Resumo
Este estudo objetiva analisar o discurso do movimento social “Direitos Urbanos” (DU) e compreender como esse movimento se articula para desafiar discursos hegemônicos do urbanismo moderno e promover discursos alternativos ao modelo neoliberal. Para tal, utilizamos o aporte teórico da teoria dos Novos Movimentos Sociais (NMS). A arqueologia foucaultiana, com o objetivo de identificar as estratégias de construção do discurso do DU a partir dos sujeitos que o constituem, foi utilizada. As análises indicaram o DU como um centro contra-hegemônico, resistente e combativo ao modelo de gestão urbana desenvolvido na cidade do Recife, afirmando um projeto alternativo de cidade. O DU possui hierarquia fluida, estratégias dinâmicas e contingenciais, atua em rede e aglomera-se para demandas específicas.
novos movimentos sociais; contra-hegemonia; discurso, “direitos urbanos”; análise foucaultiana
Abstract
This study aims to analyze the discourse of the social movement “Urban Rights” (UR) and understand how this movement is articulated to challenge hegemonic discourses of modern urbanism and promote discourses that are alternative to the neoliberal model. We used the theoretical contribution of the New Social Movements (NSMs) theory. Foucault's archeology was employed in order to identify the strategies for constructing the UR discourse based on the subjects that constitute it. The analyses indicated that UR is a counter-hegemonic and resistant center that combats the urban management model developed in the city of Recife, affirming an alternative city project. UR has a fluid hierarchy, dynamic and contingency strategies, operates in a network, and agglomerates for specific demands.
new social movements; counter--hegemony; discourse; urban rights; Foucauldian analysis
Introdução
Este trabalho objetiva analisar o discurso do movimento social “Direitos Urbanos” e compreender como esse movimento se articula para desafiar discursos hegemônicos do urbanismo moderno e promover discursos alternativos ao modelo neoliberal.
As cidades contemporâneas, principalmente as do Sul global, vivem uma crise estrutural e de significado. Os planos e planejamentos desenvolvidos sob o paradigma da modernidade criaram uma urbanidade que não encontra, no homem, o padrão para sua escala de construção. A globalização, a cultura da velocidade, a reestruturação econômica e as políticas neoliberais implementadas por instituições nacionais e supranacionais mudaram a matriz institucional-territorial da governança urbana e mudaram, principalmente, a escala na qual a cidade é projetada.
É nessa conjuntura de crise de modelo urbano que demonstrou não funcionar que surgem demandas sociais e contra discursos, questionando a maneira como a cidade vem sendo projetada. Por isso, os processos e as práticas que envolvem o planejamento e a construção de grandes projetos de infraestrutura urbana, sejam eles conjuntos habitacionais, shoppings ou aeroportos, são locais de intensa contestação política (Spinoza; Negrete; Dattwyler, 2019).
Recife, locus desta análise, é exemplo de cidade que apresenta essas contradições sociais, ambientais e econômicas que geram insatisfações e reivindicações por mudanças no modelo de gestão e que exigem o enfrentamento dos problemas encarados pelos cidadãos. A presente pesquisa foi operacionalizada a partir da análise foucaultiana do discurso (Foucault, 2008) do movimento social Direitos Urbanos (DU), localizado na cidade do Recife, no período entre 2012 a 2016. O intervalo foi utilizado por ser período de formação e maior projeção do movimento na cidade.
O DU, objeto deste estudo, ganhou importância no cenário de luta urbana em 2012, quando da construção de um complexo de edifícios denominado “Novo Recife”. O projeto revoltou alguns moradores da cidade do Recife que, reunidos em torno do grupo “Direitos Urbanos”, passaram a liderar e realizar ocupações e manifestações frequentes reivindicando mudanças na reformulação do projeto e no plano urbanístico da cidade. Neste trabalho buscaremos responder a alguns questionamentos como: “Que sentidos o DU agrega a cidade do Recife?”; “Que pautas foram consideradas mais relevantes?”; “Quais estratégias de ação utilizam o DU?”; O DU, como sujeito político, procura estabelecer um discurso alternativo de cidade que se diz oposto ao estabelecido pelo discurso neoliberal?”.
Na próxima seção, apresentaremos um apanhado teórico dos Novos Movimentos Sociais Urbanos e, a seguir, a metodologia e as análises realizadas sobre o fenômeno e, por fim, algumas considerações finais.
A entrada das massas no espaço político: origens
Buscaremos uma aproximação a diferentes paradigmas que ocuparam a análise dos movimentos sociais ao longo de sua história. Podemos diferenciar quatro fases principais nas quais podem ser divididas as análises sobre os movimentos sociais: a primeira começa com o estudo maciço do movimento sindical ou movimento obreiro. A segunda etapa inicia com as revoltas de maio de 1968, em Paris, e é marcada pelas contribuições dos norte-americanos – representadas pela Teoria da Mobilização dos Recursos – e dos europeus – definidas pelo chamado paradigma dos Novos Movimentos Sociais –, ambas modificaram significativamente as análises teóricas sobre os movimentos sociais e manifestações populares. No fim da década de 1980, surge a terceira fase, caracterizada por uma espécie de homogeneização das interpretações teóricas, tanto no continente europeu quanto nos EUA, a proliferação de diversos movimentos sociais e novas metodologias de análise. A quarta e última etapa corresponde à produção formulada nos últimos anos, marcada pelo contexto da globalização e da institucionalização dos movimentos sociais ( Santamarina, 2008 ). Neste trabalho nos concentraremos na última etapa.
Santamarina (ibid.) destaca as diferenças entre as formas de ação coletiva atuais e os movimentos sociais clássicos: nos movimentos sociais contemporâneos não estão claros os papéis dos participantes na estrutura; existe uma pluralidade de ideias e valores; as demandas sociais são, geralmente, de caráter cultural e simbólico; há uma relação difusa entre o individual e o grupal; caracterizam-se pela não violência e desobediência do poder civil; são entendidos como uma resposta à crise de democracia nas sociedades ocidentais.
Outra mudança é a forma de organização entre uns e outros movimentos. Os movimentos clássicos tiveram como característica uma estrutura hierárquica e centralizada para conseguir mobilizar-se; já os movimentos sociais contemporâneos usam estruturas descentralizadas, abertas, com maior participação de todos os envolvidos. Também se pode falar das diferenças com respeito ao estilo político: enquanto os movimentos clássicos buscam institucionalizar-se para alcançar poder; os Novos Movimentos Sociais, em sua maioria, optam por ficar à margem dos circuitos institucionais e pressionar mais a opinião pública. Em definitivo, não existe um modelo único de organização dos movimentos ( Marugán, 2002 ).
Movimento social é um sistema de narrações, de registros culturais, explicações e prescrições de como os conflitos são expressos socialmente e através dos quais a sociedade é reformada ( Ibarra e Tejerina, 1998 , p. 12). Pode ser entendido, também, como um agrupamento de pessoas que, diante de um conflito ou de um problema, se organiza para tentar mudar o rumo da sociedade (Giner, Lamo de Espinosa e Torres, 2004).
Na Europa, logo depois das manifestações de maio de 1968, a abordagem clássica marxista, que priorizava a análise pela categoria de luta de classes, passou a ser criticada por autores como Alan Touraine, Ernesto Laclau e Manuel Castells, cuja aproximação resultou na “Teoria dos Novos Movimentos Sociais” (NMS). Laclau (1986) afirma que, com a teoria dos NMS, a problemática do sujeito passou a ser tratada de forma diferenciada na teoria sociológica, pois politizava espaços alternativos de lutas como, por exemplo, os movimentos que surgiram na América Latina a partir da década de 1980.
Para Laclau (ibid.), a emergência do NMS deu-se com a proliferação de diferentes “posições de sujeitos”, dificultando a identificação de um referente. Por exemplo, um operário é também um consumidor, e essas posições, para teoria marxista, não são estáveis. O indivíduo hoje assume diversas posições sociais.
No entanto, vale ressaltar que essas perspectivas teóricas que se constituíram e se tornaram dominantes nos anos 1980 foram forjadas em oposição ao marxismo, buscando negar a relevância da dimensão de classe e a centralidade da luta de classes: quer seja as teoria dos novos movimentos sociais, da mobilização de recursos ou da mobilização política, são todas caracterizadas por essa negação.
Segundo Galvão (2011) , de modo geral, para essas perspectivas, a mobilização produz-se a partir de fatores societais e exprime objetivos culturais, pós-materialistas (como valores, identidades, reconhecimento), de modo que não seria possível (nem faria sentido) a relacionar ao pertencimento de classe dos atores mobilizados.
