977), Santos (1996, p. 203) vai enfatizar que a “técnica comparece como um verdadeiro universo de meios (...) no espaço utilizado pelos homens”, reconhecendo que os diferentes lugares do mundo serão caracterizados por sua densidade técnica, por sua densidade informacional mas também por sua densidade comunicacional, “atributos que se interpenetram e cuja fusão os caracteriza e distingue” (Santos, 1996, p. 205). Enquanto a densidade técnica tem a ver com os diferentes graus de artifício, com “objetos técnicos maduros”, a densidade informacional – que em parte é derivada da densidade técnica – depende não somente dos objetos ricos em informação mas exige que esses objetos não estejam em repouso ou inatividade. Necessita que os objetos técnicos sejam “agidos” (geralmente por uma intervenção vertical externa aos lugares onde se localizam).
O que nos interessa aqui, mais particularmente, é a premissa de que a densidade comunicacional dependeria de uma práxis “intersubjetiva” ou “transindividual” que pressupõe co-presença entre os sujeitos envolvidos, exigindo também que esses sujeitos compartilhem o mesmo “entorno” e situações “cara a cara”, uma “realidade diretamente vivida e experimentada”. Desse modo,
As relações técnicas e informacionais podem ser "indiferentes" ao meio social ambiente. As relações comunicacionais são, ao contrário, uma resultante desse meio social ambiente. As duas primeiras são mais dependentes da esfera da materialidade, da tecnosfera, (...) mesmo se, em todos os casos, tecnosfera e psicosfera interagem. Mas as relações comunicacionais geradas no lugar têm, mais que as outras, um geographic flavour, a despeito da origem, porventura distante, dos objetos, dos homens e das ordens que os movem. Nas condições atuais, as relações informacionais transportam com elas o reino da necessidade enquanto as relações comunicacionais podem apontar para o reino da liberdade (Santos, 1996, p. 206).
A longa citação serve para enunciar alguns pressupostos decorrentes da distinção entre técnica, informação e comunicação em termos de densidade. Em primeiro lugar, há questões escalares envolvidas, técnica e informação mais relacionadas a escalas mais abrangentes e distantes, comunicação associada a escalas menos abrangentes e próximas. Em segundo lugar, a ênfase em modos diretos de interação (co-presença) e numa psicoesfera que não são e não podem ser indiferentes ao “meio social ambiente” e/ou ao “lugar”. E, por fim, a ideia de que é a comunicação/a interação o que permitiria falar de um “reino da liberdade” enquanto a informação estaria mais associada ao “reino da necessidade”.
Nos termos como vimos abordando a relação entre técnica, tecnologia e lugar em nossas pesquisas atuais, considero particularmente importante destacar a questão da densidade comunicacional e de sua espacialidade nas escalas abordadas por Santos, porque isso nos permite sublinhar a distinção que fazemos entre técnica e tecnologia, tecnologia vista aqui como técnica apropriada e ressignificada pelo uso. Nesse contexto, ao falarmos de tecnologia podemos supor que estamos mais no terreno da comunicação/da interação/da intersubjetividade, ou seja, no terreno daquilo que Santos define como “densidade comunicacional”, um passo além da densidade técnica e da densidade informacional já que depende do entorno.
Ou seja, seguindo esse caminho podemos afirmar que ao falarmos de densidade comunicacional em um certo recorte espacial estamos falando também de densidade tecnológica, que vai depender de um substrato espacial como meio operacional (e da materialidade dos objetos técnicos) mas, sobretudo e principalmente, da apropriação da técnica em co-presença.
Importante destrinchar a relação entre informação e comunicação em relação à espacialidade de processos sociais, econômicos e políticos, refletindo, ainda que brevemente, sobre a evolução dos modos de comunicação, como fizemos no livro “Lugar e Mídia” (Serpa, 2011) há mais de uma década atrás, a partir das reflexões de Claval (2003).
Claval (2003) acha que as sociedades contemporâneas recorrem permanentemente à escrita e às mídias audiovisuais, mas não deixaram de lado os modos diretos de comunicação, baseados nos contatos face a face e na palavra falada. Assim, os modos de comunicação se complementam no lugar e, ao contrário dos modos de produção, não sucedem uns aos outros, os modos mais antigos convivendo com os mais novos, no espaço e no tempo.
