O livro analisado no presente texto encontra suas origens na pesquisa de doutorado de Luciana da Cruz Brito, concluída em 2014, na Universidade de São Paulo, sob orientação de Maria Helena P. T. Machado.
Ao julgar o livro pela capa, ou melhor, por seu subtítulo, o leitor pode se apressar em concluir que se trata de uma história comparativa acerca da abolição e da elaboração do racismo entre Estados Unidos e Brasil. Esse leitor não será nada além de surpreendido. No centro do debate proposto por Luciana Brito está o Brasil, mas sob a ótica de pensadores da nação estadunidense. Assim, o texto aborda como diferentes concepções sobre as relações raciais no Império, acompanhando as transformações sociais ocorridas no período, contribuíram para a construção dos ideais que determinariam a autodefinição Estados Unidos enquanto nação.
O objetivo da autora é, portanto, identificar as diferentes imagens conformadas sobre a realidade brasileira no imaginário estadunidense e a instrumentalização delas para a elaboração de retóricas escravistas e abolicionistas nos momentos antecedentes, concomitantes e posteriores à Guerra Civil Americana (1861-1865). Para isso, uma diversa profusão de fontes primárias textuais foi mobilizada, desde livros, discursos, artigos jornalísticos, relatos de viagem e correspondências pessoais que datam desde o final da década de 1830 até o final da década de 1880. Esses materiais foram consultados em diversos acervos familiares, hemerotecas e bibliotecas físicas e digitalizadas.
No primeiro capítulo, Brito remonta à Declaração de Independência de 1776 como ponto de partida das discussões acerca do lugar do negro na constituição da nação estadunidense, isto é, tendo em vista a afirmação de seu lugar apartado da concepção de que “todos os homens foram criados iguais”3. Assim, a autora mobiliza os estudos da Escola Americana de Etnologia - epicentro da formulação de teorias de racismo científico-, relatos de viagem e iconografias que institucionalizaram o racismo nos Estados Unidos muito a partir das observações sobre a realidade miscigenada brasileira.
Em contraponto, já adentrando o segundo capítulo, Brito traz as estratégias discursivas de abolicionistas negros que, buscando refutar a argumentação de que não apenas defendiam a inferioridade inata da população negra, mas também que a condição escrava era a única na qual o negro poderia encontrar seu pleno desenvolvimento, passaram a internacionalizar sua retórica. Dessa forma, eles observavam a experiência negra de outras localidades - particularmente do Brasil - para afirmar suas próprias concepções sobre o que era e o que deveria ser sua experiência racial e nacional nos Estados Unidos. A elaboração de uma alteridade entre Brasil e Estados Unidos, a partir da observação das distinções entre as relações raciais presentes nos dois países, permitiu a conformação de um repertório de evidências de que o racismo nos Estados Unidos era excepcional, inigualável e particularmente perverso.
A visão desses indivíduos sobre o Brasil era pautada pela admiração por uma sociedade de livre miscigenação e relações sociais igualitárias que prescindiam do preconceito racial vigente nos Estados Unidos. A ausência de institucionalização legal da segregação racial - o que Brito demarca como diferenças fundamentais entre Brasil e Estados Unidos em termos de políticas de classificação racial - e a constante busca por embasamento científico ao racismo, além da possibilidade de inserção social dos libertos enquanto cidadãos por vias legais e da liberdade das relações inter-raciais, justificam as imagens forjadas sobre o Império pelos afro-estadunidenses.
Mobilizando especialmente os escritos e discursos de Frederick Douglas e as observações desse intelectual sobre o Brasil, a autora ressalta a ideia da “dupla consciência”, isto é, a exaltação das relações raciais em outros países e a necessidade de afirmação de uma identidade comum, partilhada, “áfrico-americana”4, mas que ainda tinha como objetivo final a afirmação da identidade nacional estadunidense, isto é, da conquista do direito dos negros ao pleno exercício de sua cidadania na sociedade em que viviam.
A mobilização de fontes visuais é também um elemento enriquecedor do trabalho. Brito retoma e amplia a discussão proposta em (T) Races of Louis Agassiz: Photography, Body, and Science, Yesterday and Today (2010), por Maria Helena Machado, ao ressaltar que os impulsos de cientistas como Agassiz não residiam apenas no interesse pelo registro naturalista da diversidade racial, mas, antes, na necessidade de corroborar, por meio de representação de pretensões científicas, a hierarquização e segregação raciais como elementos inatos da humanidade e a degeneração social e biológica como consequência única da miscigenação.
Por outro lado, retratos negros de Samuel Ward e Frederick Douglass buscavam transpor na fotografia sua retórica discursiva, afirmar a dignidade dos homens negros, conformar fotografias esteticamente análogas ao retrato de qualquer homem branco e, assim, afirmar-se inequivocamente humanos, iguais.
