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Gramáticas do desenvolvimento. Da economia informal aos assentamentos informais

Resumo

Este artigo busca aprofundar a discussão do termo informal e de sua trajetória. Por meio de uma genealogia baseada em pesquisas cientométricas e análises documentais, observa-se seu surgimento na economia, em 1960, sendo amplamente difundido até o final dos anos 1990, quando é ressignificado como tipologia urbanística associada às favelas. Nas conferências Habitat I, II e III, revelam-se alinhamentos e inflexões entre agendas internacionais de direito difuso e estratégias de urbanização de assentamentos precários. Constatou-se o momento em que se inicia o uso do termo assentamento informal no Brasil, sua generalidade, sua imprecisão e seus aspectos desclassificatórios que a adjetivação possibilita. Comentários finais apontam revisões necessárias nas políticas públicas e nas pesquisas acadêmicas, buscando maior precisão nos conceitos e menor estigmatização dos territórios.

economia informal; assentamento informal; núcleo urbano informal; Ministério das Cidades; UN-Habitat

Abstract

This article seeks to deepen the discussion of the term ‘informal’ and its history. Through a genealogy based on scientometric and documental analyses, we observed that it emerged in the field of economics in 1960 and was widely disseminated until the late 1990s, when it was re-signified as an urban typology associated with slums. The Habitat I, II, and III conferences revealed alignments and inflections between international agendas of diffuse rights and urbanization strategies for precarious settlements. We verified the moment when the term ‘informal settlement’ started to be used in Brazil, its generality, imprecision, and the disqualifying aspects that its use as an adjective enables. The final comments point to necessary revisions in public policies and academic research to obtain greater precision in concepts and reduce the stigmatization of territories.

informal economy; informal settlement; informal urban nucleus; Ministry of Cities; UN- -Habitat

Informal, termo em ampla difusão

Nos últimos 50 anos, a ideia de informal e sua derivação adjetiva acrescida do sufixo “dade” – informalidade – vem sendo usada nas mais diversas áreas das ciências humanas e nos debates acerca do desenvolvimento em todas as regiões do mundo e de maneiras diversas.

Comumente, a noção de informal conota características diversas. Por um lado, podem ser positivas: relações próximas e íntimas; a ideia de imaginação aplicada ao desenvolvimento; formas e meios alternativos de solução de problemas; tecnologias inovadoras ou de baixo custo, etc. Por outro lado, informal também conota características negativas e perniciosas para o desenvolvimento e para as relações sociais: soluções não seguras, de baixa qualidade; tudo aquilo que vai contra padrões, normas, planos, planejamentos – e, por que não, dogmas – pode receber o adjetivo de informal.

Parte-se, aqui, da premissa segundo a qual a ampla difusão do termo1 1 Nesses três primeiros parágrafos, utilizam-se três diferentes formas para se referir ao informal: como ideia, como noção e como termo. Nesta pesquisa, entende-se que a forma mais ampla e desprovida de valor é o “termo”. Como ideia ou noção, refere-se ao uso feito do termo, nesse sentido, na maior parcela das vezes pejorativo. Não se trata aqui do informal como conceito, pois seu uso não é substantivo, mas, sim, sempre de maneira adjetiva, logo, vinculada a um conceito em si. informal e de seus derivativos se deva, por um lado, à sua capacidade explicativa, por ser capaz de retratar fenômenos e ideias ao longo do tempo. Contudo, presume-se, também, que sua difusão não está associada ao rigor das análises científicas, mas à capacidade de reunir fenômenos e ideias múltiplos. É sua polissemia vazia de rigor e de critérios científicos que permite a representação de diversas práticas e fenômenos econômicos e socioespaciais ao longo do tempo.

Entretanto, definir fenômenos como simplesmente informais, fora de regras, padrões, características e critérios ordenados e predefinidos, pode levar a caminhos metodológicos reducionistas ou adjetivações morais (des)classificatórias. A partir das análises realizadas, busca-se demonstrar que a definição de algo como informal consiste na designação pela negativa, ou seja, pelo que não é, esvaziando possíveis e necessárias conceituações, abrindo espaço para ideários negativos relacionados à pobreza, ao antiquado, ao atrasado, ao estado de exceção e, consequentemente, à negação de direitos e padrões relacionados ao desenvolvimento, inclusive a negação do direito à cidade no contexto urbano (Roy, 2005ROY, A. (2005). Urban informality: Toward an epistemology of planning. Journal of the american planning association, v. 71, n. 2, pp. 147-158.).

O objetivo deste artigo é discutir o termo informal através de sua genealogia, buscando contextualizar conceptualizações, caracterizações ou classificações que expliquem atributos ou qualidades específicas de fenômenos e práticas. Idealizações acerca do informal vinculadas a práticas contribuem para a formação de lógicas dualistas sustentadas em explicações formatadas a partir de realidades exógenas tomadas como o padrão, o regular, o normal, o formal. Busca-se jogar luz sobre elementos que ainda subsidiam visões dualistas, como de cidade formal e informal, cidade dividida, morro e asfalto, etc. e levantar os possíveis significados da introdução do termo “assentamento informal” na produção acadêmica e nas políticas públicas brasileiras.

O escopo desta contribuição está delimitado pelo ideário das agências internacionais de fomento ao desenvolvimento, especificamente desenvolvimento urbano, com especial atenção às políticas de desenvolvimento “propostas” às nações do Sul e as particularidades referentes à assimilação e ao rebatimento dessas políticas no caso brasileiro.

No atual contexto de neoliberalização e financeirização das cidades, das sociedades e propriamente da vida, faz-se relevante discutir, no campo científico, como a construção de discursos internacionais, subsidiados pela ciência – ou seja, com algum grau de cientificismo e que passam a compor acordos, agendas, normativos e diretrizes para investimentos e financiamentos –, tem contribuído para difundir ideários por vezes radicalmente opostos ao direito que se arroga, particularmente quanto ao direito à cidade e, especificamente, nos termos de uma nova agenda urbana. No contexto atual de retomada e de reconstrução da agenda urbana brasileira, esta reflexão torna-se premente e ainda mais relevante.

Bases para o surgimento do termo informal

Durante as décadas de 1950 e 1960, a comunidade acadêmica de países do Norte Global e seus parceiros no Sul, inclusive o Brasil, compartilhavam o entendimento segundo o qual os países pobres estariam em uma transição: da economia tradicional, lenta e atrasada, para o paradigma de desenvolvimento e progresso produzido no Ocidente.

Furtado (1970)FURTADO, C. (1970). Formação econômica da América Latina. Rio de Janeiro, Lia Editor., no clássico Formação econômica da América Latina (AL), aponta as contradições desse processo. Em sua análise, a transposição para a AL dos avanços tecnológicos de sociedades altamente complexas daria origem a um novo dualismo entre unidades produtivas de tecnologia moderna e altamente capitalizadas e setores produtivos de técnicas tradicionais. “Como esse progresso tecnológico significa principalmente elevação da dotação de capital por pessoa empregada” (ibid., p. 355), sua assimilação poderia provocar distorções estruturais, a marginalização, fenômeno mais expressivo nas zonas urbanas, onde as condições precárias de habitação se generalizariam (ibid., pp. 353-356).

Santos (1975)SANTOS, M. (1975). L'espace partagé: les deux circuits de l'économie urbaine dês pays sous- développés. Paris, Génin., em L'espace partagé, um clássico do pensamento crítico a partir do Terceiro Mundo, reconstitui as diversas abordagens conceituais sobre a urbanização nos países subdesenvolvidos durante os anos 1960 e conclui que, de maneira geral, tais abordagens eram “adjetivas”.2 2 É importante ressaltar que, enquanto se adjetiva, opera-se também um sistema moral (des)classificatório. Curiosamente, a adjetivação carrega uma carga moral que se esmera em desqualificar aquilo que não corresponde ao ideal de civilidade ocidental. Conhecimentos prévios foram aplicados “adjetivando” conceitos, criando dualismos entre os desafios do desenvolvimento periférico em relação aos padrões modernos e avançados do Ocidente.3 3 Essa linha de pensamento foi criticada por diversos autores (ILO, 2013; Santos, 1985; Hart, 2010) que buscaram avançar no entendimento das lógicas próprias do subdesenvolvimento. Além disso, é endossada a crítica a uma perspectiva dualista que, ao apresentar noções estanques de desenvolvimento e de subdesenvolvimento, parece ignorar a lógica desigual e combinada do capitalismo (Smith, 2014), além de contribuir com uma abordagem com bases morais que apresenta aquilo que é desenvolvido como referência virtuosa e formal, enquanto o subdesenvolvimento estaria relacionado a concepções negativas, assentadas na referência ao informal.

Cidades pré-industriais, cidades parasitas, urbanização primária, urbanização madura e tantos outros atributos – adjetivos – “adequam” as lógicas do Sul a uma apreensão linear e, em certa medida, reducionista, no entendimento de Santos (1985)SANTOS, M. (1985). Spatial dialectics: the two circuits of urban economy in underveloped countries". Antipode, v. 17, n. 2-3, pp. 127-135. DOI: 10.1111/j.1467-8330.1985.tb00341.x.
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, do modelo histórico de desenvolvimento em etapas que Rostow (1959)ROSTOW, W. W. (1959). The stages of economic growth. The Economic History Review, v. 12, n. 1, pp. 1-16. classificou como: 1) sociedade tradicional; 2) precondições do arranque; 3) arranque; 4) maturidade; e 5) consumo em massa (Rostow 1959ROSTOW, W. W. (1959). The stages of economic growth. The Economic History Review, v. 12, n. 1, pp. 1-16.; Santos 1985SANTOS, M. (1985). Spatial dialectics: the two circuits of urban economy in underveloped countries". Antipode, v. 17, n. 2-3, pp. 127-135. DOI: 10.1111/j.1467-8330.1985.tb00341.x.
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; Fisher 1993FISHER, S. (1993). "Economic development: Rostow, Marx, and Durkheim. Journal of Developing Societies, v. IX, n. 1, p. 53.). Essas etapas do desenvolvimento surgem como uma forma de relacionar a racionalidade econômica às forças políticas e sociais, segundo momentos históricos específicos.

No entanto, uma das críticas feita a essa generalização é que Rostow (1959)ROSTOW, W. W. (1959). The stages of economic growth. The Economic History Review, v. 12, n. 1, pp. 1-16. não teria dado a devida importância às forças orientadoras dos que, efetivamente, detêm os meios de produção (Fisher, 1993FISHER, S. (1993). "Economic development: Rostow, Marx, and Durkheim. Journal of Developing Societies, v. IX, n. 1, p. 53., p. 58), usando-as de maneira diversa ao planejamento do desenvolvimento; e também pelo fato de essa sequência linear ser “naturalmente perturbada” por contradições políticas e sociais não previsíveis no modelo e que aceleram o percurso linear da história.

Citar a lógica de Rostow (1959)ROSTOW, W. W. (1959). The stages of economic growth. The Economic History Review, v. 12, n. 1, pp. 1-16. é relevante, visto que, nas décadas de 1960 e 1970, também se evidenciavam saltos dessas etapas promovidos pela industrialização periférica. Como se pode apreender da análise de Furtado (1970)FURTADO, C. (1970). Formação econômica da América Latina. Rio de Janeiro, Lia Editor. ou de Santos (1985)SANTOS, M. (1985). Spatial dialectics: the two circuits of urban economy in underveloped countries". Antipode, v. 17, n. 2-3, pp. 127-135. DOI: 10.1111/j.1467-8330.1985.tb00341.x.
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, esses saltos impactavam positivamente parcelas reduzidas da sociedade, aprofundando desigualdades, estigmatizando modos de vida e marginalizando grupos tradicionais. Mais adiante se verá como o Relatório do Quênia (ILO, 1972ILO - International Labour Office (1972). Employment, incomes and equality: a strategy for increasing productive employment in Kenya. Report of an Inter-Agency Team Financed by The United Nations Development Programme and Organized by The International Labour Office. Geneva, International Labour Office.) aponta esse fenômeno ao propor o termo “setor informal”.

Parece claro que, ao aplicar variáveis, postulados acadêmicos e diretrizes políticas importados dos países desenvolvidos, a orientação da industrialização e da urbanização do Sul entregava a apenas uma pequena parcela de seus habitantes os benefícios do desenvolvimento. Na década de 1970, a pobreza e o desemprego persistiam, apesar dos esforços para emular modelos de sucesso aplicados na reconstrução da Europa e do Japão nos anos 1950 e 1960.

É nesse contexto, tanto dos modelos teóricos quanto das políticas públicas, marcado por dualismos e adjetivações, seguindo uma linha evolutiva quase natural de transformações, que pesquisadores críticos e a única agência da Organização das Nações Unidas (ONU) formada não apenas por Estados-Nações, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), buscaram, cada um ao seu modo, tempo e lugar, inovar no entendimento das lógicas próprias do desenvolvimento dos países pobres.

