Resumo
Tendo em vista a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o Caso do Povo Indígena Xucuru e seus membros vs. Brasil (2018), o artigo demonstra a nulidade do registro imobiliário do imóvel rural Caípe, encravado na Terra Indígena Xucuru, à luz das Constituições de 1891 e de 1934, bem como analisa os discursos presentes nos autos, na ótica da teoria da colonialidade do poder de Aníbal Quijano.
Palavras-chave:
Terra Indígena Xucuru; Imóvel particular; Nulidade
Abstract
In view of the judgment of the Inter-American Court of Human Rights on the Case of the Xucuru Indigenous People and their members vs. Brazil (2018), the article demonstrates the nullity of the real estate registration of the Caípe rural property, located in the Xucuru Indigenous Land, in light of the Constitutions of 1891 and 1934, as well as analyzes the discourses present in the records, in light of Aníbal Quijano's theory of the coloniality of power.
Keywords:
Xucuru Indigenous Land; Private Property; Nullity
Introdução
O “Grupo Tribal Xucuru”, em litisconsórcio com a Funai e a União, foi demandado por Milton do Rego Barros Didier e Maria Edite Mota Didier, em ação possessória (Ação de Reintegração de Posse n. 92.0002697-4 9ª VF SJ/PE), dizendo-se donos do imóvel rural denominado Caípe, com área de 300 ha, encravada num todo maior de ocupação indígena tradicional, identificado, delimitado, demarcado (1995), homologado como Terra Indígena Xucuru (Decreto Presidencial de 30/4/2001) e registrado no ofício imobiliário de Pesqueira, no agreste pernambucano, em 18/11/2005. A sentença da justiça federal em favor dos Didier, em 24/7/1998, foi confirmada, em maio de 2003, pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Não foram providos, no STJ, o Recurso Especial n. 646.933, em 6/11/ 2007, e, em instância final no STF, o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 738.012. Em 2014, transitou em julgado a sentença, desde então executável de maneira definitiva a qualquer momento.
O judiciário brasileiro, em todas as instâncias, considerou que os indígenas perderam a posse da Fazenda Caípe antes da Constituição de 1934, não havendo evidência que por fraude ou violência, e vieram a esbulhar posse de não indígenas em fevereiro de 1992.
Diante disso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 5/2/2018, determinou que:
[...]
195. Com respeito à sentença de reintegração de posse favorável a Milton do Rego Barros Didier e Maria Edite Barros Didier, caso a negociação em curso informada pelo Estado, para que recebam uma indenização por benfeitorias de boa-fé não prospere, conforme a jurisprudência da Corte, o Estado deverá avaliar a possibilidade de sua compra ou a expropriação dessas terras, por razões de utilidade pública ou interesse social.
196. Caso, por motivos objetivos e fundamentados, não seja, definitivamente, material e legalmente possível a reintegração total ou parcial desse território específico, o Estado deverá, de maneira excepcional, oferecer ao Povo Indígena Xucuru terras alternativas, da mesma qualidade física ou melhor, as quais deverão ser contíguas a seu território titulado, livres de qualquer vício material ou formal e devidamente tituladas em seu favor. O Estado deverá entregar as terras, escolhidas mediante consenso com o Povo Indígena Xucuru, conforme suas próprias formas de consulta e decisão, valores, usos e costumes. Uma vez acordado o exposto, essa medida deverá ser efetivamente executada no prazo de um ano, contado a partir da notificação de vontade do Povo Indígena Xucuru. O Estado se encarregará das despesas decorrentes do referido processo bem como dos respectivos gastos por perda ou dano que possam sofrer em consequência da concessão dessas terras alternativas.
O acórdão do TRF/5ª Região é objeto da Ação Rescisória n. 0801601-70.2016.4.05.0000. Busca-se rescindir a sentença porque ela reconheceu a posse civil com base em um registro de propriedade de 1969, cuja cadeia sucessória que remonta a 18851 1 Na ementa do acórdão consta 1895. não foi comprovada legitimamente.
Portanto, atualmente, concorrem sobre o imóvel dois registros imobiliários e neste artigo iremos, de um lado, demonstrar porque é inválido o registro imobiliário em nome do casal Didier, à luz da Constituição de 1891 e da legislação vigente em 1934, data da Constituição Federal que, pela primeira vez, tratou das terras destinadas aos indígenas. De outro lado, valendo-se da teoria decolonial de Aníbal Quijano, apontaremos a colonialidade de poder expressa nos discursos dos autores da ação de reintegração de posse e dos julgadores, bem como nos documentos constantes dos autos. Ela reproduz o padrão de poder do sistema capitalista mundial eurocentrado, estabelecido a partir do século XVI.
A invalidade do registro de propriedade n. 4.472 do Ofício de Imóveis de Pesqueira, de 1938
Para julgar procedente a reintegração de posse do imóvel rural Caípe em favor do casal Didier, foi valorizado o registro imobiliário de uma aquisição por escritura pública lavrada em 24/1/1969, outorgada por Joaquim Mota Valença e sua mulher, que haviam adquirido o imóvel de Praxedes Didier, Milton do Rêgo Barros Didier e Walter do Rêgo Barros Didier e outros, conforme escritura pública de 10/10/1938, transcrita no ofício de imóveis sob n. 4.472, f. 67v/68, Livro 3-K, em 11/10/1938 (BRASIL,1992, f. 484). Certidão no verso declara que deixa de enviar a sucessão dominial desde 1891, por não haver assentamentos dessa época2 2 A Funai nos autos da ação rescisória explica, no item 60 da inicial, que no século XX os inventários de imóveis eram realizados sem os títulos originários, com presunção juris tantum de veracidade. .
O desembargador relator na apelação cível afirmou ser “inviável comprovar, seja por testemunhas, seja por perícia antropológica que, em 1934, os indígenas exerciam, em plenitude a posse sobre a Fazenda Caípe, embora seja induvidoso que os mesmos habitam a região há bastante tempo”. Optou “partir da presunção, não afastada, de que os títulos que conferiram a propriedade (ou, pelo menos, a posse) do bem aos suplicantes [casal Didier] e àqueles que os antecederam, são autênticos e merecedores de fé pública” (BRASIL, 1999, p. 724).
Todavia, os títulos apresentados, examinados à luz da legislação vigente à época, são fortemente questionáveis e indicam a apropriação mediante fraude de terras indígenas. Se na data da promulgação da Constituição de 1934 os indígenas não se encontravam no imóvel, a presunção é de que haviam sido esbulhados e não de que houvera uma transferência legítima a particulares. Como será relatado a seguir, os indígenas do aldeamento de Cimbres, que incluía o sítio Caípe, reclamaram reiteradas vezes contra o arrendamento de suas terras promovidas pelo diretor Coronel Cândido Pereira de Brito, da Diretoria dos Índios em Pernambuco.
O casal Didier alega que, em 1885, o Coronel André Bezerra do Rego Barros adquiriu o sítio Caípe dos antigos proprietários das terras, que exerciam posse mansa e pacífica há mais de 40 anos. O bem foi atribuído, por testamento, datado de 2/4/1906, para três herdeiros. O testamento foi convertido em inventário, em 30/4/1906, sendo destinado um quinhão hereditário no Sítio Caípe para Marieta do Rego Barros, que veio a ser a mãe de Milton do Rego Barros Didier (BRASIL, 1992, f. 463)3 3 Certidão do Cartório do 2ºOfício de Pesqueira, de 9/2/1996 (BRASIL, 1992, f. 463). .
Entretanto, consta nos autos registro documental de 1880, de que mais de uma dezena de sítios, entre eles o Sítio Caípe do aldeamento de Cimbres, estava arrendada (BRASIL, 1992, f. 208-209). A transferência para o domínio particular, em 1885, de terras que eram de um aldeamento indígena, só poderia ocorrer pelo desmembramento das terras do patrimônio público – o que não houve.
Vejamos onde ficavam essas terras e o que revelam documentos do Arquivo Público do estado de Pernambuco. O imóvel, atualmente chamado de Caípe, corresponde à parte do Sítio Caípe4 4 Na reportagem do Jornal do Comércio de Recife, de 26/2/1992, o imóvel invadido do fazendeiro Milton Didier é chamado de Caípe de Baixo, localizado na Serra de Ororubá (BRASIL, 1992, f. 18). , no território que, em informações de 1944, abrangia, de modo geral, no sentido leste-oeste, do Brejo da Madre de Deus à proximidade de Arcoverde; e no sentido norte-sul, da região limítrofe aos estados da Paraíba e Pernambuco (OLIVEIRA, 1993, p. 66). O mesmo território que se sabia habitado pelos Jacurus Shucuru, Surucucu ou Xucuru.Encontramos informações mais precisas nas referências sobre a Congregação do Oratório da Madre de Deus5 5 A Congregação do Oratório de São Filipe Néri foi uma ordem religiosa fundada em Pernambuco no século XVII pelo padre João Duarte do Sacramento, que veio de Portugal acompanhado do padre João Victória. Seu objetivo era estabelecer missões para catequizar índios no interior da capitania. Os padres atuaram no interior de Pernambuco e do Rio Grande do Norte, tendo desempenhado um papel religioso, político e educacional importantíssimo na antiga Capitania. A congregação foi extinta em 1830 (IPHAN, 2007). , que, em terras doadas pelo governo da Capitania de Pernambuco, era responsável pela Missão Ararobá, de catequese aos índios. Assim, “documentos oficiais, em meados do século XVIII, apontam a colonização da região iniciada a partir da vila de Cimbres, local anteriormente denominado de Aldeia Ararobá, que servira como ponto de catequese de vários grupos indígenas locais por aproximadamente dois séculos” (OLIVEIRA, 1993, p. 66).