Hoje entendemos ser possível identificar uma recuperação do interesse intelectual pelo marxismo, pelo próprio Laclau e por Castells, além de autores como Harvey e Lojkine, principalmente sobre as questões urbanas.
Castells (1983) e Lojkine (1981) , por exemplo, tratam da questão urbana e do papel dos movimentos sociais nos processos de produção do urbano. Lojkine (ibid., p. 292) define movimento social como a capacidade de um conjunto de agentes das classes dominadas diferenciar-se na tentativa de lutar contra a subordinação e dependência dessas classes com relação à classe dominante e ao sistema socioeconômico em vigor. Por isso, segundo o mesmo autor, “o movimento social será definido, em última instância, por sua capacidade de transformar o sistema socioeconômico no qual surgiu” (ibid., p. 298).
Para um movimento social contemporâneo, a questão é de classe, mas não apenas sobre isso. Laclau tem razão ao afirmar que as novas contradições sociais provocadas pelo desenvolvimento do capitalismo não se reduzem aos conflitos de classe e que as formas sob as quais os conflitos se apresentam não se circunscrevem ao universo do trabalho ( Galvão, 2011 ). Os interesses de classes existem e influenciam a dinâmica de dominação e subordinação, mas são apenas uma das formas de opressão. O “inimigo” que os movimentos sociais enfrentam não é definido apenas em função da exploração da força de trabalho, como nos movimentos clássicos, mas pela possibilidade de desestruturação de uma organização social a um só tempo, capitalista, sexista, patriarcal e racista ( Laclau, 1986 , p. 21). Assim, ainda que nem todas as reivindicações sejam de classe e nem todos os conflitos sejam anticapitalistas, essas reivindicações e conflitos podem se articular, de diferentes maneiras, com as reivindicações de classe.
O ideal básico defendido por Castells, Lojkine, Melucci, Laclau, Mouffe, Touraine e o que nós acreditamos parece ser a criação de um sujeito social, de um sujeito político que reivindique um espaço da cidadania democrático e justo.
Na América Latina, no novo milênio, esse ideal é retomado pelos movimentos populares urbanos, como os movimentos comunitários de bairros, principalmente no México e na Argentina ( Gohn, 2014 ). Esses movimentos vêm se multiplicando na cena pública como agentes de renovação das lutas coletivas. Movimentos que estavam na sombra e tratados como insurgentes emergem com força organizatória, como os piqueteiros na Argentina, os cocaleiros na Bolívia e no Peru e zapatistas no México. Outros, ainda, articulam-se em redes compostas por movimentos sociais globais ou transnacionais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Brasil, e a Via Campesina, além da Coordinadora Latinoamericana de Organizaciones del Campo (Cloc) (ibid.).
Nos últimos anos, observa-se, no Brasil, um crescimento na atuação dos movimentos sociais, ONGs, instituições filantrópicas, coletivos urbanos, associações de vizinhos, entre outros envolvidos no processo de busca pela democracia, justiça social, liberdade, autonomia e, sobretudo, direito à cidadania.
Especificamente em Pernambuco, locus desta pesquisa, um dos primeiros a discutir os movimentos sociais urbanos foi Maranhão (1979) . Como no restante do País, o fim da ditatura e o início da democracia coincidiram ou permitiram o destaque, mesmo que de poucos, de movimentos sociais como as Associações de Moradores – organizadas para resistir às remoções –, os movimentos de invasores, o movimento contra a carestia e os movimentos originados através do trabalho da Igreja Católica. Ainda incipientes e débeis, os movimentos sociais em Pernambuco permitiram considerar o nível de consciência e organização das classes populares urbanas.
Leite (1977) , outro autor importante que demonstrou a emergência dos movimentos sociais no Recife, mostrou como o processo de urbanização desencadeou processos de remoções em áreas próximas ao centro da cidade, bem-servidas de transporte e em franco processo de valorização imobiliária. Começa aí o planejamento urbano em nome de uma racionalidade técnica cujo resultado, segundo o autor, é a expulsão ou a remoção das populações ditas “marginais”, configurando-se uma consolidação de estrutura vigente de ocupação especulativa da cidade (ibid.).
São muitos os estudos que dão voz ao contínuo ativismo de organizações cidadãs preocupadas com questões urbanísticas e de política local, no Recife e no mundo. Ao examinarmos as concepções formuladas por Castells (1983 e 2009), podemos perceber, através de suas sucessivas obras, que o autor inaugurou uma concepção do urbano enquanto âmbito de consumo coletivo e, assim, ajudou a situar e diferenciar o Movimentos Sociais Urbanos (MSUs) de outros movimentos sociais. Castells insere os MSUs como um tipo específico de NMS. Neste trabalho, iremos utilizar a terminologia dos MSUs por entender que faz parte dos NMSs.
De acordo com Goss e Prudencio (2004) , o padrão de ação coletiva contemporânea é a rede de movimentos, grupos que compartilham uma identidade coletiva e se articulam em redes fluidas, temporárias. Ou seja, devemos entender os MSUs como sistemas abertos nos quais o campo de ação permanece, mas seus atores não. Quanto ao objeto de ação dos MSUs na atualidade, podemos dividir em três focos principais: movimentos sociais em torno da questão urbana, pela inclusão social e habitação, exemplos como os movimentos pela moradia (luta pelo Estatuto da Cidade, redes de movimentos sem-teto, ocupações de prédios abandonados, etc.) e os movimentos e ações contra a violência urbana e as demandas pela paz.
Outro tipo de mobilização dos MSUs em torno da questão urbana é o olhar para recuperação das estruturas ambientais e espaços públicos (praças, parques) e equipamentos de uso coletivos, como direito a equipamentos de lazer, esporte e outros serviços públicos. Um terceiro foco de mobilização é a organização popular em torno das estruturas institucionais de participação na gestão político-administrativa da cidade: Orçamento Participativo e Conselhos Gestores, democracia na tomada de decisão nas questões urbanísticas.
Movimentos Sociais Urbanos são catalisadores da ressignificação do urbano
Os primeiros MSUs, também chamados de clássicos, são considerados como quase todas as lutas de bairro por habitação e equipamentos públicos (hospitais, escolas, praças), as propostas de bairros por renovação urbana, as organizações de proprietários ante a instalação de indústrias, ações de ocupação de casas, luta de minorias étnicas, mobilizações ecologistas e, sobretudo, as atividades de reivindicação de ocupação do espaço público realizadas pelas associações de bairro e moradores.
Na obra de Castells, podemos identificar uma evolução na forma de pensar e entender os MSUs. Inicialmente, Castells (1983) entendia que eles eram a contrapartida direta do planejamento urbano, com efeito direto na transformação social. Nessa dinâmica, o planejamento urbano, em geral, consistiria em intervir no “urbano” e assegurar os interesses da classe dominante. Os MSUs, por sua vez, seriam as práticas que tentariam “objetivamente até a transformação estrutural do sistema urbano ou até uma modificação substancial da relação de forças na luta de classes, quer dizer, em última instância, no poder do Estado” (ibid., p. 316; tradução nossa). O problema dessa concepção é que, com relação aos efeitos do MSU, nem toda prática política de oposição social ao planejamento urbano consegue chegar a uma transformação da lei estrutural do sistema urbano (ibid., p. 317) como propõe o autor.
Então, como chegava um MSU a provocar efeitos de largo alcance? Segundo Castells, através da união dos MSUs com os partidos políticos de esquerda e sindicatos que, juntos, poderiam aumentar sua capacidade mobilizadora (ibid.). No entanto, os MSUs atuais não têm papel protagonista no câmbio social dentro das sociedades capitalistas, como pregava Castells, e muito menos exigirão que os MSUs se aliem a partidos políticos e sindicatos. Pelo contrário, o que se vê na ação dos MSUs atuais é um discurso de afastamento de instituições formais. Querem entrar na rede, mas não vincular sua marca a organizações institucionalizadas como partidos políticos, por exemplo.
Pois bem, o êxito dos MSUs será medido agora por sua eficiência em transformar o “significado urbano” e não todo o sistema urbano. Isso se conseguirá, precisamente, com uma forte autonomia com respeito aos partidos políticos, ainda que mantendo relações mútuas sempre que cada parte respeite o âmbito próprio de ação do lado oposto. Os partidos, pois, teriam sua parcela legítima na política urbana nos sistemas democráticos, e não deveriam ser observados como parte de uma "frente popular" diante do planejamento urbano ( Martínez, 2003 , p. 87; tradução nossa).