O setor informal nas agendas internacionais

Certos autores atribuem ao economista holandês Julius Herman Boeke4 4 Em sua pesquisa sobre o dualismo da economia na Indonésia, Economics and economic policy of dual societies, as exemplified by Indonesia, publicada em 1953. e ao economista antilhano William Arthur Lewis5 5 Economista negro antilhano-britânico, vencedor do Nobel de Economia (1979). Para ele, o “informal” demarca o exército de reserva de mão de obra que seria, paulatinamente, absorvido ao modo de produção “formal”. os primeiros usos do termo economia informal (Gonçalves, Bautès e Maneiro, 2018). Ambos abordam de maneira dualista as economias de ex-colônias na África e sugerem o caráter transitório das atividades informais, que seriam absorvidas conforme o avanço do capitalismo. Outros autores, como Boanada-Fuchs e Fuchs (2018)BOANADA-FUCHS, A.; FUCHS, V. B. (2018). Towards a taxonomic understanding of Informality. International Development Planning Review, v. 40, n. 4, pp. 397-420. DOI: 10.3828/idpr.2018.23.
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e Hawkins (2020)HAWKINS, D. (2020). "Informality". In: TITTOR, A.; HAWKINS, D.; ROHLAND, E. (orgs.). The routledge handbook to the political economy and governance of the Americas. Londres, Routledge., creditam a formulação do termo “setor informal” a Keith Hart, antropólogo britânico que publicou estudos sobre “subemprego” em Accra, Gana, onde descreve formas criativas de um grupo de imigrantes rurais, os Frafras, para assegurar a própria subsistência. Para ele, o setor informal opera atividades residuais, e a distinção entre formal e informal é relacionada, basicamente, à renda auferida e à autonomia do empregado, sendo a chave explicativa o grau de racionalização do trabalho (Hart, 1973, p. 68). O autor destaca, também, as relações com a ilegalidade, muitas vezes, legitimadas e moralmente aceitas (ibid., p. 74), e sugere classificações correspondentes, como “setor urbano de baixa produtividade”, “exército de reserva de desempregados” ou “setores urbanos tradicionais”.

Desde esses usos inaugurais do termo, o “informal” evocava práticas exteriores ou marginais ao capitalismo “desenvolvido” e à regulação do Estado. Esse quadro conferiu ao termo vida longa nos estudos de diversas matizes e orientações político-intelectuais, sendo incorporado pelas teorias da marginalidade6 6 A ideia de marginalidade foi trabalhada nas análises a respeito do capitalismo latino-americano do tipo dependente nas décadas de 1960 e 1970. Dois autores se destacam para a análise aqui empreendida: o brasileiro Lúcio Kowarick e o peruano Aníbal Quijano. Estar à margem não significa estar fora do modelo capitalista e dos seus processos de desenvolvimento. Ao contrário, as populações à margem, no modo de produção capitalista dependente, lá estão como condição de existência do modelo baseado na superexploração, na segregação, na escassez produzida, dentre outras manifestações, formando um exército de reserva (marginalidade funcional) ou massas marginais: pequenos artesãos, trabalhadores rurais não assalariados, trabalhadores ocasionais e toda uma série de formas de trabalho ditas não formais. Cabe destacar que a ideia de marginalidade ainda é funcional na interpretação das desigualdades, como quando se trata de desempregados estruturais, ou nem-nem (nem-trabalha, nem-estuda) ou, ainda, poderíamos sugerir o uso desse conceito para o entendimento de movimentos de urgência, ou de sobrevivência, que se avolumam diante das condições sociais miseráveis de milhares de moradores em centros urbanos degradados, com aumento da população de rua, retorno da fome, etc. e do subdesenvolvimento na AL.

No mesmo período, buscando entender por que os esforços das agências internacionais, sobretudo os focados na geração de emprego, não surtiram os efeitos esperados, a OIT criou, em 1970, o Departamento de Promoção e Planejamento do Emprego, com a missão de rever o modelo de suas cooperações técnicas, agregando pesquisadores e conhecimentos locais e multidisciplinares (Bangasser, 2000BANGASSER, P. E. (2000). The ILO and the informal sector: an institutional history. Geneva, International Labour Organization.).

O novo modelo de missão, as “Missões Compreensivas de Emprego”, produziu diversos relatórios nos anos 1970 e 1980, com destaque para o Relatório do Quênia (ILO, 1972ILO - International Labour Office (1972). Employment, incomes and equality: a strategy for increasing productive employment in Kenya. Report of an Inter-Agency Team Financed by The United Nations Development Programme and Organized by The International Labour Office. Geneva, International Labour Office.), que institucionalizou internacionalmente uma realidade tida como particular aos países do Terceiro Mundo, o “setor informal” da economia, sua relação com os setores fomentados pelas políticas multilaterais de desenvolvimento e sua relevância na dinâmica e modernização econômica. As principais características do setor informal da economia e de suas atividades, como definido no Relatório (ibid.), estão relacionadas à facilidade de iniciar uma função ou atividade, à dependência dos recursos locais, à predominância de empreendimentos familiares, à pequena escala de operação, ao trabalho intensivo, ao uso e desenvolvimento de tecnologias adaptadas, às capacidades adquiridas fora do sistema formal de ensino e à operação em um mercado desregulado (segundo o entendimento do Estado) e altamente competitivo.

Contudo, o Relatório do Quênia revela, já em seu início, paradoxos no uso do termo informal e alguns riscos de sua apropriação pejorativa. Segundo os seus autores, o setor informal opera sob severas restrições e dificuldades, consequência de uma visão pejorativa de sua natureza, existindo um perigo eminente de que essa visão se transforme em uma profecia autorrealizada (ibid., pp. 5-6), algo que se verifica, que se concretizou.

A superação de dualismos simplificadores e, por vezes, reducionistas, foi amplamente debatida no “mundo do trabalho”7 7 Em seu sentido ontológico, a categoria “mundo do trabalho” engloba a práxis humana, o homem produzindo suas relações de existência na transformação da natureza, não cabendo qualquer discussão sobre formal ou informal. Entende-se, por exemplo, que o sobretrabalho relacionado aos processos de autoconstrução da habitação estaria englobado nesse entendimento ontológico, o que limitaria ainda mais a transposição da informalidade do trabalho para a informalidade do produto resultante: a casa, o assentamento, a cidade. Esse debate será retomado adiante. durante décadas, a partir de elementos que já haviam sido apontados no Relatório, que criticava visões técnicas focadas apenas nos efeitos positivos da ocidentalização da economia dos países pobres (ibid.). Tais visões propunham a concentração de incentivos em certos setores modernos da economia para reduzir o custo do capital em relação ao custo do trabalho (benefícios de crédito, taxas, licenças, revisão de barreiras econômicas, etc.).

A economia formal, objeto das políticas de fomento internacional, seria composta pelas maiores empresas, utilizando mais tecnologias, com maiores salários, lucros, investidores internacionais e, inclusive, em conformidade com os padrões das “leis” internacionais do trabalho (Bangasser, 2000BANGASSER, P. E. (2000). The ILO and the informal sector: an institutional history. Geneva, International Labour Organization.). Já a economia informal, ignorada pelas ações do Estado, teria menor acesso ao crédito e não despertaria interesse de capitais internacionais, ainda que pudesse exercer atividades similares, mas, comumente, em um contexto de ilegalidade, irregularidade ou não conformidade com as próprias definições de agências e governos, resultando, paradoxalmente, no aprofundamento das desigualdades.

Ou seja, a concentração de incentivos não apenas reforçaria desigualdades, mas também promoveria a multiplicação do setor informal, ou da marginalização, como postulado por Furtado (1970)FURTADO, C. (1970). Formação econômica da América Latina. Rio de Janeiro, Lia Editor.. Muitas vezes também moderno, vale ressaltar, o setor informal assimilaria inovações periféricas à difusão dos investimentos internacionais e seria responsável por complementar etapas de complexas cadeias produtivas. Essa complementaridade aconteceria de maneira “improvisada”, paralelamente às formalidades e às regulações, gerando empregos mal remunerados, sem garantias e direitos.8 8 Em debate com um dos amigos que leram este artigo, aos quais agradeço profundamente, levantou-se a questão sobre a possiblidade, naquele momento, de uma denominação alternativa, algo como setor complementar ou subsidiário, revelando um paralelo entre setores e, quem sabe, minimizando usos pejorativos. Há que se lembrar que, no mesmo período, Santos (1975) propunha algo nesse sentido, os circuitos espaciais da economia urbana. A título de especulação, diria que as formulações originais tinham, efetivamente, a intenção de separar os circuitos, seja apenas para que se jogasse luz sobre um circuito negligenciado, seja no sentido de extingui-lo por assimilação ou erradicação.

Dessa maneira, sob a égide do subdesenvolvimento, a economia informal, através da redução do custo do trabalho, logo, a baixo custo, provê os meios para a complementação e a expansão da modernização. Essa modernização, seletiva e incompleta, que combina “formal” e “informal”, sustenta-se na pobreza e no aprofundamento das desigualdades, que são causas e não consequências, como também ratificado várias vezes no Relatório do Quênia, das atividades relacionadas ao trabalho e à economia informal.

Em certa medida, ao classificar como informais práticas e modos não correspondentes aos padrões dos países centrais, seria possível afirmar que essa imputação faria parte de um processo geopolítico, como explica Hart (2010)HART, G. (2010). D/Developments after the meltdown. Antipode, v. 41, pp. 117-41. DOI: 10.1111/j.1467-8330.2009.00719.x.
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. No pós-Segunda Guerra Mundial, as políticas de “D/desenvolvimento” foram utilizadas pelos “impérios” europeus em suas estratégias de descolonização (ibid., p. 121).9 9 Para Hart (2010), nos países subdesenvolvidos, foram aplicadas as estratégias globais de Desenvolvimento, com “D” maiúsculo. Elaboradas, coordenadas e/ou apoiadas por agências internacionais, em parceria com os estados nacionais, o Desenvolvimento, como instrumento da geopolítica mundial, deve ser compreendido em termos do exercício do poder em múltiplas arenas interconectadas, inseparavelmente ligadas às dinâmicas sociais espacialmente desiguais do desenvolvimento capitalista (ibid., p. 122). Esses instrumentos da geopolítica são orientados e coordenados pelos estudos e programas das agências internacionais e combinados com o desenvolvimento local, com “d” minúsculo, suas prioridades e estratégias. À medida que os países centrais se reconstruíam e se desenvolviam, passaram, também, a agir determinando o processo de (sub)desenvolvimento das antigas colônias, aprofundando a “doutrina de tutela”10 10 Sobre doctrine of trusteeship, conforme citada por Lewis e Hart, ver Cowen e Shenton (1996). como o principal meio de relação com esses países (Lewis, 2019LEWIS, D. (2019). "Big D" and "little d": two types of twenty-first century development? Third World Quarterly, v. 40, n. 11, pp. 1957-1975., p. 1959). Para autores como Lewis, esse entendimento continua a organizar a teoria e a prática contemporâneas do desenvolvimento.

Ressalta-se que, em cada realidade específica, em países ou em regiões, as regulações para a legitimação do trabalho e dos seus impactos podem ser tanto “ignoradas” quanto utilizadas como “trunfos” políticos e econômicos, reforçando a instabilidade e a subordinação das atividades e dos trabalhadores no designado “setor informal da economia”. Isso ocorre, também, na regulação de outros setores e circuitos que ficam à mercê da predefinição do que viria a ser o formal, o normal, o padrão, o regular. Inclusive, vale reforçar, no circuito da produção de assentamentos humanos.

Paradoxos da economia urbana informal

Desde o seu surgimento, particularmente nos trabalhos da OIT, a ideia de setor informal esteve diretamente associada à economia urbana. Buscavam-se respostas para uma situação complexa, que envolvia o esforço institucional para a geração de emprego e renda por meio da receita modernização/urbanização, e a resultante persistência do desemprego, da baixa renda, da periferização e da precarização da vida nas cidades dos países pobres.

A chamada economia urbana informal se expandiu com a migração rural, onde se concentra a maior parcela dos pobres do mundo ainda hoje. No meio rural, a maioria desses trabalhadores realizava e realiza atividades fora dos limites definidos como economia formal (ILO, 2002ILO - International Labour Office (2002). Decent work and the informal economy. Conference. 90th session. Geneva, International Labour Office., p. 103). Entretanto, no urbano, a representação dessa distinção seria mais clara, fácil e objetiva, visto, obviamente, ter sido e seguir sendo “normatizada”.

Os (sub)setores informais da economia, associados ao processo modernização/urbanização, ofereciam alternativas econômicas, além de melhorias no acesso à saúde e à educação para migrantes rurais, pobres e menos qualificados se instalarem nas cidades, contribuindo para a formação de slums e periferias precárias em Nairóbi e em Mombaça (ibid., p. 18), da mesma forma que nas grandes cidades latino-americanas.

Segundo o Relatório seminal da OIT, esse “setor de baixa renda” seria literal e figurativamente periférico. Literalmente, o lugar dos pobres está além das fronteiras da zona urbana rica, planejada e regulada – formalmente instituída – onde os pobres prestam serviços “informais” a baixo custo. Figurativamente, é periférico, pois possui apenas acesso fortuito e restrito às fontes de riqueza (ILO, 1972ILO - International Labour Office (1972). Employment, incomes and equality: a strategy for increasing productive employment in Kenya. Report of an Inter-Agency Team Financed by The United Nations Development Programme and Organized by The International Labour Office. Geneva, International Labour Office., p. 503).11 11 ILO (1972, p. 503): “This low-income sector is peripheral both literally and figuratively. In Nairobi it sprang out, and continue to grow, just outside the borders of the wealthy urban zone, to supply goods and services to the fortunate few inside that zone and to its own population. Figuratively, it is peripheral in that it has only fortuitous and restricted access to the sources of wealthy”.

