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O gênero da dignidade: humanismo secular e proibição de tortura para a questão do aborto na ADPF 54

The gender of dignity: secular humanism and the denial of abortion rights as a form of torture in ADPF 54

Resumo

Este artigo analisa a mobilização do conceito de dignidade da pessoa humana como vedação de submissão à tortura aplicada à questão do aborto na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. Identifico que a organização da demanda em torno ao princípio da dignidade permitiu um conflito agonístico entre os constitucionalismos católico e secular, o qual foi estabilizado na procedência da ação por uma interpretação dos preceitos baseada em humanismo secular sensível ao gênero.

Palavras-chave:
Aborto; Dignidade da pessoa humana; Tortura

Abstract

This article analyzes the mobilization of the concept of human dignity as prohibition against torture applied to the abortion rights debate in the Claim of Non-Compliance with Fundamental Precept nº 54. I identify that the organization of the case around the principle of human dignity allowed for an agonistic conflict between Catholic and secular constitutionalisms, which was stabilized in the ruling by an interpretation of the precepts based on gender-sensitive secular humanism.

Keywords:
Abortion; Human dignity; Torture

1. Introdução1 1 Uma versão anterior deste texto foi apresentada como um dos capítulos de minha tese de doutorado, intitulada “Constitucionalismo agonístico: a questão do aborto no Brasil” (Rondon, 2020), defendida em fevereiro de 2020 na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, sob orientação de Debora Diniz.

Dignidade é um conceito reconhecidamente controverso na experiência constitucional transnacional (Siegel, 2012SIEGEL, Reva B. Dignity and sexuality: claims on dignity in transnational debates over abortion and same-sex marriage. I.CON, v. 10, n. 2, p. 355-379, 2012. Disponível em: https://www.law.yale.edu/system/files/documents/pdf/Faculty/Siegel_DignitySexuality.pdf. Acesso em: 20 dez. 2019.
https://www.law.yale.edu/system/files/do...
). A complexidade de seu significado fica particularmente evidente quando é utilizado para teses opostas em disputas morais e normativas em bioética, como sobre a questão do aborto. Uma das razões para a ambiguidade pode ser explicada a partir de uma definição oferecida por Jürgen Habermas (2010HABERMAS, Jürgen. The concept of human dignity and the realistic utopia of human rights. Metaphilosophy, v. 41, n. 4, p. 464-480, jul. 2010. Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1467-9973.2010.01648.x/abstract. Acesso em: 20 jan. 2020.
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, p. 469): a dignidade humana seria o “portal, por meio do qual a substância igualitarista e universalista da moralidade são importadas para a lei”. Apesar de ter uma substância normativa identificável no igualitarismo, não se confunde com o direito fundamental à igualdade nem nenhum outro. É um preceito de duas faces, uma objetiva e outra subjetiva.

Pela dimensão objetiva, não se traduz simplesmente como direito individual, pois representa, na realidade, um fundamento do pertencimento à comunidade humana, que está para além daquilo que titulariza o indivíduo, mas, por sua dimensão subjetiva, seria de reconhecimento devido a cada pessoa humana justamente por sua singularidade. Por isso, a concretude de seu significado só seria encontrada entre o comunitário e o individual a cada interpretação de violações de direitos, à qual Habermas (2010HABERMAS, Jürgen. The concept of human dignity and the realistic utopia of human rights. Metaphilosophy, v. 41, n. 4, p. 464-480, jul. 2010. Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1467-9973.2010.01648.x/abstract. Acesso em: 20 jan. 2020.
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, p. 467) reconhece uma “função inventiva”. Nessa ambiguidade está a variedade do seu uso para a questão do aborto, por exemplo. O conceito é manejado na função inventiva de narrar uma violação de direitos à vida potencial, quando dá suporte à tese da criminalização, ou na de narrar a violação à dignidade da mulher que gesta, quando fundamenta a tese de injustiça da lei penal.

Por sua polissemia em sentidos inclusive opostos, alguns classificaram o conceito de arriscado ou inútil à interpretação constitucional ou bioética e afirmaram que, por outro lado, poderia ser melhor substituído por outros conceitos mais assentados na história constitucional transnacional, como autonomia ou igualdade (Macklin, 2003MACKLIN, Ruth. Dignity is a useless concept. BMJ (online) 327(7429): 1419-1420, Dec., 2003. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/14684633. Acesso em: 2 dez. 2019.
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; Moyn, 2014MOYN, Samuel. The Secret History of Constitutional Dignity, Yale Hum. Rts. & Dev. L.J, v. 17, 2014. Disponível em: https://digitalcommons.law.yale.edu/yhrdlj/vol17/iss1/2. Acesso em 20 jan. 2020.
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). Reva Siegel (2013SIEGEL, Reva B. Dignity and the Duty to Protect Unborn Life. Public Law Working Paper, nº 192, p.513-527, 2013. Disponível em: https://law.yale.edu/sites/default/files/documents/pdf/Faculty/Siegel_DiginityandDuty_pub.pdf. Acesso em: 28 nov. 2019.
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, p. 527) partiu da mesma constatação empírica para encaminhar-se a outra conclusão: a abertura do conceito seria vantajosa por criar um vocabulário comum e “cultivar a comunidade, mesmo entre agonistas”. Debora Diniz (2017) identificou ainda que a abertura do conceito podia ser particularmente produtiva para enquadrar demandas de proteção aos direitos em contextos onde princípios liberais não têm particular ressonância, e identificou que esse podia ser o caso para a constitucionalização da questão do aborto na América Latina. De um ponto de vista pragmático com foco na atuação judicial, Christopher McCrudden (2008) afirmou que o principal benefício do conceito não era sua substância filosófica, mas, sim, sua capacidade de permitir às cortes a negociação de tensões morais diante do pluralismo de um mundo globalizado.

É possível dizer que esse processo de negociação está em curso na experiência de constitucionalização do direito ao aborto no mundo, em particular se tomarmos como parâmetro as duas cortes que foram ao mesmo tempo pioneiras e de maior impacto transnacional para o tema desde os anos 1970, a estadunidense e a alemã. Tendo iniciado o debate constitucional de maneiras bastante distintas - uma, a partir de casos concretos que demandavam a descriminalização, a outra, em controle abstrato para questionar uma lei despenalizadora; a primeira, decidindo pelo reconhecimento de um direito amplo ao aborto, e a segunda, inicialmente pela permanência da criminalização - ambas se encaminharam nos anos 1990 a um reconhecimento semelhante dos direitos em questão mediado pela ideia de dignidade.

Este artigo parte de um breve resgate da jurisprudência inaugural desses dois países, em particular pela tentativa de compreender como o conceito de dignidade foi manejado por cada uma dessas tradições para a questão do aborto, para em seguida buscar analisar como o mesmo processo se deu no primeiro caso constitucional brasileiro sobre o tema, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 (ADPF 54), sobre anencefalia, apresentada ao Supremo Tribunal Federal em 2004 e decidida em 2012.

2. A experiência transnacional: Dignidade para a questão do aborto nos Estados Unidos e na Alemanha2 2 Parte da revisão das decisões sobre aborto nas cortes constitucionais de Estados Unidos e Alemanha dos anos 1970 e 1990 já foi apresentada anteriormente na petição inicial da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442, da qual sou uma das advogadas.

Nos Estados Unidos, dois casos paradigmáticos foram julgados em conjunto no ano de 1973: Roe v. Wade, que questionava a criminalização do aborto no estado do Texas; e Doe v. Bolton, apresentado contra uma lei da Geórgia (Estados Unidos, 1973a, 1973b). Nos dois casos, compreendeu-se que o direito fundamental em questão era o direito à privacidade das mulheres em suas decisões reprodutivas, derivado da proteção à liberdade garantida pela décima quarta emenda da Constituição do país. Dignidade não foi um preceito elencado para as decisões, como tampouco tinha centralidade para a tradição constitucional estadunidense, mas é possível compreender que uma noção inicial do conceito estava presente em subtexto.

As consequências da clandestinidade do aborto para a saúde das mulheres foram consideradas como parte do argumento da injustiça da criminalização, para além de ser descrita unicamente como uma violação de privacidade. Esse era um argumento já desenvolvido pelos movimentos de mulheres à época. Por outro lado, reconheceu-se também um interesse do Estado na proteção à vida potencial, que ficou assentado de forma gradual pelo parâmetro dos trimestres (Weitz, 2012WEITZ, Tracy. Producing and Mobilizing Science to Oppose Abortion Rights in the United States. Western Humanities Review Special, Issue: Health Rights at the Crossroads: Women, New Science and Institutional Violence, v. LXVI, n. 3, 2012. Disponível em: https://www.law.berkeley.edu/files/Weitz_Producing_and_Mobilizing_Science_to_Oppose_Aborton_Rights_.pdf. Acesso em: 2 jan. 2020.
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). O marco dos trimestres propunha uma regulação da matéria que acompanhava o desenvolvimento da gestação, sob a perspectiva de que, quanto mais inicial o estágio de desenvolvimento, menor seria o interesse do Estado em protegê-lo contrariamente às decisões da mulher grávida.