Além de fotografias, a produção de imagens, em especial para a imprensa, é analisada pela autora com charges e panfletos de divulgação dos males e escândalos que a amalgamação entre raças representava. Especial atenção é dada para aquelas produzidas no contexto de reeleição de Abraham Lincoln em 1864, nas quais homens brancos e homens e mulheres negros tomavam parte na degeneração miscigenada - mantendo sempre as mulheres brancas como “guardiãs da pureza racial”5 da nação.
No terceiro capítulo, a autora retoma tópicos centrais nos debates públicos sobre as relações raciais nos Estados Unidos entre as décadas de 1840 e 1860, tais como: a mobilização da ciência, a escravidão como exercício do paternalismo benevolente dos brancos sobre os negros, o temor da inserção dos libertos na sociedade americana como via à mistura racial e o desejo escravista de expatriação dos negros para outras regiões, possibilitando a conformação de uma nação racialmente pura e branca. O que poderia facilmente tornar o livro repetitivo demarca, na verdade, a distinção do capítulo, uma vez que a análise de Brito consiste na mobilização dos mesmos temas para agora denotar a atmosfera na qual a Guerra Civil estava latente, marcada pelo temor da classe senhorial frente à possibilidade de abolição no Sul e às estratégias de mobilização do conflito pela população negra - que se manifestava muito no alistamento militar como via à cidadania.
Tendo feito parte de sua pesquisa de doutorado na New York University (NYU), Luciana Brito pôde contar, particularmente para seu quarto capítulo, com arquivos dedicados à reunião de documentos produzidos por indivíduos e famílias do Sul dos Estados Unidos6, que não são particularmente populares no conhecimento mais difundido no Brasil sobre a história dos Estados Unidos, mas que tiveram seus diários, correspondências, fotografias, entre outras tipologias documentais, preservados.
Isso permitiu à autora sanar seus objetivos de investigar a construção de uma identidade nacional estadunidense no pós-Guerra Civil também pelo relato da experiência de homens, outrora senhores de escravos, que buscaram na vinda ao Brasil, a partir de 1865, a solução para inquietações fomentadas pela transição da escravidão à liberdade em curso nos Estados Unidos. Com o uso dessas fontes primárias, a autora contraria tendências historiográficas que tiram da escravidão e do desejo de manutenção de sua “autoridade racial”7 o papel de principal atrativo para a migração dos sulistas ao Brasil e que justificam as vindas com base em questões fiscais e econômicas8.
O uso de experiências pessoais evidencia as transformações dos sentimentos de alguns setores da sociedade sulista em relação ao Brasil: a vinda dos confederados ao Brasil após a guerra foi alimentada com as esperanças de verem restituído seu poder senhorial, estabelecendo-se como senhores de escravos no Brasil com o auxílio do governo imperial e da persistência da escravidão no país. Anos de relatos sobre a depravação das relações inter-raciais no Brasil e o impacto das condições ambientais que tornava os negros brasileiros escravizados pouco propensos ao trabalho foram ressignificados pelos migrantes na forma de elementos favoráveis à prosperidade econômica e ao domínio dos brancos estadunidenses sobre os negros brasileiros.
Ao contemplarem a frustrante possibilidade de abolição em terras brasileiras na década de 1880, os confederados optaram pelo retorno à terra natal para combater a liberdade negra em seu próprio território, mas agora com seus temores e ódios raciais reafirmados - processo refletido no fortalecimento do racismo e culminado nas leis de segregação racial formuladas nos Estados Unidos a partir de então.
É perceptível a confluência do trabalho e das intenções de Brito com outros historiadores contemporâneos que trazem à tona as vozes de homens e mulheres negros e negras que pensaram sobre suas próprias experiências à luz de suas realidades nacionais. O livro Vozes afro-atlânticas (2022), de Rafael Domingos de Oliveira, encontra eco no trabalho de Luciana Brito ao reunir autobiografias de indivíduos negros que refletiram sobre sua nação e o lugar de suas experiências nela - majoritariamente nos Estados Unidos, com algumas incursões sobre a autobiografia de escravizados na América Latina. Apesar da autora não apresentar a “escrita de si” como elemento de tanta centralidade em sua pesquisa, tanto no trabalho de Oliveira como no de Brito, temos a valorização de uma pesquisa transnacional em detrimento de uma comparação no sentido de que ambas buscam os olhares e interpretações dos agentes históricos sobre a realidade e a experiência negra em múltiplos territórios, tendo na voz dos sujeitos negros a possibilidade de apreensão de sua plena capacidade de pensar suas nações e seus lugares nelas.