É relevante destacar que o Relatório do Quênia não apresenta o setor informal como um problema para o desenvolvimento, ao contrário, identifica-o como fonte de crescimento baseada em práticas e talentos locais moldados a baixo custo, com grande capacidade de inovação.

Em certa medida, essas ideias eram similares àquelas que vinham sendo desenvolvidas por Milton Santos. Contemporâneo de diversos autores aqui já apontados, Santos (1975), em suas análises e proposições, não usa os termos formal e informal, buscando superar dualismos simplificadores e adjetivações. Ao propor circuitos espaciais da economia urbana nos países subdesenvolvidos, ele revela complementaridades, conexões e disputas, logo, a interação entre modelos produtivos diversos e semelhantes, com áreas de atuação concorrentes e complementares na disputa por mercados e na produção e apropriação do espaço (ibid.). Nesse sentido, sua teoria dá um passo além ao associar formas de produção e de divisão do trabalho aos usos do espaço geográfico, e não apenas à localização periférica, como apontado no Relatório do Quênia.

Santos (1985SANTOS, M. (1985). Spatial dialectics: the two circuits of urban economy in underveloped countries". Antipode, v. 17, n. 2-3, pp. 127-135. DOI: 10.1111/j.1467-8330.1985.tb00341.x.
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, p. 132) parte da ideia de que a produção de mercadorias é concentrada e que seu consumo é difuso, identificando que cada cidade tem na realidade duas áreas de influência, com dimensões distintas, correspondentes a cada circuito da economia, o superior e o inferior.

Nas grandes cidades, o limite do mercado abrangido pelo circuito inferior tenderia a coincidir com os limites da aglomeração. O espaço intraurbano do circuito inferior é contínuo, podendo ser diferenciado em um espaço central do circuito inferior e um espaço residencial do circuito inferior (Santos, 1975SANTOS, M. (1975). L'espace partagé: les deux circuits de l'économie urbaine dês pays sous- développés. Paris, Génin., p. 350), bairros dormitórios, periferias autoconstruídas, vilas, assentamentos precários, favelas e outras distintas formas de expansão urbana que, em comum, guardam dinâmicas econômicas e sociais, dimensões políticas e modos de vida.

Santos (1996)SANTOS, M. (1996). A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo, Hucitec. revela, ainda, que a economia urbana se vale de efeitos de complementaridade, espalhando por todo o território sua racionalidade através de relações de solidariedade e competição que ocorrem entre os circuitos da economia.

Já o circuito superior, que se concentra nas maiores cidades, muitas vezes como ilhas de alta urbanização, espaços da globalização, enclaves tecnológicos conectados em rede, expandiria sua influência regionalmente, fazendo uso dos sistemas modernos de circulação. O circuito superior é resultado direto da modernização tecnológica, e a sua área de mercado é definida pela fluidez do território.

Nas cidades menores, caberia ao circuito inferior difundir a racionalidade econômica urbana em áreas ainda mais extensas do território não cobertas pelos sistemas técnico e normativos próprios do circuito superior: falta de sistemas modernos de circulação e de tecnologias adequadas ou desinteresse do poder econômico.

Essa associação e as complementarIdades e racionalidades que organizam os dois circuitos da economia urbana foram, mais tarde, sintetizadas por Santos (1996)SANTOS, M. (1996). A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo, Hucitec. no termo “flexibilidade tropical”, sendo as inovações surgidas desta flexibilidade respostas economicamente efetivas à rigidez normativa, ao formal, expandindo padrões e arenas de consumo e viabilizando saltos das etapas de Rostow (1959)ROSTOW, W. W. (1959). The stages of economic growth. The Economic History Review, v. 12, n. 1, pp. 1-16..12 12 Exemplos podem ser encontrados no estudo da pirataria e do desenvolvimento baseado na cópia, como foi o modelo chinês. Sobre pirataria, circuitos econômicos e flexibilidade tropical, ver Tozi (2013). Sobre o modelo de desenvolvimento chinês, ver Chen e Lu (2016), Garnaut e World Bank (2005), Hsing (2010) e Zi (2019).

Devido a esses possíveis saltos de etapas, sustentava-se o necessário apoio ao setor informal nos moldes dos apoios recebidos por outros setores da economia, sendo que os riscos envolvidos nesse apoio seriam similares aos envolvidos no apoio dado às demais empresas, destacava o Relatório do Quênia (ILO, 1972ILO - International Labour Office (1972). Employment, incomes and equality: a strategy for increasing productive employment in Kenya. Report of an Inter-Agency Team Financed by The United Nations Development Programme and Organized by The International Labour Office. Geneva, International Labour Office., p. 505), revelando, desde então, que a formalização, segundo os preceitos das agências internacionais, não seria condição para garantias e créditos.13 13 Ressalta-se a existência de mecanismos particulares de crédito, iniciativas que se desenvolveram e hoje florescem, por exemplo, nos bancos de crédito comunitários, inclusive com moedas próprias, como bem exemplificado no livro organizado por Silva (2020) que traz uma série de capítulos sobre economia solidária, tratando a ideia de moeda social, bem como o uso prático desta que se poderia chamar “moeda alternativa” (Silva, 2020).

Da mesma forma, Hart (1973)HART, K. (1973). Informal income opportunities and urban employment in Ghana. The Journal of Modern African Studies, v. 11, n. 1, pp. 61-89. enfrentou criticamente o dualismo formal e informal, indicando uma necessária superação de uma visão keynesiana segundo a qual a criação de empregos ditos formais era vista como solução única para o desemprego. Hart apresenta uma questão de aspecto moral, sugerindo políticas que visassem à redução da participação do setor informal apenas em atividades socialmente desaprovadas ou naquelas cuja produtividade marginal seria muito baixa (ibid., p. 82).

A OIT enfrentou esses e outros paradoxos em 1991, quando da 78ª Conferência em que debateu o “dilema do setor informal”. A questão colocada estava entre fomentar o setor informal como provedor de emprego e de renda, incluindo a revisão de regulações, e expandir regulamentações visando ao aumento da proteção social, provavelmente reduzindo a capacidade das economias em gerar empregos.

As discussões enfatizaram que o dilema deveria ser resolvido “atacando as causas subjacentes e não apenas os sintomas” por meio de “uma estratégia abrangente e multifacetada” (ILO, 2002ILO - International Labour Office (2002). Decent work and the informal economy. Conference. 90th session. Geneva, International Labour Office., p. 1) que envolveria desde as estratégias de crescimento e extensão da proteção social, até a revisão de regulações, tendo como preocupação prioritária temas relacionados à justiça social, como equidade de gênero, raça, etnias, idade, etc. (ILO, 2013ILO - International Labour Office (2013). The informal economy and decent work: a policy resource guide supporting transitions to formality. Employment Policy Department. Geneva, International Labour Office.). No relatório Trabalho Decente (ILO, 1999ILO - International Labour Office (1999). Decent Work, 87th session. Report of the Director-General. Geneva, International Labour Office.), o termo informal dá lugar à informalização das relações de trabalho em todo mundo.

A nova escala dos problemas, impactando também o Norte, em parte resultante das, à época, chamadas novas tecnologias da informação e comunicação (NTIC), apontou para a superação da relação direta entre informal, pobreza urbana e subdesenvolvimento. O “aburguesamento” (ILO, 2002ILO - International Labour Office (2002). Decent work and the informal economy. Conference. 90th session. Geneva, International Labour Office., p. 4) da economia informal coincide com a convergência das agendas de direitos das demais agências do sistema ONU em busca de uma globalização com justiça social, como retratada na Declaração e nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODM (United Nations, 2000UNITED NATIONS (2000). Millennium Declaration. Declaration. Nova York, United Nations.). Inclui-se também, nessa visão alargada, a melhoria das condições de moradia e de vida nas cidades.

Enfim, o termo economia urbana informal, derivado do termo inicialmente cunhado “setor informal” ou “subsetor informal” (ILO, 1972ILO - International Labour Office (1972). Employment, incomes and equality: a strategy for increasing productive employment in Kenya. Report of an Inter-Agency Team Financed by The United Nations Development Programme and Organized by The International Labour Office. Geneva, International Labour Office.) da economia, refere-se às atividades econômicas exercidas no espaço urbano em contraposição às atividades exercidas no espaço rural. No urbano, entendimentos múltiplos da informalidade são representados com maior facilidade, ou, ao menos, são objeto de maiores interesses, chegando ao paradoxo histórico do aburguesamento do informal, passando por imprecisões como produção informal do espaço, cidade informal (Brant, 2009BRANT, I. C. C. (2009). A cidade ideal e uma alternativa de ocupação para as favelas. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v. 16 n. 18, pp. 91-103.), assentamentos informais, ou mesmo “núcleos urbanos informais”.

Dito isto, e seguindo a genealogia do termo informal, suspeita-se que seu largo uso (polissêmico e acrítico) em pesquisas e políticas de desenvolvimento, durante mais de 50 anos, explique sua transposição acrítica de um processo econômico para o seu uso relacionado às formas urbanas. Mas por meio de quais conectores? Quais são as intenções políticas de associar, por exemplo, favelas e uma variedade de assentamentos pobres a uma tipologia urbana universal chamada assentamento informal?

Importante contribuição para a superação de perspectivas dualistas foi dada por Magalhães (2012)MAGALHÃES, A. F. (2012). O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro: conclusões, hipóteses e questões oriundas de uma pesquisa. Cadernos Metrópole. São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413. ao analisar o direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro. Os dados da sua pesquisa reforçam teses da existência de “um contínuo e conflituoso processo de diálogo” (ibid., p. 397), em seus termos, entre o direito do Estado e o direito da favela. Magalhães rechaça ideias como direito alternativo, direito paralelo ou termos que deem a impressão de uma ordem em déficit, o que excluiria a realidade de uma efetiva ordem construída no embate, suas complementariedades, etc., corroborando com o debate aqui proposto de superação de dualismos e com a visão acerca dos circuitos da economia urbana (Santos, 1975SANTOS, M. (1975). L'espace partagé: les deux circuits de l'économie urbaine dês pays sous- développés. Paris, Génin.). Outra contribuição para esse debate foi dada por Leitão (2007)LEITÃO, G. (2007). Transformações na estrutura socioespacial das favelas cariocas: a Rocinha como um exemplo. Cadernos Metrópole. São Paulo, v. 9, n. 18, pp. 135-155. e por diversos outros autores que vêm revelando a diversidade e a pujança da economia das favelas, grosso modo, do circuito inferior da economia.

Complementarmente, considerando a atual financeirização da globalização e a comoditização do urbano (Rolnik, 2013ROLNIK, R. (2013). Late neoliberalism: the financialization of homeownership and housing rights: debates and developments. International Journal of Urban and Regional Research, v. 37, n. 3, pp. 1058-1066. DOI: 10.1111/1468-2427.12062.
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), seria plausível relacionar o uso recente e generalizado pelas agências internacionais do termo informal como uma tipologia urbana, informal settlements, às estratégias geopolíticas de reforço da dominação? Seriam estratégias de subjugação de formas não estatais de reconhecimento e prática de direitos? Buscaremos trazer mais elementos para esse debate a seguir.

O informal nas agendas urbanas

Seguindo a linha argumentativa que propõe um olhar urbanístico mais detalhado sobre o “informal”, com base em agendas de organismos multilaterais, e tendo como fato que, ao menos desde a década de 1970, essas agendas se articulavam,14 14 O primeiro marco da articulação de agendas de agências multilaterais foi a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo (1972). Com forte ênfase, esse modelo se reforça nos anos 1990, sobretudo seguindo as recomendações e definições da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a ECO-1992, e da Agenda 21. são relacionadas evidências da apropriação e da transformação do uso do termo informal nas principais agendas urbanas, a saber, os relatórios finais das três Conferências UN-Habitat, realizadas a cada 20 anos, desde 1976.

Em 1972, no mesmo ano em que foi lançado o Relatório do Quênia, teve lugar, em Estocolmo, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (ILO, 1972ILO - International Labour Office (1972). Employment, incomes and equality: a strategy for increasing productive employment in Kenya. Report of an Inter-Agency Team Financed by The United Nations Development Programme and Organized by The International Labour Office. Geneva, International Labour Office., 2002ILO - International Labour Office (2002). Decent work and the informal economy. Conference. 90th session. Geneva, International Labour Office.). Marco do multilateralismo, a Conferência inspirou novos encontros mundiais com temas específicos e abordagens transversais e intersetoriais,15 15 A Habitat I foi um produto da Conferência de Estocolmo. Considerando que Estocolmo tratava de problemas ambientais internacionais, a Habitat I foi convocada para tratar de problemas ambientais locais, como moradia, infraestrutura e serviços como transporte. De maneira semelhante, a Habitat II recebeu seu impulso da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Unced), de 1992, realizada no Rio de Janeiro. Agenda 21, Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) são produtos da interface de Conferências e estruturas temáticas da ONU. além de trazer para o debate outras organizações além do Estado-Nação.

