Open-access Uma análise de conteúdo dos desafios das audiências de custódia no Distrito Federal

A content analysis of the challenges of pre-trial detention hearings in the Brazilian Federal District

Resumo

O presente artigo trata dos principais desafios para o adequado funcionamento das audiências de custódia no Distrito Federal (DF). Adotou-se como metodologia a análise de conteúdo de publicações institucionais e acadêmicas sobre audiências de custódia no DF entre 2017 e 2022. Foram identificadas as seguintes categorias, representando os principais desafios das audiências de custódia no DF: (i) manutenção do uso de algemas nos custodiados durante a audiência; (ii) uso desmedido (e presumido) de medidas cautelares; (iii) violências no ato de prisão e durante a detenção; (iv) silenciamento do custodiado; e (v) o perfil dos custodiados. Conclui-se que, embora a própria existência e o funcionamento deste instituto processual fortaleçam o acesso à justiça das pessoas investigadas, bem como prevaleçam decisões pela liberdade provisória no DF, ainda assim existem obstáculos jurídicos, político-criminais e institucionais que desafiam a consecução dos objetivos das audiências de custódia.

Palavras-chave: Audiências de Custódia; Sistema de Justiça Criminal; Prisão Preventiva; Análise de Conteúdo

Abstract

This article addressed the main challenges for the proper functioning of pre-trial detention hearings in the Federal District (DF). The methodology adopted was a content analysis of publications onl custody hearings in the Federal District between 2017 and 2022. The following categories were identified, representing the main challenges of pre-trial detention hearings in the Federal District: (i) maintaining the use of handcuffs during the hearing; (ii) the excessive (and presumed) use of precautionary measures; (iii) violence in the act of arrest and during detention; (iv) silencing of the custodian; and (v) the profile of the custodians. It is concluded that, although the very existence and functioning of this procedural institute strengthens the access to justice of the investigated people, as well as decisions for provisional freedom prevail in the DF, there are still legal, political-criminal and institutional obstacles that challenge the achieving the objectives of the escrow hearings.

Keywords: Pre-trial Detention Hearings; Criminal Justice System; Pretrial Detention; Content analysis

Introdução

A audiência de custódia (AC) é o ato formal de comparecimento pessoal do preso diante de autoridade judicial em até 24 horas. Sua finalidade é possibilitar a fiscalização da legalidade da prisão e da apuração de possíveis atos de violência policial, além de promover a oralidade e corporalidade no momento da apreciação da prisão em flagrante e da decisão sobre a necessidade da custódia cautelar. Assim, o preso deixa de ser apenas um nome na capa do processo e passa a figurar como sujeito (Albuquerque; Fusinato, 2020).

É, portanto, uma política criminal que visa enfrentar o encarceramento em massa, agindo como medida de contenção das prisões cautelares, que representavam 25,31% da população prisional brasileira e 16,46% da população prisional no Distrito Federal (DF) em dezembro de 2022, de acordo com a Secretaria Nacional de Políticas Penitenciárias do Ministério da Justiça e Segurança Pública (SENAPPEN/MJSP). Dessa forma, a audiência de custódia é importante instrumento de tutela de direitos processuais e materiais dos investigados, e, consequentemente, promove profunda racionalização do sistema de justiça criminal.

A audiência de custódia se ampara nas cláusulas pétreas da Constituição Federal que preveem a prisão como medida extrema, de modo que nenhuma pessoa será mantida presa quando a lei admitir a liberdade provisória (CNJ, 2015). Esse procedimento também é previsto no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ambos internalizados no ordenamento pátrio em 1992. Possuem, desde 2008, força supralegal no ordenamento jurídico nacional. No entanto, a primeira iniciativa de concretizar o compromisso assumido internacionalmente ocorreu apenas em 2009, com o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 156/2009, que dispõe sobre o projeto do Novo Código de Processo Penal. Atualmente, esse projeto permanece em trâmite na Câmara dos Deputados como o Projeto de Lei da Câmara nº 8.045/2010 (Albuquerque; Fusinato, 2020).