A vila de Cimbres tem origem no aldeamento de Cimbres, criado em 1749 e extinto em 1879. Antes disso, em 1836, a sede da Vila de Cimbres fora transferida para a Povoação de Pesqueira. Relatório publicado no Diário de Pernambuco, em 1873, refere-se a esse aldeamento como “uma das maiores propriedades dos índios” desta província, situada na serra do Urubá6 6 Nos documentos encontramos as designações Arubá, Orubá, Urubá, Ararobá. Todas se referem à região geográfica atualmente mais conhecida como Ororubá. Lúcia Gaspar (2020) explica que o nome da serra Ororubá possui diversas origens e significados: seria uma corruptela deuru-ybá– fruta dos urus, onomatopaico de várias pequenas perdizes; viria de "orouba", uma palavra oriunda do cariri; seria de origem tupi, vindo deuru-ubá –fruta do pássaro ou ser corruptela dearara-ubáou, ainda, poderia dizer respeito à expressão designativa da primeira tribo tapuia-cariri localizada na serra. , comarca do Brejo da Madre de Deus (BRASIL, 1992, p. 324).
Terras dos índios na Serra do Ororubá e as outras terras da Congregação do Oratório, em 1813. Mapa de José da Costa Pinto (WIKIPÉDIA).
Edson Hely Silva (2011, p. 184) reporta que:
Em registros históricos, consta que, por volta de 1671, o Pe. Sacramento fundou, no “Ararobá” (Serra do Ararobá), uma aldeia de índios Xukuru (Medeiros, 1993, p. 51-53). Em 1762, no local onde existia o antigo aldeamento do Ararobá, chamado de Nossa Senhora das Montanhas, e conhecido também como Monte Alegre, foi fundada, como determinava o Diretório Pombalino, na Serra do Ororubá, a Vila de Cimbres, nome de uma povoação portuguesa no Distrito de Viseu. A partir desta data e por todo o século XVIII, na documentação da Câmara de Cimbres, encontram-se frequentes registros sobre os indígenas do antigo aldeamento do Ararobá.
Esse mesmo autor, na sua tese de doutorado, registra que, em 1777:
a “Lista e translado do caderno das avaliações dos dízimos desta vila de Cimbres”, além de citar a presença de indígenas em diversas localidades das terras que compreendem o aldeamento, apresenta um esboço da produção econômica dos aldeados. São relacionados nomes de índios do sexo masculino, possivelmente correspondendo a chefes de famílias, que cultivavam milho, produziam farinha e criavam gado em apenas uma das localidades relacionadas. (Fiam/CEHM, 1985, p.146-149). No “Sítio Caípe” são citados 15 indígenas [...] (SILVA, 2008SILVA, Edson Hely. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1950-1988, Campinas, SP: [s. n.], 2008., p. 113).
Comprovado, pois, que o Sítio Caípe fazia parte do aldeamento de Cimbres, sendo importante para a compreensão do que se expõe a seguir.
Documentação do Arquivo Público do estado de Pernambuco (APE) informa que, em 1861, foram relacionados no aldeamento de Cimbres 861 índios, correspondendo a 238 famílias, total que, em 1881, baixou para 276 índios, decréscimo explicado pela dispersão ocasionada pela rigorosa seca que assolava a região7 7 A seca que assolou o Nordeste nos anos 1877-1879 é considerada uma das 10 maiores secas da história daquela região. . Houve também, em 1865, o alistamento de 82 índios de Cimbres, como voluntários da pátria na Guerra do Paraguai (BRASIL, 1992, p. 205).
Nessa época os aldeamentos eram geridos por um diretor local conforme previa a legislação do Diretório dos Índios. Um documento de 1879 referenda uma representação dos índios de Cimbres, denunciando o procedimento do diretor, que arrendara terras da aldeia quando eles haviam se retirado em consequência da seca (BRASIL, f. 205).
A extinção dos aldeamentos e, em especial do de Cimbres, era uma providência desejada pela Câmara Municipal de Cimbres. Um ano antes da extinção, o Engenheiro Luis José da Silva enviou ofício ao Desembargador Francisco d’Assis Oliveira Maciel, presidente da Província, ponderando que:
A extinção do referido aldeiamento é indispensável, porém a distribuição dos terrenos como desejam os senhores da Câmara Municipal de Cymbres; além de absurda, é iníqua. Este ato da Câmara Municipal de Cymbres, ainda uma vez veio justificar que a extinção das aldeias é considerada por muita gente extinção dos índios, e por todos os meios a seu alcance, procuram amedrontá-los para que eles temendo contínuas perseguições, abandonem suas terras e sejam elas invadidas pelos usurpadores (BRASIL, 1992, f. 211).
Edson Hely Silva (2011, p. 184-185) refere que, no APE, Cód. Petições, fls.18-23v., encontrou um abaixo-assinado contendo 192 assinaturas de índios da extinta Aldeia de Cimbres, em Pesqueira, datado de 25 de fevereiro de 1885, para o presidente da província. No longo texto que antecede os nomes dos signatários:
eles apelam para o senso de justiça da autoridade provincial, pedindo providências para “fazer cessar as perseguições de que são vítimas”. Informavam os índios que as terras públicas, onde eles se encontravam, estavam sendo invadidas por “verdadeiros intrusos”. Os índios se ocupavam “exclusivamente do trabalho da agricultura” para se manter e denunciavam as invasões das terras por fazendeiros. A exemplo de um fazendeiro que, fugindo da seca na Paraíba, ocupara uma das áreas mais férteis na Serra do Ororubá, com seu gado destruindo as roças dos indígenas que, por serem pobres, estavam sendo explorados e não eram ouvidos em suas queixas, pelas autoridades policiais [...].
Os índios afirmavam que, com a extinção do aldeamento (1879), o Governo Imperial determinara “a demarcação dos terrenos que lhe eram pertencentes”. Mas, embora tendo sido publicados os editais, pela Tesouraria da Fazenda, para propostas de agrimensores executores da medição, até aquela data ela não fora reconhecida, sendo as terras invadidas por “intrusos”, fazendeiros criadores de gado, destruidores das lavouras dos índios, “para que assim os suplicantes perseguidos abandonem as suas antigas e legítimas posses!!”. No documento, lembravam ainda os índios que Manoel Felix Santiago, superando “sérias dificuldades”, fora “pessoalmente” procurar o Imperador, tendo sido orientado para se dirigir ao Ministro da Fazenda e este recomendara ao Presidente da Província tomar as providências necessárias para retirar os “intrusos” que invadiram as terras do antigo aldeamento.
A afirmação da necessidade da delimitação e demarcação das terras do aldeamento acompanhava cada denúncia contra posseiros e arrendamentos na área, conforme registros levantados.
Em 1879, foi indeferido um cálculo do agrimensor Carlos Camillo Coutim sobre as terras de Cimbres. E uma proposta de demarcação, em 1885, não se realizou por não constar verba específica na lei dos orçamentos (BRASIL,1992, f. 207).
De modo que, constata Silva (2011, p. 185):
A pesquisa documental demonstrou que a extinção oficial, em 1879, do antigo Aldeamento de Cimbres, consolidou o domínio dos fazendeiros, de longa data invasores nas terras da Serra do Ororubá. Uma ou outra família indígena ficou com a propriedade de pequenos pedaços de terras, insuficientes para a sobrevivência. Vários depoimentos comprovam essa situação. A exemplo do relatado pela índia Laurinda Barbosa dos Santos, conhecida por “Dona” Santa, moradora na atual Aldeia Caípe. Seus pais nasceram na “Serra”, o pai em Pendurado e a mãe em Caípe, local onde, depois de casados, moraram e viveram. “Dona” Santa afirmou ainda que trabalhou na roça desde os 8 anos. Questionada se os moradores e parentes vizinhos tinham terras para plantar, ela afirmou: “Tinham bem pouquinha! Porque não podia comprar. Naquele tempo tudo era comprado e ninguém podia, os pais de nós não podia que era tudo pobrezinhos. Só vivia trabalhando no alugado que era para dar de comer aos filhos. Era terras dos fazendeiros”.