Quatro anos depois, a Habitat I, em Vancouver, 1976, deu sequência às definições da Conferência de Estocolmo, bem como aprimorou e aprofundou instrumentos e estratégias para o “Desenvolvimento” (Hart, 2010HART, G. (2010). D/Developments after the meltdown. Antipode, v. 41, pp. 117-41. DOI: 10.1111/j.1467-8330.2009.00719.x.
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). Em sua Declaração Final, a Habitat I não apenas recomenda a participação pública e de governos locais16 16 Seguindo essa linha, em 1992, durante a ECO-92, autoridades locais e ONGs foram reconhecidas, pela primeira vez, como major groups em uma conferência da ONU. na busca de respostas para questões globais, como revela o entendimento e a importância do setor informal da economia para a superação dos desafios globais. Das 64 Recomendações para a Ação Nacional do Plano de Ações de Vancouver, oito são dedicadas, exclusivamente, à participação social nos mais diversos fóruns de decisões das políticas urbanas.

O documento final de Recomendações da Habitat I, dividido em seis itens ou temas, dedica uma das 64 recomendações, a de número C8, “Moradia, Infraestrutura e Serviços – A Construção pelo Setor Informal”, para atestar que “[...] o chamado ‘setor informal’ provou sua capacidade de atender às necessidades dos menos favorecidos em muitas partes do mundo, apesar da falta de reconhecimento e assistência do setor público”. Conclui-se que o setor informal deveria ser apoiado em seus esforços de promover não apenas moradia, mas, também, infraestrutura e serviços (UN-Habitat, 1976UN-HABITAT (1976). Habitat I - United Nations Conference on Human Settlements. Vancouver, NU.).

Nesse sentido, os países deveriam rever regulações e normas, formas de crédito, acesso à terra (para atividades da “economia informal”), formas de assistência técnica e uma série de outras ações voltadas à participação social e à autoconstrução dos meios de reprodução da vida com dignidade, qualidade e de maneira adaptada às realidades regional e nacional.

Além disso, ainda no item Moradia, Infraestrutura e Serviços, o documento recomenda especial atenção à autoconstrução da moradia (número C10), reconhecida como a de maior dimensão no “Terceiro Mundo” e, portanto, a ser qualificada e fomentada por meio de políticas de regularização da posse, simplificação de normas, regulações e processos de financiamento, assistência técnica e desenvolvimento de materiais locais e adaptados, além do estímulo ao cooperativismo e da garantia de provisão de infraestruturas.

Pode-se afirmar que a Habitat I reverberou a compreensão mais progressista das agências internacionais e dos pensamentos da época, mirando o desenvolvimento urbano em sua totalidade, para além das dualidades que se multiplicavam no pensamento hegemônico.

Passados 20 anos, a estagnação econômica dos países do Sul, nos anos 1980, e a consequente introdução de ajustes econômicos de caráter neoliberal por parte de agências credoras, FMI e Banco Mundial, reestruturaram as políticas de Desenvolvimento (Hart, 2010HART, G. (2010). D/Developments after the meltdown. Antipode, v. 41, pp. 117-41. DOI: 10.1111/j.1467-8330.2009.00719.x.
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) com impactos na agenda urbana. O consenso era de redesenho completo do Estado, diminuição e racionalização, abertura às empresas privadas e foco na capacidade de governança de atores da sociedade civil que prestariam serviços públicos não essenciais.

A privatização das instituições nacionais de habitação e a ênfase na governança possibilitariam implementar os sete instrumentos de abertura do mercado da habitação (Arantes, 2006ARANTES, P. F. (2006). O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades. Pós. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP. São Paulo, v. 20, pp. 60-75. DOI: 10.11606/issn.2317-2762.v0i20.p60-75.
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; Soto, 2000SOTO, H. de (2000). The mystery of capital: why capitalism triumphs in the west and fails everywhere else. Londres, Black Swan Books.; World Bank, 1993WORLD BANK (1993). Housing: enabling markets to work. Paper. Washington, World Bank Policy.). Do lado da demanda: titulação, financiamento direto e racionalização de subsídios; do lado da oferta: governança dos serviços urbanos, regulação adaptada da terra urbana e organização da indústria construtora; o sétimo elemento é a reorganização do Estado para a governança (World Bank, 1993WORLD BANK (1993). Housing: enabling markets to work. Paper. Washington, World Bank Policy.).

A regularização fundiária, envolvendo ou não a urbanização de assentamentos precários (titulação de terras e superação mais ou menos parcial das precariedades), com participação não governamental e do poder local, além de empréstimos diretos para famílias resolverem seus déficits habitacionais com o mercado,17 17 Fazia parte da estratégia transformar as famílias em consumidores correntistas, bankables, nos termos do World Bank (1993). eram estratégias do período legitimadas pelos países, governos locais e, também, movimentos sociais que viam, na Habitat II, esforços descentralizadores e democráticos (Balbim, 2016BALBIM, R. (2016). "Prolegômenos: a esperança nas cidades". In: BALBIM, R. (org.). Geopolítica das cidades: velhos desafios, novos problemas. Brasília, Ipea, pp. 11-22., pp. 11-12).

De maneira geral, a agenda urbana da Habitat II, realizada em Istambul no ano de 1996, buscava integrar as necessidades do crescente setor informal da economia urbana aos sistemas de planejamento, design e gestão das cidades, promovendo a participação social nos processos de planejamento e tomada de decisão, fortalecendo seus vínculos com a economia formal, seu financiamento e sua regulação.

Analisado o Relatório Final da Habitat II (UN-Habitat, 1996UN-HABITAT (1996). Habitat II - Report of the United Nations Conference on Human Settlements. Istanbul, United Nations.), verifica-se que a ideia de informalidade aparece 17 vezes, sendo que em apenas dois momentos é relacionada a assentamentos humanos, o que constituía uma inovação. Nas demais 15 ocorrências, o termo aparece vinculado à economia urbana, sempre de maneira positiva, relacionada a bancos e a cooperativas de crédito, a organizações sociais e a formas alternativas de desenvolvimento.

A Agenda da Habitat II vaticina como os setores informais da economia, potencializados, aprimorados, fomentados, deveriam fazer parte das soluções descentralizadas, comunitárias, locais e democráticas na superação dos desafios urbanos apresentados. Como exemplo, o item 160 da Agenda, no qual o termo “informal” aparece quatro vezes, define ações a serem empreendidas por pequenas empresas, cooperativas, autoridades locais, organizações não governamentais (ONGs), organizações comunitárias e instituições financeiras no sentido de melhorar as capacidades dos setores informais da economia urbana.

O apontamento da economia informal como alternativa para desafios urbanos corrobora a tese de que a Habitat II, além de descentralizada e democrática, como celebrada por movimentos sociais e governos progressistas, também tinha um viés neoliberal,18 18 No estado neoliberal, a entrada de novos atores na governança urbana, em particular nas áreas precárias, permite ao Estado não se comprometer com investimentos em diversos serviços. As consequências dessa ausência do Estado são múltiplas. Bayat (2002, p. 10) revela como grupos religiosos fundamentalistas se tornaram os principais provedores de serviços urbanos em “assentamentos informais” nos países do Oriente Médio. No caso das cidades latino-americanas, Davis (2004) relata as igrejas neopentecostais emergindo nessas áreas como modelos de governança e de prestação de serviços. de diminuição do Estado e transferência de responsabilidades do setor público para moradores, ONGs e sociedade civil (Balbim e Amanajás, 2015BALBIM, R.; AMANAJÁS, R. (2015). "Acordos internacionais e o direito à cidade: notícias do Brasil para a Habitat III". In: MELLO E SOUZA, A.; MIRANDA, P. (eds.). Brasil em desenvolvimento 2015: Estado, planejamento e políticas públicas. Brasília, Ipea.).

Habitat III: a NAU à deriva?

Passados mais de 20 anos, a Nova Agenda Urbana (NAU), resultante da Habitat III, realizada em Quito, no ano de 2016 (UN-Habitat, 2016UN-HABITAT (2016). Habitat III - Nova Agenda Urbana. Quito, United Nations.), traz uma profunda transformação no uso do termo informal. Ao contrário das agendas anteriores, o termo, citado 19 vezes, foi relacionado à economia urbana apenas em quatro momentos. Todas as demais 15 inserções são relacionadas aos assentamentos humanos em geral e às favelas, em particular, sem qualquer definição prévia do neologismo “assentamentos informais”, um claro indicador de que seu uso se tornara corrente durante os 20 anos que separam a Habitat II e a Habitat III.

Ainda que exista um reconhecimento da importância do informal para a economia local (ibid., item 13.d) e um compromisso em “[...] reconhecer a contribuição dos trabalhadores pobres na economia informal” (ibid., item 59), a NAU busca uma “[...] transição sustentável para a economia formal” (ibid., item 13.d e item 59),19 19 Certos autores, como Stiphany e Ward (2019) veem a NAU como portadora dos argumentos e das justificativas para a definição de políticas nacionais de autogestão e daquilo que porventura entendem como produção social da moradia, como o caso do Minha Casa Minha Vida Entidades. uma inflexão quando considerado o pensamento produzido em outras agências internacionais, notadamente na OIT, a partir da ideia de trabalho decente (ibid.).

A NAU ignora os avanços no entendimento da relevância da economia informal para o desenvolvimento, além dos impactos das transformações tecnológicas na “informalização” e na precarização das relações de trabalho e de acesso à cidade, como há muito vinha sendo destacado pela OIT (aburguesamento da informalidade, abordado na seção ‘Paradoxos da economia urbana informal’), ou com o uso de termos como “uberização”. Também são ignorados os debates acerca dos impactos urbanos de gigantes como a Amazon e de soluções como o AirBnB (ibid.).20 20 A título de exemplo, a NAU referenda, pela primeira vez em uma conferência da ONU, a ideia de smart cities. Durante a Conferência, diversas foram as mesas de debate sobre o tema, com a presença de bancos, companhias e consultores internacionais. A ideia de smart cities faz parte dos documentos finais e é apresentada como uma das soluções para inúmeros problemas nos mais diversos contextos urbanos (Balbim, 2018).

Após mais de meio século, o pensamento dualista que associou modernidade, industrialização e urbanização em oposição ao atraso, ao tradicional e ao rural21 21 Um dos amigos leitores deste artigo me presenteou com um exemplo clássico desse dualismo. Ver Lambert (1970, pp. 101-125). parece ressurgir. A cidade moderna, inteligente, é a base do desenvolvimento, e o informal é relacionado a tudo aquilo que é negativo ou improdutivo – e, assim, deve desaparecer.

A NAU vai além em sua deriva e associa a ideia de economia formal aos princípios do trabalho decente, que se realizaria “[...] aproveitando os benefícios de aglomeração da urbanização bem planejada, incluindo alta produtividade, competitividade e inovação; promovendo emprego pleno e produtivo” (ibid., item 14b). A cidade é apresentada como ícone da modernidade, motor do desenvolvimento e da economia.

Por sinal, o termo economia, que aparece duas dezenas de vezes na NAU, recebe diversos qualificadores que imprimem a exclusiva noção de modernidade, negócios e produtividade: economia global, economia competitiva, economia de escala, economia vibrante, economia sustentável, economia inclusiva, economia inovadora e economia circular. Já ideias de economia solidária e de negócios comunitários, frequentes na Habitat II e que reforçam o papel dinâmico do setor informal, ficaram ausentes tanto da preparação da Habitat III (Fernandes e Figueiredo, 2016FERNANDES, D. M.; FIGUEIREDO, G. C. (2016). "Corporate city, international actions and the struggle for the right to the city: challenges posed to HABITAT III". In: BALBIM, R. (org.). Corporate city, international actions and the struggle for the right to the geopolitics of the new urban agenda: old challenges - new problems. Brasília, Ipea.) quanto da sua própria agenda final, que apenas cita “economia social e solidária” no item 58, quando trata de “sustentabilidade ambiental e prosperidade inclusiva”, o que quer que isso signifique (UN-Habitat, 2016UN-HABITAT (2016). Habitat III - Nova Agenda Urbana. Quito, United Nations.).

Assim, a NAU revela a divisão entre uma cidade moderna e dinâmica e bilhões de pessoas vivendo em condições ditas informais em todo o mundo e, apesar dos detalhados diagnósticos que subsidiaram o processo da Conferência, não distingue pobreza de precariedade, irregularidade, ilegalidade ou mesmo da simples não conformidade com regras locais. Por opção política, a NAU agrupa todas essas condições em uma única tipologia urbana, de maneira pejorativa e acrítica, reforçando um sistema moral desclassificatório que justifica mecanismos excludentes e segregadores, além das estratégias globais dos negócios urbanos carreadas por diversos organismos internacionais. A retórica não poderia ser mais clara. Impera na NAU a gramática dos negócios urbanos (Balbim, 2018BALBIM, R. (2018). "A nova agenda urbana e a geopolítica das cidades". In: COSTA, M. A.; THADEU, M.; FAVARÃO, C. B. (eds.). A nova agenda urbana e o Brasil: insumos para sua construção e desafios a sua implementação. Brasília, Ipea.).

Por fim, a análise da aparição reiterada dos termos “assentamentos informais” e “assentamentos informais e favelas” – que não são minimamente definidos no documento – revela dimensões negativas, pejorativas e degradantes associadas direta ou indiretamente à pobreza, à desigualdade, à degradação ambiental e às deseconomias,22 22 Esta constatação sinaliza para uma hipocrisia deste documento, pois a própria NAU, item 20, reconhece a necessidade de enfrentar as inúmeras formas de discriminação que grupos sociais como portadores de HIV, idosos, refugiados, etc. enfrentam, e inclui dentre esses grupos os moradores de favelas e dos “assentamentos informais”. tema aprofundado na seção seguinte.