Em fevereiro de 2015, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou o Projeto “Audiência de Custódia”, incentivando a criação de estruturas multidisciplinares nos Tribunais de Justiça para a realização das audiências de custódia. Em 14 de outubro de 2015, o Distrito Federal aderiu ao Projeto, sendo a última Unidade da Federação a fazê-lo (Ferreira, 2017; Yung-Tay Neto, 2017). Apesar do respaldo supralegal e constitucional conferido às audiências de custódia, a ausência de legislação ordinária gerou questionamentos de diversas organizações sociais sobre a constitucionalidade do instituto (vide ADI nº 5.240 e ADPF nº 347 - Brasil, 2016; 2015). O STF, todavia, no julgamento dessas ações, declarou a constitucionalidade das audiências de custódia, haja vista que sua previsão supralegal determina a obrigatoriedade de sua efetivação.

Com o julgamento liminar da ADPF nº 347, que declarou o Estado de Coisas Inconstitucional do sistema de justiça criminal brasileiro e previu a implementação das audiências de custódia como medida a ser cumprida, o CNJ expediu a Resolução n.º 213, de 15 de dezembro de 2015, regulamentando a realização de audiência de custódia em todo o país (Ferreira, 2017). Como última etapa da normatização do instituto, a Lei n.º 13.964/2019 (Pacote Anticrime) incorpora a audiência de custódia ao Código de Processo Penal. Assim, efetiva a consolidação dessa garantia no sistema de justiça criminal pátrio por meio de uma previsão legal expressa (Albuquerque; Fusinato, 2020).

A audiência de custódia traz grandes avanços no sistema processual penal brasileiro ao proporcionar: (i) a interação presencial entre juízes e custodiados, concretizando um contraditório mais efetivo; (ii) a apuração das condições e a legitimidade da prisão efetuada; (iii) a fiscalização e prevenção das práticas de tortura e maus-tratos policiais; e (iv) a verificação das condições socioeconômicas do custodiado, de maneira a promover uma análise mais qualificada sobre a necessidade da prisão provisória (Yung-Tay Neto, 2017).

No Distrito Federal, podemos dividir o funcionamento e os resultados das audiências de custódia em três períodos. De 2015 a 2017, o Núcleo de Audiências de Custódia do TJDFT (NAC) passou por um momento de implementação e de estruturação. Inicialmente, o NAC era sediado no Fórum Desembargador Milton Sebastião Barbosa, em Brasília, mas foi transferido, em agosto de 2017, para as dependências do Departamento de Polícia Especializada do Distrito Federal - DPE/PCDF, no Parque da Cidade, também em Brasília. A mudança foi motivada para conferir maior segurança e celeridade à apresentação dos autuados, a fim de gerar economias aos cofres públicos, com a redução de escolta e desnecessidade de transporte entre a carceragem, o Instituto Médico-Legal e as dependências do Fórum (TJDFT, 2020).

De 2018 a 2020, o NAC passou por uma fase de consolidação, com a maior parte do período registrando duas magistradas no quadro fixo. Em 2021, o NAC sofreu adaptações durante a pandemia, assim como observou uma mudança completa em seu quadro de juízes. Em janeiro de 2021, iniciou-se a realização de audiências de custódia decorrentes de cumprimento de mandados de prisão preventiva (sem a circunstância da prisão em flagrante) (TJDFT, 2021). Nesse mesmo ano, foram intercalados períodos em que os magistrados apreciavam os autos de prisão em flagrante, sem apresentação dos presos, com períodos de videoconferência e regime presencial, em etapa chamada de “análise qualificada do auto de prisão em flagrante” (Ocampos, 2021). Em novembro de 2021, todas as audiências voltaram a ser conduzidas presencialmente (Ocampos, 2021) até 11 de janeiro de 2022 (TJDFT, 2022a), quando foi admitida a videoconferência em audiências de custódia, situação que permanece até 23 de maio de 2022, com edição de novo ato normativo consolidando a audiência de custódia virtual (TJDFT, 2022b). Após decisão do Conselho Nacional de Justiça, determinando a retomada das audiências de custódia presenciais, o NAC retomou as audiências no dia 9 de janeiro de 2023, em condições atípicas em razão do “Dia da Infâmia” (Brasil, 2023), em razão da prisão de 1.398 pessoas que invadiram e danificaram as sedes dos três Poderes em Brasília. Entre janeiro de 2018 e março de 2021, a taxa média de decisões pró-liberdade provisória ficou em 62,5%, atingindo o ápice em maio de 2020, mês em que a decisão pela liberdade provisória ocorreu em 78,64%1 das audiências. Os últimos dados divulgados pelo NAC (TJDFT, 2022a) indicam que, em janeiro, o índice de decisões de concessão de liberdade provisória alcançou 75,93% das audiências.