As mídias diferem dos meios mais “tradicionais” de comunicação por uma maior capacidade de memorizar informações, assim como pelo modo de processá-las e os suportes necessários para o estabelecimento do processo de comunicação. O que chamamos revolução das mídias resulta, sobretudo, do desenvolvimento de novas técnicas e de novos objetos técnicos (Claval, 2003). Esta revolução dos meios de comunicação se dá, no entanto, em convivência (pacífica ou não) com os meios e modos mais tradicionais. O que muda é a velocidade com que as informações passam a ser trocadas, encurtando distâncias entre os lugares do mundo contemporâneo e possibilitando o intercâmbio de uma quantidade muito maior de imagens, sons e textos do que em passado relativamente recente.
Entre 1500 e 1900, a evolução do universo da comunicação parecia algo estável e simples, com o progresso das técnicas de impressão, o sucesso da imprensa escrita e a generalização da obrigatoriedade escolar para as crianças, tornando o papel da comunicação escrita cada vez mais importante. Com o advento do gramofone, do rádio, da fotografia, do cinema, da televisão e do computador, ganham novamente força as imagens e a palavra falada (Claval, 2003). Ao mesmo tempo, a existência de redes de comunicação planetária e a simultaneidade das trocas fazem desaparecer as antigas estruturas e hierarquias que, no passado, pareciam naturais.
A periodização dos modos de comunicação realizada por Claval, ainda que aqui apenas brevemente esboçada, nos convida a pensar justamente em sua intrínseca relação com os objetos técnicos como suportes que funcionariam como um meio operacional para a realização de trocas de informações e interações de todos os tipos. Mas, afinal, como esse meio operacional enquanto densidade técnica influencia e é influenciado os/pelos modos de comunicação?
Espaço como meio operacional
Se a técnica aparece como um “universo de meios”, haveria supostamente um imbricamento desses “meios” nos diferentes recortes espaciais. O espaço se impõe nesse tipo de reflexão justamente a partir das condições que disponibiliza para que a comunicação se realize. Importante ressaltar que as técnicas influenciam nossa percepção e nosso imaginário e oferecem uma forte base empírica para sua realização. Visto assim, o espaço, “como meio operacional, presta-se a uma avaliação objetiva e como meio percebido está subordinado a uma avaliação subjetiva” (Santos, 1996, p. 45).
Sob essa ótica, esse meio operacional se nos apresenta, portanto, como uma “realidade percebida”, indicando o fato de que efetivamente “o que há são invasões recíprocas entre o operacional e o percebido” (Santos, 1996, p. 45). E é justamente a técnica a síntese desses processos que, em sua espacialidade, se realiza como meio operacional e percebido. E o espaço funcionaria, nesse contexto, como “o terreno das operações individuais e coletivas” (Santos, 1996, p. 45).
Para Lévy e Lussault (2003, p. 181), se nós admitirmos que a comunicação se desenrola no espaço e no tempo então podemos atribuir a ela as mesmas características que aquelas dos objetos móveis que atravessam essas duas dimensões: ela pode ser lenta ou rápida, se limitar ou não a um recorte geográfico com pequenas ou grandes dimensões, tomando direções e caminhos mais ou menos definidos etc. O importante a reter em relação à espacialidade da comunicação é que sua intensidade e sua qualidade vão ser em parte condicionadas pelo espaço (como meio operacional e percebido), pela natureza das ligações que unem os sujeitos protagonistas e por suas características socioculturais.
O espaço como meio operacional e meio percebido oferece diferentes possibilidades para a difusão da comunicação, seja por contágio, seja por irradiação, seja por “efusão”. Digna de nota, no nosso contexto, é a irradiação por efusão, que, de acordo com Lévy e Lussault (2003, p. 181), coloca em jogo relações próximas e íntimas: é um modo de comunicação “que funciona fazendo de cada indivíduo ora um emissor, ora um receptor, em outras palavras, um dos agentes de uma forma de comunicação mais equilibrada ou interativa”.