O retorno da favela, panaceia dos assentamentos informais

No caminho trilhado de (re)conhecimento do termo informal e de suas transformações, o período compreendido entre as Conferências Habitat II e Habitat III constitui o momento de inflexão entre o uso do termo informal associado à economia urbana e o seu emprego como uma tipologia urbana.

Compreender como esse neologismo urbano surge e se difunde em escala mundial, e como é assimilado no Brasil, constitui tarefa hercúlea. Essa tipologia, invariavelmente, não é definida, substantivada, não há referências a debates teóricos e acadêmicos, sendo programas de governo ou manuais de agências internacionais, em particular da UN-Habitat, a principal fonte de referência para a definição do termo.

Entretanto, a associação do termo de maneira direta e frequente ao termo favelas (slums) pode dar pistas para a compreensão de sua ampla assimilação, inclusive possibilitando levantar hipóteses acerca das motivações que levam agências internacionais e expertos a se associarem a essa generalização, ao invés de usarem termos e conceitos mais precisos.

Seguindo caminho metodológico similar ao aqui proposto, de buscar pistas e respostas por meio da análise dos documentos das agências financiadoras internacionais e seu receituário para superar a pobreza nos países subdesenvolvidos, Gilbert (2007)GILBERT, A. (2007). The return of the slum: does language matter? International Journal of Urban and Regional Research, v. 31, n. 4, pp. 697-713. DOI: 10.1111/j.1468-2427.2007.00754.x.
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faz uma reflexão do ressurgimento do termo slum,23 23 A favela estava na moda no final dos anos 1990. Uma indicação da relevância é a inauguração em Paris, em 1997, do famoso, à época, restaurante, bar e clube Favela-Chic. Seu ambiente sugeria a quebra de paradigmas através da informalidade das relações sociais e de uma decoração em patchwork. Van Ballegooijen e Rocco (2014) também apontam essa mistificação e romantização da favela e outras soluções de habitação não estatais por stararchitects, e salientam que essa avaliação positiva das favelas é, frequentemente, acompanhada de uma descrença nas políticas habitacionais públicas. Diversas são as concepções, simbólicas e concretas, do que é uma favela, slum, barrios, quebradas, etc. em cada país e língua. Desde o surgimento do termo em inglês, provavelmente em 1812, houve a associação a práticas comerciais criminosas, roubos e “malandragem” (racket) (Gilbert, 2007, pp. 700-702). A força desse conteúdo pejorativo é tamanha, que suas similaridades foram compondo o entendimento de todos os demais termos que, nas mais diversas línguas, designam assentamentos pobres, precários, irregulares, clandestinos, ou simplesmente inadequados segundo padrões sociais e morais de cada lugar, sociedade e época. velho e perigoso vocábulo, em suas palavras.

Em 1999, três anos após a Conferência Habitat II, uma coalizão de agências internacionais – formada pelo World Bank, UN-Habitat, United Nations Environment Programme (Unep) e Asian Development Bank – lança a iniciativa global Cities Without Slums. Esse é o momento em que se abre uma espécie de caixa de pandora (ibid., p. 698). Para o autor, o uso do termo seria perigoso, porque a campanha subentende que as cidades possam se ver livres das favelas, uma ideia que é, em sua opinião, totalmente inalcançável.24 24 “The campaign implies that cities can actually rid themselves of slums, an idea that is wholly unachievable” (Gilbert, 2007, p. 698). Além disso, a confusão entre aspectos físicos de qualidade da habitação e as diversas características sociais e dos grupos humanos que vivem nesses assentamentos são ressaltadas para questionar a imprecisão do termo, ainda mais quando empregado em escala global.

Nesse momento, a UN-Habitat, com o apoio do Cities Alliance, define o objeto principal de sua atuação, erradicar as favelas e suas características absolutas, uma linha de base para o monitoramento e avaliação da eficiência, da efetividade e da eficácia de suas ações, uma necessária adequação de gestão para responder aos seus doadores e financiadores.25 25 A análise de relatórios e documentos do Cities Without Slums revela certo imediatismo na apresentação de resultados, representado, por exemplo, pela declaração do Reino do Marrocos, em 2018, afirmando que 58 de suas 85 cidades estavam “livres de favelas” (Atia Conference 2019, 2019). Além disso, parece haver, nesses documentos, uma forte influência das ideias de De Soto sobre a necessária segurança da titulação para que as famílias façam investimentos em melhorias habitacionais. Após décadas de autoconstrução em áreas juridicamente informais, em diversos países, parece ser empiricamente comprovado que tal afirmação não passa de uma falácia. A proporção de pessoas com acesso ao saneamento e à segurança da posse foram definidas como variáveis básicas a serem monitoradas, aplicadas em todo o mundo, caracterizando uma tipologia urbana universalizada – as favelas. Tamanha é a relevância que essa lógica ganha, que estes elementos passam, também, a fazer parte dos ODMs, notadamente no objetivo sete, meta dez, proporção de habitantes com acesso à água e ao esgotamento sanitário, e meta 11, proporção da população urbana vivendo em favelas.

É fato inconteste que a revisitação do termo favela (slum) foi acompanhada de uma ação política clara de erradicação, que pode tanto significar urbanizar (em inglês, upgrading), tratando de titulação acompanhada de melhorias urbanas visando à sua “formalização”, à sua “inserção” na cidade26 26 A ideia de a favela passar a fazer parte da cidade, via melhorias e conformidades, foi expressa por policymakers durante pesquisas realizadas para a avaliação do programa Habitar Brasil BID (HBB) e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Na perspectiva dos moradores, o objetivo desses programas deveria ser adentrar a cidade na favela, sem que esta deixasse de ser favela para se transformar em cidade. Os moradores também expressam o desejo de superação dos aspectos pejorativos associados à favela para que possam viver a cidade em sua totalidade (Balbim et al. 2013). quanto erradicar, via despejos e deslocamentos, prática continuada e frequente e que também se vale de argumentos promovidos pelas mais nobres intenções políticas e acadêmicas.

Além disso, seu ressurgimento no cenário global, após a Habitat II, e seus preceitos neoliberais e descentralizantes estão associados a interesses políticos e econômicos, a uma geopolítica que apontava os governos locais e ONGs como parceiros mais “sensíveis” às definições das agências e dos bancos internacionais. Em 2013, por exemplo, um relatório extensivo do Banco Mundial (World Bank, 2013WORLD BANK (2013). Annual Report 2013. SKU 19942. Washington, DC, World Bank., pp. 14-15) revela que o interesse no tema das favelas, além de econômico, também foi e era político.27 27 Segundo o Banco, com o fortalecimento da democracia, governos locais estariam mais atuantes na prestação de serviços urbanos, concentrando mais poderes e interesses, sobretudo eleitorais, para lidarem com a questão das favelas. Concorre, ainda, para esse interesse a maior participação de ONGs e o fato de que as comunidades estariam mais “maduras” politicamente e prontas para pagar por serviços urbanos.

Brasil: favela, assentamentos precários e informais

Antes de fazer o paralelo deste processo com a política urbana brasileira, é necessário lembrar que as favelas, no Brasil, foram invisibilizadas até a redemocratização dos anos 1980, viabilizando, ainda hoje, os mais diversos mandos e desmandos políticos e econômicos contra seus moradores, particularmente, por meio do uso da violência pelo Estado.

Remonta à redemocratização dos anos 1980, através dos esforços de administrações locais,28 28 É importante notar que o federalismo brasileiro em geral, e particularmente na questão urbana, pode ser comparado a uma gangorra ou a um pêndulo. Em alguns períodos, a política emana dos municípios para o Estado nacional (nos anos 1990 e na constituição do Estatuto das Cidades, por exemplo), outras vezes, em sentido contrário. Segundo Cardoso e Ribeiro (2000), isso se dá seguindo uma lógica particular, denominada “descentralização por ausência" de políticas e definições do governo federal, fato claro com o final do Banco Nacional da Habitação (BNH), a crise do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e o neoliberalismo dos anos 1990. Essa tese é sustentada, como também revela Klink (2013), na ideia difundida durante os anos 1980, de que a democracia se consubstanciaria nos lugares, nos governos locais. o início do reconhecimento no quadro do urbanismo estatal da existência de favelas e de certos direitos de seus moradores. As iniciativas das Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) e do Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social (Prezeis), lançadas em Recife, em 1983 e 1987, foram seguidas por outras cidades metropolitanas que, poucos anos depois, e em função de suas experiências pioneiras bem-sucedidas de reurbanização, passaram a incorporar o território das favelas também em seus Planos Diretores.29 29 “Diversos outros municípios se destacaram por seu pioneirismo na previsão deste instrumento, incluindo-o em seus Planos Diretores antes da promulgação da lei do Estatuto das Cidades: Rio de Janeiro (AEIS, previstas no Artigo 107 da Lei Complementar n. 16/1992, compreendendo tanto áreas não utilizadas, subutilizadas ou ocupadas por ‘favelas, loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais, destinados a programas específicos de urbanização e regularização fundiária’), Belém (em 1993), Diadema, Natal e Vitória (em 1994), Belo Horizonte e Campinas (em 1996) e Porto Alegre (Brasil, 2001); no caso do último, o PD de 1999 foi o primeiro a prever o instrumento, que já vinha sendo implementado desde a edição da Lei Complementar n. 338, de 1995” (Balbim e Krause, 2014).

A relação entre as ideias da “nova” UN-Habitat e a política urbana no Brasil, em especial as estratégias do Cities Without Slums,30 30 O Programa Cities Without Slums apoiou, já no seu início, nos anos 2000, administrações progressistas nas cidades de São Paulo e Salvador e nos estados de Pernambuco e Rio Grande do Sul. Além disso, estabeleceu parcerias com a Universidade de São Paulo (USP) e com o Consórcio do ABC paulista. capitaneado pelo Banco Mundial e por países doadores (principalmente França e Itália, no caso brasileiro), foi, de certa forma, confrontada com estruturados programas31 31 O programa Favela-Bairro, instituído em 1995, a partir de uma parceria da Prefeitura do Rio de Janeiro com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) logrou melhorias urbanas em 168 favelas e loteamentos irregulares até o ano de 2008. Aclamado pelo BID, em 2005, como o mais ambicioso programa de reurbanização de favelas do mundo, o programa recebeu diversas críticas quanto à qualidade das intervenções e à falta de serviços sociais permanentes, fatos que contribuíram para a rápida deterioração das melhorias realizadas. Por outro lado, foi criado um vasto conhecimento sobre a necessária modelagem particular de cada intervenção em um programa que abarca diversas e distintas situações. Essa experiência, presume-se, deveria orientar o programa Morar-Carioca, que, associado ao PAC Urbanização de Assentamentos Precários, deu sequência ali à urbanização de favelas. municipais e estaduais de intervenção em assentamentos precários e aglomerados subnormais, criados no início da década de 1990, e que, futuramente, seriam impulsionados com a criação do Programa Habitar Brasil-BID (HBB)32 32 Em 1999, logo antes do lançamento mundial do Cities Alliance, o Brasil assinou acordo de empréstimo com o BID que, entre outras ações, criava o programa Habitar Brasil BID – HBB. Nota-se que tanto nas políticas locais de urbanização de favelas do final dos anos 1980 e anos 1990 quanto no HBB, que as recepcionou em 1999, expandindo suas ações para as principais cidades do país, há expressa diretriz de não remoção dos moradores, a não ser em casos de riscos, além da valorização das características comunitárias e da participação social. Analisando relatórios de todas as intervenções do HBB até 2011, (Balbim et al., 2012) apreende-se que, ao contrário do que a iniciativa Cities Without Slums pudesse implicar, as estratégias do HBB dificilmente envolviam remoções, e a questão da titulação era uma lógica secundária e, muitas vezes, negligenciada. em 1999.

Ou seja, no Brasil, há indicativos de que a “influência” do Cities Without Slums, no início dos anos 2000, foi balanceada tanto pela consolidação anterior das experiências locais brasileiras quanto pelo apoio, também anterior, que algumas delas recebiam do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que não participava da coalizão que formou o Cities Alliance.

O HBB foi um marco por reconhecer, pela primeira vez, na política urbana nacional o tema das favelas e dos assentamentos subnormais. O HBB visava ao fortalecimento institucional dos municípios para a execução de obras de infraestrutura urbana, melhorias habitacionais e ações de intervenção social e ambiental. Em seus manuais, o termo informal não era utilizado, e o termo favela aparece esporadicamente, com demais tipologias que constituem aglomerados subnormais (Balbim et al., 2012BALBIM, R. et al. (2012). TD 1704. Meta-avaliação: estudos e proposições metodológicas a partir da avaliação de políticas de urbanização de assentamentos precários. Repositórios do Conhecimento do Ipea.).

No Brasil, a análise detalhada de documentos de políticas públicas nacionais e da produção acadêmica revela que o termo “assentamento informal”33 33 Precisamente, o termo “assentamento informal” aparece pela primeira vez em documentos oficiais brasileiros, de maneira pontual, no relato feito pelos participantes da Habitat II ao Senado Federal, em 1997. não fora utilizado até meados dos anos 2000, fato que parece mudar quando o Cities Alliance passa a apoiar ações do Ministério das Cidades (MCidades).