Atualmente, dados e pesquisas têm sido produzidos para melhor compreender o processo de implementação das audiências de custódia e suas implicações (IDDD, 2017; 2019; Ferreira; Divan, 2017). Diante dos dados já produzidos, tanto quantitativos quanto qualitativos, o presente artigo visa descrever quais são os desafios comuns relatados por instituições e pesquisadores da justiça criminal desde a implementação das audiências de custódia no DF.

1. Metodologia

O presente trabalho apresenta os resultados de uma análise de conteúdo (Bardin, 1978; Mazucato, 2018) de publicações acadêmicas e institucionais sobre as audiências de custódia no Distrito Federal. O objetivo foi identificar categorias e temas emergentes, com a posterior discussão dos achados à luz da jurisprudência, da motivação histórica e das finalidades atribuídas às audiências de custódia.

Foi realizada busca estruturada nos repositórios científicos Scielo e Google Acadêmico, além de busca manual nos sítios eletrônicos de instituições de referência como o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Com a busca “’audiências de custódia’ E ‘Distrito Federal’”, não foram encontrados resultados no sítio eletrônico da Scielo. Apenas com o termo “audiências de custódia” foram encontrados 5 (cinco) resultados, organizados em planilha e identificados por título, autoria, Unidade da Federação a que a pesquisa se refere e o link de acesso, representados na tabela a seguir:

Quadro 1
Artigos encontrados com o termo “audiência de custódia” no Portal Scielo

No sítio eletrônico do Conselho Nacional de Justiça foram encontrados 12 (doze) arquivos, organizados na Coleção “Fortalecimento da Audiência de Custódia”, elaborada no âmbito do Programa “Justiça Presente”, posteriormente rebatizado de “Fazendo Justiça”, iniciativa que reuniu Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O objetivo dos materiais é fornecer diretrizes e propostas de procedimentos que consideram desde o atendimento prévio à pessoa custodiada, a realização da audiência (e os elementos que devem ser levados em consideração para a tomada de decisão) e a articulação das redes de proteção social, tanto em caso de conversão da prisão em flagrante em preventiva quanto a concessão de liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares.

No sítio eletrônico do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), ao acessar o campo de pesquisa e incluir o termo “audiência de custódia”, foram encontrados 41 (quarenta e um) resultados, dentre trabalhos acadêmicos, notícias e informações à população sobre o instituto. Analisamos apenas os trabalhos acadêmicos, que representam 20 (vinte) registros. Destes, apenas 1 (um) se referia especificamente à realidade do Distrito Federal e permitia acesso direto à íntegra da publicação; os 19 (dezenove) demais consistiam em índices de revistas científicas disponíveis na biblioteca do Tribunal, nos quais algum artigo se referia às audiências de custódia. Nenhum dos dezenove textos se referia especificamente à realidade do Distrito Federal. A publicação analisada é de autoria do juiz Pedro de Araújo Yung-Tay Neto, sobre o processo de implantação das audiências de custódia no Distrito Federal, resultado de sua dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade de Brasília (Tay-Neto, 2018). Além disso, analisamos os relatórios de gestão publicados pelo TJDFT (2017; 2018) disponíveis no sítio eletrônico do tribunal.

No sítio eletrônico do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), ao pesquisar as expressões “audiência de custódia” e “audiências de custódia”, foram encontradas 12 (doze) páginas de registros, totalizando 144 (cento e quarenta e quatro) documentos, dentre artigos, notícias de eventos e publicações. Concentramo-nos nas publicações institucionais, pois os artigos eram textos publicados em veículos de grande circulação jurídica (como a página “Consultor Jurídico” ou “Jota”, por exemplo), que não possuem finalidades acadêmicas. Foram encontrados 4 (quatro) relatórios de pesquisa do IDDD, assim organizados:

Quadro 2
Documentos sobre audiências de custódia produzidos pelo IDDD

Destes documentos, apenas 2 (dois) se referiam especificamente à realidade do Distrito Federal - os relatórios de 2017 e 2019. Assim, os demais documentos não foram incluídos na pesquisa.