Assim, no primeiro trimestre não caberia nenhuma interferência legal à decisão de uma mulher em seguir ou interromper a gestação; no segundo trimestre, o procedimento médico poderia ser regulado para proteger a saúde da mulher, mas não para limitar seu direito de escolha; e, no terceiro trimestre, próximo ao marco de viabilidade do feto com sobrevida extrauterina, as leis estaduais poderiam, se assim quisessem, regular ou restringir o acesso ao aborto, exceto em caso de risco à vida ou à saúde da mulher. Mesmo sem referência explícita, as decisões dialogavam indiretamente com as demandas de proteção à dignidade da vida humana que circulavam entre movimento e contra movimento para a descriminalização do aborto nos anos 1970 (Siegel, 2012SIEGEL, Reva B. Dignity and sexuality: claims on dignity in transnational debates over abortion and same-sex marriage. I.CON, v. 10, n. 2, p. 355-379, 2012. Disponível em: https://www.law.yale.edu/system/files/documents/pdf/Faculty/Siegel_DignitySexuality.pdf. Acesso em: 20 dez. 2019.
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, 2013).

Em alinhamento ao que foi decidido em Roe e ao marco legal da então Alemanha Oriental, em que o aborto já era descriminalizado até 12 semanas desde 1972, foi aprovada em 1974, após intensa mobilização feminista, lei que autorizava a realização do aborto no primeiro trimestre na então Alemanha Ocidental, condicionada à realização de aconselhamento prévio ao procedimento, com o objetivo de apresentar alternativas e possivelmente dissuadir as mulheres de realizá-lo. A lei era o resultado de uma década de debates parlamentares que buscavam, ao mesmo tempo, reduzir a punição para aborto e não abandonar alguma proteção à vida potencial (Kommers, 2011KOMMERS, Donald P. Autonomy, dignity and abortion. In: GINSBURG, Tom; DIXON, Rosalind. Comparative Constitutional Law. Cheltenham Glos, UK: Edward Elgar, 2011.). Imediatamente após sua promulgação, um questionamento de constitucionalidade foi levado à corte por grupo de parlamentares e governadores estaduais do partido democrata cristão e da união social cristã, mobilizados pela conferência dos bispos católicos alemães, sob o argumento de que a lei violava o princípio da dignidade humana como um valor objetivo da ordem constitucional do país.

Nesse caso, conhecido como Aborto I, de 1975, a corte declarou a lei inconstitucional, mas não por considerar que aborto deveria necessariamente ser objeto de lei penal, mas por afirmar que a lei então questionada não adotava medidas alternativas suficientes de valorização da vida, as quais a corte tampouco definiu (Dworkin, 2003DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Saraiva, 2003.). Decidiu-se que o dever do Estado de proteger o direito à vida e à dignidade “proíbe não só ataques diretos do Estado à vida em desenvolvimento, mas também requer a proteção e a promoção do desenvolvimento dessa vida” (Alemanha, 1975). Ao mesmo tempo, a corte decidiu também que o aborto não sofreria punição se realizado para gravidez resultante de estupro, grave perigo à vida ou à saúde da mulher, grave malformação do feto e se houvesse razões sociais extremas que levassem a mulher a viver uma pressão extraordinariamente maior do que a normalmente vinculada à gestação. Em particular, a última exceção pode ser considerada um reconhecimento parcial da demanda de dignidade articulada pelo campo feminista. Mesmo após decidir pelo caráter inconstitucional da lei despenalizadora, a corte reconheceu ser necessário haver exceções à proibição geral do aborto, devido ao reconhecimento do direito das mulheres do que chamou de “livre desenvolvimento de sua personalidade” (Alemanha, 1975).

O tratado de unificação da Alemanha forçou o retorno da questão do aborto à corte constitucional - além de já ser legalizado na Alemanha Oriental, na região ocidental também crescia o apoio à mudança legal. Em 1992, houve aprovação de nova lei pelo parlamento unificado que autorizava o aborto até a 12ª semana de gestação, condicionada novamente a aconselhamento e a um período de espera de três dias entre a primeira consulta e o procedimento. Assim como em 1974, grupos cristãos recorreram à corte constitucional, dando início ao caso Aborto II (Alemanha, 1993). A decisão da corte, tomada em 1993, reafirmou a decisão anterior ao considerar que o aborto é uma prática indesejável e que as mulheres têm, por regra, o dever de prosseguir com a gestação, mas não deveriam ser punidas por abortos realizados no primeiro trimestre se o parlamento adotasse um esquema regulatório para proteger a vida potencial. Mais importante que isso foi ainda a compreensão do que significaria esse esquema regulatório: não só o oferecimento de aconselhamento compulsório, que poderia buscar convencer a mulher a não abortar desde que a abordagem não fosse intimidatória, mas também suporte público à maternidade, o que incluía garantias de que mulheres mães não sofressem desvantagem no mercado de trabalho e tivessem acesso a outras medidas de assistência social focalizadas à maternidade e à infância (Kommers, 2011KOMMERS, Donald P. Autonomy, dignity and abortion. In: GINSBURG, Tom; DIXON, Rosalind. Comparative Constitutional Law. Cheltenham Glos, UK: Edward Elgar, 2011.).

Embora a corte tenha declarado que revia a sua posição sobre a criminalização para privilegiar a defesa do aconselhamento e de suporte à maternidade por uma avaliação de que se tratava de medidas mais eficazes para proteger a vida potencial, a decisão de 1993 também refletiu uma mudança de avaliação sobre os direitos das mulheres diante da questão do aborto. Dignidade continuou sendo considerado um princípio fundamental para o caso, mas não deveria significar somente proteção à vida biológica e, sim, também reconhecimento das mulheres como agentes morais, capazes de tomar decisões relevantes sobre a reprodução (Siegel, 2013SIEGEL, Reva B. Dignity and the Duty to Protect Unborn Life. Public Law Working Paper, nº 192, p.513-527, 2013. Disponível em: https://law.yale.edu/sites/default/files/documents/pdf/Faculty/Siegel_DiginityandDuty_pub.pdf. Acesso em: 28 nov. 2019.
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). Um ano antes, em 1992, a corte estadunidense também havia mudado o entendimento de Roe depois de crescente controvérsia sobre os reconhecimentos devidos às mulheres e à vida potencial. O caso Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania vs. Casey manteve a afirmação da existência de um direito constitucional ao aborto, mas substituiu o marco dos trimestres pelo parâmetro de proibição aos “obstáculos indevidos” (undue burden) (Estados Unidos, 1992).

O novo parâmetro foi estruturado por um comprometimento duplo com o conceito de dignidade (Siegel, 2008SIEGEL, Reva B. Dignity and the Politics of Protection: Abortion Restrictions Under Casey/Carhart. The Yale Law Journal, v. 117, pp.1694-1800, 2008. Disponível em: https://digitalcommons.law.yale.edu/ylj/vol117/iss8/2/. Acesso em: 28 nov. 2018.
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). Ao mesmo tempo, considerou-se que o Estado poderia ter interesse em regular o acesso ao aborto antes do marco de viabilidade, por um respeito à dignidade da vida humana, mas não poderia fazê-lo de forma a impor obstáculos ilegítimos que violassem a dignidade das mulheres. Além de ter mantido o entendimento central de Roe sobre o direito ao aborto como uma derivação do direito à privacidade, apenas com uma mudança do marco regulatório, Casey também invalidou uma das previsões da lei do estado da Pensilvânia, a qual exigia que as mulheres obtivessem consentimento de seus companheiros para a realização do aborto. Essa previsão foi considerada um obstáculo indevido, porque impunha uma forma de autoridade dos homens sobre as mulheres que era incompatível com o reconhecimento constitucional da igualdade (Estados Unidos, 1992).

A partir da análise desses casos e outros que se referem à sexualidade, em particular sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo, Reva Siegel (2012SIEGEL, Reva B. Dignity and sexuality: claims on dignity in transnational debates over abortion and same-sex marriage. I.CON, v. 10, n. 2, p. 355-379, 2012. Disponível em: https://www.law.yale.edu/system/files/documents/pdf/Faculty/Siegel_DignitySexuality.pdf. Acesso em: 20 dez. 2019.
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), identificou as três sobreposições mais comuns à interpretação do preceito da dignidade para resolução de controvérsias sobre direitos humanos: dignidade como autonomia, igualdade ou vida. Nesses casos, a ênfase em um tipo de sobreposição ou outra também estaria relacionada com diferentes compreensões sobre o lugar da sexualidade no desenvolvimento humano e, por isso, foi também objeto de intensas disputas de enquadramento entre movimentos sociais, partidos políticos e instituições religiosas. A referência ao conceito de dignidade para construir o conflito foi importante por “unir agonistas que, de outra maneira, agiriam a partir de crenças fundamentalmente diferentes sobre o papel do direito em regular a sexualidade” (Siegel, 2012, p. 356).