Para entender esse momento de transformações, é necessário situar o que era o MCidades à época. Criado em 2003 como a primeira estrutura ministerial com o mandato de produzir e implementar uma política urbana nacional, o MCidades era composto de quatro Secretarias Nacionais finalísticas – mobilidade, saneamento, habitação e programas urbanos – e uma Secretaria Executiva. Havia uma relativa coordenação de ações entre as três primeiras Secretarias e a Secretaria Nacional de Programas Urbanos (SNPU), visto ser esta a responsável, basicamente, por diretrizes de planejamento urbano e fomento à elaboração dos Planos Diretores Participativos, como determinava o Estatuto da Cidade.

Além disso, a SNPU operava a ação de apoio à regularização urbana fundiária, o chamado Programa Papel Passado. Da mesma forma, a Secretaria Nacional de Habitação (SNH) operava ações de apoio à regularização fundiária em diversos de seus programas, em especial no HBB, herdado do governo anterior e, posteriormente, em linhas gerais, transformado no PAC Regularização de Assentamentos Precários.

Apesar da expectativa de coordenação intersecretarial, abordagens distintas entre programas com objetivos similares, no caso, o Papel Passado e o HBB, justamente no que tange aos assentamentos precários, termo utilizado inclusive na Política Nacional de Habitação (Lei n. 11.124/2005), permitem levantar hipóteses de como o neologismo “assentamento informal” passou a ser utilizado na política urbana nacional.

Em 2006, quando ainda existia o HBB, sob a coordenação da SNH, o Programa Papel Passado, ação de regularização fundiária sob a direção da SNPU, publicou com o programa Cities Without Slums o curso a distância “Regularização Fundiária de Assentamentos Informais Urbanos”.

Essa publicação, exclusiva em português, traz, pela primeira vez, em documentos oficiais do governo federal, o termo “assentamentos informais”, inclusive em seu título. Contrasta com o fato de que o termo não havia sido usado na Política Nacional de Habitação, nos manuais do Papel Passado, do HBB, nem mesmo no restante das publicações e manuais do MCidades.

Dada sua importância, passa-se a analisar de maneira detalhada a publicação, composta de oito capítulos e uma apresentação autorais. Verifica-se que os termos informal e informalidade relacionados a assentamentos foram introduzidos nos textos assinados por Fernandes (2006a, 2006b). Então coordenador geral do curso e consultor do projeto, Fernandes utiliza o termo 42 e 26 vezes, respectivamente, em cada texto. Além disso, há citações pontuais em Imparato e Saule Júnior (2006) e Alfonsin (2006)ALFONSIN, B. (2006). "O significado do Estatuto da Cidade para os processos de regularização fundiária no Brasil". In: ROLNIK, R. et al. Regularização fundiária de assentamentos informais urbanos. Belo Horizonte, PUC Minas Virtual..

De maneira geral, Fernandes aponta a segregação e a exclusão como causas da “proliferação” da ilegalidade. Especificamente, o aparato jurídico excludente levaria as pessoas a descumprirem a lei. Entretanto, o que parece ser lógico não explica a vasta irregularidade e ilegalidade que se alastra, também, entre os mais abastados. Na mesma publicação, ao tratarem das terras públicas da União, Imparato e Saule Júnior (2006, p. 76), afirmam: “a informalidade na ocupação do solo não é privativa da população de baixa renda brasileira e sim é prática disseminada numa verdadeira cultura da irregularidade fundiária”.

Como exercício revelador dos riscos envolvidos no uso generalizado do termo, substituímos cada uma das 68 vezes que o termo ocorre em Fernandes (2006a, 2006b) por termos ou explicações substantivos. O resultado é a associação de “assentamento informal” à óbvia falta de titulação, mas também a áreas onde o direito à moradia não fora reconhecido, ou áreas sem integração socioespacial com o restante da cidade (AlSayyad e Roy, 2006ALSAYYAD, N.; ROY, A. (2006). Medieval modernity: on citizenship and urbanism in a global era. Space and Polity, v. 10, n. 1, pp. 1-20. DOI: <https://doi.org/10.1080/13562570600796747>.
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), reforçando a ideia de cidade dividida. A “informalidade urbana” pôde ser associada à pobreza urbana, a um padrão urbanístico específico, à falta de segurança na posse, ou à falta de democratização no acesso à terra. A “ocupação informal” pôde ser relacionada à autoconstrução, à favela, ou à ocupação ilegal e clandestina. Às “práticas informais” de urbanização foram associadas soluções de baixo custo que imporiam altas deseconomias à cidade. A “condição informal” urbana é “precária, indigna e inaceitável”. A “área informal” é precária e traz riscos ambientais. Por fim, a “construção informal” é sinônimo de favela e autoconstrução.

De maneira muito simples, pode-se concluir que esta publicação, ou ao menos parte dela, um livro didático para um curso a distância acerca de uma política pública nacional que, ao atingir expressivo público de gestores, técnicos, ativistas e pesquisadores, colaborou com a difusão de um termo impreciso, quando comparado a termos previamente utilizados na prática urbanística e nas políticas urbanas até aquele momento. Após esse curso, nota-se que não houve imediata aderência do termo nas práticas e proposições ligadas à matéria.

Aguardou-se até 2010 para que o termo reaparecesse em documentos formais do MCidades. Foi quando o programa Cities Without Slums e a SNH publicaram uma cartilha bilíngue do curso a distância “Ações Integradas de Urbanização de Assentamentos Precários” (em inglês, “Integrated Slum Upgrading Actions”).

Na versão em português, o objeto da ação são os “assentamentos precários”, termo que aparece 44 vezes no documento, sendo 42 vezes traduzido como informal settlements, uma vez como slum – na capa da publicação – e uma única vez traduzida de maneira precisa como precarious settlements, na apresentação. A não precisão da tradução contrasta com a importância global do Brasil nas estratégias de urbanização de assentamentos precários, reconhecida desde 1996, na Habitat II, revelada na produção acadêmica internacional, no histórico do HBB e, particularmente, nos relatórios anuais do Cities Alliance (2002CITIES ALLIANCE (2002). Cities Without Slums: 2002 Anual Report. Washington, DC, World Bank., 2003CITIES ALLIANCE (2003). Cities Alliance for Cities Without Slums: Action Plan for Moving Slum Upgrading to Scale Are Welcome. Plan for moving. Washington, DC, World Bank.).

Revela-se assim que, em 2010, a SNH, coordenadora do PAC Urbanização de Assentamentos Precários, divulgou internacionalmente suas ações “seguindo” o termo desta “agenda quente” internacional (Neves e Lima, 2012NEVES, F. M.; LIMA, J. V. C. (2012). As mudanças climáticas e a transformação das agendas de pesquisa. Liinc em Revista, v. 8, n. 1, pp. 268-282.), lembrando que quatro anos antes, a mesma agência internacional, neste caso em parceria com a SNPU, promoveu a divulgação do termo na língua portuguesa com reflexos posteriores nas políticas públicas brasileiras, bem como na produção acadêmica (Balbim e Santiago, 2023a).

O subsídio acadêmico

De maneira associada e colaborativa com o poder público, a criação de uma “agenda” política internacional tem evidente respaldo acadêmico na formulação de conceitos e teses, resultando em sua disseminação como “agenda quente” influenciadora de linhas de pesquisa, de fomento, bem como de políticas públicas nos países periféricos.

Fazendo uso de levantamentos cientométricos (Balbim e Santiago, 2023a, 2023b) e corroborando a análise das agendas internacionais e das políticas públicas nacionais anteriores, pode-se afirmar que essa “agenda” surge globalmente nos anos 1990 e se dissemina, torna-se “agenda quente” na primeira década do século XXI.

Analisando teses e dissertações que tratam do termo assentamento informal nas línguas inglesa, portuguesa e espanhola, sugere-se que esse movimento parta de centros de língua inglesa, com aumento relativo de número de teses entre as décadas de 1980, 1990, 2000, e 2010. Quando analisadas as teses em espanhol, verifica-se a inexistência de teses com o tema no primeiro decênio. Já em português, não são apontadas teses nos dois primeiros decênios, ocorrendo aumento entre os decênios de 2000 e 2010, passando de duas teses, no primeiro decênio, para 48 teses publicadas no segundo.

A pesquisa cientométrica realizada em três das principais bases de dados para pesquisas cientométricas no mundo, a Web of Science (WoS), a Scopus e a EBSCO, verifica-se que o termo informal settlements, relacionado ao urbano ou à cidade, aparece, no período entre 1960 e 2022, em mais de dez mil artigos acadêmicos – 2.986 artigos, considerando-se uma junção das bases WoS e EBSCO, e 10.402 artigos considerando-se a Scopus. Ressalta-se que o ano de 1999 constitui um marco na tendência de crescimento contínuo de publicações relacionadas ao termo informal relacionado aos estudos urbanos. Este é o mesmo ano de reconfiguração do que passa a ser a ONU-Habitat – agência internacional relevante para a difusão deste termo –, além de ser o ano do lançamento do plano de ação Cities Without Slums (Cidades sem favelas). Do total de artigos, mais da metade foi publicado a partir de quatro países: África do Sul, EUA, Inglaterra e Quênia, onde se localiza a sede da UN-Habitat.

Avaliando-se os metadados dos artigos, o continente africano – notadamente os países anteriormente citados – destaca-se como difusor de publicações relacionadas a informal settlements, enquanto o Norte Global – notadamente os países anteriormente citados – caracteriza-se como financiador destas pesquisas. Também foi possível identificar um uso majoritariamente funcional e interdisciplinar do termo, com um uso crítico em menor escala (Balbim e Santiago, 2023b).

Verifica-se, pois, a existência de centros difusores do termo assentamento informal (informal settlement), bem como agentes e países que, de maneira mais ou menos crítica, com maior ou menor compreensão das implicações de suas associações e, diríamos mesmo, por simples modismos, transformam a estrutura do conhecimento, as práticas cotidianas e administrativas e até as políticas públicas.

No caso brasileiro, levanta-se a hipótese de que esse movimento conformou as bases para o surgimento do neologismo Núcleos Urbanos Informais (NUI), presente na Lei n. 13.465/2017, como detalhado em estudo específico da lei e do seu emprego a partir do lançamento do Programa Casa Verde Amarela pelo governo federal em 2020 (Balbim, 2022BALBIM, R. (2022). TD 2751. Do Casa Verde e Amarela ao Banco Nacional da Habitação, passando pelo Minha Casa Minha Vida: uma avaliação da velha nova política de desenvolvimento urbano. Texto para discussão. Ipea. DOI: https://doi.org/10.38116/td2751.
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).

Comentários finais

Os achados deste artigo revelam como o termo informal, associado à economia, passa a fazer parte das políticas de (D)desenvolvimento e superação da pobreza na segunda metade do século XX e traçam um breve histórico crítico de seu uso e de sua transformação a partir do “mundo do trabalho” até sua assimilação no pensamento urbanístico, em que, no século XXI, tem seu uso e significado revisados.

A ampla difusão do termo informal está associada a aspectos culturais, simbólicos e políticos, além de estar relacionada à representação de práticas e modos de vida, temas debatidos e ressaltados no Relatório da OIT de 1972 e, também, no texto fundador de Hart (1973)HART, K. (1973). Informal income opportunities and urban employment in Ghana. The Journal of Modern African Studies, v. 11, n. 1, pp. 61-89.. Mais do que análises de setores da economia, podem ser encontrados, nestes textos, aspectos práticos de dinâmicas próprias do desenvolvimento de nações no hoje chamado Sul Global, mecanismos de transgressão de regulações burocraticamente estabelecidas e formação de novas normatizações em bases morais, habituais, práticas e políticas que, posteriormente, foram utilizadas em vários campos do conhecimento.

Revelou-se, claramente, que a informalidade é definida na gestão das limitações e regulações oficiais, sobretudo via agências internacionais e governos nacionais, de acesso à legitimação do trabalho e à terra urbanizada. Conclui-se, pelo instante, que a ideia de informal resulta, inicialmente, de um projeto de desenvolvimento modernizante dos e nos países subdesenvolvidos. Ou seja, seu uso generalizado, inclusive relacionado a uma tipologia urbana, é intencional na medida que divide e separa, inclui e exclui diferentes categorias de cidadãos em distintas áreas das cidades.

A tese aqui defendida, que segue sendo aprofundada, é de que a definição genérica da forma urbana, o assentamento humano como informal reforça as engrenagens da máquina de exclusão territorial, independentemente das intenções de acadêmicos e de gestores envolvidos com a melhoria das condições de vida na cidade quando da escolha dos termos, visto que não parece haver espaço de escolha, espaço de formulação crítica relacionados às agências financiadoras e às suas definições próprias de uma gramática do conjunto dos negócios urbanos, inclusive da gramática que incide sobre os centros de pesquisas.

O artigo revela que o termo informal settlement designa, genérica e imprecisamente, áreas onde habitam pessoas em situação de exclusão, segregação, precariedade, irregularidade, clandestinidade e, sobretudo, de pobreza. As áreas assim definidas seriam objeto de políticas públicas, mas, em muitos dos casos, arrisca-se dizer que passam a constituir áreas de interesse para a expansão do capital imobiliário, algo como uma reserva de terras, em alusão ao termo exército de reserva, utilizado para designar os trabalhadores do setor informal da economia.

Assim, a vinculação da ideia de favela ao termo “assentamentos informais”, formando quase uma tautologia, reforça, retoricamente, os predicados negativos associados a cada um dos dois termos. O primeiro é carregado de aspectos históricos, morais e culturais, uma realidade universal; o segundo reconstrói essas ideias a partir de uma “narrativa” de natureza técnica e científica de difícil comprovação em função da polissemia e da falta de substantivação do termo.