A tese de Edson Silva, além da pesquisa documental, valeu-se da memória oralizada pelos habitantes mais antigos do território Xucuru. Assim, a partir dos vários depoimentos pôde compreender que,
em face às pressões, ameaças e perseguições, muitas vezes a venda das terras para o fazendeiro, mesmo que por um valor inferior, representava a única saída para os índios não deixarem seus antigos locais de moradias, ainda que passassem a viver em um novo quadro de diferentes relações sociais e de trabalho (2008, p. 125) 8 8 Para esse quadro, sem dúvida, colaborou a Lei de 3/7/1872, que extinguiu a curatela dos índios. .
Há descrições de outros meios empregados pelos fazendeiros para se apossarem das terras indígenas, como o fornecimento de bebida.
Naquele tempo todo mundo tinha suas terras. E o brancos fazia o quê? Os brancos pegava, dava uma garrafinha de cachaça para os índios, os índios inocente, não é? Dava uma garrafa de cachaça para os índios, os índios ficava bêbado, depois jurava de morte, os bichinhos fugia tudo, eles tomava conta das terras toda. Foi assim que aconteceu. Por isso que está tudo pelo meio do mundo, uns na cidade, outros longe, outros em São Paulo, meus irmãos mesmo estão tudo em São Paulo. (Josefa Rodrigues da Silva, Aldeia Gitó) (SILVA, 2008SILVA, Edson Hely. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1950-1988, Campinas, SP: [s. n.], 2008., p.126).
Nasci aqui. Meu pai nasceu na Aldeia Gitó e minha mãe aqui. Não tinha terra. Eles tinha somente o chãozinho de casa. Porque tinha terra, o homem branco arrendava aquelas terras, para botar o gado. Quando eles iam atrás, eles dizia “Não eu te comprei essa terra”. Aqueles índios mais velhos, às vezes vendiam a terra por uma garrafa de “cana” e se falasse morria. (Antonio Ferreira, “Seu” Pirrila, Aldeia Caípe) (SILVA, 2008SILVA, Edson Hely. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1950-1988, Campinas, SP: [s. n.], 2008., p. 128-129).
Ou na quebra de contrato de empréstimo de dinheiro com garantia das terras, como no caso em que a família foi ao escritório do fazendeiro, de quem tomou dinheiro emprestado para viagem a São Paulo por causa da seca: “O senhor fica com o terreno, quando nós voltar a gente paga ao senhor e o senhor entrega os nossos terrenos”. Quando voltaram, o fazendeiro disse:
“-que terreno, vocês não me venderam os terrenos de vocês. Tão querendo me roubar é?! Venderam o terreno, gastaram o dinheiro e agora querem tomar o terreno de volta de novo. 'Vocês fiquem calado com isso” (...). “Cês pensa que eu sô idiota. Eu comprei o terreno de vocês, paguei, não devo e agora vocês querem roubar o terreno. Eu boto todos três na cadeia já!” (Gercino Balbino da Silva, Aldeia Pedra D'Água) (SILVA, 2008SILVA, Edson Hely. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1950-1988, Campinas, SP: [s. n.], 2008., p. 127).
Um certo capitão, utilizou-se de outro tipo de engano, que configura estelionato. Ele pediu pedir para fazer uma “queimadinha”. Queria plantar cabaço que serviria para fazer cuias para os escravos negros comerem nelas.
Ele disse, “olha caboclo, aonde eu queimar é meu, não é?”. Aí o caboclo pensou que era. Chamava caboclo, para diminuir já, não chamava mais índio. Ele disse “é tá certo, onde queimar”. Danou fogo, sem fazer acerto, sem fazer nada, o fogo veio sair perto de Cana Brava. Aí ele disse “aqui tudo é meu”. Sabedoria! Ele ameaçou os índios, aí tomou tudo, tomou. Isso não dá nada, não dá nada, parece que dá uns cinco mil hectares por aí. Oxente! Dá muito mais! Dá uns 10 mil hectares (Pedro Rodrigues Bispo, “Seu” Zequinha, Bairro Portal, Pesqueira) (SILVA, 2008SILVA, Edson Hely. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1950-1988, Campinas, SP: [s. n.], 2008., p. 128).
Era comum as terras serem tomadas após o proprietário arrendá-las, inclusive com apoio do cartório:
O cabra arrendou para botar uns bichos e foi pro Sul trabalhar e quando chegou cá tava o papel passado, como ele tinha comprado, mas ele arrendou não vendeu! Aí ele disse “Eu vim agora tomar lá conta do meu terreno” Aí disse, “Não! Aqui é meu, eu comprei!”. “Não, eu não lhe vendi, eu lhe arrendei”. “Não, eu comprei” (SILVA, 2008SILVA, Edson Hely. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1950-1988, Campinas, SP: [s. n.], 2008., p. 128).
O fazendeiro chegava aqui arrendava um pedacinho assim para botar dez ou doze bichos, ia na casa do tabelião, onde estava os escrivão, passava o documento fácil. Quando o pobre queria tomar conta não tomava mais. Eles já tinha, eles cercava um pedacinho assim, quando dava fé ele tinha tomado meio mundo! Aconteceu muito isso aqui. (Juvêncio Balbino da Silva, Aldeia Cana Brava) (SILVA, 2008SILVA, Edson Hely. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1950-1988, Campinas, SP: [s. n.], 2008., p. 129).
Eles (os fazendeiros) pediam um roçadinho. Eles (os índios) davam aquele roçado a primeira vez. Quando chegava agora o tempo da colheita, quando tirava a colheita eles pediam, “Agora o senhor dá o mesmo roçadinho para eu trabalhar?”. “Se quiser trabalhar pode pegar terreno na laje e plante!”. Em riba da laje. Em cima da laje não dá nada! Muita gente foi expulsa. Os fazendeiros fazia assim, quando fazia queixa, por que tinha cabra também meio ruim mesmo, porque tem no mundo de tudo tem, fazia queixa ele, é dizia, “Pra que é cabôco?! Cabôco é para se matar e disertar!”. O que é que os pobres faziam?! Não tinham nem uma peteca para dar uma balada! E eles de tudo tinham... Uns que não se mudara brabo, saía s’imbora pelo mundo, caçar um lugarzinho para morar e outros que se botava eles passavam o dedo, matava. (Laurinda Barbosa dos Santos, “D. Santa”, Aldeia Caípe) (SILVA, 2008SILVA, Edson Hely. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1950-1988, Campinas, SP: [s. n.], 2008., p. 129-130).
Sobre os arrendamentos das terras da aldeia de Cimbres, após a extinção do aldeamento constam listas dos rendeiros e respectivos sítios, durante as diretorias do Coronel Cândido Pereira de Brito e do Tenente-Coronel Severiano Monteiro Leite (BRASIL, 1992, p. 208-209). Delas consta o Sítio Caípe.
Portanto, relatos são corroborados por documentos de que, no lugar conhecido como Caípe, habitavam indígenas Xucuru e que, a partir da extinção do aldeamento, as terras foram objeto de apossamento por não indígenas mediante fraudes diversas ou violências. E os indígenas reclamavam, não conseguindo reaver a posse porque não tinham poder para se contrapor ao governo provincial e à ideologia da colonialidade que perpassava as relações sociais e econômicas no Brasil desde o século XVI.
Assim, os documentos apresentados de que, em 1885, André do Rego Barros “adquiriu o imóvel a pequenos proprietários, os quais já detinham os imóveis ao redor de sessenta (60) anos”, presumem-se nulos porque não apresentado registro paroquial e não houve a necessária demarcação pelo poder público, após a extinção do aldeamento. E, se detinham desde 1825 era por arrendamento, como se viu sempre contestado pelos indígenas.
A Lei n. 601, de 18/9/1850, conhecida como Lei de Terras, recepcionada pela Constituição de 1891 (art. 83)9 9 Art 83 - Continuam em vigor, enquanto não revogadas, as leis do antigo regime no que explícita ou implicitamente não forem contrárias ao sistema do Governo firmado pela Constituição e aos princípios nela consagrados. , reservou terras dos aldeamentos, – quando ainda se tolerava a aquisição da posse anterior a ela por simples ocupação, –- mediante a prova da posse legitimável disciplinada na declaração paroquial (art. 1310 10 Art. 13. O mesmo Governo fará organizar por freguezias o registro das terras possuidas, sobre as declaracões feitas pelos respectivos possuidores, impondo multas e penas áquelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declarações, ou as fizerem inexactas. e art. 91 do Decreto n. 1318, de 30/1/185411 11 Art. 91. Todos os possuidores de terras, qualquer que seja o título de sua propriedade, ou possessão, são obrigados a fazer registrar as terras, que possuirem, dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento, os quaes se começarão a contar, na Côrte, e Provincia do Rio de Janeiro, da data fixada pelo Ministro e Secretario d'Estado dos Negocios do Imperio, e nas Provincias, da fixada pelo respectivo Presidente. ). Como se vê, depois da Lei n. 601, a transmissão do imóvel só seria admitida quando concedidas por compra ou com a posse legitimada (cultura efetiva e moradia habitual), observaria a Lei da Reforma Hipotecária (Lei n. 1.237 de 24/9/1864), mais tarde o Código Civil de 1916, e na sequência, as leis de registros públicos (Dec. n. 4.827, de 7/2/1924 e Lei n. 6.015, de 31/12/1973 e suas alterações).