Assim sendo, ante um contexto econômico global, os MSUs começaram a ser vistos como “reativos” e impotentes. Ainda que pudessem alcançar uma transformação urbana através de formas de controle e autogestão de áreas locais e regiões próximas, uma atuação e resultados mais abrangentes só seriam possíveis se os MSUs se aliassem com outros MSs mais centrais na sociedade pós-industrial que vivemos hoje. Mas que transformações do urbano são essas que os MSU poderiam alcançar? Segundo Castells (1983 , p. 409), a principal contribuição do MSU seria impor um novo significado urbano em contradição com o significado urbano institucionalizado e contra os interesses da classe dominante.
Um aspecto que precisa ser analisado nos MSUs é o contexto no qual os movimentos nascem. Para Pickvance (1986) , é possível identificar, pelo menos, cinco dimensões contextuais relevantes com relação ao MSU: 1) os períodos de rápida urbanização que levam consigo carências urbanas de habitação ou de serviços públicos; 2) a ação tolerante ou intolerante do Estado perante os movimentos sociais, e sua intervenção em questões de consumo coletivo; 3) o contexto político na medida em que existam mobilizações políticas mais amplas que as dos movimentos, ou tipo de ideologias de classe, ou segundo outros parâmetros que estejam ativos na política urbana, e a efetividade institucional dos partidos políticos para resolver os conflitos sociais; 4) o desenvolvimento das classes médias e de seus recursos em habilidades profissionais, contatos, tempo, dinheiro e filiações associativas; 5) os aspectos econômicos e sociais que favorecem ou obstaculizam o desenvolvimento dos MSUs, como desemprego ou mudanças culturais promovidas por outros MSs (os juvenis ou pacifistas, por exemplo).
Harvey (2008) argumenta que o acesso da política começa no próprio corpo, no território, no âmbito da vida cotidiana e se projeta no universal que, por sua vez, deve enriquecer e favorecer a emancipação da comunidade territorial. Para Alguacil (2001, p. 11; tradução nossa), “é através destas estruturas que se pode acessar as habilidades para a participação política e a gestão dos recursos e, portanto, adquirir a condição do cidadão proativo e corresponsável”.
Como dito antes, os MSUs introduzem discussões que vão além da análise das relações de classes ou da dicotomia capital e trabalho. São resultado da aplicação desigual, insuficiente e ineficiente dos recursos empregados no desenvolvimento e manutenção das cidades. São as dificuldades no acesso da maioria da população urbana aos recursos públicos, as carências e defasagens no nível de apropriação dos transportes coletivos, de habitação, dos esgotos, da saúde, da educação e dos equipamentos sociais; são os fatores que afetam a qualidade de vida dos moradores urbanos e que geram revoltas e movimentos em busca por mudanças e melhorias.
Exemplos dessa perspectiva são os novos movimentos que tomaram força nas grandes cidades com o lema “Salvemos...” ou “Ocupe...”. Dentro dessas marcas, convivem numerosas reivindicações e diferentes formas de organização e resistência ativadas pelas demandas locais e pela globalização, pela perda de referências, pela degradação ecológica, pelo modelo de crescimento insustentável, entre outros.
Nos últimos anos, esses fenômenos foram cada vez mais frequentes, como casos que deram início à Primavera Árabe ou, por exemplo, na Espanha, em 2011, quando jovens ocuparam praças para pedir mudanças no sistema político espanhol e por mais democracia participativa. Outros casos, como Ocupe Wall Street nos EUA (2011), Reino Unido (2011) e no Brasil (2013), foram manifestações que repercutiram no mundo inteiro (ibid.). Na Turquia, em 2013, os protestos começaram na cidade de Istambul para preservar uma praça que se pretendia entregar a um grande shopping e, posteriormente, transformou-se em protestos contra o governo por todo o país. Os movimentos pró-democracia que aconteceram em Hong Kong (2014), pró-clima em Berlim (2015), manifestações a favor e contra refugiados (Berlim e França, 2015), anti e pró-governo federal (Brasil, 2015 e 2016) também são exemplos relevantes. No Brasil esse período foi de grande instabilidade política, culminando com o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff. No caso do Brasil, as manifestações começaram pela redução da tarifa no transporte público, mas tomou outros rumos no País inteiro. Em todas as manifestações, as demandas eram diversas e, muitas vezes, específicas e localizadas.
Um ponto importante dessas manifestações em todo o mundo e, no Brasil, a partir de 2013, foi o desvelamento do panorama de incerteza, violência, perda de valores, crises financeiras, vivido por esses países, causando medo na população e tornando evidente a desidentificação entre essa população e as instâncias da ordem estatal. A partir desse momento, discursos exigindo “ordem” ganham relevância, e uma ascensão de discursos radicais levam a muitos desses países a optar por governos de extrema-direita, como foi o caso do Brasil.
Sem dúvida, essa conjuntura influencia e modifica a dinâmica das lutas sociais e as formas de ação dos movimentos sociais que, muitas vezes, perdem força ou são oprimidos pelas classes dominantes. Nesse contexto, a questão urbana é atravessada por novos governos, ideologias e demandas que podem tornar ainda mais difíceis os processos de mudanças.
É verdade que parece claro, para todos os agentes, que o modelo de cidade vigente não é bom para ninguém. São muitas as convergências que consideram mudar e propor um modelo definitivo de cidade para o futuro. No entanto, ainda é necessária maior avaliação crítica das ações dos governos locais e um olhar mais atento às forças estratégicas progressistas, ou seja, movimentos sociais, sindicatos, organizações indígenas e ONGs.
Diante da realidade em que estão as cidades, alguns estudiosos (como David Harvey, Henri Lefebvre, Jan Gehl, Jane Jacobs) criticam e tentam propor novas formas de construí-la. A chamada ao direito à cidade afirma-se como um apelo, como uma exigência. A reivindicação da natureza, o desejo de aproveitar dela são desvios do direito à cidade. Uma tentativa de fugir à cidade deteriorada, a uma vida alienada.
Para Harvey (ibid.), o direito à cidade significa o direito de todos nós criarmos cidades que satisfaçam necessidades humanas; as nossas necessidades. Para o autor, todos devemos ter os mesmos direitos de construir diferentes tipos de cidades que queremos que existam. Para isso, precisamos abraçar a diversidade de anseios urbanos e dos movimentos sociais. Em busca, não por um direito ao que já existe, mas por um direito para reconstruir e reinterpretar a cidade como um corpo político diferente do que temos hoje.
No Brasil, as primeiras lutas urbanas tendo como demanda o direito à cidade ganharam importância em meados dos anos 1980, em torno de uma plataforma da reforma urbana, para mudar a realidade de segregação, discriminação e desigualdade nas cidades brasileiras. O marco dessa luta deu-se numa coalizão de organizações populares e da sociedade civil denominada Fórum Nacional de Reforma Urbana, que resultou numa emenda popular de reforma urbana, na Constituição Brasileira de 1988. A plataforma por reforma urbana tinha como principais objetivos: o reconhecimento do direito à cidade como um direito fundamental; o direito à propriedade urbana, a uma política urbana que promovesse as funções sociais da cidade e da propriedade; e a implementação da Gestão Democrática da Cidade, de modo a assegurar a participação popular dos segmentos em situação de desigualdade econômica e social.
Esses princípios deram origem à lei nacional Estatuto da Cidade e ao Ministério das Cidades. A experiência brasileira de buscar o reconhecimento institucional do direito à cidade, a partir de uma ação política da defesa da implantação da plataforma da reforma urbana, contribuiu para que fosse introduzido, gradativamente, nos Fóruns Internacionais Urbanos, o Direito à Cidade, na pauta dos processos globais voltados a tratar dos assentamentos humanos.
Em 2000, o Fórum Social Mundial tornou-se palco privilegiado para a internacionalização do direito à cidade. A estratégia estabelecida por um conjunto de organizações da sociedade atuantes com as questões urbanas foi elaborar uma Carta Mundial do Direito à Cidade.
O processo desencadeado no Fórum Social Mundial, de construção da Carta Mundial do Direito à Cidade, teve como objetivo disseminar o conceito do direito à cidade e se reconhecimento institucional como um novo direito humano, nos organismos das Nações Unidas (por exemplo, Agência Habitat, Pnud, Comissão de Direitos Humanos), bem como nos organismos regionais (por exemplo, Organização dos Estados Americanos).