A análise dos documentos finais das Habitat I e II revela uma apropriação e um uso do termo informal de modo fiel aos debates que vinham sendo realizados até aquele momento. Já a Habitat III revela uma transformação profunda do significado e uso do termo, justamente quando a economia informal ganha escala global, no momento em que se verifica o paradoxo do informal, seu “aburguesamento”.

O roteiro de renovação de padrões colonialistas, de reforço das ideias dualistas de centro/metrópole e periferias, foi explicitado pela NAU: cidades modernas, inteligentes e competitivas não convivem com favelas e/ou “assentamentos informais”, ainda menos com a degradação dos que habitam nesses assentamentos humanos e suas práticas. Na cidade motora do desenvolvimento capitalista, não há espaço para um planeta feito de favelas e, para que esses estoques de terra corroborem o desenvolvimento, é necessário que sejam formalizados, titulados, negociados no mercado de terras por meio de seus instrumentos tradicionais e únicos, que garantiriam a segurança, de acordo com as agências internacionais e certos governos nacionais, para que as famílias façam investimentos, melhorem suas condições de vida e a economia como um todo.

Pode-se afirmar que a NAU contribui para o desenho de um mundo de cidades divididas. De um lado, a modernidade, os negócios, o motor do desenvolvimento, a tecnologia, a inteligência; do outro, bilhões de pessoas vivendo em condições limitadas, amorfas, indefinidas. O fato a ser aprofundado é que, sob o vasto manto do que quer que venha a ser informal, subsiste uma enorme área de expansão dos negócios urbanos em escala global, e a NAU, indubitavelmente, apresenta a gramática e as diretrizes para que isso aconteça.

Nesse sentido, revela-se que, de maneira geral, contribuições e esforços do mainstream acadêmico internacional não foram capazes de superar: 1) os dualismos próprios do modelo de desenvolvimento aplicado nos países pobres; e 2) uma perspectiva linear do desenvolvimento, tendo como base os padrões dos países capitalistas do Norte. Em relação ao surgimento e ao uso do termo assentamento informal, ao longo deste artigo, agregam-se ainda críticas quanto: 1) à generalidade do uso do termo; 2) à imprecisão conceitual; 3) à adjetivação como um sistema moral desclassificatório; e 4) o uso geopolítico do termo no aprofundamento das políticas de (D)desenvolvimento.

Assim como verificado quando do surgimento dos termos setor ou economia informal, a designação de áreas das cidades como assentamentos informais reflete a concentração de investimentos públicos nas áreas ditas formais, não apenas aprofundando desigualdades, mas, também, promovendo o surgimento e a multiplicação de práticas e tipologias redefinidas como informais.

Há, também, uma gama considerável de situações fundiárias e urbanísticas ocultas na representação genérica designada pelo termo “assentamento informal”, que, em última instância, parece servir para planificar a dualidade da “cidade partida”. Ao (des)classificar como informais processos alternativos ao modelo excludente e elitista de produção urbana, não estaríamos contribuindo para que apenas este se viabilize?

Associamo-nos a Caldeira (2017)CALDEIRA, T. P. R. (2017). Peripheral urbanization: autoconstruction, transversal logics, and politics in cities of the Global South. Environment and Planning D: Society and Space, v. 35, n. 1, pp. 3-20. DOI: 10.1177/0263775816658479.
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e sugerimos que superar a dicotomia usual entre formal e informal, asfalto e favela, representa a proposição de uma estrutura conceitual descolonizada, descentralizando a teoria urbana e caracterizando um modelo de desenvolvimento urbano distinto do emanado a partir das cidades do Norte.

Se, por um lado, a formalidade e a regularidade que caracterizam parcela das cidades nos países subdesenvolvidos estão de acordo com os manuais e diretrizes do planejamento urbano do Norte Global e com seus dogmas; a informalidade, tratada como oposição e divisão da e na cidade, é funcional aos mecanismos de controle, de dominação e de espoliação dos mais pobres que, durante décadas, constroem seu espaço de vida. O resultado é uma cidade fragmentada, “heterogênea”, em constante expansão precária e periférica, na qual muros simbólicos e limites cartográficos moldam lutas sociais por direitos e disputas políticas, por privilégios e votos.

Chegamos ao final deste ensaio avaliando que a cidade autoproduzida, resultante de circuitos inferiores da economia urbana, da economia popular, parece apresentar um questionamento constante de certos dogmas que associam valores simbólicos de desenvolvimento a noções e a ideários da cidade planejada segundo os manuais do urbanismo do Norte, científico positivista e formal.

Superar dualismos e substantivar análises são passos necessários para que se produzam instrumentos e critérios que incluam a maior parte das cidades dos países do Sul, a chamada cidade informal, não apenas nas políticas públicas e sociais, mas, sobretudo, nas políticas de desenvolvimento do Sul e para o Sul, com inclusão social, sustentabilidade, autonomia e originalidade.