No caso de aldeamento de Cimbres, que só foi extinto em 1879, a aquisição legítima dependia inicialmente do registro paroquial e posteriormente da demarcação pelo poder público. Como referido acima, o cartório do registro de imóveis certificou não possuir os assentamentos anteriores a 1938, desde 1891. Consequentemente, também não possui os anteriores a 1891, a partir de 1879. Ainda que os possua, diante das perseguições relatadas em documentos oficiais, não merecem a presunção da legitimidade.
Se a ocupação do Sítio Caípe pelos particulares foi ilegítima, fato que não é de todo afastado pelo relator na apelação cível, a conclusão a que chegou de que “o decurso do tempo, sem a oposição pertinente, a legitimou” (BRASIL, 1999, f. 726) é inconstitucional. Primeiro, porque direitos originários são anteriores a qualquer das Constituições. Segundo, porque apenas a partir da Constituição de 1988 é que se pode falar de “renitente esbulho” e falta de “oposição pertinente” dos indígenas, uma vez que só então passaram as comunidades indígenas ter legitimidade processual.
O que é relevante no caso, a despeito da regência legal invocada pelas instâncias judiciais, é a circunstância paradoxal de convergirem sobre o mesmo imóvel duas disciplinas cada qual constitucionalmente compatível com seus pressupostos, mas logicamente excludentes dada a raiz axiológica de cada qual. Como se sabe, a proteção dos indígenas, particularmente, sobre as terras de que são “primários e naturais senhores delas”, foi formalmente fixada no Alvará de 1º de abril de 1680 (§ 4º) pelo qual o Rei de Portugal garantia e reservava aos índios direitos correspondentes a sua condição e características étnicas, donde resultou o reconhecimento imemorial dos direitos que deveriam prevalecer ante a mesma ordem jurídica reinol referente às terras da Coroa12 12 Com relação ao regime de sesmarias e concessão de terras regalengas, observa Edmundo Zenha (1952, p.433-434): “Durante o período colonial, nos dois primeiros séculos, as medidas legais tomadas especialmente para o Brasil são poucas. A questão se resolvia pelos velhos textos portugueses que, à viva força, eram postos a funcionar ante os novos problemas da Colônia. Tais providências, podemos enumerá-las assim: ordem de 27-12-1695, carta-régia de 7-12-1697, idem de 23-11-1698, idem de 3-3-1704, decreto de 20-10-1753, provisão de 11-3-1754, alvará de 5-10-1795, carta-régia de 13-3-1797. [...] O alvará vinha atalhar a desordem. Mas tornar-se-ia maior a desordem por êle desencadeada do que a já existente. E àquela preferiu-se esta. A questão, porém, não podia morrer assim. Problema latente, vivia a chamar a atenção dos governos. Ao alvará de 1795 seguiram-se: a carta-régia de 13-3-1797; o alvará de 25-1-1807; o decreto de 2-7-1808; a provisão de 14 de março; o decreto de 21 de maio, que extinguiu o confisco; a resolução de 17 de julho, que proibiu a concessão de sesmarias, e a provisão de 22 de outubro, todos de 1822. .
Vale a pena transcrever o citado parágrafo:
E para que os ditos Gentios, que assim descerem, e os mais, que há de presente, melhor se conservem nas Aldeias: hey por bem que senhores de suas fazendas, como o são no Sertão, sem lhe poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhe fazer moléstia. E o Governador com parecer dos ditos religiosos assinará aos que descenderem do Sertão, lugares convenientes para neles lavrarem, e cultivarem, e não poderão ser mudados dos ditos lugares contra sua vontade, nem serão obrigados a pagar foro, ou tributo algum das ditas terras, que ainda estejão dadas em Sesmarias e pessoas particulares, porque na concessão destas se reserva sempre o prejuízo de terceiro, e muito mais se entende, e quero se entenda ser reservado o prejuízo, e direito os Índios, primários e naturaes senhores delas (apud VILLARES, 2009VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas. Curitiba: Juruá, 2009., p. 99).
Por isso, o Decreto n. 1.318 (arts. 72 a 75)13 13 Art. 72. Serão reservadas terras devolutas para colonisação, e aldeamento de indigenas nos districtos, onde existirem hordas selvagens. Art. 73. Os Inspectores, e Agrimensores, tendo noticia da existencia de taes hordas nas terras devolutas, que tiverem de medir, procurarão instruir-se de seu genio e indole, do numero provavel de almas, que ellas contêm, e da facilidade, ou difficuldade, que houver para o seu aldeamento; e de tudo informarão o Director Geral das Terras Publicas, por intermedio dos Delegados, indicando o lugar mais azado para o estabelecimento do aldeamento, e os meios de o obter; bem como a extensão de terra para isso necessaria. Art. 74. A' vista de taes informações, o Director Geral proporá ao Governo Imperial a reserva das terras necessarias para o aldeamento, e todas as providencias para que este se obtenha. Art. 75. As terras reservadas para colonisação de indigenas, e por elles distribuidas, são destinadas ao seu usofructo; e não poderão ser alienadas, em quanto o Governo Imperial, por acto especial, não lhes conceder o pleno gozo dellas, por assim o permittir o seu estado de civilisação. , mais tarde, reconheceu e reservou terras para as “hordas” nas terras devolutas antes do desmembramento a particulares.
A Constituição de 1891 não tinha disposição alguma sobre os índios, mas pela regra do art. 83 continuavam em vigor, enquanto não revogadas, as leis do antigo regime no que explícita ou implicitamente não fossem contrárias ao sistema do governo firmado pela Constituição e aos princípios nela consagrados. A regra se aplica à Lei n. 601 e ao próprio Alvará de 1680.
No julgamento da ACO 362-MT, o Ministro Alexandre de Moraes disse expressamente:
Trata-se, na verdade, de uma leitura imprecisa daquela Constituição de que as áreas teriam passado imediatamente ao domínio dos Estados. Isso, porém, não se aplicava às terras ocupadas pelos indígenas, que eram terras congenitamente possuídas. No mesmo sentido foi bem lembrado aqui, da tribuna, pela Ministra Grace, que essas áreas de ocupação já originária dos índios, chamadas à época, pelo mestre João Mendes Júnior, de terras do indigenato, desde o alvará de 1º de abril de 1680 e, depois, a Lei de 1850 e o Decreto de 1854, já eram áreas destinadas aos indígenas [...].
Não há como se alegar que a Constituição de 1891, por um dispositivo absolutamente genérico, teria transformado terras ocupadas tradicionalmente pelos índios em terras devolutas (BRASIL, 2017, p. 17-18).
É um equívoco, portanto, a afirmação de Salvador Pompeu de Toledo, invocada na sentença (BRASIL, 1992, f. 545) de que “até a Constituição de 1934, não existia nenhuma proteção às terras indígenas” e que a Constituição de 1891, transferiu as terras devolutas aos Estados-membros sem nenhuma ressalva a terras indígenas. Conclui, por isso que “a propriedade foi transferida aos Estados, e destes aos particulares sem qualquer restrição”.
Terras ocupadas pelos indígenas, ainda que em aldeamentos formalmente extintos, não eram terras devolutas. Mesmo em terras não ocupadas o Decreto n. 1.318 reservou terras para eles.
Assim, pode-se afirmar que, de acordo com a Lei n. 601, o Decreto n. 1.318 e o Alvará de 1680, as alienações de parcelas do Aldeamento de Cimbres, a não-indígenas feitas por indígenas ou por agentes públicos, a partir da extinção (1879), a princípio, são ilegais, pois não há qualquer documento conhecido sobre procedimento formal de conversão da terra pública em terra particular.
A proteção dada à posse das terras habitadas pelos indígenas passou a ser norma constante e reiterada a partir da Constituição de 1934, que estabeleceu: “Art. 129. Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto vedado aliená-las”.