Nos últimos 40 anos desde esses primeiros marcos constitucionais sobre o aborto, diversas outras cortes do mundo enfrentaram o tema e também utilizaram o conceito de dignidade para chegar a uma decisão, como, por exemplo, França (1975), Canadá (1988), África do Sul (2004), Colômbia (2006), México (2008) e Portugal (2010). No Brasil, o primeiro caso constitucional sobre o tema, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 (ADPF 54), sobre anencefalia, também seguiu essa experiência transnacional de definição dos direitos fundamentais vinculados à sexualidade e à reprodução pela mediação do preceito da dignidade, porém de uma forma sutilmente nova em relação às sobreposições identificadas por Siegel (2012SIEGEL, Reva B. Dignity and sexuality: claims on dignity in transnational debates over abortion and same-sex marriage. I.CON, v. 10, n. 2, p. 355-379, 2012. Disponível em: https://www.law.yale.edu/system/files/documents/pdf/Faculty/Siegel_DignitySexuality.pdf. Acesso em: 20 dez. 2019.
https://www.law.yale.edu/system/files/do...
): sustentando a necessidade de compreender dignidade como o direito a viver livre de tortura.

3. ADPF 54: O gênero da dignidade e da tortura

Desde os anos 1990, em particular a partir da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento das Nações Unidas ocorrida no Cairo, Egito, em 1994, cresce no plano internacional o reconhecimento de que as consequências do aborto inseguro representam uma violação do direito à saúde das mulheres (Cook, Dickens, Fathalla, 2003COOK, Rebecca; DICKENS, Bernard; FATHALLA, Mahmoud. Reproductive Health and Human Rights: Integrating Medicine, Ethics and Law. Oxford: Oxford University Press, 2003.). O Programa de Ação de Cairo, documento resultante da conferência, convocou os Estados a fortalecerem seu comprometimento com a saúde das mulheres, reconhecerem o aborto inseguro como um problema de saúde pública e buscarem reduzir suas taxas, em particular por meio da melhoria de serviços de saúde reprodutiva (UNFPA, 2014). Em sequência a esse reconhecimento, diversos órgãos de monitoramento de tratados ou sistemas regionais de direitos humanos condenaram, nos últimos 25 anos, a persistência da criminalização do aborto para os casos de risco à vida ou à saúde da mulher, estupro ou incesto e graves malformações do feto, em geral invocando a proteção a vida, saúde, privacidade e não discriminação às mulheres como direitos relevantes para a resolução dos casos (Zampas, Gher, 2008ZAMPAS, Christina; GHER, Jaime. Abortion as a Human Right - International and Regional Standards. Human Rights Law Review, v. 8, n. 2, p. 249-294, 2008.; Zureick, 2015ZUREICK, Alyson. (En)Gendering Suffering: Denial of Abortion as a Form of Cruel, Inhuman or Degrading Treatment. Fordham International Law Journal, v. 38, n. 1, Mar., 2015. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2579416. Acesso em: 18 jan. 2020.
https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?...
). O preceito da dignidade da pessoa humana não era comumente relacionado às recomendações.

Apesar disso, a ADPF 54, apresentada em 2004 ao Supremo Tribunal Federal pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde, movimentou-se pelas bordas desse enquadramento internacional para basear a demanda de autorização da antecipação terapêutica do parto para os casos de anencefalia principalmente na proteção à dignidade das mulheres e na vedação de tortura (Brasil, 2004) 3 3 A ação foi proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS), representada por atuação pro bono do então advogado e hoje ministro Luís Roberto Barroso, porém a estratégia jurídica e de comunicação relacionada à sua propositura foi coordenada pela Anis - Instituto de Bioética, sob a liderança de Debora Diniz, que propôs a parceria de litígio para a CNTS, com suporte fundamental de Daniel Sarmento, à época Procurador-Regional da República no Rio de Janeiro, assim como de outros parceiros no decorrer da construção da estratégia, como o à época promotor e hoje desembargador no Distrito Federal Diaulas Ribeiro, a médica Dafne Horovitz, o especialista em medicina fetal Thomas Gollop e o penalista Alberto Silva Franco. Para mais detalhes sobre a construção do litígio, ver Diniz (2014) e Ruibal (2015). . É possível compreender que a peça não partia de uma constatação clássica sobre o aborto como um problema de saúde pública, tese que já havia sido também incorporada politicamente pelo feminismo no Brasil (Barsted, 1992BARSTED, Leila Linhares. Legalização e Descriminalização do Aborto no Brasil: 10 anos de luta feminista, Estudos Feministas, Rio de Janeiro, 1992. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/15804. Acesso em 20 dez. 2019.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref...
; Teles, 1999TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1999.), porque a enquadrava como uma demanda distinta: uma vez que a interrupção da gestação não obstruiria as possibilidades de vida potencial, que já era impossível por razão da malformação, não era adequado sequer denominar o procedimento de saúde em questão como aborto.

A petição inicial recorreu inclusive a uma citação de Nelson Hungria dos anos 1950, em que discorria sobre uma situação de gravidez ectópica, como “um processo verdadeiramente mórbido” para o qual a interrupção não poderia caracterizar crime, pois “não está em jogo à vida de outro ser” (Brasil, 2004a, p. 21). A análise do penalista enquadrava a interrupção nesse caso como fato atípico. A anencefalia seria uma situação equivalente, para a qual se demandava uma resolução constitucional devido à sua não previsão pelo Código Penal de 1940 e à errônea interpretação análoga como crime, quando deveria ser tratada apenas como uma necessidade de saúde a ser remediada por procedimento médico. Dignidade seria um preceito central à resolução da falsa controvérsia porque a aproximação indevida da antecipação terapêutica do parto à questão do aborto implicaria em uma obrigação inconstitucional às mulheres de se manterem grávidas sem que isso fosse justificado pela proteção a nenhum outro direito. Essa violação poderia ser compreendida como tortura, por imposição de sofrimento mental injusto, pela qual o Estado poderia ser responsabilizado.

A descrição de uma violação de direitos no campo reprodutivo como tortura era ainda original em 2004. Embora a proibição de tortura e imposição de outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes seja uma das obrigações mais bem estabelecidas no direito internacional, sua conceptualização foi construída para se referir primordialmente a abusos físicos ou psicológicos cometidos contra pessoas detidas, em contextos de interrogatório, intimidação ou castigo infligidos por um Estado contra indivíduos. Desde pelo menos o final dos anos 1980, existe uma crítica de que esse conceito prioriza experiências masculinas, deixando de lado situações de dor e sofrimento que são desproporcionalmente causadas a mulheres em outros contextos, mas o caminho para reconhecer os tipos de tortura marcada pelo gênero tem sido ainda gradual (Sifris, 2014SIFRIS, Ronli. Reproductive Freedom, Torture and International Human Rights: Challenging the Masculinisation of Torture. New York: Routledge, 2014.).

Foi no início dos anos 1990, com os Tribunais Penais Internacionais para a antiga Iugoslávia e para Ruanda, que as primeiras decisões sobre uma forma particular de tortura cometida contra as mulheres foram tomadas no plano internacional, referentes aos crimes de estupro em massa, servidão sexual e gravidez forçada (Edwards, 2006EDWARDS, Alice. The ‘Feminizing’ of Torture under International Human Rights Law. Leiden Journal of International Law. Volume 19, Issue 2, pp. 349-391, June 2006. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/leiden-journal-of-international-law/article/feminizing-of-torture-under-international-human-rights-law/D23CB3ED86018E2DA9B0CC156EA957841. Acesso em: 28 nov. 2020.
https://www.cambridge.org/core/journals/...
). Considerou-se que essas foram guerras travadas “sobre e por meio do corpo das mulheres” (Niarchos, 1995NIARCHOS, Catherine N. Women, War, and Rape: Challenges Facing the International Tribunal for the Former Yugoslavia. Human Rights Quarterly, v. 17, n. 4, p. 649-690, nov., 1995. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/762485?seq=1. Acesso em: 28 jan. 2020.
https://www.jstor.org/stable/762485?seq=...
, p. 651) 4 4 Alguns anos antes, em 1986, o Relator Especial para Tortura das Nações Unidas havia descrito pela primeira vez que estupro poderia ser considerado uma forma de tortura em seu relatório (UN Doc. E/CN.4/1986/15, §119). Em 1992, enviou um pronunciamento à Comissão de Direitos Humanos também das Nações Unidas com a mesma manifestação (UN Doc. E/CN.4/1992/SR.21, §35), que foi apresentada na 21ª reunião da comissão, naquele ano. Os julgamentos de 1993 e 1994 sobre a antiga Iugoslávia e Ruanda foram, no entanto, as primeiras manifestações normativas nesse sentido. . Até esse momento, no entanto, o conceito seguia próximo à interpretação tradicional vinculada ao campo da detenção e da guerra, ainda não estendido para o contexto de acesso à saúde, o que só aconteceria uma década depois.

O caso K.L. v. Peru havia sido apresentado pouco antes da ADPF 54, ao final de 2002, por organizações feministas internacionais ao Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, reclamando reconhecimento de tratamento cruel, desumano ou degradante do Estado peruano contra a adolescente K.L. por tê-la obrigado a seguir adiante com a gestação após diagnóstico de anencefalia e o desenvolvimento de um quadro de depressão, ainda que a lei do país permitisse a interrupção em caso de ameaça à vida ou à saúde da mulher (Human Rights Committee, 2005). Esse tipo de demanda se enquadra nos casos que primeiramente foram reconhecidos como violação procedimental do direito à saúde que pode ser considerada cruel: quando o direito já está previsto em lei, mas não é efetivado pelos serviços (Zureick, 2015ZUREICK, Alyson. (En)Gendering Suffering: Denial of Abortion as a Form of Cruel, Inhuman or Degrading Treatment. Fordham International Law Journal, v. 38, n. 1, Mar., 2015. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2579416. Acesso em: 18 jan. 2020.
https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?...
). O caso seria decidido apenas um ano depois do ingresso do caso brasileiro, em 2005, com referência explícita à violação da proibição de tortura, a qual seria posteriormente citada na decisão de mérito de 2012 do STF.