Após a leitura dos títulos e dos resumos para averiguar se as publicações identificadas versavam sobre audiências de custódia e sobre o território do DF, o corpus analisado foi constituído de 22 (vinte e duas) publicações institucionais e acadêmicas, do período de 2017 a 2022, que apresentavam as diretrizes principiológicas nacionais das ACs e/ou analisam os resultados atingidos pela sua realização, organizadas na tabela a seguir:

Quadro 3
Corpus da pesquisa sobre audiências de custódia no Distrito Federal

Para a seleção das publicações, observou-se as seguintes etapas: (i) pré-análise do material, através de leituras flutuantes2, com a escolha do material fundada nos objetivos deste trabalho; (ii) a seleção das unidades de análise; (iii) a preparação do material; (iv) a exploração a partir das unidades de análise; e (v) a categorização e sub-categorização dos resultados. As unidades de análise foram as publicações, e as categorias foram extraídas considerando tanto suas expressões quantitativas (repetição no corpus) quanto a sua relevância qualitativa para o recorte do estudo.

2. Resultados e discussão

A partir da análise, foram identificadas 5 (cinco) grandes categorias de desafios às audiências de custódia, descritas a partir dos seus temas principais, conforme o quadro a seguir:

Quadro 1
Categorias de desafios relacionados às audiências de custódia no DF

Nas audiências de custódia, a apresentação pessoal, ainda que com limitações, e no curto período de 24 horas, permite que a pessoa presa em flagrante exerça o seu direito à defesa em tempo razoável, tanto pelo contato pessoal com um defensor (público ou privado) quanto pela possibilidade de auto defender-se perante o juiz, enunciando sua própria narrativa sobre a prisão de modo a concorrer com a narrativa policial registrada no auto de prisão em flagrante, que, via de regra, representa a narrativa oficial do evento (IDDD, 2019; Kuller; Dias, 2019; Ocampos, 2021; Brasil, 2021). No entanto, há desafios persistentes no Distrito Federal.

Na categoria “manutenção de algemas nos custodiados durante a audiência”, foi possível verificar a desconsideração cotidiana da Súmula Vinculante n.º 11, a qual afirma só ser lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia (Yung-Tay Neto, 2017; Brasil, 2020c). Embora os relatórios publicados pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT, 2017; 2019) não computem o seu uso, os demais estudos do corpus apontaram o uso rotineiro das algemas sob argumentação de garantia de segurança, com índices próximos a 100%, ao mesmo tempo em que registravam a presença de policiais durante a condução das audiências de custódia do DF, o que dificulta relatos de tortura (IDDD, 2019). As justificativas apresentadas pelos magistrados para a manutenção de algemas são em sua imensa maioria genéricas e padronizadas, presumindo-se, com isso, a culpa e a periculosidade do custodiado, em desrespeito do princípio constitucional da presunção de inocência (IDDD, 2019). Argumentos como número diminuto de policiais, a disposição física e o tamanho da sala, o contato público e a circulação de pessoas não são suficientes para justificar a utilização de algemas (CNJ, 2020b). Mudança recente de entendimento é registrada por Ocampos (2021), que relata experiência em que, atuando como juíza nas audiências de custódia por quase cinco anos, sentiu que as condições institucionais permitiram a retirada das algemas apenas em seu último ano de atuação, para pessoas custodiadas que estivessem presas em flagrante por crimes sem violência ou grave ameaça.

A análise empírica observou que o “uso desmedido de medidas cautelares” configura um instrumento de ampliação do controle punitivo estatal, visto que a violação das medidas cautelares significa a determinação automática da prisão preventiva. A Lei nº 12.403, de 2011, foi a responsável por positivar no ordenamento jurídico o rol de cautelares diversas da prisão. Sendo assim, o juiz, ao analisar as condições do fato, a gravidade do delito e os possíveis antecedentes criminais, tem como opção determinar a liberdade provisória com restrições. A doutrina processual penal (Lopes Júnior, 2020; Nicollit, 2016) indica que as medidas cautelares indicadas no art. 319 do Código de Processo Penal devem ser aplicadas de forma alternativa e anterior à prisão preventiva, exatamente quando os requisitos desta estiverem presentes; assim, as cautelares não devem ser utilizadas como extensão do controle penal, mas ao contrário: sua finalidade é de contê-lo. Na mesma linha é o entendimento do Conselho Nacional de Justiça, nas orientações publicadas sobre o processo de tomada de decisão em audiência de custódia (2020b): explica-se que a decisão deve ser dividida em seis etapas - do saneamento de irregularidades do auto de prisão em flagrante (etapa zero) à prisão preventiva (caso não sejam suficientes medidas cautelares e não seja cabível a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar - etapa cinco). Na etapa quatro, o juiz ou a juíza devem verificar a adequação da decisão de concessão de liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares anteriores e alternativas à prisão preventiva (Brasil, 2020b, p. 116).