No entanto, como um movimento por direito à cidade pode ser incorporado de maneira efetiva ao planejamento urbano de estados e prefeituras em países como o Brasil e em realidades tão complexas quanto a nossa? A questão central é absorver uma pluralidade de pessoas com ideologias distintas nos processos decisórios, mas que possuem um desejo em comum: uma reforma urbana. Esforços de planejadores, arquitetos, urbanistas, gestores públicos somados aos cidadãos a respeito de uma ideia que privilegie uma cidade feita pelas pessoas e para as pessoas. Essas lutas, muitas vezes, são lideradas por movimentos sociais que se formam em torno dessas demandas.
No caso do Brasil, por exemplo, o direito à cidade não se resume a espaços públicos de qualidade e às demandas mais comuns do Norte global. No contexto brasileiro, estamos falando de qualidade em estruturas mais básicas, como saneamento básico, direito à moradia, redução da violência. São pautas do século XIX que ainda não foram resolvidas. Essas demandas juntam-se a demandas mais atuais, como o direito à mobilidade, à comunicação, ao bem público, e produzem um modo de vida caótico e complexo.
Locus da nossa pesquisa, o Recife destaca-se historicamente pelas suas lutas, envolvendo grande parte da população carente de infraestruturas e serviços urbanos. A cidade sempre foi palco de grandes episódios da história nacional, no período colonial, na ditadura e no processo de democratização do País; sempre protagonizou embates entre a presença de uma elite nacional, setores de esquerda e movimentos sociais e populares. A polarização política entre os setores marca historicamente a cidade e tem resultado numa instabilidade nas formas de governanças. Essas formas de governança local são resultantes de engenharias políticas heterogêneas, com princípios quase sempre antagônicos que, no correr dos processos eleitorais, causam crises de legitimação eleitoral e descontinuidade das ações do setor público municipal. Nesse sentido, podemos questionar até que ponto a sociedade civil tem participado das decisões relacionadas aos investimentos públicos. Dessa precariedade de participação cidadã na gestão pública e dos problemas, cada vez mais agravantes, dos espaços e equipamentos públicos, nascem mobilizações como o movimento Direitos Urbanos, objeto de nossa análise.
Caminhos metodológicos
Este trabalho é predominantemente qualitativo, com influências pós-estruturalistas, que entende os discursos como uma construção social. A escolha de trabalhar com análise de discursos levou-nos a constituir um arquivo que está relacionado ao tema e ao recorte temporal da pesquisa. Assim, o arquivo constituído do período entre 2012 e 2016 (escolhido por ser o momento de maior atuação do grupo na cidade) levou em consideração os aspectos institucionais do movimento DU. Para compor o arquivo, coletamos dados a partir de observações, entrevistas e documentos de forma a atingir os objetivos de pesquisa Creswell (2010) .
As observações, segundo Creswell (ibid.), são notas de campo do pesquisador sobre o comportamento e atividades das pessoas no local da pesquisa. Durante o período de coleta de dados, participamos de reuniões, eventos, atos públicos e audiências públicas das quais o movimento Direitos Urbanos participava e/ou que ele havia convocado/organizado. Além dos dados da observação, foram realizadas 6 entrevistas com participantes ou representantes do movimento. Quanto aos documentos, utilizamos artigos do Blog Direitos Urbanos. Foram coletados todos os artigos publicados na página web do grupo, em um total de 234 artigos. Destes 119 são de 2012, 76 de 2013 e 39 de 2014.
Decidimos organizar a grande quantidade de dados coletados fazendo uso do software NVivo 12. A utilização do NVivo foi fundamental para alojar todos os dados em um único lugar, facilitando o acesso e o manuseio dos dados, o que seria impossível manualmente.
Quanto ao método de análise, como dito, utilizamos a arqueologia foucaultiana para buscar trazer à superfície a ordem interna do discurso. Foucault (2008) caracteriza método arqueológico como caminho para descobrir e descrever as regras que dirigem os discursos, ou seja, arqueologia é uma estratégia de análise do discurso. Para o autor, discurso é “um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva” (p. 133). Dessa forma, apresenta as formações discursivas como grupo de enunciados, dotados de funções, que seguem certas regras. Cabe aqui uma nota de esclarecimento de que este não é um estudo foucaultiano no sentido clássico, por não estarmos utilizando suas teorias para o entendimento do fenômeno MSU. No quadro a seguir, apresentaremos as categorias analíticas desenvolvidas pelo filósofo que foram utilizadas para a análise do discurso do DU:
O processo analítico arqueológico que utilizamos foi inspirado nos procedimentos elaborados por Costa e Leão (2011) . A análise deu-se em três etapas: primeiro buscamos identificar os enunciados e suas relações com as funções enunciativas, posteriormente, identificamos as regras e suas categorias, para, por fim, desvelar as formações discursivas. Após a identificação dos enunciados, procedemos à identificação das possíveis relações entre eles. O segundo nível analítico buscou revelar as regras de formação e as formações discursivas. Como sinalizamos, para Foucault (2008) , a regra deve ser formada a partir de quatro critérios: objeto, modalidade, conceito e estratégia. Nessa fase, buscamos aproximar a teoria do campo empírico. No último nível dessa etapa reflexiva, buscamos elucidar as formações discursivas individualmente, demonstrando suas lógicas.
Conhecendo o campo discursivo: como nasce o DU?
No fim de 2011, alguns amigos interessados em política e preocupados com os problemas da cidade do Recife identificaram um projeto de construção de viadutos na avenida Agamenon Magalhães. Essa avenida é um dos principais corredores viários da cidade, que abriga, em seu entorno, uma infinidade de atividades sociais diversas, como igrejas, supermercado, escola, órgãos públicos e edifícios residenciais, entre outros. Esses amigos entraram com uma ação no Ministério Público do Estado de Pernambuco reivindicando estudos de impacto de vizinhança e um estudo técnico ambiental da área por entenderem que a construção de uma obra desse porte, nesse espaço, iria provocar uma impressionante desagregação social, transformando a vida dos moradores e frequentadores daquela região. Articulando-se com o Ministério Público, instituições e grupos de arquitetos conseguiram ser ouvidos pela Prefeitura.
Logo depois, esse mesmo grupo que se conhecia off-line foi se expandindo através das redes sociais, principalmente nas páginas do Facebook, e começou a transformar suas preocupações em ação também com a reivindicação do tombamento do edifício Caiçara, situado à avenida Boa Viagem. Esse edifício, demolido em 2016, era um dos últimos que representavam o período da ocupação inicial da praia de Boa Viagem, construído no final da década de 1930. Com seu estilo arquitetônico neocolonial tardio, era considerado pelo grupo um símbolo cultural importante, que não deveria ter sido arruinado.
Outra mobilização paralela foi contra um projeto de lei que visava proibir o consumo de álcool nas ruas e limitar o horário de funcionamento de bares como medida de combate à violência, por entender que o projeto traria um ônus à vivência na cidade, criando uma cidade enclausurada e reforçando, além disso, alguns hiatos entre classes sociais. Segundo o grupo: “essa mobilização agregou pessoas em torno do desejo comum de participar mais ativamente das decisões políticas que regulam ou interferem na vida social da cidade do Recife, buscando alternativas de ação quando o interesse da cidade fica esquecido pela representação política formal” ( Blog Du, 2012 ).
Mas, a principal luta desse movimento social foi e continua sendo contra a execução do “Projeto Novo Recife”, fruto do consórcio estabelecido entre a prefeitura municipal de Recife-PE e as construtoras Moura Dubeux, Queiroz Galvão, Ara Empreendimentos e GL Empreendimentos. O projeto pretende revitalizar a região central, considerada isolada das demais regiões da cidade.
Por ser um cartão postal da cidade, de frente à bacia do Pina, tornou-se uma região cobiçada por várias construtoras. Parte do terreno pertencia à antiga Rede Ferroviária Federal (RFFSA), quando foi leiloado, em 2008, com uma única proposta de compra. O Consórcio Novo Recife arrecadou o terreno pelo valor mínimo de 55 milhões de reais, aproximadamente 540 reais por metro quadrado ( Truffi, 2014 ). Há seis ações na justiça questionando o projeto. Atualmente estão sendo construídas duas torres no primeiro dos seis lotes do projeto ( Diário de Pernambuco , 2019).