Não há evidências de que o caso K.L. tenha-se tornado sequer conhecido no Brasil antes da apresentação da ADPF 54. É então significativo que o enquadramento de uma violação de direitos reprodutivos como tortura tenha partido autonomamente de dois países latino-americanos, marcados por forte hegemonia cristã. Em particular, a construção combinada na ADPF 54 da violação ao preceito da dignidade da pessoa humana por ocasião da tortura da gravidez imposta foi um enquadramento inesperado para a retórica de opositores, em particular católicos. O uso dos dois conceitos para reclamar proteção às mulheres provocou no julgamento um conflito agonístico entre a hegemonia de um constitucionalismo católico e a resistibilidade proposta por um constitucionalismo secular.5 5 Utilizo o enquadramento de constitucionalismo católico proposto por Julieta Lemaitre (2014), que identifica uma tendência de juristas católicos a partir dos anos 1990 em substituir a referência explícita a escrituras ou magistério confessional em seus argumentos por um vocabulário legal da tradição do direito natural. A versão de direito natural apropriada por esses juristas para fazer frente aos direitos sexuais e reprodutivos tem como base, na doutrina católica, a encíclica Evangelium Vitae (João Paulo II, 1995), à qual farei referência à frente neste artigo. Nomeio constitucionalismo secular o conjunto de argumentos que se contrapuseram à apropriação cristã de direitos fundamentais feitas no debate da ADPF 54, notadamente pela inclusão das experiências das mulheres ao processo interpretativo. Ao propor essa análise, não pretendo assumir que o binômio religioso x secular se organize em polos opostos e estáticos - até porque não é possível ignorar a base cristã do conceito de laicidade que manejamos (Zagrebelsky, 2014) - mas identifico que é relevante poder destrinchar de que maneiras o debate sobre o justo pode estar mais ou menos colonizado por lógicas confessionais que, ao fim, podem acabar por ser excludentes. Ao final, chegou-se à estabilização de um consenso conflituoso com suporte interpretativo de um humanismo secular para o conceito de dignidade e a questão do aborto. As seções a seguir exploram como isso se deu em distintas fases do processo, entre 2004 e 2012.

4. Dignidade para o constitucionalismo católico

Ainda que a discussão na ADPF 54 dissesse respeito a uma lei penal, que não só expressa a proteção a um valor pretensamente compartilhado pela comunidade política, mas prevê uma atitude positiva do Estado em direcionar uma resposta de criminalização às pessoas que cometam determinada conduta contrária a essa proteção - portanto, com mobilização normativa e de recursos de investigação, condenação e cumprimento de pena - nenhum dos aspectos da resposta especificamente penal foi abordado pelos atores que defendiam a aplicação analógica do Código Penal para anencefalia, diferente do que já havia sido discutido em outros países, como a Alemanha dos anos 19906 6 Neste artigo, analiso apenas os argumentos de ministros do Supremo Tribunal Federal e membros da Procuradoria-Geral da República que participaram do processo em qualquer uma de suas fases de 2004 a 2012. Argumentos apresentados nas audiências públicas de 2008 são considerados na medida em que foram citados por esses atores em seus votos ou manifestações. Para uma análise específica das audiências públicas da ADPF 54, ver Machado, Bracarense (2016). . A recusa em entrar no tema penal é um reflexo da moral católica que historicamente tem-se colocado como crítica ao encarceramento como solução de temas sociais, mas não ousa estender a mesma avaliação para leis que incriminam aborto (Lemaitre, 2014LEMAITRE, Julieta. Catholic Constitutionalism on Sex, Women and the Beginning of Life. In: Cook, Rebecca J. et al (Orgs.) Abortion Law in Transnational Perspective: Cases and Controversies. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2014.). A condição fática da anencefalia tornava a punição penal ainda mais indefensável para o tema e exigia a discussão constitucional sobre qual seria a proteção de direitos fundamentais devida a cada fase de desenvolvimento humano. Em resposta ao enquadramento da demanda, os atores contrários à possibilidade de realização de antecipação terapêutica do parto exporiam a base confessional de seus argumentos.

Para isso, não foi necessário fazer referências explícitas à doutrina católica. O constitucionalismo católico contemporâneo se estrutura pela referência a uma suposta verdade moral objetiva, que não dependeria da fé para ser compartilhada, mas estaria também acessível aos não-fiéis unicamente pela razão, como em um resgate de noções de direito natural (George, 1999GEORGE, Robert. In Defense of Natural Law. Oxford: Clarendon Press, 1999.). Afirmações como a do ministro Cezar Peluso durante o julgamento de mérito, de que a “dignidade intrínseca [é] anterior ao próprio ordenamento jurídico” (Brasil, 2013, p. 391), compôs uma das principais estratégias utilizadas. A tentativa foi de argumentar pela sacralidade absoluta da fecundação, ao afirmar que o conceito de dignidade teria uma fonte de justificação externa à experiência humana, a qual não permitiria matização sobre as condições subjetivas em que é vivida - nesse caso, pela mulher grávida, por sua família ou comunidade.

Essa é uma afirmação possível no campo moral, porém, além de ser preciso reconhecer que tem justificativa transcendental, não totalmente compatível com o constitucionalismo secular, na prática não é de fato assumida pela maioria das pessoas que adota posições conservadoras sobre o tema, como já havia identificado Ronald Dworkin (2003DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Saraiva, 2003.) em análise da organização moral da questão do aborto nos Estados Unidos7 7 Uma crítica possível a essa avaliação seria dizer que a análise poderia estar correta no início dos anos 1990, quando Dworkin publicou a primeira edição de seu livro, mas alterou-se de forma expressiva tanto nos Estados Unidos como no Brasil desde então, já que os discursos extremistas que negam qualquer possibilidade de aborto legal passaram a ter presença mais explícita no debate político dos dois países. Embora o diagnóstico possa estar correto, é preciso considerar ainda uma dimensão performativa dos discursos extremos, que podem ser utilizados para acirrar o debate, mas não são articulados de forma a gerar mudanças normativas efetivas. Esse é o caso do Brasil, em que, apesar de a hegemonia conservadora no parlamento ser presente há anos, não se chegou a aprovar nenhuma medida de retrocesso ao aborto legal, o que pode em grande medida ser explicado pela existência de um crescente consenso em torno à injustiça da criminalização do aborto em caso de estupro. . Esse também foi o caso do constitucionalismo católico presente na ADPF 54, do qual ministro Peluso pode ser identificado com um dos principais representantes: dedicou algumas páginas de seu voto a explicar a injustiça provocada por um estupro, após o qual não seria possível exigir da mulher “atitude heroica de, por peregrino amor da vida humana, condescender na continuidade da gestação” (Brasil, 2013, p. 410). Essa afirmação assume, portanto, que o compromisso de proteção à dignidade da vida tem ao menos alguma relação com a experiência subjetiva e temporal das pessoas. Se assim é, gera-se o ônus de argumentar em seguida que tipo de experiência humana deve ou não ser considerada como fundamental para a avaliação do Estado sobre o significado de dignidade - e da violação a ela.

4.1. Sofrimento dignifica

Para orientação das ações humanas diante de situações sensíveis, seria possível recorrer à outra característica do constitucionalismo católico: o desdobramento da moral objetiva no formato de virtudes, as quais poderiam ser reconhecidas igualmente por meio da razão, e dotariam os seres humanos da capacidade de compreender e agir conforme os planos divinos (Lemaitre, 2012LEMAITRE, Julieta. By reason alone: Catholicism, constitutions and sex in the Americas. I.CON, v. 10, n. 2, p. 493-511, 2012. Disponível em: https://academic.oup.com/icon/article/10/2/493/666043. Acesso em 05 dez. 2019.
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). Se a dignidade humana pode ser um princípio útil à resolução de casos difíceis com relação à reprodução e sua definição tem ao menos alguma relação com o direito de não sofrer injustamente, como no caso de um estupro, as mulheres precisam ser trazidas ao debate também pelos opositores à procedência da ação, mas o serão, por eles, segundo uma moral ainda confessional.

O Procurador-Geral da República Claudio Fonteles se perguntou em seu parecer logo após a propositura da ação, se “a dor temporal da gestante é causa bastante a obscurecer, e então relativizar, a compreensão jurídica do direito à vida” (Brasil, 2004b, p. 11). O uso do adjetivo temporal para qualificar a dor da mulher que gesta chama atenção: pode significar que é secular, desprovida do sublime da vida biológica, e contida no tempo, temporária. Para enfatizar a ausência de universalidade do sofrimento, o procurador argumentou ainda que não são todas as mulheres que, por sua dor, “almejam livrar-se do ser humano que existe em seus ventres maternos”. Além dessas, haveria aquelas que “se experimentam a dor, superam-na, e acolhendo a vida presente em seu ser, deixam-na viver, pelo tempo possível” (Brasil, 2004b, p. 11).