A propósito, o acórdão na Apelação Cível n. 24.379/AL, julgada pelo TRF da 5ª Região, invocado como precedente na Apelação Cível n. 178199/PE (BRASIL, 1999, f. 726), em favor dos Didier, na verdade se aplica em favor dos Xucuru. O acórdão citado afirma que “somente as terras que eram ocupadas pelos indígenas, quando da promulgação da Constituição de 1934, são reconhecidas como de posse dos mesmos e de domínio da União”14 14 Também é referida decisão no mesmo sentido proferida na Apelação Cível n. 12522/PE, ambas relatadas pelo Juiz Francisco Falcão daquele tribunal, atualmente ministro do Superior Tribunal de Justiça. . Conforme demonstrado documentalmente, o imóvel Caípe fez parte de uma gleba maior conhecida como Sítio Caípe, que fazia parte do aldeamento indígena de Cimbres. Os Xucuru nunca saíram desse território, achavam-se ali permanentemente localizados, continuavam ocupando-o nas brechas permitidas pelo poder econômico e político, como empregados, pequenos arrendatários ou mesmo proprietários.
A Constituição de 1937 conservou o mesmo texto com pequena alteração: “Art. 154. Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes vedada a alienação das mesmas”.
A Constituição de 1946 assim dispôs: “Art. 216. Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem”.
Finalmente, a Constituição de 1967 assentou: “Art. 186. É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes”, e a Emenda Constitucional n. 1/69, com redação mais abrangente, estabeleceu:
Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes.
Parágrafo 1º. Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação das terras habitadas pelos silvícolas.
Parágrafo 2º. A nulidade e a extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio.
Ante esse quadro poder-se-ia supor que a defesa dos interesses indígenas, do ponto de vista constitucional somente se converteria em normativa prevalente assim que acolhida pela Constituição de 193415 15 No acórdão da ACO n. 278/MT (RTJ 107/461), o voto do Ministro Néri da Silveira faz completa análise da evolução constitucional, esclarecendo que, de 1934 a 1946, o princípio era o mesmo: “a posse a ser respeitada condicionava-se ao caráter de permanência na localização imemorial estabelecida pelo índio ou decorrente de definição do órgão oficial, ...” , pouco importando estivessem em terras do estado ou da União, enquanto que, a partir de 1967, se instalou a noção de ocupação por serem habitadas (art. 4º. IV, dando como pertencente à União as terras ocupadas pelos silvícolas). Com isso, passaram as terras ao domínio da União. Veja-se ainda o art. 12 da Lei n. 601, os arts. 72 a 75 do Decreto n. 1318, os arts. 3º e 10 do Decreto n. 8.072, de 20/6/1910, o art. 10 e §§ do Decreto n. 5484, de 27/6/1928 e o art. 17 da Lei n. 6.001, de 19/12/1973. Portanto, é falso concluir que a posse indígena só é protegida desde 1934. Não é por outra razão que o STF, embora por decisão monocrática (na ACO n. 1.100/ SC, com reflexo no RE n.1.037.565/SC, com repercussão geral, Tema n. 1031), admitiu relevância e urgência em sustar a aplicação do Parecer n. 001/2017/Gab/Cgu/Agu, abrindo ensejo à releitura do conceito do ‘marco temporal’ da ocupação permanente. e que a posse das terras pelos indígenas como garantia de respeito obrigatório estaria relacionada apenas ao fato contemporâneo da respectiva ocupação. Mas não, nesses textos o direito às terras está assentado na existência de posse permanente como fenômeno histórico e não puramente jurídico, donde a possível resultante jurídica, além de não se limitar a um juízo histórico, estático ou dogmático, não poderá dispensar a dinâmica existencial da população respectiva.
Nessa linha, conclusões do porte daquela editada pelo STF na Pet. n. 3388 (Terra Indígena Raposa Serra do Sol) firmando condicionantes absolutas e paradigmáticas rompem ofensivamente a lógica histórica da proteção assegurada aos indígenas, pois impõem limitações incompatíveis com situações ou condutas que lhes são próprias e precisamente protegidas pela mesma normativa constitucional.
O obstáculo epistemológico da colonialidade
Tanto as regras administrativas da Colônia e do Império relativas à condição indígena quanto as que sobrevieram com a República sempre estiveram indisfarçadamente relacionadas a antiga questão civilizatória desde quando os conquistadores e a Igreja polemizaram, marcadamente na América espanhola, sobre a condição humana do gentio e até sobre a existência de alma, sendo esses fatores decisivos para a justificativa da guerra justa, ou proteção autoritária com sujeição dos índios autóctones como reduzidos ou escravizados, que se refletiram e se reproduziram na legislação daí por diante subsequente até nossos dias.
O substrato cultural eurocêntrico remanescente da dominação ibérica se infiltrou na legislação americana, particularmente a latino-americana, a ponto de, mesmo ciente das vetustas regras coloniais de proteção indígena, deliberadamente fazer prevalecer o interesse e a supremacia da sociedade branca legitimando-os. A legislação positiva e a jurisprudência normativa hegemônica que assim se desenvolveram, adotando esse viés em maior ou menor grau se impuseram historicamente e isso se pode facilmente demonstrar num simples recorrido de julgados de qualquer corte de justiça do país que tenha apreciado questões indígenas. Esse viés patrimonialista e excludente, fruto dessa visão, tem caracterizado a concepção proprietária da doutrina e da jurisprudência em face dos indígenas e seus direitos.
No caso dos Xucuru, o registro imobiliário das terras em favor dos índios e o reconhecimento da posse permanente delas por eles (logicamente declarada e homologada pelos respectivos atos formais) e, em contrário, a coisa julgada possessória favorável aos supostos proprietários (em 2014) operada pelo sistema de jurisdição ordinária civil contra o fato constitucional da posse indígena, revelam com clareza a inaptidão da compreensão tradicional e convencional do direito dos brancos em face do direito constitucional dos indígenas.
Esse direito constitucional se estabeleceu em 1988, quando por força dos movimentos sociais, entre eles, o movimento indígena, logrou-se estabelecer o art. 231 na Constituição Federal, que adota o paradigma da diversidade cultural, rompendo com o paradigma assimilacionista que norteou todas as Constituições anteriores e a legislação indigenista, ainda que no sentido de proteção dos indígenas.
Nos termos dessa Constituição:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.
§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
O reconhecimento mais evidente que a Constituição manifesta, e provavelmente aquele que mais cuidado exige do intérprete, refere-se aos direitos originários sobre as terras que [os índios] tradicionalmente ocupam. Sendo certo que tal reconhecimento implica assentar limitações a direitos de terceiros, como dito, inclusive os da própria União, convém enfatizar que direitos originários são os que dizem respeito a direitos que derivam da história dos índios e suas comunidades e, mesmo quando para isso seja (outra vez) necessário colher a lição dos antropólogos ou historiadores, é possível afirmar que são originários os direitos que têm sido exercidos de modo imemorial pelos índios conforme a sua organização social, os seus costumes, as suas crenças e tradições, tal qual definidos pela sua própria prática histórica.
Isso significa dizer que não só os direitos originários visíveis têm de ser reconhecidos mas também aqueles que a prospecção histórico-antropológica puder revelar, o que por si só demonstra a incompatibilidade da imposição de um determinado marco temporal deles ou de seu exercício.
Visto assim, o art. 231 avança muito além do que a leitura linear de sua letra deixa entrever e o intérprete deve ter sempre presente o fato de que é complexo o seu conteúdo e que o perfil dos direitos originários pode variar conforme os grupos indígenas em razão de sua organização social ou como consequência de seus costumes, tradições e especialmente suas crenças, de tal modo que esses direitos podem apresentar diferentes feições e, portanto, decorrências distintas daquelas construídas a partir do ponto de vista jurídico dos “brancos”, com limitações mais ou menos relevantes para as conclusões por estes pretendidas.
Por outro lado, como o conceito de direito é uma categoria jurídica não indígena, poderia parecer que o que a Constituição assegura aos índios é o reconhecimento de fatos ou consequências jurídicas assemelhadas aos direitos da organização jurídica não indígena. Todavia, a proposição constitucional do art. 231, ao contrário, deve ser lida – como, aliás, está no texto (‘sua organização social’) - na perspectiva da organização social, dos costumes, tradições e crenças dos índios, o que leva por sua vez à conclusão de que não só os direitos originários mas também os direitos usuais e atuais dos índios estão e precisam ser reconhecidos, a partir de sua cultura e valores, e independentemente do regime ou das limitações dos institutos de direito contemporâneo não indígena, de inspiração ocidental e cristã mesmo consagrados na Constituição.