No dia 23 de maio de 2012, ocorreu a primeira audiência pública sobre o projeto Novo Recife, quando uma parcela da população demonstrou insatisfação com o projeto. Nesse mesmo dia, foi criado oficialmente o grupo DU (Direitos Urbanos), que, desde então, exigiu estudos de impacto ambiental e estudos de impacto da vizinhança, que apontariam os pontos positivos e negativos do projeto.
Foi, no dia 22 de março de 2012, que o grupo ganhou o nome Direitos Urbanos. Nesse dia, aconteceu a primeira audiência pública, convocada pelo grupo, sobre o projeto “Novo Recife”, que seria realizada na área do cais José Estelita. “[...] foi a primeira vez que se viu publicamente em PowerPoint o projeto, porque até então só tinham saído 2, 3 fotos nos jornais, daqueles 3d’s que eles fazem. E aí nessa audiência pública tanto as pessoas tavam muito vivas ali, muito fortes, pessoas muito diferentes entre si [...]” ( Blog Du, 2012 ). Participam do grupo pessoas de diversas áreas, com diferentes graus de experiência no setor privado ou nos governos. Eles se dizem um grupo com intensa interdisciplinaridade, “ um lugar onde arquitetos e engenheiros conversam com sociólogos e filósofos e operadores do direito interagem com artistas plásticos e cineastas; pessoas que aliam o conhecimento técnico com preocupação ética e social ” (ibid.).
Ao longo da sua existência, o DU foi ampliando seu campo de ação e se expandiu para outras esferas da vida pública. Nunca abandonou sua origem como movimento social urbano e grupo de pressão que nasceu e prosperou nas redes sociais, mas tomou novos rumos ao se alinhar a advogados especializados em causas urbanas e ambientais, além de vereadores da cidade do Recife para questionar as diversas etapas jurídicas e de licenciamento do Projeto Novo Recife. Nesse momento, o embate ganha novos contornos e deixa de ser exclusividade das redes sociais para ganhar os tribunais e as manchetes dos jornais da grande mídia.
O Direitos Urbanos é agente de transformação da realidade urbana do Recife?
A análise do discurso através das formações discursivas foi um modo, entre diversos outros (histórico, aleatório, etc.) de adentrar o arquivo e organizá-lo. As unidades discursivas do arquivo são os enunciados. Eles constroem o discurso, portanto, desvelam saberes. Cada enunciado provém de uma multiplicidade, mas, como cada um faz emergir um saber (verdade) específico, foram transcritos como proposições afirmativas. Na Figura 1 podem ser visualizados os feixes entre enunciados, funções e regras que constroem a formação discursiva que representa a possibilidade de verdade do discurso. Ela descreve quais são os significados que movem e dão identidade ao movimento social estudado.
Os enunciados foram divididos em “blocos temáticos” destacados por cores, para evidenciar essas relações iniciais e facilitar seu entendimento. A cor roxa mostra os enunciados que caracterizam os Direitos Urbanos; a cor verde mostra os enunciados do Ocupe Estelita, e a cor azul mostra os enunciados sobre a Prefeitura do Recife e a gestão pública local.
A grande formação discursiva que explica o DU é: O Direitos Urbanos é agente de transformação da realidade urbana do Recife . Apresentou-se ligada a duas regras de formação: Direitos Urbanos é um movimento Revolucionário e Transformador e a Participação Social contribui para uma cidade mais humana. A primeira regra originou-se da relação entre nove funções e doze enunciados, e a segunda entre três funções e três enunciados.
Ao longo da história, os movimentos sociais passam a ser entendidos como coletivos cuja meta é provocar, impedir ou reproduzir uma mudança na sociedade. “Perseguem essas metas com certa dose de continuidade sobre a base de uma elevada integração simbólica, uma escassa especificação de papéis e mediante formas variáveis de organização e ação” ( Marugán, 2002 , p. 16; tradução nossa). Entendemos que o DU é um provocador da mudança de paradigma da realidade urbana do Recife.
Foi a relação entre os enunciados que evidenciou suas funções. Na primeira regra, as relações indicaram a existência de dois grupos de significação: um primeiro grupo relativo ao Ocupe Estelita, como luta específica contra a construção do empreendimento Novo Recife na região do cais José Estelita, em que cinco enunciados dessa formação, de algum modo, se relacionaram; e um segundo grupo, relativo ao Direitos Urbanos propriamente dito, em que seis enunciados se relacionaram para explicar a configuração do movimento Direitos Urbanos, suas características, estratégias e principais pautas. Os onze enunciados relacionados caminham para definir o Direitos Urbanos como movimento transformador da realidade urbana do Recife. Essa primeira regra é central na constituição dessa formação, mas, para que a formação discursiva tenha sentido, foi necessária uma articulação com a regra que demonstra a necessidade de participação social nas decisões urbanísticas.
Na segunda regra revelada, Participação Social contribui para uma cidade mais humana , as relações indicaram a centralidade de um grupo de enunciados que revelam a crise do sistema democrático que exclui a participação popular dos processos de decisão e afasta os cidadãos das questões sobre a cidade onde vivem. Demonstram, ainda, a importância da participação popular na construção de uma cidade mais humana. Tal demanda se faz presente pela total exclusão da população às decisões sobre a cidade devido ao sistema político e ao governo ser totalmente alheio às vontades da população. Fica clara, nas audiências com a Câmara de Vereadores do Recife e com a Prefeitura do Recife e suas secretarias, a falta de alinhamento e interesse em contribuir para um processo mais democrático.
Tais relações direcionaram a elucidação dessa formação, pois as incidências de relações que levam às regras Direitos Urbanos é um movimento Revolucionário e Transformador e a Participação Social contribui para uma cidade mais humana apontam o DU como agente de mudança da realidade urbana do Recife.
Os objetos dessas regras são o movimento social Direitos Urbanos e a participação social. Na descrição do campo discursivo explanamos sobre que movimento é esse e em que condições ele aparece no campo discursivo.
De fato, entendemos que o grupo Direitos Urbanos se tornou uma coalizão entre vários grupos, como associações de bairro, organizações ambientais, professores universitários, etc., para campanhas potencialmente contra-hegemônicas de ressignificação do discurso de cidade. Essa coalizão se dá em um espaço de disputa no qual concorrem várias formações discursivas que buscam dominar o significado de algo.
Como visto, o DU atua como uma rede de movimentos que, segundo Castells (2009) , é o padrão de ação coletiva contemporânea. São grupos que compartilham uma identidade coletiva e se articulam em redes fluidas, temporárias. Ou seja, devemos entender movimentos como o DU como sistemas abertos nos quais o campo de ação permanece, mas seus atores não. Essa concepção ganha cada vez mais importância diante da intensificação do processo de individualização da sociedade contemporânea e da perda da noção de cidadania.
Se entendermos o planejamento urbano como um discurso que, no imaginário moderno, foi significado de forma a estabelecer a cidade como base para o crescimento econômico e lugar de fluxo de capital, material, informação e transporte, fica evidente que, quando esse discurso cria condições em que os indivíduos que vivem nesta cidade, em sua maioria, são esquecidos, marginalizados ou excluídos de espaços públicos de lazer, de espaços seguros e de sistemas habitacionais dignos, cria brechas para um deslocamento. Diante dessa precariedade de um estado que promete as tais “políticas sociais” e não as executa, os movimentos surgem para denunciar as falhas e, nessas brechas, constituem suas reivindicações.
A partir dessas configurações, esse discurso surge no campo discursivo, na tentativa de hegemonizar-se. Os critérios da regra (conceito, modalidade e estratégia) demonstraram a tentativa de emplacar um caráter revolucionário e transformador ao movimento Direitos Urbanos.
Abordaremos aqui que circunstâncias históricas que contribuíram para a geração de condições de possibilidade ou na criação de uma Estrutura de Oportunidade Política – EOP ( Tarrow, 2004 ) que permitiu a emergência do discurso de cidade desempenhado pelo Movimento Direitos Urbanos no Recife e como ele se constitui em movimento capaz de transformar a realidade urbanística do Recife. Essas questões permitem-nos esclarecer como é definido e que papel exerce esse discurso no campo político da cidade.