O objetivo dessa afirmação não era apenas descrever a diversidade da experiência das mulheres, mas sugerir que a superação da dor é a virtude que deveria ser imbricada na norma. A proposta é exatamente o que sugere a encíclica Evangelium Vitae, “Sobre o valor e a inviolabilidade da vida humana”, publicada pelo Papa João Paulo II em 1995, um ano após a Conferência de Cairo sobre População e Desenvolvimento, que reconheceu pela primeira vez no plano internacional os direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos. A encíclica critica especificamente políticas de planejamento familiar e legislação protetiva de acesso ao aborto ou à eutanásia, ao identificar que haveria:

uma atmosfera cultural que não vê qualquer significado nem valor no sofrimento, antes considera-o como mal por excelência, que se há de eliminar a todo custo; isto verifica-se especialmente quando não se possui uma visão religiosa que ajude a decifrar positivamente o mistério da dor (João Paulo II, 1995, p. 12).

O objetivo de superar o sofrimento é, portanto, um instrumento de ligação com o divino.

Ministro Peluso deixou a correlação com o magistério católico ainda mais evidente, desde a sua manifestação para a suspensão da liminar concedida monocraticamente por ministro Marco Aurélio, relator do caso, em 2004. Peluso afirmou que “o sofrimento em si não é alguma coisa que degrade a dignidade humana; é elemento inerente à vida humana” e acusou a mulher que busca interromper a gestação de adotar “atitude individualista e egocêntrica” (Brasil, 2013, p. 405) 8 8 Debora Diniz e Ana Cristina González Vélez (2007, p. 22) analisaram em profundidade o voto do ministro Cezar Peluso por ocasião da suspensão da liminar da ADPF 54, o qual argumentaram que “expõe a fragilidade da razão pública em temas de direitos reprodutivos, em especial sobre aborto” no Brasil. . A manifestação do ministro expressava que, uma vez que o “caráter sagrado e inviolável” da vida refletiria “a própria inviolabilidade do Criador” (João Paulo II, 1995, p. 44-45), sua relativização seria inadmissível e, para afastar as razões que uma mulher possa ter sobre quão insuportável é seu sofrimento, foi preciso falseá-las de frívolas, chamando-as “primitivas” e decorrentes de “mero prazer”, nas palavras do ministro, incomparáveis com a seriedade e a autoridade da criação. É possível supor que um dos elementos a diferenciar o estupro de outras situações de sofrimento das mulheres diante de um processo reprodutivo não pretendido seria justamente o seu caráter de ofensa a outras entidades acolhidas pela moral cristã - em particular, à família e ao casamento, uma vez que a fecundação não deixa de ser um fato em ambas as situações9 9 É certo que a Igreja Católica, oficialmente, mantém sua objeção ao aborto em qualquer situação, inclusive de estupro. No entanto, mais que analisar os detalhes da doutrina católica para o tema, importa a essa análise verificar como foi traduzida dentro do processo, inclusive de forma que pudesse ser compatível com o destaque do horror do estupro como um sofrimento ontologicamente distinto de outros, capaz de afastar o que de outra forma seria uma proteção absoluta à fecundação. .

O sofrimento que dignifica, portanto, tem gênero. A recusa em submeter-se a ele foi renomeada de “ansiedade, voltada para si mesma”, que seria “exaltada” na proposta da ação, “em detrimento do afeto da piedade, da compaixão, da doação e da abnegação”, nos termos de ministro Peluso (Brasil, 2013, p. 406). As palavras de Papa João Paulo II na encíclica ajudam a compreender o quadro do argumento afirma que:

a mulher percebe e ensina que as relações humanas são autênticas quando se abrem ao acolhimento da outra pessoa, reconhecida e amada pela dignidade que lhe advém do facto mesmo de ser pessoa […]. Este é o contributo fundamental que a Igreja e a humanidade esperam das mulheres (João Paulo II, 1995, p. 81).

Para o constitucionalismo católico na ADPF 54, “o fato mesmo de ser pessoa” deveria ser reconhecido ao desenvolvimento biológico de um embrião ou feto inviável. Às mulheres não bastaria existir: seria preciso sofrer em reverência abnegada à sacralidade da fecundação para que se dignificasse sua vida humana.

4.2. Dignidade como sacrifício

O segundo argumento desenvolvido pelos contrários à procedência da ação era também um desdobramento do argumento de virtude: a tese de que as gestações de fetos anencéfalos deveriam ser mantidas até o fim para permitir a doação de órgãos. “Morte prematura [de anencéfalos] frustrará a vida de outros bebês”, afirmou Claudio Fonteles no parecer da Procuradoria-Geral da República (Brasil, 2004b, p. 12). Orientações compulsórias sobre como as pessoas devem lidar com a própria saúde não são aceitas como legítimas sob a justificativa de que, se não o fizerem, frustrarão a possibilidade futura de vida de outra pessoa. É para a gestação, e como uma orientação específica a mulheres grávidas, que o argumento se torna possível como desdobramento lógico de que a sua compreensão como sujeitos é mediada pelo critério de virtude de viver em sacrifício. Para Mary Ann Glendon (2005), a relacionalidade é um aspecto fundamental de como dignidade media o conceito de pessoa para a moral cristã; mas, conforme a tese dos contrários à procedência ADPF 54, essa relacionalidade não seria verificada em face da mulher e de seu contexto, seus familiares e outras possíveis relações de dependência, mas exclusivamente da mulher em face da fecundação.

Para Fonteles, há um horizonte normativo missionário na imposição compulsória da solidariedade das mulheres para doação de órgãos: afirmou em seu parecer que “o ser solidário é modo eficaz de instituir a cultura da vida” (Brasil, 2004b, p. 12). O procurador buscou fundar sua argumentação na alegação de que a solidariedade é um dos objetivos da República previstos no artigo 1º da Constituição Federal, mas é possível identificar que a origem de seu vocabulário e tese era outra. O termo cultura da vida foi inaugurado no magistério cristão pela Evangelium Vitae, em que o conceito é oposto a “cultura da morte”, que seria “a própria estrutura de pecado, caracterizada pela imposição de uma cultura anti-solidária” (João Paulo II, 1995, p. 10), baseada em uma “mentalidade contraceptiva” (João Paulo II, 1995, p. 11). A solidariedade é compreendida como colocar-se a “pleno acolhimento e serviço do outro” (João Paulo II, 1995, p. 16), em que esse outro é sagrado “porque, desde a sua origem, supõe a ação criadora de Deus” (João Paulo II, 1995, p. 44). Para esse enquadramento, a importância da solidariedade, como reconhecimento da dignidade do outro, é fundada em reconhecer a autoridade criadora que lhe dá sentido.

O argumento da doação de órgãos não é sem polêmica para essa tradição, uma vez que exige o reconhecimento da morte encefálica como critério para autorização de transplante, possibilitada pela manutenção artificial de funções vitais mecânicas de alguém que ainda assim será declarado morto. Ministro Peluso entrou no debate para afirmar que a definição de morte como sinônimo de interrupção de atividade encefálica era apenas operacional, porque “dirigida, pragmaticamente, a garantir aproveitabilidade de órgãos” (Brasil, 2013, p. 381), e não definidora do que significa a cessação da vida. No julgamento da liminar da ação, o ministro já havia descrito que a situação de transplante era tal que “se sacrificam certos órgãos de alguém que teve o que a lei e os cientistas chamam de ‘morte encefálica’, mas para salvar a vida alheia” (Brasil, 2005, p. 74). O conceito não seria derivado de uma constatação de cessação de atividade vital, mas seria função do sacrifício.

O embate é, novamente, mais religioso que prático, com vistas a contornar a contradição de que o magistério católico considere como “o auge da verdade cristã acerca da vida” o fato de que “a dignidade desta não está ligada apenas às suas origens, à sua proveniência de Deus, mas também ao seu fim, ao seu destino de comunhão com Deus no conhecimento e no amor d’Ele” (João Paulo II, 1995, p. 32). Assim, a um feto sem atividade encefálica, apenas seria concedida a compreensão de que não está vivo, como criatura divina, se chegasse ao ponto de poder ser posto à função de outros, ainda que para isso fosse preciso obrigar, sob ameaça penal, uma mulher a manter-se grávida.

5. Dignidade para o constitucionalismo secular

5.1. Dignidade da mulher, interesses da sociedade

Embora a petição inicial da ADPF 54 não tenha identificado laicidade como um dos princípios centrais à demanda, e esse tenha sido considerado um enquadramento apenas secundário para os participantes das audiências públicas da ação realizadas em 2008 (Machado, Bracarense, 2016MACHADO, Marta Rodriguez de Assis; BRACANENSE, Ana Carolina. O caso do feto anencefálico: direitos sexuais e reprodutivos, confronto e negociação argumentativa no Supremo Tribunal Federal, Direito & Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 15, 2016, p. 677-714. Disponível em:https://e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/25165. Acesso em 25 jan. 2020.
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), o relator do caso, ministro Marco Aurélio Melo, iniciou seu voto de mérito de 2012 por uma longa explanação sobre o significado da laicidade do Estado no Brasil. Esse enquadramento, que seria seguido pelos outros sete ministros que compuseram a maioria, foi central às possibilidades argumentativas que se seguiram.