Com as TIC e a disseminação das redes sociais virtuais, essas afirmações ganham relevo e colocam a questão até que ponto essas tecnologias efetivamente forneceriam as condições para uma melhor e mais equilibrada comunicação entre os sujeitos envolvidos nas diferentes situações espaciais. A sigla TIC designa um conjunto de técnicas e tecnologias reunindo telecomunicações, audiovisual e informática. E, entre essas tecnologias, se encontram aquelas que contribuem para a circulação imaterial da informação (Lévy; Lussault, 2003, p. 896).
Informação e comunicação, técnica e tecnologia
Em “A Natureza do Espaço”, Santos busca distinguir informação e comunicação, chamando atenção que é possível se comunicar com o mundo que nos rodeia sem que se efetue a transmissão de quaisquer informações. Por outro lado, podemos transmitir informações sem necessariamente criar relações e interações sociais de qualquer espécie (Santos, 1996). Sob esse ponto de vista, a experiência comunicacional exige processos de interação e interlocução que baseiam o estabelecimento da sociabilidade entre indivíduos e grupos. Ou seja, sem interação ou interlocução não se pode falar em comunicação, já que comunicar “significa pôr em comum” (Santos, 1996, p. 253).
Esse processo, no qual entram em jogo diversas interpretações do existente, isto é, das situações objetivas, resulta de uma verdadeira negociação social, de que participam preocupações pragmáticas e valores simbólicos, "pontos de vista mais ou menos compartidos", em proporções variáveis, diz S. van der Leecew (1994, p. 34). (...) Segundo (...) G. Berger (1943, 1964, p. 15) "a ideia dos outros implica a ideia de um mundo". (...) O mundo ganha sentido por ser esse objeto comum, alcançado através das relações de reciprocidade que, ao mesmo tempo, produzem a alteridade e a comunicação. É desse modo, ensina G. Berger (1964, p. 15), que o mundo constitui "o meio de nos unir, sem nos confundir" (Santos, 1996, p. 253).
Do mesmo modo, Santos busca também estabelecer uma clara distinção entre técnica e tecnologia. Para o autor, as técnicas existiriam “como autorizações para o fazer. Os graus de intencionalidade dos objetos derivam daí. Pode-se, pois, imaginar que um espaço tenderá tanto mais a se tornar um espaço racional quanto mais alto for nele o nível de artifício” (Santos, 1996, p.236). A técnica é, portanto, imprescindível, para realização de toda atividade e, ela mesma, um “princípio de racionalidade”, enquanto a tecnologia “constitui não apenas uma esfera da realidade, mas uma ordem da realidade”, possuindo uma racionalidade própria. Tecnologia tem, portanto, a ver com regras próprias, com escolhas intencionais, com inovações técnicas, que podem promover “uma mudança geral nas relações sociais” (Santos, 1996, p. 238).
As reflexões de Santos nos levam a questionar a denominação Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), objeto de nossas pesquisas atuais, já que, em princípio, se deveria falar de técnicas de informação que dependeriam do uso e da apropriação do sistema de objetos técnicos e informacionais por sujeitos individuais e coletivos em interação para se tornarem tecnologias de comunicação.
Esse deslocamento é interessante pois questiona a técnica como “sujeito” e explicita a ação humana, o pôr em comum, o mundo humano como premissas para a inovação técnica que em suma implicaria em técnica compartilhada tornada tecnologia pela intervenção humana. Em outras palavras, a tecnologia só se realiza enquanto processo quando estamos diante de objetos “agidos”, havendo aí, em potencial, a possibilidade de surgimento e consolidação de usos inovadores e criativos da técnica através da ação.
Lévy e Lussault (2003, p. 896) reconhecem que a expressão “tecnologias de informação e comunicação” guarda numerosas imprecisões: “o primeiro termo, tecnologias, é substituído algumas vezes por ‘técnicas’; além disso, é bastante frequente que a expressão seja precedida por um ‘N’ que acrescenta a palavra ‘novas’ à expressão”. Para os autores, a expressão “Novas Tecnologias de Informação e Comunicação” (NTIC) sofreria de uma imprecisão ainda maior do que a expressão original por conta da ideia de “novidade”, pois exigiria a especificação de qual geração de tecnologias se trataria.