Segundo Tarrow (ibid., p. 18), estruturas de oportunidade política “são dimensões consistentes do contexto político que podem encorajar ou desencorajar pessoas de participarem em ações coletivas”. A conjuntura política que permitiu a emergência no Recife de um novo discurso de cidade pode ser explicada, baseada no aporte teórico deste trabalho, por um momento histórico-global de explosão de manifestações, ocupações e movimentos de cidadãos em protestos contra os problemas urbanos presentes em distintas cidades ao redor do mundo (Harvey, 2008), influenciando, assim, a conjuntura local. As manifestações urbanas em torno de questões como reforma urbana e direito à cidade foram frequentes ao longo dessas duas últimas décadas em países desenvolvidos e em desenvolvimento. Nota-se no discurso do DU, pelo enunciado O DU está sincronizado com movimentos sociais ao redor do mundo, a influência da conjuntura global nas manifestações locais:
Há uma similaridade com Istambul, onde as manifestações se iniciam para preservar uma praça que se pretendia entregar a um grande shopping. Então a cidade passou a ser não apenas o palco das manifestações, mas também o objeto, aquilo que está em jogo . (Entrevistado 4, 2012)
Uma das ocupações feitas pelo movimento no cais José Estelita, em maio de 2012, o #OcupeEstelita12M, exemplificando o enunciado O OcupeEstelita é um protesto cultural, demonstra o caráter cultural e global do movimento. Admite a similaridade com outros movimentos globais, como pode ser visto neste chamado para ocupações:
No Recife, um movimento de ocupação do espaço público, com inspiração no Occupy Wall Strett, convoca todos os descontentes com o consórcio Novo Recife Empreendimentos, para tomar as calçadas dos armazéns do cais José Estelita no próximo domingo (15), das 9h às 16h [...]. Além de semelhanças com o Occupy Wall Street, como a falta de programa e a coordenação difusa, o OcupeEstelita aproxima-se de mobilizações como o movimento paulistano Baixo Centro, associando ações culturais ao discurso político [...]. ( Blog Du, 2012 )
As estratégias de um discurso são estabelecidas mais claramente através dos sentidos e significados que os sujeitos discursivos emplacam no campo de discursividade. O movimento DU autodefine-se como agente de mudança, como provocador de novos paradigmas e maneiras de pensar a cidade: “[...] pessoas que defendem novas formas de viver e conviver em sociedade” ( Blog Du, 2012 ).
Nesse sentido o DU é um movimento que provoca nossa inteligência e sensibilidade. No DU à pergunta “que cidade queremos?” se agrega a que indaga sobre “que cidade já temos?”. Espécie de realismo pragmático que surge em meio a culpas históricas de uma classe média ao mesmo tempo vítima e protagonista de seu próprio estilo de vida. (Jampa apud Blog Du, 2012 )
Nesses fragmentos, identificamos que há uma convergência no sentido de associar o DU aos NMSs emergentes nas últimas décadas, especificamente aos Movimentos Sociais Urbanos (MSUs). O movimento Direitos Urbanos alinha-se ao que Castells (1983) denominou Movimentos Sociais Urbanos: possui um discurso de afastamento de instituições formais; não possui estrutura hierárquica clara; quer entrar na rede, mas não vincular sua marca a organizações e institucionalidades como partidos políticos, por exemplo (cabe ressaltar que essas características são baseadas nos três anos analisados).
Marugán (2002) caracteriza os MSUs como o DU como estruturas abertas e descentralizadas, não existindo um modelo único de organização do movimento. O DU apresenta-se como um movimento fluido, avesso à institucionalização, que busca por mais participação da sociedade civil nas decisões sobre a cidade. Os recortes do arquivo a seguir são ilustrativos do enunciado O DU luta por uma gestão urbanística mais participativa e transparente e esclarecem como o DU significa suas ações e estabelece seu discurso em Recife.
[Constituiu-se] como um ponto de aglutinação importante para a complexa teia de preocupações de cidadãos e cidadãs sobre o cotidiano e o destino da cidade, independentemente de suas filiações partidárias, ideológicas, corporativas e políticas e de suas identidades sociopolíticas e base territorial. Ou seja, todo mundo pode caber no DU, inclusive quem não mora em Recife ou Pernambuco, mas que se preocupa com a construção humana, justa e sustentável das cidades [...]. (Blog Du, 2013)
Podemos afirmar que o DU se define como um aglutinador de demandas sociais, um espaço de discussão aberto e democrático do qual todos podem fazer parte, um facilitador para a mobilização social e transformação da realidade. Se é um agente de mudança, então, quais são as lógicas sociais impregnadas nessa prática que definem o modo de ação desse movimento? Hierarquia fluida e dinâmica (não há funções, cargos e hierarquias predeterminadas), voluntariado (entendido como um conjunto de ações de interesse social em que toda a atividade desempenhada reverte a favor da causa), interesse coletivo, diversidade de opiniões e pensamentos, e transparência nas ações . Todas as características apontadas fazem parte do grupo que representa o enunciado O DU é democrático e plural .
A não construção do projeto “Novo Recife” e a preservação do patrimônio histórico do cais José Estelita foram a pauta que gerou mais confluência entre os participantes do grupo no período analisado. Para o movimento DU, o projeto Novo Recife é um complexo imobiliário empresarial e habitacional de alto luxo, que prevê a construção de uma dezena de torres, “sem consideração ao desenvolvimento sustentável da cidade, e alimenta a lógica de mobilidade centrada no uso do transporte individual privado, desconsiderando a história do lugar e o significado da paisagem para as pessoas” ( Blog Du, 2012 ). O grupo afirma que o processo de aprovação do projeto chegou para a votação no Conselho de Desenvolvimento Urbano (CDU) sem cumprir importantes requisitos formais. A falta de participação popular nas decisões urbanísticas na cidade do Recife é denunciada repetidamente no discurso do DU: “Uma prefeitura que trata a participação popular como entrave, e não como instrumento, não merece respeito. É motivo de profunda vergonha” (Blog Du, 2013).
Três enunciados são reveladores desse processo: O modelo de participação popular da Prefeitura do Recife está falido, O DU luta por uma gestão urbanística mais participativa e transparente e A crise urbana também é uma crise de democracia . Este último enunciado demonstra que a crise do sistema democrático é resultado do modo de vida da modernidade que criou mecanismos que afastaram o indivíduo do campo político. Afastados e desinteressados do debate público e da participação política, os indivíduos passam a viver suas vidas privadas e os problemas sociais deixam de ser relevantes. É necessária uma nova cultura política que incorpore cidadãos à gestão das políticas públicas e ao planejamento urbano.
Por isso, na audiência do dia 22 de março de 2012, convocada por integrantes do DU, estavam presentes em torno de 400 pessoas para ouvirem a posição do Ministério Público de Pernambuco com relação ao projeto. No fim da audiência, o grupo publicou uma nota esclarecendo sua posição:
Nós, Grupo Direitos Urbanos, presentes na audiência, e aqueles que a assistiram via transmissão ao vivo pela internet, sentimo-nos agredidos pelo projeto apresentado. Agride-nos e viola as características urbanas e históricas do Bairro de São José. Discordamos do projeto de cidade contido na proposta apresentada porque representa um corte contra a nossa paisagem urbana, esta que conta a nossa história, na qual nos vemos refletidos e é nosso patrimônio cultural e afetivo. E tudo isso para servir a um mercado imobiliário restrito ao qual apenas uma pequenina minoria tem acesso, no contexto do Recife. ( Blog Du, 2012 )
Essa audiência foi um marco de uma crise de sentido no discurso de cidade. O DU introduz um antagonismo evidente ao discurso do consórcio Novo Recife e da Prefeitura do Recife, inaugurando uma disputa de sentidos que, desde 2012, vem modificando o discurso hegemônico de cidade. Dessa forma, entendemos que o DU cumpre seu papel como catalisador de mudanças no significado do urbano. Segundo Castells (1983 , p. 409), a principal contribuição do MSU seria impor um novo significado urbano em contradição ao significado urbano institucionalizado e contra os interesses da classe dominante.
Em abril de 2012, ocorreu o primeiro #OcupeEstelita (como pode ser visto na figura a seguir), seguido por mais um, realizado em maio do mesmo ano. Segundo o DU, a ocupação do Cais faz parte de um conjunto maior de ações que vêm sendo tomadas por grupos da sociedade civil como forma de pressionar e exigir a responsabilização do poder público para garantir os direitos dos cidadãos a uma cidade e a vida dignas. Nesse mesmo ano, o grupo também discutiu pautas da construção da via Mangue, mobilidade urbana, apoio às famílias que foram desapropriadas na comunidade da vila Oliveira e protestos contra as irregularidades na composição do CDU.