Apesar da análise que proponho, nenhum dos atores do processo reivindicou a sua posição como fundamentalmente confessional. As objeções foram apresentadas como jurídicas e, em particular nas audiências públicas, posteriormente referidas pelos ministros em seus votos, revestidas de caráter científico10 10 Discutiu-se muito nas audiências públicas, por exemplo, o marco inicial de proteção à vida conforme dúvidas sobre neurociência e a precisão do diagnóstico de anencefalia, ou com regressões ao momento da concepção como o único que poderia ser identificado como o início de uma forma singularizada de vida humana, sem supostamente incorrer em risco de discriminação. . No entanto, o que estava de fato de fundo a essas perguntas era um enquadramento propriamente cristão do tema, que definia o questionamento relevante a ser feito ao pressupor que há algo de sublime no movimento criador da vida, que se sobreporia em importância e centralidade a qualquer desenvolvimento posterior da existência humana e, portanto, seria suficiente para gerar o ônus de proteção moral e jurídica sem a análise de variáveis dependentes.

A organização do voto do ministro relator contribuiu para desnaturalizar a narrativa confessional e descrever se tratar, na realidade, de um confronto entre

de um lado, os interesses legítimos da mulher em ver respeitada sua dignidade e, de outro, os interesses de parte da sociedade que deseja proteger todos os que a integram - sejam os que nasceram, sejam os que estejam para nascer - independentemente da condição física ou viabilidade de sobrevivência (Brasil, 2013, p. 33).

Da dignidade conferida pela autoridade da criação, o ministro deslocou o conceito para a dignidade da existência, contraposta ao que seriam interesses morais legítimos, porém não classificados como demandas de proteção à dignidade titularizada por outro ser.

No voto, o tópico dedicado ao direito à vida foi apenas o quarto, após as longas considerações sobre laicidade e o que se sabia sobre o diagnóstico de anencefalia. A ordem da construção argumentativa importa, pois sinaliza que não há uma pergunta primordial a ser feita sobre a proteção à fecundação como sinônimo de proteção à vida. Essa construção gerou um precedente fundamental para o enquadramento constitucional da questão do aborto para além da anencefalia, e não apenas porque permitiu uma nova exceção à criminalização e, assim, fragilizou o uso do direito penal para a matéria, mas porque provocou uma releitura secular dos direitos em questão na corte. Esse reenquadramento foi o que permitiu a rejeição rápida à demanda de solidariedade compulsória de doação de órgãos, “sob pena de coisificar a mulher e ferir, a mais não poder, a sua dignidade” (Brasil, 2013, p. 52), por exemplo. Isso não seria possível se o conceito de vida não tivesse sido deslocado, pelo atravessamento do conceito de dignidade, à possibilidade de proteger a vida vivida com maior relevância que a sacralidade da concepção.

Outras análises resumiram esse argumento na afirmação de que o Supremo Tribunal Federal reconheceu que a proteção do direito à vida não é absoluta (Machado, Cook, 2018MACHADO, Marta Rodriguez de Assis; COOK, Rebecca J. Constitutionalizing abortion in Brazil, Rev. Investig. Const., Curitiba, v. 5, n. 3, p. 185-231, 2018. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/rinc/article/view/60973. Acesso em 02 dez. 2019.
https://revistas.ufpr.br/rinc/article/vi...
), o que é uma análise correta e foi precisamente a conclusão normativa do caso, a qual tinha como precedente imediato o julgamento de 2008 da ADI 3510, sobre pesquisas com células-tronco embrionárias. No entanto, parece importante também ressaltar o giro conceitual e moral que tornou essa conclusão possível, a qual talvez tenha uma composição sutilmente distinta: de fato houve um esforço argumentativo de diversos ministros para apresentar o direito à vida como não sendo absoluto, mas a conclusão do processo não foi negativa ou restritiva. Foi, pelo contrário, afirmativa, de que haveria formas mais integrais e justas de proteger a vida se a entendermos como proteção à vida digna.

O voto da ministra Cármen Lucia no julgamento de mérito foi particularmente claro nesse sentido, desde a abertura de seu pronunciamento oral, em que afirmou que, no processo de construção do julgamento,

todos preocupam-se com o direito à vida, quem é contra a interrupção da gravidez, quem é a favor, quem se pronunciou na audiência pública, de uma forma ou de outra; não há ninguém que tenha qualquer outra preocupação que não seja rigorosamente a vida e a dignidade da vida, com a visão que cada um tem de mundo e da própria vida, o que reflete, a meu ver, um momento democrático brasileiro, um momento de pluralidade (Brasil, 2013, p. 172).

A ministra ressaltou que, assim como o relator do caso, construiu seu voto especialmente em torno ao princípio da dignidade da pessoa humana, e mencionou brevemente a concepção cristã de relacionalidade da vida, ressaltando o caráter não individualista da dignidade, porque “extrapola a pessoa”, “estamos falando de uma relação entre seres” (Brasil, 2013, p. 174). Apesar de não ter desenvolvido esse ponto, é possível concluir pelos desdobramentos de seu voto que, mesmo partindo de uma matriz cristã, a ministra propunha uma análise de direito à vida digna relacional porque vinculado à reprodução não só biológica, como social da vida humana. Isso não significou retomar a centralidade do que ministro Marco Aurélio chamou de interesses da sociedade para a discussão, mas localizar a gravidade das decisões de uma mulher em seu contexto, fora do qual não é possível compreender o que seja vida digna. Sutilmente sugeriu-se que a análise focada exclusivamente no embrião ou feto é que seria inadequadamente individualista.

A proposta da ministra foi precisamente de superação de uma perspectiva individual ou abstrata da questão, que não permitiria vê-la em toda a sua complexidade:

[...] por isso mesmo, acho que, quando falamos em dignidade, estamos falando de todos: do feto, da mulher, do pai, do que seria o irmãozinho mais velho, que fica olhando - como uma das cartas que nos chegaram, contava que o filho pergunta todo dia quanto tempo levará para ele brincar, sabendo a mulher que esse irmão nunca vai brincar com o que está para chegar; que ele não vai poder jogar bolinha de gude porque não vai ter essa possibilidade. Essa realidade toda precisa ser posta constitucionalmente no centro da discussão (Brasil, 2013, p. 175, grifos meus).

É possível dizer que de fato o foi, na construção do conceito de vida digna lido a partir de um humanismo secular.

5.2. Sofrimento mental como tortura, humanismo secular para maternidade digna

Os ministros da posição majoritária consideraram com maior centralidade para a conclusão sobre o que é vida digna os relatos de sofrimento das mulheres grávidas ou famílias confrontadas com o diagnóstico de anencefalia que os argumentos do constitucionalismo católico sobre a possibilidade de chegar ao conhecimento sobre o absoluto da vida por meio da razão. Em vez de levar à compreensão, também cristã, de que o “inevitável sofrimento da vida”, como chegou a ser nomeado no julgamento, deve ser encarado com a resignação da obediência aos desígnios do absoluto, vinculados, ainda que não explicitamente, a uma promessa de vida eterna, a escuta às mulheres provocou o reconhecimento de uma injustiça que deveria ser remediada socialmente. Para ministra Cármen Lucia: “não se há de negar compaixão, porque seria injustiça, menos ainda o direito, porque seria antijurídico, à mulher que, trazendo um pequeno caixão no que é o seu berço físico, vai às portas do Judiciário a suplicar pela sua vida” (Brasil, 2013, p. 217). Assim sinalizou-se que o trágico particular enfrentado por mulheres e famílias não deveria ser relegado à esfera individual da salvação, mas à corresponsabilidade da justiça.

Não há elementos para afirmar como os ministros da posição majoritária chegaram, individualmente, a concluir pela procedência da ação e se algum deles mudou de posição ao longo do processo. Mas é possível, por outro lado, compreender seus votos como arquivo de um tempo e buscar entender o que os tornou possíveis em um país que tardou quase oito anos para permitir a finalização do caso, e em que posições como de Claudio Fonteles ou Cezar Peluso tinham razoável ressonância pública, ecoadas em particular pela própria Igreja Católica.11 11 No julgamento de mérito da ADPF 54, ministro Marco Aurélio admitiu ter “colocado na prateleira intencionalmente o processo” e indicou que o julgamento da ADI 3510 em 2008, sobre células-tronco, havia sido determinante para a retomada dos debates da ADPF 54 (Brasil, 2013, p. 86). Nesse ano, o ministro decidiu determinar a data das audiências públicas sobre anencefalia, que já haviam sido convocadas em 2004, mas ainda não realizadas. Esse é apenas um breve indicativo sobre como o ritmo de condução do processo foi guiado pelas condições políticas de decisão e em permanente atenção ao andamento do debate público, que tratava a ADPF 54 como um caso difícil. No julgamento que cassou a liminar concedida monocraticamente por ministro Marco Aurélio ainda em 2004, ministro Peluso fez a pergunta emblemática à diferença entre as posições: admitindo jamais ter conhecido uma mulher em situação de gravidez anencefálica que demandasse interrompê-la, perguntou-se “quem são elas”12 12 Duas semanas após o protocolo da ação, em 2004, ministro Marco Aurélio havia concedido liminar em que reconhecia a atipicidade da antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia. A liminar restou vigente por quatro meses, até ser cassada pelo plenário no episódio em que ministro Peluso fez sua pergunta. “Quem são elas?” foi assumido como título do documentário de Debora Diniz que contou as histórias de quatro mulheres que puderam interromper gestações durante a vigência da liminar. Tratou-se do primeiro documentário a ser exibido em um procedimento do Supremo Tribunal Federal, durante as audiências públicas de 2008. O filme está disponível online em: https://youtu.be/pM1aCmkTn9g. Acesso em 26 jan. 2020. . A posição que expressava era, portanto, das certezas morais ainda não confrontadas pelo conflito real.

Protegida pela hegemonia da Igreja, essa posição tinha força para ser determinante. Crucial para reposicionar as perguntas relevantes ao caso foi à presença em primeiro plano da concretude das histórias dessas mulheres, embora a ação constitucional fosse abstrata. O enquadramento da lei penal como provocadora de tortura, evidenciado pelas narrativas das mulheres sobre o próprio sofrimento, foi responsável pela provocação do horror trágico que permitiu a desilusão da certeza moral sobre aborto no caso (Diniz, 2001DINIZ, Debora. Conflitos morais e bioética. Brasília: LetrasLivres, 2001.). A história contada era das mulheres que queriam ser mães, mas haviam sido confrontadas pela anencefalia.

Elas não rejeitavam de plano nenhuma das descrições cristãs sobre o sublime da maternidade, mas afirmavam, por exemplo: “um dia eu não aguentei. […] Eu sonhava com ela no caixão. Eu acordava gritando, soluçando”, como Gabriela Cordeiro”13 13 Gabriela Cordeiro foi a paciente do habeas corpus nº 84025/RJ, de 2004, o qual foi o antecedente imediato da ADPF 54 no Supremo Tribunal Federal. Para mais detalhes sobre a história de Gabriela e o caminho do litígio individual ao abstrato, ver Diniz (2014). . Para Érica, que pôde interromper a gravidez durante a vigência da liminar, continuar “seria muito mais sofrimento. Minha barriga estaria crescendo, eu sentindo tudo, e no final, eu não ia tê-lo”. Para Camila, “o pior era olhar no espelho e ver aquela barriga, que não ia ter filho nenhum dela. […] O meu maior medo era o de ter que levar mais quatro meses de gravidez, registrar, fazer certidão de óbito e enterrar horas depois de nascer” (Brasil, 2013, p. 63). As vozes registradas no voto do ministro relator compuseram as evidências de como a lei penal podia impor tortura a mulheres grávidas.

Não é preciso perguntar-se se os personagens específicos, ministro e procurador, que mais explicitamente expressaram a posição do constitucionalismo católico para o caso também experimentaram a desilusão em algum momento e colocaram-se em dúvida sobre a contingência das próprias crenças ou a correção de sua posição contrária à procedência da ação. O que importa é compreender que houve um deslocamento difuso da moralidade hegemônica, que permitiu decisão contrária ao que esses atores defendiam. A posição majoritária na corte ainda foi marcada pelo compartilhamento de um sentimento cristão de compadecimento pelo sofrimento alheio, mas esse compadecimento precisou secularizar-se ao considerar o sofrimento de uma mulher pelo destino da reprodução infrutífera como algo capaz de gerar horror e ser classificado como tortura, e não constituir dever por missão divina.

O reconhecimento do sofrimento foi a primeira parte da construção da ideia de que havia injustiça na proibição de interrupção da gravidez com diagnóstico de anencefalia, mas a segunda parte foi marcada também pela conclusão de que se tratava da antítese do que deveria ser a experiência de gestar: nas palavras de ministro Marco Aurélio quando do julgamento da liminar, a “alegria de ter em seu interior a sublime gestação” (Brasil, 2013, p. 14). A ideia foi apresentada junto à essencialização do gênero na maternidade, que para o ministro relator era descrita como o “determinismo biológico” que “faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal” (Brasil, 2013, p. 13). Mas o cenário de “encantado universo da mulher às vésperas de ser mãe”, como descrito por ministro Ayres Brito na discussão sobre a cassação da liminar, foi abordado no processo não apenas como um lembrete da pedagogia do gênero que envolve a reprodução, mas em contraposição às situações em que “se despedaçam por antecipação os mais dourados sonhos, as mais alentadoras expectativas, os mais afetivos planos” (Brasil, 2005, p. 103), com uma abertura de que esse possa também ser o horizonte moral comum a ser buscado - que as mulheres sejam protegidas das situações em que gestar não seja sinônimo desses sentimentos.

É verdade que os ministros estavam-se referindo especificamente ao caso da anencefalia, e, portanto, seus argumentos eram vinculados ao luto por um feto sem perspectiva de sobrevivência, mas permitir-se falar sobre a experiência das mulheres abria outra possibilidade moral sobre o tema que ia além de simplesmente reconhecer a atipicidade do procedimento por inviabilidade fetal. Provocou-se a abertura a outra perspectiva de humanismo, que não tenha na mortificação cristã do humano para aproximação do divino o seu fundamento. Se a morte for apenas parte, mas não o sentido da experiência moral humana, que encontraria sua razão apenas na vida eterna posterior, outros sentimentos ou valores podem ser invocados para um humanismo que não seja passivo a desígnios absolutos, mas se construa em torno a valores como sanidade, movimento e afeição para avançar a corresponsabilidade pela existência humana (Stears, 2014STEARS, Marc. Death shall have no dominion: Humanism, realism and agonism in Virginia Woolf and Dylan Thomas. Contemporary Political Theory, v. 13, n. 2, 2014.). De certa forma, esses afetos estiveram presentes no julgamento, como quando se invocou a proteção à saúde como a versão positiva da rejeição ao sofrimento mental da tortura, e mencionou-se a importância que a decisão diante do trágico poderia ter para os vínculos de afeto e para os projetos de futuro dessas mulheres e suas famílias.

Talvez o momento mais evidente do embate agonístico entre o humanismo católico e o secular tenha-se apresentado na discussão entre os ministros Carlos Ayres Britto e Cezar Peluso, pela primeira vez no julgamento que cassou a liminar em 2004, mas repetido quase em termos idênticos sete anos depois, no debate sobre o mérito. Ayres Britto perguntou-se se a corte deveria reconhecer a existência de um direito de nascer para morrer, ao que Peluso retrucou que esse era o destino de todos, “todos nascemos para morrer”. Ayres Britto em comentário final contra-argumentou:

E, quanto ao voto do Ministro Peluso - me permitam dizer -, magnífico voto, tão bem fundamentado, está coerente com a concepção que Vossa Excelência tem, a meu sentir, também com todo o respeito, do que seja a vida. Vossa Excelência acha que nascemos para morrer. Eu acho que nascemos para o espetáculo da vida e, por isso, eu permaneço entendendo que não devemos, jamais, a pretexto de defender quem sofre, no fundo, amar o sofrimento (Brasil, 2013, p. 416-417).

Não é possível ignorar que a corte se permitiu avançar em afirmações sobre a tortura de uma gestação compulsória e a vinculação até certo ponto transgressora que isso poderia ter com a necessidade de autorizar a interrupção de uma gravidez por tratar-se de casos de certeza de não sobrevivência de uma futura vida. No entanto, a forma como isso foi desenvolvido em vinculação com o conceito de dignidade da pessoa humana talvez aponte para um horizonte promissor de reconfiguração dos princípios e do embate moral da questão do aborto, ao trazer integralmente as mulheres para o centro de um humanismo marcado pelo trágico necessariamente feminino das decisões sobre a reprodução.

6. Considerações finais: Resolução agonística

Para algumas análises, o caso constitucional sobre anencefalia poderia ser considerado uma ação apenas tímida de litígio estratégico feminista: a demanda não deu centralidade a princípios como autonomia ou liberdade de decisão reprodutiva; o fenômeno questionado, de uma malformação relativamente incomum e incompatível com a vida, poderia ser descrito como marginal à problemática ampla da questão do aborto. No entanto, ao retirar temporariamente de cena a preocupação com uma vida potencialmente viável, em um país em que a moral religiosa tem profundo impacto nas decisões políticas e normativas, o debate sobre a anencefalia tornou possível admitir as mulheres como sujeitos centrais às preocupações morais e de proteção a direitos fundamentais na questão do aborto. A mobilização de um princípio compartilhado por sujeitos que se engajam no tema de perspectivas opostas, como o de dignidade da pessoa humana, permitiu ainda que o embate acontecesse de maneira agonística, para ao final deslocá-lo de um essencialismo naturalista tendente ao confessional para tematizar como poderia ser atravessado por experiências particulares marcadas pelo gênero.

Apenas reafirmar a laicidade do Estado como princípio não seria suficiente para esse giro. Como foi possível perceber no desenvolvimento do caso, argumentos formalmente laicos, construídos com referência a princípios constitucionais, ainda podiam guardar inspiração confessional se combinados a uma interpretação de valores vinculados à obediência ao divino. A esperança racionalista nos processos decisórios que se organizam com referência a princípios constitucionais liberais infelizmente não parece capaz de provocar a metamorfose trágica das certezas morais que se constroem paralelamente à normatização do Estado (Diniz, 2001DINIZ, Debora. Conflitos morais e bioética. Brasília: LetrasLivres, 2001.), mas a desilusão mobilizada pela nomeação da lei penal como provocadora de tortura para mulheres que desejariam aquela gestação foi capaz de fazê-lo para a anencefalia.

Somente as próprias mulheres podem experimentar sofrimento ou resignação diante do acaso da gestação acometida por anencefalia. No entanto, é possível embutir nas normas expectativas morais sobre o que determinadas situações deveriam provocar e o que nos é devido legal ou constitucionalmente repudiar ou evitar. A ADPF 54 permitiu o experimento da desilusão sobre o significado da proteção absoluta à dignidade da vida biológica, ao demonstrar que a insistência nesse enquadramento era conivente com o sofrimento injusto causado pela obrigação de gestar sem futuro. Sofrer, resignar-se, ou cultivar qualquer outro sentimento diante da gestação acometida por anencefalia seguirá sendo uma prerrogativa exclusiva às próprias mulheres e suas famílias, mas reconhecê-lo como experiências possíveis e particulares, não dependentes ou devidas à necessidade de garantir salvação divina, foi a contribuição da corte para que se trouxesse, de outra maneira, o tema da autonomia para a questão do aborto, a partir de uma afirmação anterior e fundamental: a de que à vida das mulheres aplica-se o princípio da dignidade da pessoa humana e todas têm direito a uma vida livre de tortura também no que se refere às decisões reprodutivas.

7. Referências bibliográficas

  • 1
    Uma versão anterior deste texto foi apresentada como um dos capítulos de minha tese de doutorado, intitulada “Constitucionalismo agonístico: a questão do aborto no Brasil” (Rondon, 2020), defendida em fevereiro de 2020 na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, sob orientação de Debora Diniz.
  • 2
    Parte da revisão das decisões sobre aborto nas cortes constitucionais de Estados Unidos e Alemanha dos anos 1970 e 1990 já foi apresentada anteriormente na petição inicial da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442, da qual sou uma das advogadas.
  • 3
    A ação foi proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS), representada por atuação pro bono do então advogado e hoje ministro Luís Roberto Barroso, porém a estratégia jurídica e de comunicação relacionada à sua propositura foi coordenada pela Anis - Instituto de Bioética, sob a liderança de Debora Diniz, que propôs a parceria de litígio para a CNTS, com suporte fundamental de Daniel Sarmento, à época Procurador-Regional da República no Rio de Janeiro, assim como de outros parceiros no decorrer da construção da estratégia, como o à época promotor e hoje desembargador no Distrito Federal Diaulas Ribeiro, a médica Dafne Horovitz, o especialista em medicina fetal Thomas Gollop e o penalista Alberto Silva Franco. Para mais detalhes sobre a construção do litígio, ver Diniz (2014) e Ruibal (2015).
  • 4
    Alguns anos antes, em 1986, o Relator Especial para Tortura das Nações Unidas havia descrito pela primeira vez que estupro poderia ser considerado uma forma de tortura em seu relatório (UN Doc. E/CN.4/1986/15, §119). Em 1992, enviou um pronunciamento à Comissão de Direitos Humanos também das Nações Unidas com a mesma manifestação (UN Doc. E/CN.4/1992/SR.21, §35), que foi apresentada na 21ª reunião da comissão, naquele ano. Os julgamentos de 1993 e 1994 sobre a antiga Iugoslávia e Ruanda foram, no entanto, as primeiras manifestações normativas nesse sentido.
  • 5
    Utilizo o enquadramento de constitucionalismo católico proposto por Julieta Lemaitre (2014), que identifica uma tendência de juristas católicos a partir dos anos 1990 em substituir a referência explícita a escrituras ou magistério confessional em seus argumentos por um vocabulário legal da tradição do direito natural. A versão de direito natural apropriada por esses juristas para fazer frente aos direitos sexuais e reprodutivos tem como base, na doutrina católica, a encíclica Evangelium Vitae (João Paulo II, 1995), à qual farei referência à frente neste artigo. Nomeio constitucionalismo secular o conjunto de argumentos que se contrapuseram à apropriação cristã de direitos fundamentais feitas no debate da ADPF 54, notadamente pela inclusão das experiências das mulheres ao processo interpretativo. Ao propor essa análise, não pretendo assumir que o binômio religioso x secular se organize em polos opostos e estáticos - até porque não é possível ignorar a base cristã do conceito de laicidade que manejamos (Zagrebelsky, 2014) - mas identifico que é relevante poder destrinchar de que maneiras o debate sobre o justo pode estar mais ou menos colonizado por lógicas confessionais que, ao fim, podem acabar por ser excludentes.
  • 6
    Neste artigo, analiso apenas os argumentos de ministros do Supremo Tribunal Federal e membros da Procuradoria-Geral da República que participaram do processo em qualquer uma de suas fases de 2004 a 2012. Argumentos apresentados nas audiências públicas de 2008 são considerados na medida em que foram citados por esses atores em seus votos ou manifestações. Para uma análise específica das audiências públicas da ADPF 54, ver Machado, Bracarense (2016).
  • 7
    Uma crítica possível a essa avaliação seria dizer que a análise poderia estar correta no início dos anos 1990, quando Dworkin publicou a primeira edição de seu livro, mas alterou-se de forma expressiva tanto nos Estados Unidos como no Brasil desde então, já que os discursos extremistas que negam qualquer possibilidade de aborto legal passaram a ter presença mais explícita no debate político dos dois países. Embora o diagnóstico possa estar correto, é preciso considerar ainda uma dimensão performativa dos discursos extremos, que podem ser utilizados para acirrar o debate, mas não são articulados de forma a gerar mudanças normativas efetivas. Esse é o caso do Brasil, em que, apesar de a hegemonia conservadora no parlamento ser presente há anos, não se chegou a aprovar nenhuma medida de retrocesso ao aborto legal, o que pode em grande medida ser explicado pela existência de um crescente consenso em torno à injustiça da criminalização do aborto em caso de estupro.
  • 8
    Debora Diniz e Ana Cristina González Vélez (2007, p. 22) analisaram em profundidade o voto do ministro Cezar Peluso por ocasião da suspensão da liminar da ADPF 54, o qual argumentaram que “expõe a fragilidade da razão pública em temas de direitos reprodutivos, em especial sobre aborto” no Brasil.
  • 9
    É certo que a Igreja Católica, oficialmente, mantém sua objeção ao aborto em qualquer situação, inclusive de estupro. No entanto, mais que analisar os detalhes da doutrina católica para o tema, importa a essa análise verificar como foi traduzida dentro do processo, inclusive de forma que pudesse ser compatível com o destaque do horror do estupro como um sofrimento ontologicamente distinto de outros, capaz de afastar o que de outra forma seria uma proteção absoluta à fecundação.
  • 10
    Discutiu-se muito nas audiências públicas, por exemplo, o marco inicial de proteção à vida conforme dúvidas sobre neurociência e a precisão do diagnóstico de anencefalia, ou com regressões ao momento da concepção como o único que poderia ser identificado como o início de uma forma singularizada de vida humana, sem supostamente incorrer em risco de discriminação.
  • 11
    No julgamento de mérito da ADPF 54, ministro Marco Aurélio admitiu ter “colocado na prateleira intencionalmente o processo” e indicou que o julgamento da ADI 3510 em 2008, sobre células-tronco, havia sido determinante para a retomada dos debates da ADPF 54 (Brasil, 2013, p. 86). Nesse ano, o ministro decidiu determinar a data das audiências públicas sobre anencefalia, que já haviam sido convocadas em 2004, mas ainda não realizadas. Esse é apenas um breve indicativo sobre como o ritmo de condução do processo foi guiado pelas condições políticas de decisão e em permanente atenção ao andamento do debate público, que tratava a ADPF 54 como um caso difícil.
  • 12
    Duas semanas após o protocolo da ação, em 2004, ministro Marco Aurélio havia concedido liminar em que reconhecia a atipicidade da antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia. A liminar restou vigente por quatro meses, até ser cassada pelo plenário no episódio em que ministro Peluso fez sua pergunta. “Quem são elas?” foi assumido como título do documentário de Debora Diniz que contou as histórias de quatro mulheres que puderam interromper gestações durante a vigência da liminar. Tratou-se do primeiro documentário a ser exibido em um procedimento do Supremo Tribunal Federal, durante as audiências públicas de 2008. O filme está disponível online em: https://youtu.be/pM1aCmkTn9g. Acesso em 26 jan. 2020.
  • 13
    Gabriela Cordeiro foi a paciente do habeas corpus nº 84025/RJ, de 2004, o qual foi o antecedente imediato da ADPF 54 no Supremo Tribunal Federal. Para mais detalhes sobre a história de Gabriela e o caminho do litígio individual ao abstrato, ver Diniz (2014).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2020
  • Aceito
    25 Abr 2020
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