Devemos insistir na diferença entre técnica e tecnologia, já que a tecnologia implica em interação e comunicação, aquilo que assegura a articulação entre ciência e técnica: “as tecnologias são constituídas pelo conjunto de discursos (princípios, concepção, implementação) que acompanham as técnicas”, é o discurso sobre a técnica, “aquilo que é escrito como uma maneira de usar, como o conteúdo de um manual, ou o conhecimento especializado de um engenheiro” (Lévy; Lussault, 2003, p. 894). Nesse sentido, o acréscimo do termo “comunicacional” à expressão “meio técnico-científico-informacional” remete à relação dialética entre técnica e tecnologia, entre informação e comunicação, sobretudo em um contexto de comunicação à distância, que subverte a ideia de co-presença e de contatos face a face, colocando em xeque também a ideia de lugar como entorno imediato ou escala local.
Comunicação face a face: quais escalas?
Quando falamos de TIC e de entorno imediato na contemporaneidade necessariamente devemos pensar o que isso implica em termos espaciais/escalares. Porque com o aprofundamento das inovações técnicas e da disseminação desse tipo específico de objetos técnicos, devemos também refletir sobre o que significa hoje falar de modos diretos e indiretos de comunicação. Qual seria efetivamente a importância do lugar e do “meio social ambiente” para os contatos face a face? Que escalas estão implicadas nessa relação entre lugar e comunicação mediada pela técnica para além do “entorno imediato”?
Em um contexto pós-pandêmico, o mundo hoje se vê ainda mais confrontado com a mediação da técnica e dos objetos técnicos/informacionais para o estabelecimento de sociabilidades e interações de toda ordem. Basta pensar aqui na proliferação de plataformas virtuais de encontros, reuniões, atividades acadêmicas e empresariais, atividades lúdicas e laborais etc. Pensar em “lugar” e “meio social ambiente” nesses termos exige necessariamente uma relativização do que até relativamente pouco tempo entendíamos como modos diretos e indiretos de comunicação. Com a evolução da técnica, modos diretos de comunicação podem não ser necessariamente presenciais e o face a face agora aparece frequentemente mediado por telas de todos os tipos.
Em seu livro, “A bomba informática”, lançado no final dos anos 1990, Paul Virilio já nos fazia o seguinte alerta:
com a progressiva DIGITALIZAÇÃO das informações audiovisuais, táteis e olfativas, indo de par com o declínio das sensações imediatas, a semelhança analógica do próximo, do comparável, cederia lugar à verossimilhança digital do longe, de todos os lugares, poluindo assim, de forma definitiva a ecologia do sensível (Virilio, 1999, p. 111, grifos no original).
Em contraponto a esta visão, Milton Santos vai enfatizar o papel da proximidade para o estabelecimento de uma sociabilidade que possa garantir o “exercício de possibilidades múltiplas de comunicação”. Para Santos, essa proximidade “tem que ver com a contiguidade física entre pessoas numa mesma extensão, num mesmo conjunto de pontos contínuos, vivendo com a intensidade de suas interrelações” (Santos, 1996, p. 255). Nesse contexto, seria a proximidade o que garante uma solidariedade entre os sujeitos envolvidos e o estabelecimento de laços culturais e identidades. A matriz da densidade social é o “intercâmbio efetivo de pessoas”, de “relações que se acumulam, matrizes de trocas simbólicas que se multiplicam, diversificam e renovam” (Santos, 1996, p. 256).
No entanto, a ideia de um meio técnico-científico-informacional com o acréscimo do “comunicacional” vai pôr em xeque as noções de proximidade (não necessariamente relacionada com contiguidade espacial) e distância (igualmente relativizada), assim como aquilo que compreendemos como modos diretos e indiretos de comunicação. Para distinguir os extremos da distância espacial e da proximidade espacial (Santos, 1996, p. 255), é necessária a explicitação de uma fenomenologia da distância, como já defendemos em outras ocasiões (Serpa, 2021): a possibilidade de uma fenomenologia da distância como uma maneira de problematizar esta categoria/este conceito no/para o fazer geográfico.