No início de 2013, a agenda do DU concentrou-se, principalmente, no projeto Novo Recife. Realizou ocupações, como o #OcupeMPPE, convocou também algumas audiências públicas com a Câmara de Vereadores e tornou-se membro da comissão para elaborar o projeto de lei do Conselho da Cidade. Nesse ano, o País viveu as manifestações de junho que ocorreram em várias cidades, e o DU articulou suas bandeiras às manifestações de junho. Nesse momento, temas como homofobia, feminismo e direitos humanos foram articulados à agenda do DU. Segundo Martínez (2003) , o DU enquadra-se como movimentos sociais contemporâneos: suas lutas devem tratar de temas ou problemas que transcendam problemas particulares e localistas, ou seja, apontem para problemas urbanos comuns às cidades e que estabeleçam vínculos entre o local e o global.
Em 2014, a partir da noite do dia 21 de maio, aconteceu a ocupação do terreno do antigo Parque Ferroviário da extinta Rede Ferroviária Federal à beira do cais José Estelita dando início ao Ocupe Estelita. Um ativista passava no local e constatou o início da demolição dos galpões ali existentes e, a partir de então, mobilizou outros manifestantes para impedir o ato. Centenas de pessoas organizaram-se através das redes sociais para ocupar em massa o Cais. No dia seguinte, em 22 de maio de 2014, o juiz federal Francisco Antônio de Barros reconheceu a ilegalidade da demolição e, a pedido do MPF, suspendeu imediatamente qualquer demolição/construção no local, tendo o Iphan, no mesmo dia, também embargado a obra. O acampamento foi montado no terreno por um período de 27 dias. Durante a ocupação, ocorreram três manifestações, sendo a mais importante realizada no dia 1º de junho de 2014, com a presença de mais de 10 mil pessoas (Blog Du, 2014).
A área do cais José Estelita tornou-se aparentemente sem uso pelas transformações ocorridas na economia e na ação do Estado. O que o DU argumenta é que a proposta de reforma daquela área era inadequada por ser marcada por ideias de “neoliberalismo com a decisão de alienação de um espaço público para transformá-lo em um espaço privado exclusivo para a classe abastada da cidade” (Blog Du, 2013). O grupo argumenta, ainda, que o projeto não apenas apaga toda a carga histórica que impregnou tal espaço, como também ignora as possibilidades de sua utilização pública.
O conflito está colocado, basicamente, em termos de quem deve determinar o uso desse território: o capital privado em associação com o Estado ou que a área seja mantida, preferencialmente, como um espaço de uso público, mas sob uma nova forma. Na maior parte do tempo, as discussões do DU ficaram centradas no problema de como impedir que iniciativas, privadas ou do poder público, atentassem “contra o futuro do Recife como uma cidade mais justa e mais viva” ( Blog Du, 2012 ).
O movimento deixa claro que não está preocupado apenas com o cais José Estelita, como diz o enunciado O Ocupe Estelita é um símbolo da luta por uma nova cidade. A luta contra o Novo Recife é um “símbolo” para uma luta maior.
Então era hora de mudar a lógica a partir de um caso emblemático, mudar a lógica de planejamento urbano, de ocupação de espaço aberto, de transação política privada com o espaço urbano. [...] A gente sempre fez um debate muito forte sobre gentrificação, né. Se você pegar locais abandonados, supostamente abandonados ou até realmente abandonados, mas que tenham uma proximidade com vizinhanças, comunidades de baixa renda e você se aproveita daquele abandono, daquela desvalorização pra comprar barato e fazer um empreendimento de luxo, né, se aproveitando do potencial, por exemplo, paisagístico do Cais do José Estelita. Tá abandonado, mas é em frente d’água e lugares em frente d’água são locais mais valorizados. (Entrevistado 1, 2016)
O movimento argumenta que o #OcupeEstelita centraliza um emaranhado de demandas urbanas urgentes que foram pouco discutidas amplamente no Recife. Questões como direito à moradia, gentrificação, planejamento participativo surgem como emergências no contexto político formado por estas ocupações.
Na sua página oficial na internet, o movimento apresenta suas pautas mais frequentes. Essas pautas foram distribuídas de distintas formas ao longo dos três anos analisados. Em determinados momentos, algumas pautas ganhavam mais importância e confluência e dependiam de uma estrutura de oportunidade política que se definia contingencialmente.
Apesar da tentativa de alguns integrantes de planejar essa agenda e agir mais intensamente em favor dessas pautas, o processo demonstrou-se muito mais espontâneo e dinâmico. Esse fato pode ser evidenciado pelo enunciado O DU é um movimento orgânico e espontâneo . Podemos considerar o movimento estudado com caráter espontâneo, orgânico e informal. Sua razão de existência remete não para um antagonismo inevitável e fixo, mas para uma oposição antagônica temporal e situacional, formada por uma conjuntura socialmente complexa. É um grupo de pressão solto que desafia vários aspectos do governo local. Esse movimento opera de uma forma bastante caótica. O grupo não é nem controlado centralmente, nem todos buscam o mesmo objetivo. Isto dificulta identificar o que é discurso do grupo DU e o que é discurso individual, demonstrando que o DU é um movimento típico dos Novos Movimentos Sociais: fluido, sem hierarquia clara e demandas dinâmicas e contingenciais. Sem interesse de institucionalizar-se, possui resistência à estrutura política formal, atua de forma dinâmica, com formação voluntária e em rede, sem planejamentos a longo prazo.
Como dito antes, DU caracteriza-se como novo movimento social devido aos novos movimentos sociais se articularem através de redes, constituindo pautas reivindicatórias coletivas, convergindo interesses, organizando ações conjuntas e buscando visibilidade social. Por isso, tais pautas entram e saem livremente do foco de ação do movimento. Outra característica dos novos movimentos sociais na qual o DU se enquadra é que eles não visam a “tomar o poder” pela conquista do Estado, mas geralmente constituem espaços políticos não institucionais a partir dos quais procuram alterar hábitos e valores da sociedade de modo a interferir nas políticas estatais.
O Entrevistado 5 (2016) esclarece que a estratégia do DU é a espontaneidade, o grupo tem que demonstrar interesse na pauta para que ela consiga êxito:
[...] Então corte de árvores, corte de árvores são coisas pontuais, mas que acontecem muito e que é fácil de mapear a distorção do poder público que faz com que aquilo ali aconteça. Eu não sei se é uma coisa, o saneamento não, porque é um problemão estrutural, mas o aparecimento pontual dele acontece, mas ele não consegue ser combatido do jeito que a gente sabe combater. Tem uma outra coisa que pode ser possível que é um recorte de classe, que a gente não conhece o recorte de classe do DU, não do DUzão grande, mas do grupo mais assíduo, do grupo que leva as ações a cabo, porque muita coisa é levantada [...].
Outra questão demonstrada na fala do entrevistado é o corte de classe, representado pelo enunciado O DU é um movimento de pessoas com padrões culturais, políticos e econômicos semelhantes. Ou seja, como DU é formado por essas pessoas com características sociais, culturais e econômicas semelhantes (professores universitários, profissionais das áreas de arquitetura, audiovisual, meio ambiente, estudantes, entre outros), muitas vezes, determinados problemas urbanos, como esgoto a céu aberto ou falta de saneamento básico, não são problemas cotidianos para eles e, por isso, não apresentam confluência no grupo. Por ser um processo dinâmico, as pautas que ganham mais ou menos importância no grupo são contingenciais.
Com relação às lógicas de ação do grupo, podemos observar que, para atingir seus objetivos, o grupo utilizou diversas estratégias para alcançar públicos diferentes. Das mais lúdicas, culturais e populares até as mais formais e oficiais. Foram realizadas, nas ocupações, apresentações de grafitagem, grupos musicais, circo, oficinas, performances artísticas, piqueniques, rodas de diálogos, churrascos, exibições de filmes, troça carnavalescas, shows, bicicletadas, entre outros. E, ao mesmo tempo, o grupo realizava e impulsionava ações como palestras temáticas, free speech , reuniões estratégicas, mobilizações virtuais, divulgação nas redes sociais, cartas abertas, denúncias, petições on-line e audiências públicas. As estratégias mais comumente utilizadas pelo grupo foram denúncias ao ministério público, rede de informação pela internet e as ocupações de áreas estratégicas. O Entrevistado 4 (2016) esclarece:
[...] Sai jogando assim de você explorar as possibilidades que eles te dão de maneira tática, eu acho que tem um pragmatismo nisso aí que consome muita energia, claro, então assim é um problema quando você começa. Mas assim sempre se tentou dosar nesse sentido, sabia que, por exemplo, o Tribunal de Justiça é conservador e vai, né, maior parte das vezes né tentar reverter, vamos dizer assim . [...] mas você tinha um todo midiático comunicativo forte, o campo das ações de rua e o campos das ações jurídicas [...].