No caso da obra aqui resenhada, o intercâmbio transnacional de ideias pode ser mobilizado não apenas para entender como abolicionistas pensaram a liberdade e os significados da integração dos negros na sociedade estadunidense, mas também para que as classes senhoriais por todo Estados Unidos pudessem prover lastro científico e político ao racismo.
Para a historiografia sobre o Brasil, um impulso semelhante pode ser encontrado em “Escritos de Liberdade” (2018), de Ana Flávia Magalhães Pinto. Nesse livro, a autora explora a vida de quatro literatos negros: Ferreira de Menezes, Luiz Gama, José do Patrocínio e Machado de Assis. Esses escritores refletiram sobre suas próprias experiências enquanto homens racializados em círculos brancos e letrados nas áreas urbanas do Brasil. Eles utilizaram todos os meios disponíveis, como a imprensa, a literatura e as tribunas jurídicas, para divulgar suas visões sobre a abolição e a liberdade, a construção política da república e o lugar dos negros no presente e no futuro.
Em sua conclusão, a maneira como a autora retoma o discorrido nos capítulos justifica o título da obra: “O avesso da raça”. Nas páginas finais, valendo-se da noção de “comunidades imaginadas” de Benedict Anderson, Brito traz a ideia da conformação de um espelho, em que a imagem projetada é uma representação - ainda que sem correspondência direta com a realidade -, pois produz um reflexo, uma inversão, um avesso, uma alteridade não apenas entre Brasil e Estados Unidos, mas também entre os discrepantes discursos produzidos a partir das imagens que cada grupo de agentes queria enxergar ao mirar o espelho: entre a esperança abolicionista e o pessimismo escravista ante a abolição.
Ao longo do livro, as visões sobre o Brasil são dadas a todo momento pela lente interpretativa dos comentadores abolicionistas ou escravistas, cientistas, veteranos militares, políticos, viajantes, religiosos e outros indivíduos estadunidenses. Assim, coube a Luciana Brito eventuais intervenções que apontassem as evidentes dissonâncias entre o que estava em circulação nos Estados Unidos, ou o que os distintos agentes optaram por mobilizar no processo de fortalecimento de suas respectivas visões para o presente e o futuro da nação norte-americana, e a complexa realidade das relações raciais no Brasil.
A pesquisa tem caráter transnacional, pois demonstra as trocas e interações entre diversos indivíduos e múltiplos territórios. Valendo-se da metodologia própria da História Social, a autora busca, nas palavras de toda sorte de agentes sociais, a maneira como estes se apropriaram e interpretaram vidas e dinâmicas sociais do Sul do continente, construindo uma alteridade em relação ao Brasil, o que permitiu a afirmação do que - e para quem - deveria ser a sociedade estadunidense.
A leitura e as escolhas narrativas de Brito permitem ao leitor compreender de maneira muito clara o papel cumprido pela imaginação da nação estadunidense no século XIX nos rumos e políticas raciais que contemplamos atualmente ao olhar para os Estados Unidos, mas também permitem observar a gênese das interpretações de raça e sociedade perceptíveis em nosso próprio pós-abolição e até os dias de hoje.
Bibliografia
- BRITO, Luciana da Cruz. O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre Estados Unidos e o Brasil. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2023.
- HUBER, Sasha e MACHADO, Maria Helena P. T. (T) Races of Louis Agassiz: Photography, Body, and Science, Yesterday and Today/ Rastros e Raças de Louis Agassiz: Fotografia, Corpo e Ciência, Ontem e Hoje. São Paulo: Capacete: 29th. São Paulo Biennial, 2010.
- OLIVEIRA, Rafael Domingos. Vozes afro-atlânticas: autobiografias e memórias da escravidão e da liberdade. São Paulo: Editora Elefante, 2022.
- PINTO, Ana Flávia Magalhães. Escritos de Liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista. 1ª. Ed. Campinas/SP: Editora UNICAMP, 2018.
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3
BRITO, 2023, p. 18
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4
BRITO, 2023, p. 77
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5
Ibidem, p. 105.
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6
São alguns exemplos dessas coleções: Gunter and Poellnitz Family Papers, J. Marshall McCue Papers, George Scarborough Barnsley Papers, James Alexander Thomas Papers. Essas coleções encontram-se em universidades de outros estados e puderam ser consultadas pela autora por ela estar em uma universidade dos Estados Unidos.
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7
Ibidem, p. 229
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8
Nomeadamente, a autora se contrapõe aos trabalhos “The Confederados: Old South Immigrants in Brazil”, de Cyrus B. Dawsey e James M. Dawsey, e “The Lost Colony of the Confederacy”, de Eugene C. Harter, sendo este último autor um descendente de confederados que buscou muito mais a manutenção de uma memória familiar do que o estabelecimento de um compromisso historiográfico.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Set 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
28 Nov 2023 -
Aceito
13 Maio 2024