No terreno da percepção, a distância é algo que diferencia uma “apreensão esboçada” de uma “apreensão completa”, esta última que é também o mesmo que proximidade. Segundo Merleau-Ponty, a distância se define pela “situação do objeto” em relação à potência de sua apreensão (Merleau-Ponty, 2006, p. 353):
A percepção me dá um “campo de presença” no sentido amplo, que se estende segundo duas dimensões: a dimensão aqui-ali e a dimensão passado-presente-futuro. A segunda permite compreender a primeira. Eu “possuo”, eu “tenho” o objeto distante sem posição explícita da perspectiva espacial (grandeza e forma aparentes), assim como “ainda tenho em mãos” o passado próximo sem nenhuma deformação, sem “recordação” interposta (Merleau-Ponty, 2006, p. 357-358).
Para Merleau-Ponty,
nunca se compreenderá a percepção da distância se se partir de conteúdos dados em uma espécie de equidistância, projeção plana do mundo como as recordações são uma projeção do passado no presente. E assim como só se pode compreender a memória como uma posse direta do passado, sem conteúdos interpostos, só se pode compreender a percepção da distância como um ser no longínquo que o alcança ali onde ele aparece (Merleau-Ponty, 2006, p. 358, grifos no original).
Se, por um lado, o meio técnico-científico-informacional e comunicacional relativiza as noções de proximidade e distância, assim como nossa compreensão de contatos e interações face a face, por outro lado, enfatiza a sociabilidade e a interrelação entre sujeitos individuais e coletivos para o surgimento de inovações técnicas e sua incorporação como tecnologia apropriada no cotidiano. Isso aponta também para a centralidade do uso e da apropriação da técnica, para a ênfase nos objetos “agidos”, quando se fala de tecnologia.
Em um mundo impactado por transformações cada vez mais rápidas no tocante ao sistema de objetos técnicos e informacionais, impactos estes percebidos e sentidos em diferentes escalas, a ênfase na comunicação e nas tecnologias de comunicação ajudam a revelar ainda a importância de um conceito geográfico de lugar aberto ao exterior (Serpa, 2022b): conceito que extrapole os limites da contiguidade espacial em direção a escalas mais abrangentes de concepção do fenômeno da comunicação e que ressignifiquem a relação entre o local e o global em nossas reflexões e análises.
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Como citar este artigo: SERPA, A. Técnica e tecnologia, informação e comunicação: elementos para uma reflexão sobre o espaço como meio operacional e comunicacional. Geousp, v. 28, n. 2, e222754. 2024. https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2024.222754pt
Referências
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- ELLUL, J. Le système technicien Paris: Calmann-Lévy, 1977.
- LÉVY, J., LUSSAULT, M. Dictionnaire de la Géographie e de L’espace des Societés Paris: Belin, 2003.
- MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
- SANTOS, M. A natureza do espaço Técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: HUCITEC, 1996.
- SERPA, A. Relações entre técnica, tecnologia e lugar na metrópole contemporânea: uma agenda de pesquisa. Boletim Goiano de Geografia, Goiânia, v. 42, n. 01, p. e73629, 2022a. DOI: http://doi.org/10.5216/bgg.v42.73629.
- SERPA, A. Fenomenologia da distância (e de suas contradições) em tempos de pandemia.Espaço e Cultura (UERJ), Rio de Janeiro, v. 49, p. 143-156, 2021. DOI: https://doi.org/10.12957/espacoecultura.2021.60712.
- SERPA, A. Lugar e mídia São Paulo: Contexto, 2011.
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SERPA, A. Problematizando lugar como conceito e categoria da Geografia Humanista. Geousp: Espaço e Tempo, São Paulo, v. 26, n. 2, p. e-197944, 2022b. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2022.197944.pt
» https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2022.197944.pt - VIRILIO, P. A bomba informática Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade, 1999.
Editado por
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Editor do artigo
Ricardo Mendes Antas Jr
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
25 Mar 2024 -
Aceito
03 Jun 2024