Mas o que gerou mais confluência e fez com o que o grupo ganhasse uma repercussão na mídia local e nacional e chamasse a atenção da classe política foram as estratégias das ocupações. O #OcupeEstelita é, claramente, um chamado à sociedade, como fica claro no pronunciamento antes do primeiro ocupe: “ O ato constitui-se da ocupação, por um dia, da área do Cais, com atividades abertas e promovendo o encontro pacífico entre os milhares de pessoas que estão se posicionando em debate e a favor de uma nova política urbana na cidade ”. Os enunciados O Ocupe Estelita dá voz aos excluídos, Ocupar o Estelita significa devolver a cidade ao povo e O DU pressiona o poder público a interagir com a sociedade civil podem ser identificados na fala que segue:
Uma das principais bases de nossas formulações é o reconhecimento de que vivemos em uma cidade socialmente segregada, cuja elite opera com base na produção do medo, do ódio e do afastamento entre as pessoas. Superar esse estado de coisas é um dos nossos objetivos e, por isso, na nossa prática cotidiana procuramos propiciar o encontro – entre pessoas e grupos e entre as pessoas e a cidade e seus diferentes espaços e territórios. Além disso, em consonância com outros movimentos em muitas partes de mundo, nossa ação política procura incorporar a alegria, a beleza, a arte, o bom humor e o amor, entendido de forma ampla, generosa e solidária. O OcupeEstelita é a ação que melhor descreve esse modo de atuar, mas não é a única. (Blog Du, 2013)
Na perspectiva do discurso que utilizamos aqui, o movimento DU é entendido como discursos que se articulam desde 2012 em torno da (re)significação dos sentidos da cidade com claro antagonismo ao discurso da cidade moderna e neoliberal desenvolvido no Recife.
Vale ressaltar o papel das novas mídias sociais como instrumentos para a transformação da cidade. O Movimento Direitos Urbanos utiliza as mídias alternativas como ferramenta para contestar o modelo urbanístico e político hegemônico e contesta a mídia local.
Entendemos que, no discurso analisado, as mídias alternativas foram ferramentas relevantes para os processos de mudança, de transformação, de câmbio. Os meios de comunicação alternativos, como blogs, sites de relacionamento e fóruns de discussão, entre outros, cumpriram um papel importante de informar a população e de provocar debates. Esses meios estão, cada vez mais, pautando as mídias tradicionais como a televisão, o jornalismo impresso e o rádio. Conforme Castells (2009) , o advento das redes de comunicação alternativa permite a circulação de enunciados que produzem novos sentidos e efeitos para a ação social e cidadania.
Um terreno comum entre todas as manifestações registradas na última década é o uso intenso das tecnologias da comunicação móveis, como divulgadoras e catalisadoras dos protestos. Redes sociais, como Facebook, Twitter, WhatsApp e outras redes de compartilhamento de dados, foram fundamentais no processo de disseminação das informações e articulações dos movimentos que lutam pela reforma urbana. Esses movimentos podem se constituir, como define Hardt e Negri (2001) , em uma massa social capaz de se opor ao discurso hegemônico, seja ele qual for. Essas tecnologias não são ferramentas, necessariamente progressistas, pois podem também disseminar discursos de ódio e fortalecer grupos extremistas e conservadores.
Toda tecnologia, por mais simples que seja, traz consigo seu acidente ( Virilio, 2005 ), ou seja, toda tecnologia inclui também uma dimensão negativa que, na atualidade, tem alcance global, devido ao sistema capitalista. Harvey (2009 , p. 6) alegou que "o capitalismo é necessariamente crescimento orientado, tecnologicamente dinâmico, e propenso a crises". A história conta-nos que nem sempre essa liberdade foi conquistada, pelo contrário, muitas vezes essas tecnologias possibilitam gigantescas desigualdades sociais. O problema não é somente o uso da tecnologia, mas antes o que “é usado por ela” ( Virilio, 1984 , p. 78). Por isso, é mais comum enfatizar apenas os supostos benefícios gerados pelas novas tecnologias, censurando-se suas consequências negativas.
Castells (2009) afirma ainda que toda dominação provocará um contrapoder. Os inumeráveis movimentos sociais urbanos que surgiram nas cidades de todo o mundo nos últimos anos podem ser considerados exemplos de resistência e contrapoder. Podemos afirmar que o meio ambiente urbano é um objeto de atenção cuja participação cidadã é a base do processo.
Conclusões
Demostramos o contexto político e social que contribuiu para a formação do DU como agente transformador e revolucionário e que gerou condições de possibilidade para introdução de um discurso alternativo de cidade que está em construção no Recife.
O processo de identificação dos sujeitos pelo discurso do DU é operacionalizado através das lógicas de ação e estratégias criadas pelo grupo Direitos Urbanos para articular seu discurso. As ocupações, eventos recreativos e culturais, convocação de audiências com a prefeitura do Recife e suas secretarias, denúncias ao Ministério Público de Pernambuco, debates e conversas com especialistas foram as estratégias políticas e sociais que permitiram a identificação dos sujeitos ao discurso.
Identificamos uma lógica que norteia o pensamento do grupo DU. O Direitos Urbanos constrói-se como como agente de transformação da realidade urbana. Essa fantasia move discursos que contemplam projeções sobre um futuro melhor, a partir da criação de uma nova organização social, de uma nova cidade. Nada mais é que o entendimento de que é possível mudar a cidade através da luta política.
A partir das discussões previas, é possível entender que o grupo DU foi pioneiro no uso das plataformas digitais para sua atuação e organização. Suas estratégias de conscientização e mobilização visam a criticar a ideia de cidade moderna e em especial os efeitos nocivos do modelo neoliberal de gestão do espaço público. Sua inovação no uso das tecnologias digitais arregimentando uma participação popular em defesa do direito à cidade foi algo que repercutiu não só no Brasil como também no exterior. Em 2014, o professor britânico David Harvey esteve no Brasil para o lançamento de seu livro Para entender o capital ( Harvey, 2013 ) e aproveitou para conhecer o movimento social urbano Ocupe Estelita, movimento simbiótico ao DU. O grupo surgiu em oposição ao projeto “Novo Recife” previamente mencionado. Os ativistas de ambas as denominações defendem um projeto alternativo para a área do cais José Estelita que leve em conta as características históricas e ambientais do bairro, além de participação popular no planejamento do espaço urbano.
Nem todos os movimentos sociais são revolucionários e transformadores, muitos querem conservar ou preservar o existente. Os que querem um novo modelo, forma, ou paradigma, são movidos pela alegoria da revolução. As utopias políticas têm, historicamente, se transformado em projetos e justificativas para a ação reformadora ou revolucionária. Por exemplo, o movimento operário é revolucionário por causa das relações sociais nas quais está envolvido, no seu antagonismo inevitável com o capital burguês. Tem um projeto futurista por lutar por uma nova organização do trabalho. Os novos movimentos sociais, no entanto, possuem outra dinâmica, principalmente os urbanos, e sua razão de existência remete não para um antagonismo inevitável e fixo, mas para uma oposição antagônica temporal e situacional. Sem dúvida, as lutas por empoderamento feminino, pela preservação ambiental, pelos direitos de minorias, entre outros exemplos, não podem se concretizar sem a superação de um paradigma hegemônico e sua transformação para um novo paradigma. Apesar da fluidez, os novos movimentos sociais conservam o espírito utópico de revolução. O Movimento Social Direitos Urbanos é exemplo disso: busca mudar a cidade, a negação da velha sociedade em favor da nova.
Após oito anos de intensos debates, ações públicas e várias manifestações em defesa de uma cidade mais humana e voltada para as pessoas, o DU deixa como legado uma articulação política que, se não conseguiu impedir por completo a edificação do projeto Novo Recife, certamente retardou a sua implantação, forçou seu replanejamento várias vezes, comprometeu o retorno sobre o investimento inicialmente previsto para baixo e desvelou as entranhas do poder municipal comprometido com a ideologia neoliberal, deixando o interesse da população em segundo plano. O DU deixa uma herança de resistência e a consciência de que “Uma nova cidade é possível!”.
Referências
- ALGUACIL, J. (2000). Ciudad, ciudadanía y democracia urbana. Documentación Social . Madrid. n. 119, pp. 157-178.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Dez 2020 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2021
Histórico
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Recebido
10 Jun 2020 -
Aceito
2 Ago 2020