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Notas

  • 1
    Nesses três primeiros parágrafos, utilizam-se três diferentes formas para se referir ao informal: como ideia, como noção e como termo. Nesta pesquisa, entende-se que a forma mais ampla e desprovida de valor é o “termo”. Como ideia ou noção, refere-se ao uso feito do termo, nesse sentido, na maior parcela das vezes pejorativo. Não se trata aqui do informal como conceito, pois seu uso não é substantivo, mas, sim, sempre de maneira adjetiva, logo, vinculada a um conceito em si.
  • 2
    É importante ressaltar que, enquanto se adjetiva, opera-se também um sistema moral (des)classificatório. Curiosamente, a adjetivação carrega uma carga moral que se esmera em desqualificar aquilo que não corresponde ao ideal de civilidade ocidental.
  • 3
    Essa linha de pensamento foi criticada por diversos autores (ILO, 2013ILO - International Labour Office (2013). The informal economy and decent work: a policy resource guide supporting transitions to formality. Employment Policy Department. Geneva, International Labour Office.; Santos, 1985SANTOS, M. (1985). Spatial dialectics: the two circuits of urban economy in underveloped countries". Antipode, v. 17, n. 2-3, pp. 127-135. DOI: 10.1111/j.1467-8330.1985.tb00341.x.
    https://doi.org/10.1111/j.1467-8330.1985...
    ; Hart, 2010HART, G. (2010). D/Developments after the meltdown. Antipode, v. 41, pp. 117-41. DOI: 10.1111/j.1467-8330.2009.00719.x.
    https://doi.org/10.1111/j.1467-8330.2009...
    ) que buscaram avançar no entendimento das lógicas próprias do subdesenvolvimento. Além disso, é endossada a crítica a uma perspectiva dualista que, ao apresentar noções estanques de desenvolvimento e de subdesenvolvimento, parece ignorar a lógica desigual e combinada do capitalismo (Smith, 2014SMITH, R. G. (2014). Beyond the global city concept and the myth of "command and control". International Journal of Urban and Regional Research, v. 38, n. 1, pp. 98-115. DOI: 10.1111/1468-2427.12024.
    https://doi.org/10.1111/1468-2427.12024...
    ), além de contribuir com uma abordagem com bases morais que apresenta aquilo que é desenvolvido como referência virtuosa e formal, enquanto o subdesenvolvimento estaria relacionado a concepções negativas, assentadas na referência ao informal.
  • 4
    Em sua pesquisa sobre o dualismo da economia na Indonésia, Economics and economic policy of dual societies, as exemplified by Indonesia, publicada em 1953.
  • 5
    Economista negro antilhano-britânico, vencedor do Nobel de Economia (1979). Para ele, o “informal” demarca o exército de reserva de mão de obra que seria, paulatinamente, absorvido ao modo de produção “formal”.
  • 6
    A ideia de marginalidade foi trabalhada nas análises a respeito do capitalismo latino-americano do tipo dependente nas décadas de 1960 e 1970. Dois autores se destacam para a análise aqui empreendida: o brasileiro Lúcio Kowarick e o peruano Aníbal Quijano. Estar à margem não significa estar fora do modelo capitalista e dos seus processos de desenvolvimento. Ao contrário, as populações à margem, no modo de produção capitalista dependente, lá estão como condição de existência do modelo baseado na superexploração, na segregação, na escassez produzida, dentre outras manifestações, formando um exército de reserva (marginalidade funcional) ou massas marginais: pequenos artesãos, trabalhadores rurais não assalariados, trabalhadores ocasionais e toda uma série de formas de trabalho ditas não formais. Cabe destacar que a ideia de marginalidade ainda é funcional na interpretação das desigualdades, como quando se trata de desempregados estruturais, ou nem-nem (nem-trabalha, nem-estuda) ou, ainda, poderíamos sugerir o uso desse conceito para o entendimento de movimentos de urgência, ou de sobrevivência, que se avolumam diante das condições sociais miseráveis de milhares de moradores em centros urbanos degradados, com aumento da população de rua, retorno da fome, etc.
  • 7
    Em seu sentido ontológico, a categoria “mundo do trabalho” engloba a práxis humana, o homem produzindo suas relações de existência na transformação da natureza, não cabendo qualquer discussão sobre formal ou informal. Entende-se, por exemplo, que o sobretrabalho relacionado aos processos de autoconstrução da habitação estaria englobado nesse entendimento ontológico, o que limitaria ainda mais a transposição da informalidade do trabalho para a informalidade do produto resultante: a casa, o assentamento, a cidade. Esse debate será retomado adiante.
  • 8
    Em debate com um dos amigos que leram este artigo, aos quais agradeço profundamente, levantou-se a questão sobre a possiblidade, naquele momento, de uma denominação alternativa, algo como setor complementar ou subsidiário, revelando um paralelo entre setores e, quem sabe, minimizando usos pejorativos. Há que se lembrar que, no mesmo período, Santos (1975)SANTOS, M. (1975). L'espace partagé: les deux circuits de l'économie urbaine dês pays sous- développés. Paris, Génin. propunha algo nesse sentido, os circuitos espaciais da economia urbana. A título de especulação, diria que as formulações originais tinham, efetivamente, a intenção de separar os circuitos, seja apenas para que se jogasse luz sobre um circuito negligenciado, seja no sentido de extingui-lo por assimilação ou erradicação.
  • 9
    Para Hart (2010)HART, G. (2010). D/Developments after the meltdown. Antipode, v. 41, pp. 117-41. DOI: 10.1111/j.1467-8330.2009.00719.x.
    https://doi.org/10.1111/j.1467-8330.2009...
    , nos países subdesenvolvidos, foram aplicadas as estratégias globais de Desenvolvimento, com “D” maiúsculo. Elaboradas, coordenadas e/ou apoiadas por agências internacionais, em parceria com os estados nacionais, o Desenvolvimento, como instrumento da geopolítica mundial, deve ser compreendido em termos do exercício do poder em múltiplas arenas interconectadas, inseparavelmente ligadas às dinâmicas sociais espacialmente desiguais do desenvolvimento capitalista (ibid., p. 122). Esses instrumentos da geopolítica são orientados e coordenados pelos estudos e programas das agências internacionais e combinados com o desenvolvimento local, com “d” minúsculo, suas prioridades e estratégias.
  • 10
    Sobre doctrine of trusteeship, conforme citada por Lewis e Hart, ver Cowen e Shenton (1996)COWEN, M.; SHENTON, R. W. (1996). Doctrines of development. Londres/Nova York, Routledge..
  • 11
    ILO (1972ILO - International Labour Office (1972). Employment, incomes and equality: a strategy for increasing productive employment in Kenya. Report of an Inter-Agency Team Financed by The United Nations Development Programme and Organized by The International Labour Office. Geneva, International Labour Office., p. 503): “This low-income sector is peripheral both literally and figuratively. In Nairobi it sprang out, and continue to grow, just outside the borders of the wealthy urban zone, to supply goods and services to the fortunate few inside that zone and to its own population. Figuratively, it is peripheral in that it has only fortuitous and restricted access to the sources of wealthy”.
  • 12
    Exemplos podem ser encontrados no estudo da pirataria e do desenvolvimento baseado na cópia, como foi o modelo chinês. Sobre pirataria, circuitos econômicos e flexibilidade tropical, ver Tozi (2013)TOZI, F. (2013). Rigidez normativa e flexibilidade tropical: investigando os objetos técnicos no período da globalização. Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo.. Sobre o modelo de desenvolvimento chinês, ver Chen e Lu (2016)CHEN, Z.; LU, M. (2016). Toward balanced growth with economic agglomeration. Berlin, Heidelberg, Springer Berlin Heidelberg., Garnaut e World Bank (2005)GARNAUT, R.; WORLD BANK (orgs.) (2005). China's ownership transformation: process, outcomes, prospects. Washington, DC, World Bank., Hsing (2010)HSING, Y. (2010). The great urban transformation: politics of land and property in China. Nova York, Oxford University Press. e Zi (2019)ZI, L. (2019). Online urbanization: online services in China's rural transformation. Singapore, Springer Singapore..
  • 13
    Ressalta-se a existência de mecanismos particulares de crédito, iniciativas que se desenvolveram e hoje florescem, por exemplo, nos bancos de crédito comunitários, inclusive com moedas próprias, como bem exemplificado no livro organizado por Silva (2020)SILVA, S. P. (org.) (2020). Dinâmicas da economia solidária no Brasil: organizações econômicas, representações sociais e políticas públicas. Brasília, Ipea. que traz uma série de capítulos sobre economia solidária, tratando a ideia de moeda social, bem como o uso prático desta que se poderia chamar “moeda alternativa” (Silva, 2020SILVA, S. P. (org.) (2020). Dinâmicas da economia solidária no Brasil: organizações econômicas, representações sociais e políticas públicas. Brasília, Ipea.).
  • 14
    O primeiro marco da articulação de agendas de agências multilaterais foi a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo (1972). Com forte ênfase, esse modelo se reforça nos anos 1990, sobretudo seguindo as recomendações e definições da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a ECO-1992, e da Agenda 21.
  • 15
    A Habitat I foi um produto da Conferência de Estocolmo. Considerando que Estocolmo tratava de problemas ambientais internacionais, a Habitat I foi convocada para tratar de problemas ambientais locais, como moradia, infraestrutura e serviços como transporte. De maneira semelhante, a Habitat II recebeu seu impulso da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Unced), de 1992, realizada no Rio de Janeiro. Agenda 21, Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) são produtos da interface de Conferências e estruturas temáticas da ONU.
  • 16
    Seguindo essa linha, em 1992, durante a ECO-92, autoridades locais e ONGs foram reconhecidas, pela primeira vez, como major groups em uma conferência da ONU.
  • 17
    Fazia parte da estratégia transformar as famílias em consumidores correntistas, bankables, nos termos do World Bank (1993)WORLD BANK (1993). Housing: enabling markets to work. Paper. Washington, World Bank Policy..
  • 18
    No estado neoliberal, a entrada de novos atores na governança urbana, em particular nas áreas precárias, permite ao Estado não se comprometer com investimentos em diversos serviços. As consequências dessa ausência do Estado são múltiplas. Bayat (2002BAYAT, A. (2002). Activism and social development in the Middle East. International Journal of Middle East Studies, v. 34, n. 1, pp. 1-28. DOI: 10.1017/S0020743802001010.
    https://doi.org/10.1017/S002074380200101...
    , p. 10) revela como grupos religiosos fundamentalistas se tornaram os principais provedores de serviços urbanos em “assentamentos informais” nos países do Oriente Médio. No caso das cidades latino-americanas, Davis (2004)DAVIS, M. (2004). Planet of slums: urban involution and the informal proletariat. New Left Review, v. 26, pp. 5-34. relata as igrejas neopentecostais emergindo nessas áreas como modelos de governança e de prestação de serviços.
  • 19
    Certos autores, como Stiphany e Ward (2019)STIPHANY, K. M.; WARD, P. M. (2019). Autogestão in an era of mass social housing: the case of Brazil’s Minha Casa Minha Vida – Entidades Programme. International Journal of Housing Policy, v. 19, n. 3, pp. 311-336. DOI: <https://doi.org/10.1080/19491247.2018.1540739>.
    https://doi.org/10.1080/19491247.2018.15...
    veem a NAU como portadora dos argumentos e das justificativas para a definição de políticas nacionais de autogestão e daquilo que porventura entendem como produção social da moradia, como o caso do Minha Casa Minha Vida Entidades.
  • 20
    A título de exemplo, a NAU referenda, pela primeira vez em uma conferência da ONU, a ideia de smart cities. Durante a Conferência, diversas foram as mesas de debate sobre o tema, com a presença de bancos, companhias e consultores internacionais. A ideia de smart cities faz parte dos documentos finais e é apresentada como uma das soluções para inúmeros problemas nos mais diversos contextos urbanos (Balbim, 2018BALBIM, R. (2018). "A nova agenda urbana e a geopolítica das cidades". In: COSTA, M. A.; THADEU, M.; FAVARÃO, C. B. (eds.). A nova agenda urbana e o Brasil: insumos para sua construção e desafios a sua implementação. Brasília, Ipea.).
  • 21
    Um dos amigos leitores deste artigo me presenteou com um exemplo clássico desse dualismo. Ver Lambert (1970LAMBERT, J. (1970). "A sociedade dualista e o contraste da estrutura social entre os dois Brasis". In: LAMBERT, J. Os dois Brasis. 6. ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional., pp. 101-125).
  • 22
    Esta constatação sinaliza para uma hipocrisia deste documento, pois a própria NAU, item 20, reconhece a necessidade de enfrentar as inúmeras formas de discriminação que grupos sociais como portadores de HIV, idosos, refugiados, etc. enfrentam, e inclui dentre esses grupos os moradores de favelas e dos “assentamentos informais”.
  • 23
    A favela estava na moda no final dos anos 1990. Uma indicação da relevância é a inauguração em Paris, em 1997, do famoso, à época, restaurante, bar e clube Favela-Chic. Seu ambiente sugeria a quebra de paradigmas através da informalidade das relações sociais e de uma decoração em patchwork. Van Ballegooijen e Rocco (2014)VAN BALLEGOOIJEN, J.; ROCCO, R. (2014). Urban informality and democratisation in Sao Paulo: the sinuous road to citizenship. In: PROCEEDINGS AESOP 2014 ANNUAL CONFERENCE "FROM CONTROL TO CO-EVOLUTION", s. n, 16. também apontam essa mistificação e romantização da favela e outras soluções de habitação não estatais por stararchitects, e salientam que essa avaliação positiva das favelas é, frequentemente, acompanhada de uma descrença nas políticas habitacionais públicas. Diversas são as concepções, simbólicas e concretas, do que é uma favela, slum, barrios, quebradas, etc. em cada país e língua. Desde o surgimento do termo em inglês, provavelmente em 1812, houve a associação a práticas comerciais criminosas, roubos e “malandragem” (racket) (Gilbert, 2007GILBERT, A. (2007). The return of the slum: does language matter? International Journal of Urban and Regional Research, v. 31, n. 4, pp. 697-713. DOI: 10.1111/j.1468-2427.2007.00754.x.
    https://doi.org/10.1111/j.1468-2427.2007...
    , pp. 700-702). A força desse conteúdo pejorativo é tamanha, que suas similaridades foram compondo o entendimento de todos os demais termos que, nas mais diversas línguas, designam assentamentos pobres, precários, irregulares, clandestinos, ou simplesmente inadequados segundo padrões sociais e morais de cada lugar, sociedade e época.
  • 24
    The campaign implies that cities can actually rid themselves of slums, an idea that is wholly unachievable” (Gilbert, 2007GILBERT, A. (2007). The return of the slum: does language matter? International Journal of Urban and Regional Research, v. 31, n. 4, pp. 697-713. DOI: 10.1111/j.1468-2427.2007.00754.x.
    https://doi.org/10.1111/j.1468-2427.2007...
    , p. 698).
  • 25
    A análise de relatórios e documentos do Cities Without Slums revela certo imediatismo na apresentação de resultados, representado, por exemplo, pela declaração do Reino do Marrocos, em 2018, afirmando que 58 de suas 85 cidades estavam “livres de favelas” (Atia Conference 2019, 2019). Além disso, parece haver, nesses documentos, uma forte influência das ideias de De Soto sobre a necessária segurança da titulação para que as famílias façam investimentos em melhorias habitacionais. Após décadas de autoconstrução em áreas juridicamente informais, em diversos países, parece ser empiricamente comprovado que tal afirmação não passa de uma falácia.
  • 26
    A ideia de a favela passar a fazer parte da cidade, via melhorias e conformidades, foi expressa por policymakers durante pesquisas realizadas para a avaliação do programa Habitar Brasil BID (HBB) e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Na perspectiva dos moradores, o objetivo desses programas deveria ser adentrar a cidade na favela, sem que esta deixasse de ser favela para se transformar em cidade. Os moradores também expressam o desejo de superação dos aspectos pejorativos associados à favela para que possam viver a cidade em sua totalidade (Balbim et al. 2013BALBIM, R. et al. (2013). TD 1903. Metodologia de avaliação de resultados: o caso das intervenções do PAC urbanização de favelas. Repositórios do Conhecimento do Ipea.).
  • 27
    Segundo o Banco, com o fortalecimento da democracia, governos locais estariam mais atuantes na prestação de serviços urbanos, concentrando mais poderes e interesses, sobretudo eleitorais, para lidarem com a questão das favelas. Concorre, ainda, para esse interesse a maior participação de ONGs e o fato de que as comunidades estariam mais “maduras” politicamente e prontas para pagar por serviços urbanos.
  • 28
    É importante notar que o federalismo brasileiro em geral, e particularmente na questão urbana, pode ser comparado a uma gangorra ou a um pêndulo. Em alguns períodos, a política emana dos municípios para o Estado nacional (nos anos 1990 e na constituição do Estatuto das Cidades, por exemplo), outras vezes, em sentido contrário. Segundo Cardoso e Ribeiro (2000)CARDOSO, A.; RIBEIRO, L. C. de Q. (2000). A municipalização das políticas habitacionais: uma avaliação da experiência recente (1993-1996). Relatório de Avaliação de desempenho dos 45 municípios estudados. Rio de Janeiro, Ippur/UFRJ., isso se dá seguindo uma lógica particular, denominada “descentralização por ausência" de políticas e definições do governo federal, fato claro com o final do Banco Nacional da Habitação (BNH), a crise do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e o neoliberalismo dos anos 1990. Essa tese é sustentada, como também revela Klink (2013)KLINK, J. (2013). Development regimes, scales and state spatial restructuring: change and continuity in the production of urban space in Metropolitan Rio de Janeiro, Brazil: scalar and spatial restructuring in Rio de Janeiro. International Journal of Urban and Regional Research, v. 37, n. 4, pp. 1168-1187. DOI: 10.1111/j.1468-2427.2012.01201.x.
    https://doi.org/10.1111/j.1468-2427.2012...
    , na ideia difundida durante os anos 1980, de que a democracia se consubstanciaria nos lugares, nos governos locais.
  • 29
    “Diversos outros municípios se destacaram por seu pioneirismo na previsão deste instrumento, incluindo-o em seus Planos Diretores antes da promulgação da lei do Estatuto das Cidades: Rio de Janeiro (AEIS, previstas no Artigo 107 da Lei Complementar n. 16/1992, compreendendo tanto áreas não utilizadas, subutilizadas ou ocupadas por ‘favelas, loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais, destinados a programas específicos de urbanização e regularização fundiária’), Belém (em 1993), Diadema, Natal e Vitória (em 1994), Belo Horizonte e Campinas (em 1996) e Porto Alegre (Brasil, 2001); no caso do último, o PD de 1999 foi o primeiro a prever o instrumento, que já vinha sendo implementado desde a edição da Lei Complementar n. 338, de 1995” (Balbim e Krause, 2014)BALBIM, R.; KRAUSE, C. (2014). Produção social da moradia: um olhar sobre o planejamento da Habitação de Interesse Social no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 16, n. 1, pp. 189-201. DOI: <https://doi.org/10.22296/2317-1529.2014v16n1p189>.
    https://doi.org/10.22296/2317-1529.2014v...
    .
  • 30
    O Programa Cities Without Slums apoiou, já no seu início, nos anos 2000, administrações progressistas nas cidades de São Paulo e Salvador e nos estados de Pernambuco e Rio Grande do Sul. Além disso, estabeleceu parcerias com a Universidade de São Paulo (USP) e com o Consórcio do ABC paulista.
  • 31
    O programa Favela-Bairro, instituído em 1995, a partir de uma parceria da Prefeitura do Rio de Janeiro com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) logrou melhorias urbanas em 168 favelas e loteamentos irregulares até o ano de 2008. Aclamado pelo BID, em 2005, como o mais ambicioso programa de reurbanização de favelas do mundo, o programa recebeu diversas críticas quanto à qualidade das intervenções e à falta de serviços sociais permanentes, fatos que contribuíram para a rápida deterioração das melhorias realizadas. Por outro lado, foi criado um vasto conhecimento sobre a necessária modelagem particular de cada intervenção em um programa que abarca diversas e distintas situações. Essa experiência, presume-se, deveria orientar o programa Morar-Carioca, que, associado ao PAC Urbanização de Assentamentos Precários, deu sequência ali à urbanização de favelas.
  • 32
    Em 1999, logo antes do lançamento mundial do Cities Alliance, o Brasil assinou acordo de empréstimo com o BID que, entre outras ações, criava o programa Habitar Brasil BID – HBB. Nota-se que tanto nas políticas locais de urbanização de favelas do final dos anos 1980 e anos 1990 quanto no HBB, que as recepcionou em 1999, expandindo suas ações para as principais cidades do país, há expressa diretriz de não remoção dos moradores, a não ser em casos de riscos, além da valorização das características comunitárias e da participação social. Analisando relatórios de todas as intervenções do HBB até 2011, (Balbim et al., 2012)BALBIM, R. et al. (2012). TD 1704. Meta-avaliação: estudos e proposições metodológicas a partir da avaliação de políticas de urbanização de assentamentos precários. Repositórios do Conhecimento do Ipea. apreende-se que, ao contrário do que a iniciativa Cities Without Slums pudesse implicar, as estratégias do HBB dificilmente envolviam remoções, e a questão da titulação era uma lógica secundária e, muitas vezes, negligenciada.
  • 33
    Precisamente, o termo “assentamento informal” aparece pela primeira vez em documentos oficiais brasileiros, de maneira pontual, no relato feito pelos participantes da Habitat II ao Senado Federal, em 1997.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    11 Mar 2022
  • Aceito
    5 Maio 2023
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