Contudo, verificou-se, nos trabalhos analisados, que, independentemente da gravidade do delito ou das especificidades do caso, a liberdade é condicionada à imposição automática de alguma cautelar, em particular as medidas de comparecimento periódico em juízo, proibição de ausentar-se da comarca e recolhimento domiciliar no período noturno e dias de folga. Assim as medidas cautelares passam a ser uma alternativa à liberdade, e não à prisão, como determina a lei (IDDD, 2017). Nesse sentido, o relatório do IDDD (2019) apresenta o sugestivo título “O fim da liberdade”, visto que a liberdade provisória sem qualquer medida cautelar imposta foi empregada em menos de 1% dos casos monitorados. Diante deste contexto, surge a preocupação com o risco às liberdades e garantias individuais, em especial com a aplicação de monitoração eletrônica em pessoas que poderiam estar em liberdade irrestrita.

Na categoria “violências no ato da prisão e durante a detenção”, embora a averiguação destas violências constasse como um dos objetivos principais das audiências de custódia (Borges, 2019; Brasil, 2020d), não parece haver efetivo engajamento em identificar e encaminhar as denúncias, em especial de violência psicológica e violações de direitos na carceragem (Ferreira; Almeida, 2021). A média de inquéritos policiais militares por lesão corporal abertos a partir das audiências foi de 25 por ano até 2017 (Ferro; Martins, 2017). Os custodiados, aparentemente, são encaminhados para realização de exames complementares - que são mais detalhados do que o exame de corpo de delito realizado no IML - apenas nas situações em que magistrados identificam lesões físicas graves (Oliveira, 2017b).

Cabe ressaltar que os dois relatórios descritivos das audiências de custódia no DF (TJDFT, 2017; 2019) analisados neste estudo, não indicaram qual o encaminhamento dado às denúncias, embora apresentassem o indicativo de que 5% das audiências registraram relatos de violência no ato da prisão. Destaca-se a análise de Ferreira e Divan (2018) no sentido de que, se bem investigados, os relatos colhidos em audiências de custódia poderiam contribuir para o aprimoramento do controle externo da atividade policial. A realização de audiências de custódia em complexo policial, bem como a presença de agentes de segurança com armamentos ostensivos durante sua condução, dificulta relatos de tortura, pois são fatores de intimidação e de limitação de um relato mais amplo (IDDD, 2019).

No que tange ao “silenciamento do custodiado”, ressalte-se que um dos objetivos primordiais da audiência de custódia é promover a oralidade e a corporalidade (Kuller; Dias, 2019), possibilitando um contraditório efetivo, onde todos os atores processuais, inclusive o custodiado, realmente detenham o poder de influenciar a decisão do magistrado. A devida implementação das audiências de custódia deveria dar protagonismo ao custodiado, possibilitando que sua narrativa concorra com a narrativa policial registrada no auto de prisão em flagrante. Percebe-se, no entanto, que isso não parece ocorrer na prática (Crespo, 2020). Pelo contrário, durante essa etapa processual o autuado é relegado à condição de subserviência, sendo o ator que menos possui poder de influência dentre os demais (Kuller; DIAS, 2019). Isso ocorre, sobretudo, pelo emprego de valores, estigmas, estereótipos e representações associadas ao papel social de “elemento suspeito” ocupado pelo custodiado (Lages; Ribeiro, 2019; Kuller; Dias, 2019). Essa posição assimétrica ocupada pelos presos é evidenciada no uso de algemas e de escolta policial, demonstrando serem encarados como ameaças ao sistema de justiça criminal (Kuller; Dias, 2019). Também no mesmo sentido, o “Manual sobre Algemas e outros Instrumentos de Contenção em Audiências Judiciais” publicado pelo Conselho Nacional de Justiça relaciona o uso de algemas à ausência de relatos sobre tortura ou maus tratos policiais, ou, também, a relatos lacônicos sobre os fatos que ensejaram a prisão, dada a impossibilidade de uso do corpo como instrumento de comunicação (Brasil, 2020c).