Revela-se aí a ilação lógica que convém repetir: a Constituição brasileira, ao dispor sobre o reconhecimento de direitos indígenas, em verdade assentou uma verdadeira constituição indígena, por isso mesmo no que lhes diz respeito de igual hierarquia e com idêntica supremacia em relação às leis ordinárias derivadas da parte não indígena da Constituição, a merecer - pelo princípio da proporcionalidade – o mesmo respeito e proteção jurisdicional, cujo exercício e prestação pelos tribunais terão de levar em consideração essa atitude exegética16 16 A atuação do princípio da proporcionalidade (ou da proteção do núcleo essencial do direito protegido) pode ser compreendida a partir da ideia de prevalência do Estado Democrático de Direito e da proteção de direitos e garantias fundamentais, em face do que haverá de existir mecanismos e métodos de interpretação que os preservem mediante a adequação e compatibilização com outros direitos (BARROS, 1996). .
Assumir essa nova exegese requer, antes de mais nada, compreender a colonialidade do poder como forma de pensar e de ver o mundo, que se desenvolveu, a partir do século XVI, na mesma época em que se iniciou a conquista das Américas.
A colonialidade do poder é observável desde os primeiros contatos dos portugueses com os indígenas do nordeste e, em especial com a catequese realizada pelos missionários oratorianos. Vejamos nos autos da reintegração de posse alguns excertos que revelam essa forma de ver e constituir o mundo.
Na petição inicial da ação de reintegração de posse e em notícia jornalística:
[...] Ação de Reintegração de Posse contra o Grupo Tribal denominado Xucurus, na pessoa de seu cacique [....]. (grifo nosso)
[...] 16. Salientam e esclarecem, ainda, os Autores que a invasão procedida pelos pretensos índios foi feita. Com grave ameaça aos empregados dos Autores que trabalham na área em tela (...) (BRASIl, 1992, p. 8). (grifo nosso)
“Nunca vi índio careca ou de olhos azuis” frisou o vereador [Hamilton Didier, filho do proprietário do Sítio Caípe de Baixo] se referindo aos índios da serra que afirma não serem legítimos. Ele reforçou a afirmação de que o líder da invasão, cacique Francisco de Assis Araújo (Chicão) é proprietário de 30 hectares, que ele arrendou a pequenos lavradores e para alguns fazendeiros levar o gado (BRASIL, 1992, f. 19). (grifo nosso)
Na documentação histórica trazida pela contestação da Funai:
Segundo declarações de um diretor de Índios de Cimbres, a população do aldeamento encontrava-se então em alto grau de miscigenação, sendo muito pouco os assim considerados “raça pura” (APEP, Reg. 351) (BRASIL, 1992, f. 204) (grifo nosso)
A Câmara Municipal de Cymbres, na inclusa petição requer ao Governo Imperial a extinção do aldeiamento de Urubá, a fim de que os terrenos deste, sejam ocupados pelos agricultores do lugar e não pelos índios, visto como, sendo esses terrenos muito produtivos, acham-se entregues a preguiça e a incúria dos mesmos, conforme o dizer do seu Diretor Geral (ofício de 29/1/1878, BRASIL, 1992, f. 211). (grifo nosso)
Na sentença:
Impõe-se fazer, de logo, um breve histórico acerca da proteção dada pelo Estado aos territórios ocupados pelos silvícolas (BRASIL, 1992, f. 544). (grifo nosso)
E no acórdão:
[...] mesmo que se parta da premissa de que os indígenas continuaram na região, não mais ocupavam de fato, o Sítio Caípe, não se enquadrando, assim, entre os silvícolas que fazem jus à pretendida proteção possessória. Somente na década de 90 do século passado, voltaram a ocupar a área, após invadi-la, juntamente com outros imóveis da região (BRASIL, 1999, f. 725) (grifo nosso).
O pensamento decolonial ou inflexão decolonial nasceu na década de 1990 a partir da coletividade de argumentação ou grupo de modernidade/colonialidade17 17 Colonialidade e modernidade constituem dois lados de uma mesma moeda. Não há modernidade sem colonialidade, uma não existe sem a outra. A barra oblíqua indica a relação de constituição mútua dos dois termos, assim como a hierarquização entre eles. A colonialidade é imanente à modernidade, é articulada como a exterioridade constitutiva da modernidade (RESTREPO & ROJAS, 2010, p. 17). , constituído por acadêmicos, predominantemente latinoamericanos, que buscam dar visibilidade aos efeitos estruturantes no presente da colonialidade. De maneira ampla,
a inflexão decolonial é entendida como o conjunto de pensamentos críticos sobre o lado escuro da modernidade desde os ‘condenados da terra’ (FANON, 1963) que buscam transformar não somente o conteúdo, mas os termos-condições nos quais se reproduziram o eurocentrismo e a colonialidade no sistema mundo inferiorizando seres humanos (colonialidade do ser), marginalizando e invisibilizando sistemas de conhecimento (colonialidade do saber) e hierarquizando grupos humanos e lugares em um padrão de poder global para sua exploração pela acumulação ampliada de capital (colonialidade do poder) (RESTREPO & ROJAS, 2010RESTREPO, Eduardo; ROJAS, Axel. Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestionamentos. Popayán: Editorial Universidad del Cauca, Colombia, 2010., p. 37-38).
Um dos autores que melhor debateu a colonialidade foi o sociólogo peruano Aníbal Quijano. Para ele a colonialidade era tida como uma experiência mais profunda e duradoura impregnada na intersubjetividade das nações e operando na escala social cotidiana, sobretudo, mediante o uso das categorias classificatórias de raça/etnia.
Para Quijano (2000QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. Journal of world-systems research, VI 2 Summer/Fall 2000, p. 342-386., p. 342), o poder capitalista, eurocentrado e global organizou-se, distintivamente, ao redor de dois eixos: a colonialidade do poder e a modernidade, a partir da constituição da América Latina, no século XVI, num mesmo momento e movimento históricos. Seus centros hegemônicos se identificaram como Europa e os dois eixos desse novo padrão de dominação continuam presentes até hoje.
Explica que a colonialidade tem como pedra angular a imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo, que opera em cada um dos planos, âmbitos e dimensões, materiais e subjetivas, da existência individual e social. É um padrão de poder adequado ao desenvolvimento do poder capitalista.
Na sua teorização o poder é uma questão crucial. Ele o conceitua como um espaço e uma malha de relações sociais articuladas de exploração/dominação/conflito, em função e em torno da disputa pelo controle dos seguintes âmbitos de existência social:
(1) el trabajo y sus productos; (2) en dependencia del anterior, la “naturaleza” y sus recursos de producción; (3) el sexo, sus productos y la reproducción de la especie; (4) la subjetividad y sus productos, materiales e intersubjetivos, incluído el conocimiento; (5) la autoridad y sus instrumentos, de coerción en particular, para asegurar la reproducción de ese patrón de relaciones sociales y regular sus cambios (QUIJANO, 2000QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. Journal of world-systems research, VI 2 Summer/Fall 2000, p. 342-386., p. 345).
Afirma que, desde o século XVIII, sobretudo com o Iluminismo, o eurocentrismo foi se afirmando como a ideia mitológica de que a Europa era preexistente a esse padrão de poder e que elaborou a modernidade e a racionalidade. Nessa qualidade Europa e os europeus constituíam o momento e o nível mais avançados no caminho linear, unidirecional e contínuo da espécie humana. Assim, se consolidou com essa ideia a concepção de humanidade segundo a qual a população do mundo se diferenciava em inferiores e superiores, irracionais e racionais, primitivos e civilizados, tradicionais e modernos (QUIJANO, 2000QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. Journal of world-systems research, VI 2 Summer/Fall 2000, p. 342-386., p. 343-344).
Contrapondo-se à teoria das classes sociais, que considera elaborada para o contexto europeu e por isso eurocêntrica, Quijano avança para uma teoria histórica da classificação social. Nesta proposta o conceito de classificação social refere-se a processos de longo prazo, nos quais as pessoas disputam pelo controle dos âmbitos básicos de existência social e de cujos resultados se configura um padrão de distribuição de poder centrado em relações de exploração/dominação/conflito entre a população de uma sociedade e em uma sociedade e em uma história determinadas (QUIJANO, 2000QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. Journal of world-systems research, VI 2 Summer/Fall 2000, p. 342-386., p.368).
Nessa perspectiva, afirma que, no capitalismo mundial, colonial/moderno, as pessoas se classificam e são classificadas segundo três linhas diferentes, porém articuladas em uma estrutura global comum pela colonialidade do poder: trabalho, raça, gênero. E em torno de dois eixos centrais: o controle da produção de recursos de sobrevivência social e o controle da reprodução biológica da espécie. O primeiro implica o controle da força de trabalho, dos recursos e produtos do trabalho, o que inclui os recursos naturais e se institucionaliza como “propriedade”. O segundo implica o controle do sexo e de seus produtos (prazer e descendência), em função da propriedade. A raça foi incorporada no capitalismo eurocentrado em função de ambos os eixos. E o controle da autoridade se organiza para garantir as relações de poder assim configuradas (QUIJANO, 2000QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. Journal of world-systems research, VI 2 Summer/Fall 2000, p. 342-386., p. 368-369).
Na história conhecida antes do capitalismo mundial nas relações de poder, os atributos do sexo, idade e força de trabalho jogaram um papel principal na classificação social das pessoas. A partir da conquista da América se acrescentou o fenótipo.
Las diferencias fenotípicas entre vencedores y vencidos han sido usadas como justificación de la producción de la categorìa “raza,” aunque se trata, ante todo, de una elaboración de las relaciones de dominación como tales. La importancia y la significación de la producción de esta categorìa para el patrón mundial de poder capitalista eurocéntrico y colonial/moderno, difícilmente podría ser exagerada: la atribución de las nuevas identidades sociales resultantes y su distribución en las relaciones del poder mundial capitalista, se estableció y se reprodujo como la forma básica de la clasificación societal universal del capitalismo mundial, y como el fundamento de las nuevas identidades geo-culturales y de sus relaciones de poder en el mundo. Y, así mismo, llegó a ser el trasfondo de la producción de las nuevas relaciones intersubjetivas de dominación y de una perspectiva de conocimiento mundialmente impuesta como la única racionalidad (QUIJANO, 2000QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. Journal of world-systems research, VI 2 Summer/Fall 2000, p. 342-386., p. 374).
O autor indica algumas das novas identidades sociais configuradas pela colonialidade: “indios, negros, aceitunados, amarillos, blancos, mestizos […]” (QUIJANO, 2000QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. Journal of world-systems research, VI 2 Summer/Fall 2000, p. 342-386., p. 342). Essas identidades são frutos do evolucionismo e do dualismo que situaram o “europeu” como o topo da evolução e a “Europa” como a única autora da modernidade. Todas as novas identidades que surgem com a colonialidade do poder são subjugadas e atreladas a locais sociais específicos ao longo do tempo, em função do novo padrão mundial de poder.
Quijano desenvolve ainda ideias sobre as colonialidades da articulação política e geoculturalidade da distribuição mundial do trabalho, das relações de gênero e das relações culturais ou intersubjetivas. Não nos aprofundaremos nelas porque é a colonialidade da classificação social universal do mundo capitalista que se encontra de plano evidenciada nos autos judiciais.
Assim, no primeiro excerto, o advogado dos autores, apesar de chamar à lide o Grupo Tribal Xucuru e a Funai, refere-se a “pretensos índios” numa clara desclassificação social do coletivo de pessoas que busca o reconhecimento de um direito originário. Reconhece que é um grupo indígena, pois utiliza a palavra “tribo”, no Brasil sempre referida a indígenas, e que o grupo é liderado por um “cacique“, palavra também associada usualmente a indígenas. Reconhece, mas os desclassifica, subalterniza.
No segundo excerto, o entrevistado contesta a autoidentificação indígena com base em fenótipo que a seu ver só poderia ser de um não indígena e questiona a liderança do cacique Chicão como indígena, pois além de proprietário de 30 hectares arrenda terras para fazendeiros. Ou seja, para ser considerado indígena, uma pessoa há de ter um fenótipo determinado e não pode ter bens.
No terceiro e quarto excertos, as expressões grifadas revelam a racialização das relações sociais, o controle da força de trabalho, dos recursos e produtos do trabalho, o que inclui os recursos naturais. Na classificação social do capitalismo eurocentrado os indígenas como seres inferiores não merecem a propriedade de terrenos produtivos.
A expressão “silvícolas” constante da sentença e do acórdão intencionalmente desclassificam os Xucuru, pois antes eles já haviam sido tratados como índios ou indígenas. Embora seja uma palavra ainda presente no Estatuto do Índio de 1973, a sua utilização depois da Constituição de 1988, exceto no caso de transcrição de um texto, é caricatural e ofensiva18 18 Na dissertação de Luiz Henrique Matias da Cunha (2019, p. 90) , que analisa a jurisprudência do STF à luz da teoria decolonial de Quijano, o autor também critica o uso da expressão “silvícolas” e de expressões semelhantes que encontrou ao longo da análise, como: “culturas primitivas”, “etnia aborígine”, “nativos”, “populações aborígines” e “tribo”, todas referindo-se aos povos indígenas como sendo primitivos e tribais. A partir da perspectiva decolonial afirma que essa associação está ligada diretamente ao âmbito da intersubjetivade, e é fruto do dualismo. Com o eurocentrismo e a nova intersubjetividade, a Europa se constitui como berço da modernidade e também se constitui como a única autora da modernidade, a única responsável pelo processo de desenvolvimento do mundo. . Da mesma forma, a utilização das palavras “invasão” ou “invadidas”, pois têm uma conotação de ilícito penal. É compreensível que sejam utilizadas pelos autores da ação de reintegração de posse, mas não pelas autoridades judiciais, ainda que estas decidam a favor dos autores.
Por fim, o processo judicial examinado bem como os relatos das pessoas entrevistadas pelo historiador Edson Hely Silva são autodemonstrativos de como as estruturas jurídicas deram suporte aos detentores de poder político e econômico e reproduziram a classificação social em que os indígenas são subalternos e excluídos e os não indígenas brancos os privilegiados de sempre.
Considerações finais: a conciliação constitucional e a jurisdição interamericana
O virtual impasse antes mencionado é resultado da atuação de duas ordens jurídicas concomitantes. A presença imemorial dos Xucuru na região da área demarcada que consta ser, ao menos, anterior a 1749, como referido na Informação Geral da Capitania de Pernambuco, freguesia de Ararobá, ou aldeia Ororubá, depois elevada a vila em 1762, mais tarde Vila de Cimbres e a coisa julgada na ação possessória formulada à base de uma cadeia dominial ilegítima, oferece quadro de perplexidade que só se pode resolver pela aplicação sistemática dos princípios e pela conformidade com a Constituição.
A sentença de primeiro grau, em julho de 1998, adotando razões do autor de que não há definição legal de terras indígenas e que “basta uma simples portaria [da Funai] para que a propriedade privada seja perdida sem direito a indenização” – a dizer que a propriedade e a posse privadas de quem assim se intitula pode prevalecer sobre a posse constitucional indígena – sustenta que a posse indígena só se legitimaria a partir de 1934. De sua vez, o TRF/5ª incorre em contradição ao admitir a presença da União na causa porque é titular das terras indígenas e, em seguida, considera que a demanda da Funai é improcedente porque os indígenas não tinham ocupação em 1934, uma vez que as terras pertenceriam ao antecessores dos ‘proprietários’. Tirante os equívocos hermenêuticos, a posse indígena permanente em nenhum momento esteve sob crítica fática e a conclusão sumária do julgado da 9ª Vara Federal da Seção Judiciária de Pernambuco e do acórdão é de que os indígenas estariam protegidos somente após 1934 e os demandantes estariam nas terras antes disso.
Ora, há aí disseminada incompreensão judicial decorrente dos sucessivos preconceitos hermenêuticos e legislativos de origem histórica quanto à realidade indígena, de resto semelhante a que se revela em face dos remanescentes de quilombos, ambas derivadas de evidente leitura constitucional desligada dos pressupostos fundamentais da República (arts. 1º e 3º; 215, § 1º e 216, 231 da CF e 68 do ADCT) e indicativas de resíduo cultural aristotélico que considera índios e negros (por isso tutelados e escravizados) inferiores, submissos e dependentes, o que, de resto, remonta à Conquista e à Colônia, infiltrando-se na prática judicial, em prejuízo da melhor compreensão dos direitos e prerrogativas dos índios e suas comunidades. Esse obstáculo epistemológico resultante de uma interpretação que leva em conta só a letra da lei constitucional, e não o conjunto de regras e princípios que formam o acima citado bloco constitucional (v. Adin 595-2, DJ 26/02/2002, Relator Ministro Celso de Mello), provoca no aplicador o erro indicado.
De outra parte, a correta compreensão do texto constitucional conduz à conclusão jurídica adotada pela Corte IDH e a certeza lógica de que a jurisdição estatal brasileira não se desincumbiu devidamente, vulnerando os direitos indígenas assegurados pela Constituição e as salvaguardas consagradas no Pacto de São José da Costa Rica. Ou seja, reproduziu-se no âmbito internacional a mesma contradição entre os pressupostos do veredicto interamericano e os do juízo da Justiça Federal brasileira a revelar – inobstante a falsa premissa da posse indígena a partir de 1934 – que a jurisdição nacional não soube compreender a verdade histórica e etnológica da presença indígena, submetendo-se ao padrão preconceituoso, eurocêntrico e proprietário civilista, quando a Constituição de 1988 já abandonara tais premissas.
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Na ementa do acórdão consta 1895.
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A Funai nos autos da ação rescisória explica, no item 60 da inicial, que no século XX os inventários de imóveis eram realizados sem os títulos originários, com presunção juris tantum de veracidade.
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Certidão do Cartório do 2ºOfício de Pesqueira, de 9/2/1996 (BRASIL, 1992, f. 463).
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Na reportagem do Jornal do Comércio de Recife, de 26/2/1992, o imóvel invadido do fazendeiro Milton Didier é chamado de Caípe de Baixo, localizado na Serra de Ororubá (BRASIL, 1992, f. 18).
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5
A Congregação do Oratório de São Filipe Néri foi uma ordem religiosa fundada em Pernambuco no século XVII pelo padre João Duarte do Sacramento, que veio de Portugal acompanhado do padre João Victória. Seu objetivo era estabelecer missões para catequizar índios no interior da capitania. Os padres atuaram no interior de Pernambuco e do Rio Grande do Norte, tendo desempenhado um papel religioso, político e educacional importantíssimo na antiga Capitania. A congregação foi extinta em 1830 (IPHAN, 2007).
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Nos documentos encontramos as designações Arubá, Orubá, Urubá, Ararobá. Todas se referem à região geográfica atualmente mais conhecida como Ororubá. Lúcia Gaspar (2020GASPAR, Lúcia. Índios Xucuru. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/>. Acesso em: 3 abr. 2020.
http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaesc... ) explica que o nome da serra Ororubá possui diversas origens e significados: seria uma corruptela deuru-ybá– fruta dos urus, onomatopaico de várias pequenas perdizes; viria de "orouba", uma palavra oriunda do cariri; seria de origem tupi, vindo deuru-ubá –fruta do pássaro ou ser corruptela dearara-ubáou, ainda, poderia dizer respeito à expressão designativa da primeira tribo tapuia-cariri localizada na serra. -
7
A seca que assolou o Nordeste nos anos 1877-1879 é considerada uma das 10 maiores secas da história daquela região.
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Para esse quadro, sem dúvida, colaborou a Lei de 3/7/1872, que extinguiu a curatela dos índios.
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Art 83 - Continuam em vigor, enquanto não revogadas, as leis do antigo regime no que explícita ou implicitamente não forem contrárias ao sistema do Governo firmado pela Constituição e aos princípios nela consagrados.
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Art. 13. O mesmo Governo fará organizar por freguezias o registro das terras possuidas, sobre as declaracões feitas pelos respectivos possuidores, impondo multas e penas áquelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declarações, ou as fizerem inexactas.
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Art. 91. Todos os possuidores de terras, qualquer que seja o título de sua propriedade, ou possessão, são obrigados a fazer registrar as terras, que possuirem, dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento, os quaes se começarão a contar, na Côrte, e Provincia do Rio de Janeiro, da data fixada pelo Ministro e Secretario d'Estado dos Negocios do Imperio, e nas Provincias, da fixada pelo respectivo Presidente.
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Com relação ao regime de sesmarias e concessão de terras regalengas, observa Edmundo Zenha (1952, p.433-434): “Durante o período colonial, nos dois primeiros séculos, as medidas legais tomadas especialmente para o Brasil são poucas. A questão se resolvia pelos velhos textos portugueses que, à viva força, eram postos a funcionar ante os novos problemas da Colônia. Tais providências, podemos enumerá-las assim: ordem de 27-12-1695, carta-régia de 7-12-1697, idem de 23-11-1698, idem de 3-3-1704, decreto de 20-10-1753, provisão de 11-3-1754, alvará de 5-10-1795, carta-régia de 13-3-1797. [...] O alvará vinha atalhar a desordem. Mas tornar-se-ia maior a desordem por êle desencadeada do que a já existente. E àquela preferiu-se esta. A questão, porém, não podia morrer assim. Problema latente, vivia a chamar a atenção dos governos. Ao alvará de 1795 seguiram-se: a carta-régia de 13-3-1797; o alvará de 25-1-1807; o decreto de 2-7-1808; a provisão de 14 de março; o decreto de 21 de maio, que extinguiu o confisco; a resolução de 17 de julho, que proibiu a concessão de sesmarias, e a provisão de 22 de outubro, todos de 1822.
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Art. 72. Serão reservadas terras devolutas para colonisação, e aldeamento de indigenas nos districtos, onde existirem hordas selvagens. Art. 73. Os Inspectores, e Agrimensores, tendo noticia da existencia de taes hordas nas terras devolutas, que tiverem de medir, procurarão instruir-se de seu genio e indole, do numero provavel de almas, que ellas contêm, e da facilidade, ou difficuldade, que houver para o seu aldeamento; e de tudo informarão o Director Geral das Terras Publicas, por intermedio dos Delegados, indicando o lugar mais azado para o estabelecimento do aldeamento, e os meios de o obter; bem como a extensão de terra para isso necessaria. Art. 74. A' vista de taes informações, o Director Geral proporá ao Governo Imperial a reserva das terras necessarias para o aldeamento, e todas as providencias para que este se obtenha. Art. 75. As terras reservadas para colonisação de indigenas, e por elles distribuidas, são destinadas ao seu usofructo; e não poderão ser alienadas, em quanto o Governo Imperial, por acto especial, não lhes conceder o pleno gozo dellas, por assim o permittir o seu estado de civilisação.
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Também é referida decisão no mesmo sentido proferida na Apelação Cível n. 12522/PE, ambas relatadas pelo Juiz Francisco Falcão daquele tribunal, atualmente ministro do Superior Tribunal de Justiça.
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No acórdão da ACO n. 278/MT (RTJ 107/461), o voto do Ministro Néri da Silveira faz completa análise da evolução constitucional, esclarecendo que, de 1934 a 1946, o princípio era o mesmo: “a posse a ser respeitada condicionava-se ao caráter de permanência na localização imemorial estabelecida pelo índio ou decorrente de definição do órgão oficial, ...” , pouco importando estivessem em terras do estado ou da União, enquanto que, a partir de 1967, se instalou a noção de ocupação por serem habitadas (art. 4º. IV, dando como pertencente à União as terras ocupadas pelos silvícolas). Com isso, passaram as terras ao domínio da União. Veja-se ainda o art. 12 da Lei n. 601, os arts. 72 a 75 do Decreto n. 1318, os arts. 3º e 10 do Decreto n. 8.072, de 20/6/1910, o art. 10 e §§ do Decreto n. 5484, de 27/6/1928 e o art. 17 da Lei n. 6.001, de 19/12/1973. Portanto, é falso concluir que a posse indígena só é protegida desde 1934. Não é por outra razão que o STF, embora por decisão monocrática (na ACO n. 1.100/ SC, com reflexo no RE n.1.037.565/SC, com repercussão geral, Tema n. 1031), admitiu relevância e urgência em sustar a aplicação do Parecer n. 001/2017/Gab/Cgu/Agu, abrindo ensejo à releitura do conceito do ‘marco temporal’ da ocupação permanente.
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16
A atuação do princípio da proporcionalidade (ou da proteção do núcleo essencial do direito protegido) pode ser compreendida a partir da ideia de prevalência do Estado Democrático de Direito e da proteção de direitos e garantias fundamentais, em face do que haverá de existir mecanismos e métodos de interpretação que os preservem mediante a adequação e compatibilização com outros direitos (BARROS, 1996BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996.).
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17
Colonialidade e modernidade constituem dois lados de uma mesma moeda. Não há modernidade sem colonialidade, uma não existe sem a outra. A barra oblíqua indica a relação de constituição mútua dos dois termos, assim como a hierarquização entre eles. A colonialidade é imanente à modernidade, é articulada como a exterioridade constitutiva da modernidade (RESTREPO & ROJAS, 2010RESTREPO, Eduardo; ROJAS, Axel. Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestionamentos. Popayán: Editorial Universidad del Cauca, Colombia, 2010., p. 17).
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Na dissertação de Luiz Henrique Matias da Cunha (2019CUNHA, Luiz Henrique Matias da Cunha. Terras indígenas e o STF: análise de decisões na perspectiva decolonial de Aníbal Quijano (2009-2018). Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília, 2019., p. 90) , que analisa a jurisprudência do STF à luz da teoria decolonial de Quijano, o autor também critica o uso da expressão “silvícolas” e de expressões semelhantes que encontrou ao longo da análise, como: “culturas primitivas”, “etnia aborígine”, “nativos”, “populações aborígines” e “tribo”, todas referindo-se aos povos indígenas como sendo primitivos e tribais. A partir da perspectiva decolonial afirma que essa associação está ligada diretamente ao âmbito da intersubjetivade, e é fruto do dualismo. Com o eurocentrismo e a nova intersubjetividade, a Europa se constitui como berço da modernidade e também se constitui como a única autora da modernidade, a única responsável pelo processo de desenvolvimento do mundo.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Abr 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 2022
Histórico
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Recebido
31 Jan 2022 -
Aceito
02 Fev 2022