Uma consequência imediata dessa inferiorização é a recorrente desqualificação e descredibilização dos relatos das pessoas custodiadas, haja vista que a condição de criminoso é dada como certa. Essa deslegitimação de seu discurso resulta no seu silenciamento e na sua invisibilização, de forma que até relatos de violência institucional são desacreditados (Kuller; Dias, 2019). Contudo, Kuller e Dias (2019) alertam que a centralidade do preso na audiência de custódia tem íntima relação com sua aparência física e suas trajetórias pessoais; isto é, quanto mais dissonantes forem suas características do estereótipo do “elemento suspeito”, mais protagonismo e poder de influência terá. Isso parece demonstrar que as decisões dos magistrados são permeadas pelo entendimento de que alguns sujeitos possuem “perfis” mais perigosos do que outros (Lages; Ribeiro, 2019; Vidal, 2021).

No Distrito Federal, Moreira (2017) constata que um tratamento mais agressivo é dispensado aos usuários de drogas, embora isso não se reflita, necessariamente, em articulação com a rede psicossocial para acolhimento das demandas dessa população. Assim sendo, as audiências parecem ser locais com hierarquia bem definida, onde o magistrado fala e o custodiado escuta, de maneira que a comunicação é meramente unilateral. O ápice dessa constatação ocorre nos sermões moralistas e rotineiros promovidos pelos magistrados, que servem, muitas vezes, para mascarar o fundamento jurídico da decisão, dando-lhe um aspecto de reprimenda, o que exprime o entendimento de que a prisão provisória deve ser a regra, sendo a liberdade uma exceção advinda de sua benevolência, e não de seu dever (Ferreira, 2017; Vidal, 2021). A apresentação de pessoas custodiadas com roupas rasgadas, sujas e com pés descalços também foi observada por Galeno (2016) como retrato da permanência do racismo institucional no sistema de justiça criminal nas audiências de custódia do Distrito Federal.

Outro problema constatado que vai ao encontro do suposto contraditório proporcionado pelas audiências de custódia é a identidade da decisão do juiz com o pedido do promotor de justiça, sem a consideração dos argumentos da defesa. Isso resulta na institucionalização da justiça em “linha de montagem” (Lages; Ribeiro, 2019), na qual o magistrado utiliza técnicas padronizadas na busca do eficientismo, suprimindo a análise das individualidades do custodiado, o que prejudica a caracterização da medida mais adequada ao caso, bem como retroalimenta o sistema punitivo como promotor de desigualdades (Ferreira, 2017).

Na análise da categoria sobre “perfil dos custodiados”, o corpus foi consistente em refletir a sobrerrepresentação nas audiências de custódia de homens negros, jovens, com baixa renda e baixo nível de escolaridade (Oliveira, 2017a; Aguiar, 2019). Mulheres representam um quantitativo menor de custodiadas, mas, em geral, foram apresentadas por envolvimento com o tráfico, não raro por visitarem seus companheiros encarcerados e tentarem entrar no presídio com drogas. As audiências de custódia, que poderiam ser uma oportunidade de endereçar as vulnerabilidades sociais das pessoas custodiadas, acabam marcadas pela reprodução de preconceitos e global descaso (Moreira, 2017). Esses dados dão luz à necessidade de se repensar o sistema de justiça criminal, sob a perspectiva do racismo estrutural, que orienta a tomada de decisão dos operadores do direito. Além disso, ao contrário do que preconiza o senso comum, na grande maioria dos casos, o que chega às audiências de custódia são crimes não violentos, com maior recorrência de crimes patrimoniais e de tráfico de drogas (IDDD, 2019), o que também nos provoca a repensar a política de drogas e a falta de políticas públicas de inclusão econômica e de justiça social no Brasil.

3. Considerações finais

A despeito da realização de audiências de custódia ainda enfrentar desafios, a existência e a efetivação deste instituto processual são de fundamental relevância. Deve-se ressaltar que, antes da existência da audiência de custódia, o primeiro contato da pessoa presa com uma autoridade judiciária poderia levar meses, não raro sendo esse o momento em que ocorria a apresentação de sua defesa. No contexto do DF, é possível observar, nos últimos anos, alguns avanços, no sentido de afirmar um número maior de decisões pela liberdade provisória, embora ainda alicerçadas em medidas cautelares, e fortalecer parcialmente a rede psicossocial e o acesso à justiça por pessoas investigadas (BRASIL, 2021).

No entanto, a partir da revisão das publicações institucionais e acadêmicas sobre o tema, foram identificados desafios: (i) há a manutenção protocolar do uso de algemas nos custodiados durante a audiência, em desrespeito à Súmula Vinculante n.º 11 e ao princípio da presunção de inocência; (ii) o uso padronizado de medidas cautelares, que servem como alternativa à liberdade, e não à prisão; (iii) baixo engajamento na identificação e no encaminhamento de relatos de violência durante o ato de prisão; (iv) o silenciamento do custodiado, que é relegado à condição de subserviência, sendo o ator que menos possui poder de influência dentre os demais; e (v) a sobrerrepresentação nas audiência de custódia de homens negros, jovens, com baixa renda e baixo nível de escolaridade.

Tais dificuldades trazem barreiras à efetivação dos objetivos das audiências de custódia, em particular a adequada interação presencial entre juízes e custodiados, a apuração das condições e da legalidade da prisão efetuada e a fiscalização e prevenção das práticas de tortura e maus-tratos policiais. Não obstante, informações sobre o encaminhamento das denúncias de violência e sobre o uso de algemas são invisibilizadas nas publicações institucionais do TJDFT, sendo preocupante a não publicação do relatório de gestão referente às audiências realizadas no período de 2018 a 2020. As publicações oriundas de pesquisadoras e organizações da sociedade civil constituem, portanto, as fontes de informação mais detalhadas e recentes disponíveis acerca das audiências de custódia no território. Além disso, notamos um vazio nas produções em relação às audiências por videoconferência, que foram a realidade em mais de dois anos (de março de 2020 a janeiro de 2023, com pequenas interrupções neste período), e no eventual (mas esperado) atendimento às recentes publicações do Conselho Nacional de Justiça sobre audiências de custódia (Brasil, 2020a, 2020b, 2020c e 2020d).

Deve-se, ainda, ressaltar que os magistrados são responsáveis pelas decisões que tomam e pelas consequências de tais decisões para o sistema de justiça criminal e para a sociedade. Deste modo, devem avançar em termos de consistência decisória, qualificando e fortalecendo o Poder Judiciário, de maneira a valorizar sua independência e modificar o status quo do “estado de coisas inconstitucional” vigente no atual sistema carcerário (Brasil, 2020b). Para tanto, não bastam apenas modificações na regulamentação das audiências de custódia: é necessária, também, a mudança de comportamento dos agentes públicos envolvidos nas audiências de custódia, capaz de romper relações de poder que geram estereótipos e condutas excludentes (Ferreira, 2017).

Por fim, nossa pesquisa identificou alguns temas que poderiam ser objeto de futuros estudos: (i) a maneira como se dá os encaminhamentos psicossociais aos custodiados e em que medida são utilizados como medida cautelar; (ii) a oferta de insumos emergenciais às pessoas custodiadas no atendimento psicossocial prévio ou posterior à audiência de custódia, como alimentação, itens de vestuário, calçados e produtos de higiene pessoal; (iii) um aprofundamento do olhar de gênero sobre as audiências de custódia; (iv) as repercussões da Lei nº 13.964/2019 (“Lei Anticrime”), sobretudo a (in)constitucionalidade do § 2º do art. 310 do CPP, que denega compulsoriamente a liberdade provisória para os casos em que o agente é reincidente, integra organização criminosa armada ou milícia, ou porta arma de fogo de uso restrito, contrariando a presunção de inocência, a excepcionalidade da prisão preventiva e a necessidade de fundamentação das decisões judiciais (Albuquerque; Fusinato, 2020); e (v) os impactos da pandemia de coronavírus, com a consequente realização de audiências por videoconferências, no cenário brasileiro e do Distrito Federal.

Referências bibliográficas

  • 1
    Taxas calculadas a partir das estatísticas do NAC apresentadas pelo TJDFT (DISTRITO FEDERAL, 2022).
  • 2
    Leituras flutuantes são o “primeiro contato com os documentos que serão submetidos à análise, a escolha deles, a formulação das hipóteses e objetivos, a elaboração dos indicadores que orientarão a interpretação e a preparação formal do material” (CÂMARA, 2013, p. 183).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2022
  • Aceito
    25 Ago 2023
location_on
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro