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Os grupos armados e a organização do trabalho no mercado imobiliário

Resumo

Este artigo é resultado de uma investigação mais ampla sobre o mercado imobiliário em favelas. Aqui me limito a caracterizar a ação dos grupos armados e o seu modo de organização nesse mercado. Na primeira parte, defendo que os grupos armados não são os únicos atuantes na promoção imobiliária nas favelas, ao contrário, há uma diversidade de agentes, e fundamento o crescimento e a lucratividade dessa atividade na própria dinâmica de acumulação inerente à sociedade capitalista. Na segunda e na terceira, busco caracterizar as estruturas organizativas do tráfico e da milícia no mercado imobiliário. Na conclusão, defendo a hipótese de que essas estruturas organizativas, na realidade, espelham a organização neoliberal do trabalho e se justificam a partir dela.

promoção imobiliária; grupos armados; milícia; tráfico de drogas; trabalho

Abstract

The article results from a broader investigation into the real estate market in slums. Here, I focus on characterizing the actions of armed groups and their mode of organization in this market. In the first section, I argue that the armed groups are not the only ones active in real estate promotion in the slums; on the contrary, there is a diversity of agents, and I ground the growth and profitability of this activity in the very dynamics of accumulation inherent in the capitalist society. In the second and third sections, I characterize the organizational structures of drug trafficking and the militia in the real estate market. In the conclusion section, I defend the hypothesis that these organizational structures, in fact, mirror the neoliberal organization of work and are justified by it.

real estate promotion; armed groups; militia; drug trafficking; work

Introdução

Este artigo é resultado de uma pesquisa sobre o mercado imobiliário em favelas que venho realizando nos últimos sete anos (2016-2023) na dissertação de mestrado (Kawahara, 2018KAWAHARA, I. Z. (2018). A produção do espaço na favela: elementos para a análise do mercado imobiliário. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro.) defendida no Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2016-2018) e na tese de doutorado (Kawahara, 2023KAWAHARA, I. Z. (2023). Mercado imobiliário em favelas: um estudo sobre os promotores imobiliários. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense.) desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (2019-2023), que tem continuidade no âmbito do núcleo do Rio de Janeiro do Observatório das Metrópoles.

Neste texto, abordo, especificamente, a ação dos grupos armados e o seu modo de organização no mercado imobiliário nas favelas do Rio de Janeiro. Na primeira parte, defendo que há uma diversidade de promotores imobiliários nas favelas que foram, frequentemente, negligenciados pelo senso comum, pelas políticas públicas e por estudos técnicos e acadêmicos, o que acabou reforçando o discurso, recentemente mobilizado pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, de que os grupos armados são os únicos com meios suficientes para realizar esse tipo de investimento nas favelas. Caracterizo, também, a promoção imobiliária nas favelas como um modo específico de acumulação rentista, cujo fundamento se encontra na própria dinâmica de acumulação capitalista que, por um lado, dispensa trabalho de forma crescente e, por outro, tende a aumentar as rendas fundiárias, gerando um tipo específico de renda de monopólio como resultado do incremento da demanda justamente nessa fatia do mercado. Na segunda e na terceira parte, busco caracterizar as estruturas organizativas do tráfico e da milícia no mercado imobiliário, identificando agentes relevantes, suas funções e as relações de interdependência que garantem uma coerência para a atividade desses grupos. Na conclusão, defendo a hipótese de que essas estruturas organizativas, na realidade, espelham a organização neoliberal do trabalho e se justificam a partir dela.

Devido à escassez de dados contínuos e de maior amplitude sobre o mercado imobiliário em favelas1 1 Hoje os únicos dados mais amplos que podemos mobilizar para a análise do mercado imobiliário nas favelas da cidade do Rio de Janeiro são: o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e as análises de imagens aerofotogramétricas realizadas pelo Instituto Pereira Passos – IPP. e ao agravamento dessa dificuldade no que diz respeito à atuação dos grupos armados nesse mercado, o levantamento empírico e o material de fontes secundárias utilizados neste artigo são de naturezas bastante heterogêneas:2 2 Para uma exposição mais completa do levantamento e análise das fontes apresentadas conforme Kawahara (2023).

  • levantamento e sistematização da bibliografia produzida no Brasil e na América Latina sobre o mercado imobiliário em favelas;

  • levantamento e sistematização dos estudos produzidos por instituições, como as prefeituras, a Fundação Getulio Vargas (FGV) e o Banco Mundial, sobre o mercado imobiliário em favelas;

  • monitoramento da produção e da circulação midiática sobre o tema; foram arquivados e categorizados 746 conteúdos midiáticos;

  • entrevistas semiestruturadas e em profundidade – sete com funcionários públicos e estudiosos atuantes em áreas de interesse, três com informantes qualificados moradores de favelas, cinco com proprietários de imóveis para aluguel, uma com proprietário de comércio, três com corretores e duas com representantes de associações de moradores atuantes em favelas;

  • análise e sistematização de denúncias movidas pelo ministério público contra as milícias e com denúncias sobre a produção imobiliária desses grupos.

Aqui também foi mobilizada, ainda que de forma menos sistematizada, a minha experiência em campo, especialmente no cadastramento de unidades habitacionais nos programas de regularização fundiária da Rocinha, do Complexo da Tijuca (que abrange as favelas do Turano, Formiga, Borel, Tijuaçu e Mata Machado), Manguinhos, Tijuquinha e Babilônia e Chapéu Mangueira entre 2013 e 2015.

Os promotores imobiliários

Abramo e Faria (1998ABRAMO, P.; FARIA, T. C. (1998). Mobilidade residencial na cidade do Rio de Janeiro: considerações sobre os setores formal e informal do mercado imobiliário. In: XI ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS (ABEP). Anais. Caxambu, pp. 421-456., p. 144) argumentam que os processos migratórios, o aumento da pobreza, a valorização do solo e a descontinuidade da produção habitacional pelo poder público geram uma demanda que, somada aos investimentos em urbanização estatal e autourbanização, resulta em um mercado imobiliário concorrencial nas favelas. Em sua leitura: “a favela, então deixa de ser solução para os problemas habitacionais das famílias de baixa renda, para se tornar assim como na cidade ‘legal’ num lugar de mercado” (ibid.). Posteriormente, o modelo apresentado por Abramo (2003ABRAMO, P. (2003). A dinâmica do mercado de solo informal em favelas e a mobilidade residencial dos pobres. Coleção Estudos Cariocas (Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro). Rio de Janeiro, n. 20030301., p. 1) divide o acesso à terra nas lógicas do mercado, do Estado e da necessidade. A lógica da necessidade seria resultado da incapacidade de universalização do acesso à habitação pelas lógicas do Estado e do mercado. O crescimento da necessidade habitacional somado à inelasticidade dos estoques produzidos por essa lógica gerariam o mercado concorrencial “informal”. Dessa forma, a lógica do mercado se dividiria em legal e ilegal (ibid.).

Esse modelo tem importantes implicações em sua leitura. Se a totalidade da “produção informal” é movida pela lógica da necessidade e, por consequência, a construção tem sempre como finalidade a ocupação familiar, os estoques imobiliários são limitados ao estoque existente produzido nesses moldes e às pequenas subdivisões e ampliações. A produção imobiliária orientada para o mercado está, a priori, interditada.

O mesmo argumento está presente em diversos autores que compõem as redes de pesquisa organizadas por Abramo (Info-Solo e InfoMercados-AL). Para Sugai (2009SUGAI, M. I. (2009). “Há favelas e pobreza na ‘Ilha da Magia’?” In: ABRAMO, P. Favela e mercado informal: a nova porta de entrada dos pobres nas cidades brasileiras. Porto Alegre, Antac, v. 10., p. 109): “visivelmente os atributos do imóvel como valor de uso suplanta o seu interesse como valor de troca, ou seja, a moradia interessa de imediato mais por suas qualidades de uso do que pela possibilidade de comercialização e investimento”. Para Jaramillo (2008JARAMILLO, S. (2008). Reflexiones sobre la "informalidad" fundiaria como peculiaridad de los mercados del suelo en las ciudades de América Latina. Territórios. Bogotá, v. 18-19, pp. 11-15., p. 29): “[…] esta forma de producción no está orientada al mercado, ni los bienes producidos en ella están destinados a convertirse em mercancias”. Para Briceño-Leon (2008BRICEÑO-LEON, R. (2008). Libertad para alquilar: el mercado informal de vivienda de Caracas. Territórios. Bogotá, v. 18-19, pp. 103-127., p. 105), o que impediu a percepção de que há um mercado imobiliário em favelas foi a “ética da necessidade”, isto é: “el mercado informal era malo pues rompía con el sustento ético que justificaba, o al menos compreendía y perdonaba la existencia de la vivienda informal urbana”. No entanto, para ele: “no se trata de la existencia de un casero dedicado a la explotación de otros, se trata de familias igualmente pobres que están procurando rentabilizar un bien que tienen” (ibid., p. 117). É curioso que o mesmo pressuposto ético utilizado para justificar a cegueira de outros autores diante da existência do mercado imobiliário nas favelas seja utilizado para negar qualquer tipo de produção imobiliária orientada para o mercado. A pergunta a se fazer, nesse caso, é: por que os proprietários imobiliários das favelas se limitariam à complementação de renda e à formação de fontes para a aposentadoria? A resposta de Briceño-Leon é: para não explorar famílias mais pobres (ibid.). Assim como o autor acusa os outros de justificar as favelas pela pobreza, ele justifica o mercado imobiliário como uma forma de sobrevivência e condena o lucro como um uso indevido da terra ocupada. Permanece a restrição do direito de propriedade nas favelas. A ideia de ilegalidade conduz uma moralidade implícita que, em um caso, limita a propriedade ao uso direto dos produtores e, em outro, à circulação de imóveis produzidos, inicialmente, para a moradia (apenas admitindo-se pequenos acréscimos).

A redução das favelas à posse familiar, realmente, continua sendo um pressuposto da formulação de políticas públicas e da compreensão das favelas de modo mais amplo. O trabalho desenvolvido por Abramo e pelos demais estudiosos do mercado imobiliário em favelas é de fundamental importância para o seu rompimento. No entanto, também são numerosas as contribuições, algumas anteriores, que indicam que a produção imobiliária orientada para o mercado não é algo novo, o que não deve servir para questionar a legitimidade da ocupação de terras pelas favelas, mas para compreender que a promoção imobiliária, nesses espaços, não nasce com a milícia ou com o domínio de grupos armados em geral e, muito menos, é atividade exclusiva deles.

A generalização da relação entre a promoção imobiliária e a ação de traficantes e milicianos teve efeito, por exemplo, nas políticas públicas. Nas eleições de 2020, o grande feito propagandeado pelo ex-prefeito Marcelo Crivella na repressão da atividade miliciana foi a demolição de mais de 200 edificações supostamente associadas à ação desses grupos. Eduardo Paes, ao assumir em 2021, firma uma parceria com o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) para a demolição de edificações ainda não ocupadas, anunciando mais de três mil demolições até 2023. O prefeito chegou a justificar remoções anteriores como a ocorrida na Vila Autódromo como um modo de repressão de grupos criminosos (Eduardo Paes, 2021). Houve, com a mesma justificativa, demolições na Maré. O jornal local, Maré de Notícias, questionou tal envolvimento, indicando, ainda, que as edificações estavam ocupadas há mais de um ano (Euclides, 2021). A justificativa que o prefeito utiliza para relacionar todas as novas construções ao crime está flagrantemente relacionada com a ideia de que a condição de pobreza das favelas impediria o desenvolvimento de uma produção imobiliária de mercado. Em suas irônicas palavras: “nunca vi pobre ter tanto dinheiro para fazer laje”.

Na realidade, a exploração direta da produção imobiliária pelos grupos criminosos parece, ao contrário, espelhar-se em uma dinâmica existente. Segundo um dos ex-milicianos entrevistado por Manso, referido pelo autor com a alcunha de Lobo, em 2002, quando o grupo se limitava ao mercado da segurança, eles já observavam o potencial do setor imobiliário:

Quando comecei a trabalhar com as milícias, a gente via passar um paraíba com um carro zero quilômetro, vindo lá do Rio das Pedras. A gente pesquisava, perguntava se era miliciano e eles diziam: ‘Não, o cara tem trinta lajes na favela’. Aí as milícias começaram a fazer igual. (Manso, 2020MANSO, B. P. (2020). A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo, Todavia., p. 13)

Um caso emblemático é o Empire State da Rocinha, prédio de 11 andares, com 77 quitinetes, que pode ser identificado em imagens de satélite pelo menos desde 2000. Esse caso é uma exceção em termos de magnitude, porém, nos projetos de regularização fundiária em que trabalhei, a presença de prédios com seis ou oito imóveis não foi rara. Entre os proprietários que entrevistei, um era funcionário público; herdou um terreno da sogra, comprou mais um terreno e construiu seis apartamentos, que pretende dividir em número maior de quitinetes para alugar com mais facilidade. Outro era sócio em uma loja de materiais de construção, vendeu a casa onde morava, em uma favela, e comprou um terreno em outra onde construiu quatro quitinetes e dois apartamentos para alugar. Um funcionário público e líder comunitário afirma ter comprado e reformado um prédio, resultando em dez apartamentos para alugar. Segundo Magalhães et al. (2012MAGALHÃES, A. F. et al. (2012). O mercado imobiliário de aluguel em favelas do Rio de Janeiro: 'informalidade' ou outras formas de formalidade? In: XV ENANPUR. Anais... São Paulo, v. 15, n. 1., p. 5): “nos casos estudados [Quinta do Caju e Parque Royal], já aparecem alguns ‘grandes proprietários’, como o de um comerciante que possui vinte imóveis em seu nome conforme os cadastros da Prefeitura, sem contar aqueles em nome de seus filhos”. Um funcionário público relatou conhecer um morador da Rocinha que, além do negócio, acumulou 22 quitinetes para alugar:

[...] eu entrevistei um cara lá que me contou que ele chegou aos treze, quatorze anos na Rocinha sem um tostão no bolso e sem ninguém para acolher, ele não conhecia ninguém, ele veio para o Rio do Nordeste e foi para a Rocinha. Quando eu estive com ele, ele tinha duas lojas de material de construção, um caminhão de entrega e 22 quitinetes para alugar. Ele falou uma frase, que eu até botei na proposta de pesquisa, “se o cara for tinhoso aqui na Rocinha ele enrica”. (Kawahara, 2023KAWAHARA, I. Z. (2023). Mercado imobiliário em favelas: um estudo sobre os promotores imobiliários. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense., pp. 246 e 247)

A identificação da promoção imobiliária nas favelas (e as situações ilustradas parecem, na realidade, muito comuns) tem algumas consequências importantes. Em primeiro lugar, a promoção imobiliária tem um modo de reprodução ampliado que tende a se generalizar. Os lucros de cada empreendimento possibilitam a produção futura, e a concorrência entre diversos promotores impulsiona uma produção crescente. Em segundo lugar, a promoção imobiliária tem uma parte importante dos seus ganhos baseada no incremento da renda fundiária decorrente da transformação e da intensificação do uso do solo. A crescente preocupação com a verticalização das favelas pode estar relacionada com a presença mais forte dos promotores imobiliários. Em terceiro lugar, a expansão da promoção imobiliária tende a produzir, em outros terrenos, uma renda fundiária condizente com a transformação produzida por esses agentes, por consequência, a renda acrescida torna-se uma barreira para outros tipos de produção (por exemplo, as habitações unifamiliares), reforçando tal generalização. Por último, a renda tem um caráter homogeneizador sobre a tipologia construtiva. Ao identificar um tipo de produto imobiliário mais lucrativo, os promotores tendem a reproduzi-lo até que ele seja substituído por outro que gere ainda mais ganhos. A recorrência das quitinetes para aluguel nos depoimentos dos promotores imobiliários pode ter esse fundamento.

A preferência pelo aluguel tem sido destacada com frequência pelos promotores imobiliários que entrevistei. As justificativas são: a garantia de um ganho permanente, o valor favorável dos aluguéis em relação à venda e a maior facilidade de encontrar locatários do que compradores, devido à capacidade de pagamento da demanda que se apresenta. Além disso, outros entrevistados indicam que a facilidade para a realização de despejos e o aumento do número de trabalhadores em cargos temporários podem ser fatores que favorecem a locação de imóveis.

Para Abramo (2007)ABRAMO, P. (2007). A cidade com-fusa: a mão inoxidável do mercado e a produção da estrutura urbana nas grandes metrópoles latino-americanas. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 9, n. 2, pp. 25-64., um dos mistérios do mercado imobiliário em favelas é o preço alto em relação ao restante da cidade e que os aluguéis são ainda mais elevados.3 3 Segundo o autor, o preço dos aluguéis nas favelas do Brasil, em 2006, era em média 2,37% do preço de comercialização, enquanto os preços dos imóveis no restante da cidade tendem a estar abaixo de 1% (Abramo, 2007, pp. 40-41). A hipótese com a qual eu tenho trabalhado é a de que a própria dinâmica do capital e o modo como se estrutura o mercado imobiliário no restante da cidade podem justificar os elevados ganhos nas favelas. Para Marx (2011MARX, K. (2011). Grundrisse. São Paulo, Boitempo. Edição original de 1857/1858., pp. 588-589), o capital é contradição em processo pelo fato de que por meio do desenvolvimento técnico “procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza”. A produção de uma superpopulação relativa é a lei geral da acumulação capitalista (Marx, 2013MARX, K. (2013). O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. São Paulo, Boitempo. Edição original de 1867.). A outra face do mesmo processo é o contínuo crescimento das rendas fundiárias resultante do capital incorporado à terra a cada revolução técnica (renda diferencial). Topalov (1984TOPALOV, C. (1984). Ganancias y rentas urbanas: elementos teóricos. Madrid, Siglo Veintiuno., pp. 242-243) acrescenta que o loteamento e a produção habitacional, nos limites das cidades, geram um aumento súbito de capital investido por unidade de superfície nessas áreas (renda absoluta), o que rebaixa a produtividade e as vantagens locacionais dos terrenos que servem de base para as rendas diferenciais, isto é, cada novo loteamento incorporado na produção habitacional eleva as rendas diferenciais no restante da cidade. A dispensabilidade do trabalho (que tem, por consequência, a redução relativa dos salários), em conjunto com a tendência à elevação das rendas fundiárias, gera uma demanda crescente, justamente nas habitações produzidas para a população mais pobre onde, segundo Marx, predomina o preço de monopólio (2017, pp. 833-834). Ribeiro (2015RIBEIRO, L. C. de Q. (2015). Dos cortiços aos condomínios fechados: as formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Letra Capital., p. 208) identifica o mesmo processo nos cortiços do Rio de Janeiro no século XIX. Para o autor, o surgimento precoce de um exército industrial de reserva e a baixa mobilidade geraram uma situação de monopólio favorável à produção rentista da habitação. No nosso caso, a mobilidade, ainda que restrita, é muito maior. No entanto, a barreira com relação a outros segmentos do mercado imobiliário continua significativa, não apenas pelos preços, mas devemos considerar um conjunto de custos vinculado ao local de moradia, as exigências impostas para o aluguel de um imóvel ou para a cessão de empréstimos e até as possibilidades de inserção social de determinadas pessoas em determinados meios.

Esse tipo de renda de monopólio exige que o promotor imobiliário considere a capacidade de pagamento de sua demanda e, ao mesmo tempo, permite extrair o máximo dessa capacidade. A incidência das quitinetes pode ser resultado desse tipo de cálculo. Se as rendas de monopólio dependem mais da capacidade de pagamento da demanda do que do produto imobiliário, considerando a impossibilidade de a demanda fluir para outros mercados, produzir o máximo de habitações no mínimo de espaço pode ser um meio de potencialização dos lucros. No entanto, mesmo no interior das favelas, parece haver uma segmentação do mercado imobiliário. Ainda que o poder de monopólio dos promotores possibilite reduzir as condições de habitação para aumentar os ganhos, os quartos para aluguel, as habitações em porões e em áreas de alto risco geológico, por exemplo, devem ser limites que o promotor não pode ultrapassar para manter a demanda. Também foi indicado, entretanto, que habitações maiores predominam na promoção imobiliária em determinadas áreas, recebendo pessoas de outras partes ou de outras favelas que “melhoraram de vida” e pessoas expulsas de segmentos mais altos do mercado imobiliário devido ao aumento dos preços ou à deterioração das condições de vida.

A promoção imobiliária, nesse quadro, não é apenas uma barreira que impede a população mais pobre de acessar a moradia na favela. Ainda que restrinja o acesso à terra, a capacidade de verticalização e os ganhos de escala podem permitir o barateamento do produto imobiliário, além de aumentar os estoques imobiliários, significando, muitas vezes, o único meio de acesso à habitação para parte da população sem recursos mesmo para a autoconstrução. Isto é, ainda que possa resultar em uma queda das condições gerais de habitabilidade, para garantir a lucratividade a promoção imobiliária deve se estabelecer como um meio de acesso à habitação. O predomínio das quitinetes para aluguel tem sido justificado como um modo de adequar o produto à demanda.

O que do ponto de vista do mercado imobiliário em geral é uma demanda imobiliária insolvável (referentes às necessidades habitacionais das cidades) é convertido em potencial demanda do mercado imobiliário em favelas. A incapacidade de a demanda fluir para outros tipos de produção habitacional resulta em uma dificuldade adicional para a restrição da promoção imobiliária, mesmo nos casos em que a sua atividade está vinculada ao tráfico ou à milícia. A ocupação desses imóveis constitui uma espécie de “barreira humana” que dificulta a sua demolição. Mesmo a antecipação da fiscalização parece ser impedida de se generalizar pela força dessa demanda. Benmergui e Gonçalves (2019)BENMERGUI, L.; GONÇALVES, R. S. (2019). Urbanismo miliciano in Rio de Janeiro. NACLA Report on the Americas, v. 51, n. 4, pp. 379-385. já indicaram essa dificuldade. Para os autores, na tentativa da prefeitura de demolir edificações produzidas pela milícia, a Defensoria Pública ficou em uma encruzilhada, em que defender os moradores que adquiriram legalmente suas propriedades parece resultar em benefícios indiretos para a milícia. Considerando a falta de capacidade do poder público de produzir alternativas para a população atingida, o direito à habitação também parece em risco nessa encruzilhada.

Promoção imobiliária da milícia

No dia 14/1/2019, foi emitida uma denúncia movida pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MPRJ (2019) baseada em investigação realizada por meio de escutas telefônicas, quebra de sigilo telemático e de dados bancários e fiscais4 4 Autorizadas pelo Processo n. 0243673-27.2018.8.19.0001. e relatos de crimes recebidos pelo canal Disque-Denúncia. A principal facção investigada é o “Escritório do Crime”, atuante na Muzema, no Rio das Pedras e nas adjacências, acusado de organização criminosa.5 5 A denúncia indica que, ao longo das investigações, foram identificados os crimes de “poder paralelo ao Estado, com envolvimento em grilagem, construção, ramo imobiliário com venda e locação ilegais de imóveis, receptação de carga roubada, posse e porte ilegal de arma de fogo, extorsão de moradores e comerciantes da região mediante cobrança de taxas referentes ao “serviços” prestados pela malta, ocultação de bens adquiridos com os proventos das atividades ilícitas praticadas através da utilização de “laranjas”, falsificação de documentos públicos, pagamento de propina a agentes públicos, agiotagem, utilização de ligações clandestinas de água e energia para o abastecimento dos empreendimentos imobiliários ilegalmente construídos, prática de homicídio, uso da força como meio de intimidação e demonstração de poder e mantença da dominação territorial”. (Gaeco/MPRJ, 2019, pp. 11-12) Para o cumprimento da prisão dos milicianos investigados foram realizadas: em 22/1/2019, a operação “Intocáveis I”; em 30/1/2019, a operação “Intocáveis II”; em 2/9/2020, a operação “Intocáveis III”.

No dia 13/6/2019, foi emitida uma denúncia pelo Grupo de Atuação Especializada em Meio Ambiente (Gaema) do MPRJ (2019), resultado da autorização do compartilhamento das provas coletadas em todo o processo que envolve a operação “Intocáveis” e pela atuação do Gaema/MPRJ nas áreas em questão. Essa denúncia é o desdobramento de uma investigação deflagrada em 2014 pelo Inquérito Civil MA n. 7925, que apura a prática de supressão irregular de vegetação e movimentação de minerais na Muzema e em suas proximidades.6 6 A denúncia adiciona os crimes de: “supressão de vegetação protegida, dano às áreas circundantes ao Parque da Tijuca, extração de recursos minerais sem autorização do órgão competente, parcelamento clandestino do solo para fins urbanos, falsificação de documentos, corrupção de agentes públicos, ligações clandestinas de água e energia para abastecimento dos empreendimentos imobiliários construídos ilegalmente, ocultação de bens adquiridos com os proventos das atividades ilícitas e outros delitos necessários para o êxito da exploração imobiliária clandestina, a fim de promover a ocupação, construção, venda, locação, regularização, financiamento e outras atividades relativos a imóveis”. (Gaema/MPRJ, 2019, p. 11)

Vale destacar, como poderá ser visto adiante, que há uma centralidade do mercado imobiliário em ambas as denúncias. Ainda que o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das milícias, já em 2008, tenha inúmeras menções a crimes ligados a esse mercado, percebe-se uma ênfase maior na taxação dos comércios e serviços e no domínio sobre o transporte alternativo. As milícias acabam sendo conhecidas por esse tipo de exploração econômica. É difícil precisar se ignoramos por muito tempo a importância do mercado imobiliário para as milícias ou se esta é uma mudança efetiva em sua prática; talvez, os dois.

O fato de a CPI das milícias ter se fundamentado em denúncias levantadas pelo Disque-Milícias e por outras acusações anônimas e o material mais recente produzido pelo MPRJ ter acesso à comunicação entre os milicianos também pode ser um elemento importante, considerando que as delações contra as milícias, até hoje, são concentradas nos modos de extorsão desses grupos. Para Manso (2020MANSO, B. P. (2020). A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo, Todavia., p. 96), a população evitava denunciar a produção imobiliária das milícias, pois: “os milicianos, afinal, disponibilizavam aos moradores bens de primeira necessidade, algo que o Estado não conseguia fazer”.

Segundo os Censos do IBGE de 2000 e 2010, a população de Rio das Pedras cresce de 39.506 em 12.101 domicílios em 2000 e para 54.776 em 18.692 domicílios em 2010. A Muzema tem um crescimento mais impressionante, de 358 pessoas em 110 domicílios, em 2000, para 4.503 pessoas em 1.528 domicílios em 2010. A dúvida é o quanto dessa produção foi executada pela milícia.

Apesar de não termos dados para dimensionar a produção da milícia, pode-se afirmar que além de constituir um negócio altamente lucrativo, a produção imobiliária impulsiona o consumo local, aumentando o número de empreendimentos e o lucro de cada um deles, o que aumenta as possibilidades de taxação, tanto sobre os comerciantes como diretamente sobre o consumo (gás, transporte, TV a cabo, entre outros) e sobre o serviço de segurança oferecido diretamente pela milícia. Outro resultado do aumento populacional é o incremento de poder político, considerando o controle eleitoral frequentemente exercido. Uma vez estabelecido o domínio territorial, a promoção imobiliária passa a ser o motor do crescimento econômico e político das milícias.

A denúncia produzida pelo Gaema/MPRJ (2019) indica uma estrutura empresarial que fornece coerência para a prática de agentes aparentemente atomizados. A organização não parece centralizada, mas foi identificada uma divisão funcional bem definida:

  • os sócios empreendedores atuam em sondagem de novas terras a serem ocupadas, ocupação, parcelamento do solo, gerenciamento das obras, divisão, venda, locação, administração e financiamento de imóveis, supressão de vegetação, desmonte e transporte de terras e minerais, ocultação de bens adquiridos, falsificação de documentos, pagamento de propina e uso de influência política com agentes públicos, utilização de ligações clandestinas de água e energia e em todas as demais atividades necessárias para a exploração do ramo imobiliário (ibid., pp. 15-16);

  • os sócios investidores adquirem unidades imobiliárias dos sócios empreendedores, em fase de planejamento ou de construção, por preços mais baixos, buscando ganhos futuros com a venda e o aluguel desses imóveis7 7 “Renato diz que passou para eles o valor de R$150.000,00 (cento e cinquenta mil reais), mas que no preço de investidor o imóvel fica R$120.000,00 (cento e vinte mil reais)”. (Gaema/MPRJ, 2019, p. 82) (ibid., pp. 16-17). Esses agentes garantem liquidez para os sócios empreendedores, facilitam a administração dos imóveis alugados e aceleram o escoamento da produção;

  • os corretores fazem a busca de clientes e de terrenos passíveis de ocupação, administram a venda e a locação dos imóveis (ibid., p. 17); além de acelerar a venda dos imóveis, este pode ser um meio de aumento do número de imóveis que cada proprietário é capaz de administrar;

  • os engenheiros e arquitetos (alguns deles, servidores públicos) elaboram projetos, laudos técnicos de segurança construtiva e outros documentos e estudos necessários para a regularização dos imóveis, realizam consultas aos cadastros imobiliários e encaminham os processos de legalização (ibid.);

  • os receptores adquirem e dão vazão aos bens e direitos creditórios adquiridos como parte do pagamento de unidades imobiliárias e de outras dívidas, além dos bens expropriados pela milícia (ibid., p. 18);

  • os laranjas assumem a titularidade jurídica de propriedades fundiárias, dos contratos com as concessionárias de energia e água,8 8 “VM: Patrão. MANUEL: Fale. VM: Esse relógio aqui do lado do João vai ficar no nome de quem? MANUEL: Bota qualquer diabo aí. VM: Vou botar no do Izamar então”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p. 30) das empresas, das contas bancárias e dos contratos de aluguel e a responsabilidade das obras perante os fiscais a fim de ocultar os verdadeiros proprietários e o modo de organização do grupo, além de atuarem na fiscalização das obras e no monitoramento da movimentação de policiais e fiscais do poder público;

  • os fiscais de obra e os mestres de obra atuam coordenando e fiscalizando os pedreiros e demais prestadores de serviços de construção civil (ibid., p. 19);

  • a assessoria administrativa realiza a gestão dos condomínios, a propaganda dos imóveis a serem vendidos ou alugados e dão apoio logístico aos proprietários, como a entrega e o depósito de títulos de crédito, valores e documentos relacionados às negociações imobiliárias (ibid., pp. 18 e 19).

O centro da operação parece ser os sócios empreendedores. Eles buscam sócios investidores para levantar recursos para a realização das obras, acionam os receptores para dar vazão aos bens e títulos creditórios recebidos como parte do pagamento, colocam em movimento os recursos dos sócios investidores para a contratação e compra de materiais de empresas e de profissionais parceiros (que, muitas vezes, são dos próprios empreendedores, ainda que em nome de laranjas), gerenciam as obras e repassam a gestão dos empreendimentos para a assessoria administrativa, os corretores e os laranjas. Durante e após as obras, o conjunto dos proprietários (sócios empreendedores e sócios investidores) realiza a venda e o aluguel dos imóveis, contando com a contratação de corretores e outros profissionais e empresas do ramo.9 9 Inclusive um dos sócios empreendedores preocupado com uma possível queda dos preços diz: “O que que eu vou fazer? Eu contratei uma agência de marketing, né? Eles estão fazendo o impulsionamento no google, facebook, instagram... eu vou botar aquele negócio para andar, entendeu? Aí tô colocando dois corretores, que vão revezar... pra alugar garagem, pra alugar apartamento, pra vender apartamento. Vô colocar o teu no pacote aí, pra gente alugar...”. (Gaema/MPRJ, 2019, pp. 63-64) Nos contratos de venda e locação, os laranjas também são acionados para dar uma aparência mais difusa para a propriedade dos empreendimentos. Nesse processo, o laranja também pode se tornar um dos administradores dos aluguéis.

Os laranjas, apesar de não terem centralidade no comando do processo, estão presentes na maior parte da operação e são fundamentais para a ocultação da organização criminosa. Eles são os proprietários de direito das empresas de construção civil, das lojas de material de construção, das locadoras de ferramentas e maquinário, das corretoras e de outras empresas que envolvem a promoção imobiliária e dos bens de consumo explorados pelas milícias. Além de estender o domínio das milícias sobre a maior parte possível da cadeia produtiva, a utilização desse recurso permite a abertura de várias empresas do mesmo ramo para reduzir as suspeitas e os impactos das prisões realizadas. Além disso, a dispersão dos recursos e das operações reduz a carga tributária sobre os empreendimentos.10 10 Como demonstra a fala de um dos sócios empreendedores. “E a outra também eu preciso porque eu compro muita coisa tem que ter um bocado de CNPJ pra fugir do imposto entendeu”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p. 58) Os laranjas também são acionados para assumir a propriedade e os contratos de compra, venda e aluguel dos imóveis.11 11 “Nesse sentido, a quebra de sigilo bancário e fiscal demonstra a existência de oito depósitos em favor de conta titularizada por BRUNO, no valor total de R$ 67.727,10, cujo remetente foi Escavusca Comércio de Alimentos (proprietário da franquia Domino’s acima mencionada), ao passo que nenhum depósito em favor de FERNANDO foi detectado”. (Gaema/MPRJ, 2019, pp. 38-39) Isso dificulta a identificação dos promotores imobiliários, tanto para o poder público e os pesquisadores – que encontram nos registros uma propriedade muito mais difusa do que é de fato – como para os moradores que, ao comprarem ou alugarem um imóvel, podem nunca entrar em contato com o seu real proprietário. Além disso, os laranjas podem permitir a administração de um número muito maior de imóveis, já que, em muitos casos, essa responsabilidade é terceirizada.12 12 Um trecho das escutas telefônicas revela uma negociação entre um laranja e um corretor e, em seguida, a autorização do proprietário de fato para a realização da venda do imóvel. “CORRETOR: Fala comigo. MANOEL: O cara não dá Cento e Vinte na mão não? CORRETOR: Não, só tem cento e dez. [...] MANOEL: Homem, vê se bota a sua comissão aí em cima. CORRETOR: Ele não tem dinheiro nenhum, não tem dinheiro nenhum, não tem um real mais, tá cento e dez na agulha. MAURÍCIO: Fala meu amigo, é o Maurício. CORRETOR: Fala Maurício! MAURÍCIO: O cara quer pagar os cento e dez? CORRETOR: Ele só tem os cento e dez na mão, não tem mais um real. MAURÍCIO: Pode pegar” (Gaeco/MPRJ, 2019, p. 19).

Uma característica específica das favelas é que os contratos com as concessionárias de água e luz, muitas vezes, são usados como comprovantes de propriedade dos imóveis diante do poder público, em especial em processos de regularização fundiária. Por isso, os proprietários frequentemente mantêm a titularidade desses contratos.13 13 “A conta de luz geralmente está na conta do proprietário e aí o cara acaba sendo acionado pela light, o nome do cara vai pro SPC, o inquilino vai lá, faz um gato e aí como é que você fica?”. (Kawahara, 2018, p. 149) No caso da produção imobiliária miliciana, a titularidade dos contratos também é repassada para os laranjas. Muitas vezes, o mesmo laranja assume a titularidade das propriedades, das empresas e dos contratos com as concessionárias.14 14 “O referido diálogo revela que uma das manobras utilizadas pela organização criminosa para o abastecimento de energia dos empreendimentos imobiliários era o registro dos relógios em nome de terceiros, “laranjas” da matilha. Um dos principais “laranjas” é Isamar Moura, um dos sócios da empresa ConstruRio Mz, outro empreendimento da organização criminosa”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p. 30)

As reportagens nos jornais de grande circulação pressupõem, em parte pela pressa de indicar que as construções oferecem risco de ruir, que os empreendimentos das milícias são produzidos sem supervisão técnica. Esse pressuposto carrega certa ingenuidade, levando em conta que a falta de acesso a esses profissionais só seria possível se eles fossem incorruptíveis e se não fosse possível para os próprios milicianos se capacitarem nessas áreas, ou que a milícia não se importasse com a qualidade construtiva e com a repercussão de possíveis desabamentos. Um dos entrevistados indica o contrário: a milícia na Muzema e em Rio das Pedras, para evitar desabamentos que chamariam a atenção do poder público, pune os construtores responsáveis por possíveis acidentes com a expropriação do terreno.15 15 “Se eu sou o construtor, construo e meu prédio cai, a associação de moradores me tira o terreno”. (Kawahara, 2023, p. 162) Isso, ao mesmo tempo, amplia o domínio da milícia sobre a produção imobiliária. A contratação de profissionais capacitados no ramo da engenharia e da arquitetura e urbanismo também foi, de fato, revelada pelas denúncias. No documento emitido pelo Gaema/MPRJ, uma das denunciadas é uma engenheira e servidora pública que encaminha os processos e assume a responsabilidade técnica dos estudos e desenhos necessários para a regularização dos empreendimentos. Ela parece ser um membro orgânico da milícia, uma vez que, além de prestar trabalhos técnicos, é sócia em empresas do grupo e esposa de um dos milicianos denunciados. Em outro trecho da denúncia, um dos milicianos diz que está encaminhando uma planta de desmembramento executada por um arquiteto para a aprovação na prefeitura.16 16 “A gente tá desmembrando na Prefeitura. É uma plantinha que tem que aprovar na Prefeitura. O arquiteto já fez...”. (Gaema/MPRJ, 2019, p. 37) Outro trecho indica que um dos empreendedores da milícia tem contato direto com um engenheiro que é projetista da organização criminosa.17 17 “Indivíduo não identificado, possível engenheiro projetista dos diversos empreendimentos imobiliários da organização criminosa, dá conta da venda de uma das lojas da malta na comunidade de Muzema para a Igreja Universal”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p. 28) Outro miliciano diz que está realizando um levantamento com um engenheiro e que já tem a topografia e a sondagem do terreno.18 18 “Tá, eu tô levantando ali pra poder fazer, já tem topografia, sondagem, tenho tudo ali. Eu tô levantando com o engenheiro e que é a parte de obra né. Mas você também já tem essa experiência né, Thiago? Tu fez ali né? Você que fez ou terceirizou?”. (Gaema/MPRJ, 2019, p. 58)

Ainda que haja uma divisão funcional, os agentes parecem ter certa autonomia. Cada um deles investe e constrói da forma que entende ser mais conveniente, no entanto, há regras internas que impedem que ocorram conflitos mais abertos que poderiam prejudicar ou mesmo inviabilizar a promoção imobiliária da milícia e diversas convergências de interesses provenientes da dependência mútua dos agentes. Por exemplo, os sócios investidores, ao mesmo tempo em que pressionam os sócios empreendedores a entregarem os imóveis o mais rápido possível, são obrigados a colaborarem com a execução das obras e com o impedimento das investigações e fiscalizações do poder público, já que um embargo ou demolição, na prática, significa a deterioração ou perda completa do investimento aplicado durante todo o processo. Os sócios investidores também auxiliam na busca por novos receptores para garantir a liquidez necessária para a realização das obras no menor tempo possível.19 19 Em conversa com um sócio investidor, um sócio empreendedor solicita ajuda para a busca por novos receptores para dar conta do fluxo de caixa. “Eu recebo, por exemplo, o mercado. O mercado, eu tô entregando pra ele agora, em dezembro, né? Com exceção a esse pedacinho de obra, ele tem que me pagar 700 mil em dez vezes, dez cheques ou 10 promissórias, com a garantia do imóvel. Porra, se tu tiver alguém... às vezes eu preciso, né irmão... porque o meu negócio aqui, o meu fluxo de caixa é pesado, irmão, às vezes descasa. [...] Às vezes eu preciso queimar um chequinho desses... ou dois, ou três. Eu vendi um negócio para uma igreja agora, não é igreja evangélica não, é uma igreja católica, ela me comprou um andar daquele de garagem. [...] Então eu vendi um negócio para eles... 10 parcelas de 100 mil. Eles deram um sinal de 50, aí vão dar mais 50 na escritura, que é do corretor, e vou ter nove de 100. Porra, também é um negócio que se tiver alguém para trocar, fazer um dinheirinho, entendeu? Troca um, troca dois, a gente vai conversar irmão, a gente tem muito negócio para fazer”. (Gaema/MPRJ, 2019, pp. 56-57) Os preços também são combinados de modo que o sócio investidor ou o sócio empreendedor não prejudique os concorrentes, seja baixando os preços gerais, seja atrasando as vendas de outros agentes.20 20 “É cara, senão, pô, pega malzão, eu vender mais barato. Se for um negócio é... de ocasião, entendeu? E também eu não poderia falar com eles... eles pagam na hora, mas aí os caras vão ficar depois mal acostumados, entendeu? Eles pagam 130 lá, dá um por cento de renda para eles, entendeu, irmão?”. (Gaema/MPRJ, 2019, p. 56) O estabelecimento dessas regras internas, no entanto, parece ser resultado de uma estrutura fortemente hierarquizada, incluindo, em diversos casos, decisões arbitrárias e favorecimentos pessoais sem qualquer possibilidade de contestação.21 21 “MANOEL: “Meus dez eu to contigo, é teu entendeu, pode deixar o teu lá, eu to contigo, é teu, agora eu não posso chegar e falar pro Mauricio que o Marquinhos não pode entrar. FRANK: Mas o Mauricio não sabia do acordo né? MANOEL: Ele manda em tudo, como ele não vai mandar no prédio entendeu?”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p. 20)

Os meios de aquisição dos terrenos e dos imóveis pela milícia da Muzema e de Rio das Pedras são diversos. Os relatos indicam: compra,22 22 “Antônio: “A área é muito boa. É firme. Dá para fazer um loteamento do caralho. [...] Bruno: E ele tá pedindo quanto? Antônio: Não... aí o coroa é maluco... eles lá tão passando um filme na cabeça deles... são 6 posseiros... cada posseiro quer setecentos mil e ainda tem que dar parece que três milhões para o Alfredo”. (Gaema/MPRJ, 2019, p. 46) troca por parte dos imóveis produzidos,23 23 Biagio: “[...] Aí, bem, pra isso, a gente tem que fazer: tem que dar 2 e 100 pro cara lá que tá vendendo, e a gente vai fazer um documento que a gente fica dono de 2/3 do empreendimento e 1/3 é pra recuperação dele”. (Gaema/MPRJ, 2019, p. 58) ocupação de terras públicas24 24 Regueira, Boasson e Brasil (2018) relatam que uma praça foi invadida pela milícia, que construiu no local uma casa de shows. e expropriação por mecanismos regulatórios da associação de moradores ou por dívidas resultantes do sistema de extorsão.25 25 “Os envolvidos recolhem taxas referentes ao gatonet (cinquenta reais), internet (setenta reais), gás (noventa reais) e gato de luz (cem reais) por residência. Relata que os moradores que não pagarem são expulsos de suas próprias residências, que depois são alugadas de forma irregular pelos envolvidos”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p. 83) A compra é o meio mais recorrente na denúncia. Muitas vezes, glebas inteiras são compradas de um ou mais posseiros. A troca tem um complicador a ser levado em conta: ao ceder parte dos imóveis para o proprietário da terra, ele acaba se tornando um sócio investidor, ou seja, esse mecanismo exige certo nível de confiança e de inserção do vendedor nos esquemas milicianos para não “contaminar”, termo expressivo utilizado em uma das ligações, os empreendimentos. Os terrenos, muitas vezes, são desmembrados, especialmente se forem grandes glebas, podendo ter partes vendidas para sócios investidores, seja em terrenos ou em quotas, partes a serem entregues na forma de apartamentos para viabilizar o investimento. A ocupação de terras públicas é vista como o modo mais inseguro de aquisição de terrenos. Segundo um dos investigados, “[...] construções em áreas públicas... praças, recuos... as pessoas que têm imóveis nessas condições, essas vão estar eternamente preocupadas com isso” (Gaema, 2019, p. 83). Talvez por isso, essas áreas costumam ser utilizadas para estacionamentos, casas de show ou para a venda a terceiros, em especial comerciantes.26 26 “Estão vendendo as calçadas das casas para colocação de barracas e na beira do rio também vendeu pontos para barracas. No início do areal, onde existia uma escola municipal que desabou, ocuparam o terreno e transformaram em estacionamento”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p. 35) A expropriação tem um duplo caráter: ela é meio de ampliação da produção imobiliária miliciana e meio de punição de moradores que não cumprem os seus “compromissos”. Como já vimos, a milícia expropria terrenos de proprietários responsáveis por imóveis que colapsaram. Dessa forma, os milicianos conseguem reduzir a ocorrência de desabamentos que poderiam afetar a sua produção e o seu domínio territorial e, ao mesmo tempo, ampliam os seus estoques imobiliários quando o fato ocorre. É como uma cobrança pelo prejuízo causado com a paralização das obras e um investimento na ocultação da prática criminosa, além do custo político causado. A expropriação também é um meio de cobrança de dívidas27 27 “Eles cobram cerca de R$50,00 mensais de cada comerciante, realizam prática de agiotagem e se apropriam de terrenos para revender”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p. 22) que gera terrenos para as milícias e evita o uso da violência física explícita em casos de inadimplência. O segredo aqui é “limpar” a atividade criminosa através de uma relação monetária, isto é, a expropriação é justificada pela dívida, ainda que o fundamento da dívida seja tão espúrio como os esquemas de extorsão praticados. Uma possibilidade que não se deve ignorar é de a milícia gerar dívidas impagáveis, sabendo que são impagáveis, a procura de novos terrenos pelos quais ou não querem se onerar, ou não querem se submeter à escolha do proprietário de vender ou não.

Um meio fundamental da dominação territorial das milícias parece ser o controle sobre as associações de moradores. Na Muzema e em Rio das Pedras, a associação de moradores, além de ser a instituição mediadora na cobrança das taxas de segurança, também organiza os encargos impostos sobre o comércio, o transporte, o gás e outros serviços. No entanto, a associação de moradores também é um meio importante de mediação da relação dos grupos criminosos com o poder público (inclusive são procurados para negociar a implementação de projetos com os grupos criminosos) e de regulação da construção.

Nos relatos coletados pelo MPRJ no Disque-Denúncia, foi indicada a organização, a partir da associação de moradores de Rio das Pedras, de extorsão de comerciantes e moradores,28 28 “Na comunidade Rio das Pedras, localiza-se a associação de moradores onde podem ser encontrados diariamente, a partir das 13h, os milicianos "Dalmir Pereira Barbosa", "Mauricio Silva da Costa", "Adriano Magalhães da Nóbrega" e "Jorge Alberto Moretti", vulgo "Beto Bomba" (não caracterizados), que extorquem os comerciantes e moradores do local”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p. 40) instalação clandestina de internet, venda ilegal de botijões de gás,29 29 “[Os membros da organização] cometem os crimes de homicídio, extorsão de comerciantes, instalações clandestinas de internet e venda ilegal de botijões de gás. [Segundo os relatos,] eles também podem ser encontrados na praça da associação, às quartas-feiras, depois das 17h”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p, p. 40) transações de imóveis e produção da documentação,30 30 “O denunciado Jorge Alberto Moreth, epíteto de “Beto Bomba”, é o presidente da Associação de Moradores da comunidade de Rio das Pedras, onde se consolidam as transações de compra e venda dos imóveis construídos ilegalmente, bem como são manipulados os documentos necessários às operações ilícitas realizadas”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p, pp. 51-52) invasão de domicílios, homicídio, roubo e estupro,31 31 “Rio das Pedras. No endereço citado, fica a associação de moradores, onde o presidente "Roberto Moreti", vulgo "Beto Bomba", o vice-presidente "Fabrício" e um indivíduo, vulgo "Laerte", são milicianos. Com um grupo, eles invadem as residências, dizendo estar à procura de armas e drogas, mas furtam os pertences dos moradores. Alguns dos milicianos abusam de meninas adolescentes na presença dos familiares e, por medo, as famílias não os denunciam e fogem do local. Os milicianos estão executando moradores de rua da comunidade e adolescentes que são usuários de drogas”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p, p. 53) construção de lojas em vias públicas,32 32 “[Os relatos acrescentam] que os citados cobram taxas no valor de R$100,00 a R$1.000,00 por mês dos comerciantes da localidade. [Finalizam] informando que eles estão construindo lojas em vias públicas e vendendo os pontos das lojas”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p, p. 53) venda de espaços públicos33 33 “No interior da comunidade Rio das Pedras, localiza-se a associação de moradores onde pode ser encontrado o presidente "Jorge Alberto Moreti", vulgo "Beto Bomba ou Beto Moreti", e seu braço direito "Fabrício" que realiza a venda das calçadas de moradores da comunidade. Ele vendeu a praça situada na rua Turmalina, ao lado do restaurante Serra Grande”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p, pp. 53- 54) e cobrança de taxas de segurança.34 34 “Complementa a denúncia 4603.3.2016 e informa que, na rua mencionada, localiza-se a associação de moradores, cujo presidente "Beto Bomba", com milicianos da localidade (não identificados), está cobrando dos moradores taxas de segurança”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p, pp. 53-54) O material também indica que o denunciado Beto Bomba que figura como presidente da associação de moradores exerce o cargo, pelo menos, desde 2008 quando é mencionado na CPI das milícias.35 35 “De acordo com o Relatório Final da CPI das milícias, o denunciado Jorge Alberto teria sido eleito, pela força da milícia, presidente da Associação de Moradores de Rio das Pedras, em 17/10/2008, local onde se encontra exercendo seu domínio até a presente data”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p, p. 52) Nesse sentido, a associação de moradores parece ser uma instituição central na organização das atividades da milícia de Rio das Pedras. Essa centralidade, pelo menos no que diz respeito à atividade imobiliária e à cobrança de taxas, pode ser resultado de um possível controle já exercido pela associação de moradores nesse tipo de regulação. A concentração de informações sobre os moradores e sobre as transações imobiliárias pode ter sido conveniente para o controle territorial das milícias. Além disso, a relativa legitimidade da associação perante o poder público, no registro dessas informações – inclusive com cobrança de determinadas taxas – pode acabar encobrindo a atividade miliciana.

No entanto, a associação de moradores não é a única instituição em que a milícia constitui a aparência de legalidade nos mecanismos de dominação territorial. A sua inserção no poder público é parte fundamental de suas estratégias de legitimação e de ocultação. A sua relação umbilical com instituições policiais e militares, de imediato, confere vantagens no que diz respeito à repressão e à fiscalização. Segundo relatório elaborado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF) e pelo Observatório das Metrópoles (Ippur/UFRJ, 2021, pp. 10-17), dentre as áreas dominadas por grupos armados ou em disputa, as que estão sob controle das milícias têm menor incidência de operações policiais. Mesmo quando ocorrem incursões, fiscalizações ou investigações, a milícia parece dispor de informação privilegiada e, com isso, reúne melhores condições para ocultar as atividades criminosas.36 36 “Aí o cara chamou aqui e falou que o Beto Bomba falou aqui que amanhã vai ter Operação pediu pra tirar a escada aqui, pediu pra ninguém trabalhar aqui na obra” (Gaeco/MPRJ, 2019, p, p. 52). Além disso, pelo menos desde a CPI das milícias, ficou evidente a estreita relação de diversos parlamentares com as milícias.37 37 Cinco parlamentares foram citados na CPI das milícias; três deles foram condenados. Elas se utilizam do domínio territorial para formar currais eleitorais baseados na coerção, e a eleição desses parlamentares permite o favorecimento e até mesmo a legalização de seus empreendimentos. Para o Geni e o Observatório das Metrópoles (2021, p. 31), um dos exemplos dessa estratégia foi a aprovação da Lei Complementar (LC) n. 188, de 12 de junho de 2018 (derrubada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro – TJRJ), de autoria dos vereadores Chiquinho Brazão e Willian Coelho, que facilitava a legalização de imóveis nos casos em que eles já estivessem ocupados. Segundo a denúncia do Gaema, pessoas de confiança dos poderes legislativo e executivo também são acionadas pela milícia para facilitar legalizações e evitar demolições. Os citados são: Agnaldo Timóteo, vereador pelo partido Movimento Democrático Brasileiro (MDB); Marcelo Bezerra Crivella, prefeito pelo Republicanos (2017-2020); Marcelo Hodge Crivella, filho do prefeito.

A denúncia movida pelo Gaeco também relata inúmeros casos de suborno de funcionários públicos para a legalização de empresas38 38 “Diálogo interceptado na data de 16/10/2018, às 16h56min30seg, revela o denunciado Manoel insinuando que o denunciado Fábio oferecesse vantagem ilícita a funcionário público em troca da liberação de empresa comandada pela malta criminosa”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p, p. 65) e para que os empreendimentos imobiliários39 39 “Conversa entre o denunciado ANTÔNIO e pessoa identificada como Rafael demonstra não só o liame entre os denunciados BRUNO, ANTÔNIO e THIAGO na execução de loteamentos e construções clandestinas como também comprova que a atividade é realizada mediante corrupção de servidores públicos que recebem dinheiro para não impedirem os empreendimentos ilícitos”. (Gaema/MPRJ, 2019, p. 44) da milícia não sejam denunciados. Os diálogos mostram, por exemplo, que os milicianos escondem as instalações de água, cortam o fornecimento quando sabem que vai haver fiscalização, contratam caminhões-pipa e forjam pedidos de instalação de água para justificar a falta de contrato e de pagamento,40 40 “Tem os documentos aí, está com o advogado do Thiago, fala com o Bruno que está com o advogado do Thiago aí... e tá todos os pipa, tá o pedidos que foi feito para a CEDAE, entendeu... que nós estamos usando é pipa, que o Ricardo já arrancou a tubulação toda...”. (Gaema/MPRJ, 2019, p. 67) porque, quando ocorre o flagrante, tem que “desembolar com o perito e perder um dinheiro” (Gaema/MPRJ, 2019, p. 67). A milícia, como no exemplo da LC 188/2018, busca, ao máximo, regularizar as edificações para reduzir o risco de demolição e as perdas contínuas com suborno a funcionários públicos. Foram mencionados: instrumento particular de cessão de direitos aquisitivos, laudo de segurança construtiva, escritura de promessa de cessão de direitos, regularização de obras de acréscimo, Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), registro de imóveis, habite-se, entre outros. Aparentemente, a regularização também aumenta o preço do imóvel. Segundo um dos diálogos, “com RGI, vende um pouco melhor do que 220” (ibid., p. 59). No entanto, ainda que os empreendimentos da milícia apresentem um nível de regularização mais alto que o restante da favela, isso não parece livrá-los da necessidade de subornar os fiscais. Em outra das conversas interceptadas, um dos sócios empreendedores informa para outro como se deve proceder:

Então, deixa eu te falar... essa porra é um monte de vagabundo do caralho. Tudo é a porra do dinheiro, entendeu? Eles querem uma merrequinha. Aí tu combina... aí você não pode dar uma parada para eles... uma parada, assim... PUF! De uma vez... Tem que ir dando tipo assim... irmão, todo mês tu vem aqui e pega dois conto, porque aí a gente faz a obra e fica dando para eles... quando terminou aí tu para de dar, pô. Agora, se eles pedem uma parada, eles mandam outro vir no lugar, tipo assim, eles pegam e depois e mandam outro vir... (Ibid., p. 45)

Vale destacar que, aparentemente, é importante para a milícia manter os fiscais no interior dessa relação, uma vez que receber de uma vez poderia retirar o compromisso do fiscal com a ocultação dos empreendimentos. Além disso, esse modo de operar permite que o silêncio seja comprado independentemente do rodízio dos fiscais. Pode-se inferir, também, que a ausência do pagamento após a realização do empreendimento significa que os milicianos entendem que o risco se reduz nesse momento. Em outra conversa, fica claro que os milicianos têm consciência do aumento dos custos político, jurídico e financeiro da demolição após a ocupação.

Mas já estão prontos, já estão ali há três anos, tem gente morando... então ali a prefeitura vai entrar naquele risco de mitigar o próprio direito, função social da propriedade... é muito complicado para ela, ela não tem interesse até porque há carência de mercado habitacional ali e tem o problema jurídico que ela tem que vencer, né... a despeito dela até ter que indenizar depois a construção. Então acho improvável. (Ibid., p. 84)

É evidente que os custos de indenização e os problemas jurídicos são questões importantes, levadas em conta nas estratégias milicianas, mas o que ele chama de “carência do mercado habitacional” é central nesse debate. Além de ser o aspecto que embasa, em termos jurídicos, o impedimento das demolições e as exigências indenizatórias, é o que gera os custos políticos, a alta lucratividade da produção imobiliária nas favelas e a sua quase imediata ocupação. No fim das contas, a incapacidade sistêmica de prover moradias de modo universal é o fundamento desse tipo de produção habitacional, o que torna a sua repressão um modo de retirada do acesso ao espaço urbano de importante parcela da população e significa não apenas a retirada de um direito, mas também algo que afeta diretamente a disponibilidade de força de trabalho e o mercado consumidor. Aparentemente, os milicianos sabem disso e se fortalecem a cada rodada em que os circuitos de acumulação dispensam aquilo que é o seu fundamento, isto é, o trabalho.

O controle territorial e controle sobre a população se intensificam pela manutenção do poder sobre os condomínios, nomeando os próprios milicianos como síndicos,41 41 “Dos diálogos interceptados verifica-se que o denunciado Manoel não só negociava os valores de locação e venda dos imóveis, mas atuava como verdadeiro síndico dos condomínios pertencentes à malta, resolvendo quaisquer tipos de problemas dos moradores”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p, p. 28) o que permite ao grupo ser o primeiro a tomar conhecimento dos problemas, inclusive de litígios que envolvem a população local e que poderiam ser judicializados, podendo “resolvê-los” sem o envolvimento de agentes oficiais. Além disso, a administração dos condomínios permite direcionar os recursos levantados por esse meio para investimentos que sejam de interesse da milícia local.42 42 “Você tem condomínios com porteira e aí você entra no guichê da... eu vi isso, os caras com talonários para o pagamento dos condomínios. Do jeito que é, aquilo ali é financiado pela milícia, imagina quanto dinheiro a milícia ganha com cada talão desse. E com certeza o vigia que está ali é uma pessoa dessa rede da milícia, não é um cara qualquer que está movimentando um dinheiro daquele valor. Eu vi os talões de condomínio na mesa”. (Kawahara, 2023, p, p. 308) A administração das vendas e dos aluguéis também pode levar a uma intensificação do domínio, pois, além do contato próximo estabelecido pela cobrança mensal dos aluguéis, essa atividade permite a coleta dos documentos dos moradores, o que pode incluir fontes de renda e local de moradia anterior. Esse talvez seja um dos meios de controlar a população que pode acessar o território, além de poder negar moradores indesejados por meio da análise dos documentos, há modos de expulsão, via mercado imobiliário, que aparentam ser mais legítimos que o uso aberto da violência, ainda que a restituição ágil dos imóveis pressuponha o medo e, muitas vezes, carregue uma boa dose de violência.43 43 “[...] então avisa aí os dois, se não pagar hoje amanhã de noite não entra ninguém mais se não pagar”. (Gaeco/MPRJ, 2019, p, p. 30) O acesso à renda da população também permite monitorar as possibilidades de extorsão, podendo ser o próprio acesso da população ao território mediado por essas possibilidades.

Promoção imobiliária do tráfico de drogas

A produção imobiliária do tráfico parece mais diversificada e impulsionada por conjunturas específicas, relacionadas, principalmente, a políticas públicas de urbanização e de regulação. Em uma favela da zona sul do Rio de Janeiro,44 44 Não identificada a fim de proteger os entrevistados. foi relatado que, a partir de 2009, houve aumento da regulação estatal, inclusive com a realização de embargos de obras e demolições. Com isso, a capacidade de regulação da associação de moradores foi reduzida, pois poderia entrar em conflito com as determinações do poder público. Em paralelo, as obras de urbanização realizadas no âmbito do Programa Morar Carioca resultaram em espaços livres que, após a redução da regulação estatal, por volta de 2016, passaram a ser ocupados por empreendimentos realizados ou aprovados pelo tráfico mediante pagamento. Na Rocinha, um entrevistado indica que, com a proibição de construções novas com mais de cinco andares, o tráfico passou a ser o agente predominante na produção de imóveis que supera o gabarito permitido e na ocupação de novas áreas, no entorno da favela, passando a vender a autorização para a construção nessas condições. Lia Rocha (Rocha, 2008, p. 12) relata que, na favela designada pela autora pelo nome de Abacateiro, o Posto de Orientação Urbanística e Social (Pouso), baseado no decreto que estabelece as normas urbanísticas para o local, passou a impedir qualquer construção nova, o que também ocorreu com a associação de moradores que não estava em condições de desobedecer às normas do poder público. Com isso, os moradores que precisavam construir passaram a necessitar da proteção do tráfico para evitar a perda de seus investimentos. Em Nova Jaguaré, em São Paulo, Nazareth e Zuquim (2016NAZARETH, M. B. F.; ZUQUIM, M. de L. (2016). Núcleo urbanizado: uma nova (velha) cidade? In: SEMINÁRIO URBFAVELAS, Rio de Janeiro., p. 15) indicam que as áreas livres abertas pelas obras de urbanização foram ocupadas pelo “Crime” e “[...] em pouco tempo se tornará um grande parque imobiliário”. Essa impressão de que a atuação do tráfico na produção imobiliária é mais ocasional pode ser resultado da falta de informações mais precisas sobre o seu modo de organização, considerando que o crescimento da produção imobiliária do tráfico pode ser mais evidente para os moradores e pesquisadores do que o modo regular de atuação desses grupos. Mesmo considerando que o tráfico se aproveitou dessas conjunturas para expandir as suas fontes de recursos, é difícil imaginar que essa situação possa regredir apenas com as velhas formas de regulação, seja pelo poder público, seja pela associação de moradores.

Na Rocinha, um entrevistado indica que o tráfico também se utiliza de laranjas para impulsionar a produção imobiliária e garantir maior sigilo. O esquema de laranjas, para o entrevistado, no entanto, difere do que é possível deduzir das denúncias do MPRJ para o caso das milícias. Em seu depoimento, há os laranjas que assumem os imóveis produzidos diretamente pelo tráfico, mas há, também, os que constroem, vendem e alugam para o tráfico. No segundo arranjo, parece difícil estabelecer o limite entre quem é, de fato, um laranja que constrói para o tráfico e quem é um empreendedor independente coagido a pagar uma taxa de proteção para o tráfico a fim de poder construir em condições fora das normas estabelecidas pelo poder público. Isso também ocorre com as empresas estabelecidas na favela. Para o entrevistado, muitas delas são administradas por laranjas do tráfico de drogas, mas há, igualmente, os que para terem os seus negócios em funcionamento, são obrigados a pagar taxas.45 45 “Não, isso é um... o tráfico tem muita coisa no nome de outras pessoas, essas pessoas são laranjas, você tem um prédio sendo construído é o João que está lá, mas na verdade é do Joaquim, todo mundo conhece o João que é o dono, passa recibo e tudo, mas é do tráfico. Tem o seu João que é o dono mesmo, mas ele tem a permissão do tráfico para construir, mas tem muitos caras que são testa de ferro. Tem uma loja de móveis aqui grande, é do tráfico, mas todo mundo sabe quem é o cara que está lá. Ele tem um padrão, tem um percentual bom para ele, diferente de um laranja comum, porque ele mora em São Conrado, ele tem carro com motorista, tem vida né? Não sei se é bem um laranja, mais sócio né”. (Kawahara, 2023, p, pp. 253-254) De qualquer forma, além do sigilo necessário para a atividade do tráfico de drogas, a organização de uma rede de laranjas que abre empresas, constrói e gere os negócios eleva a capacidade administrativa do tráfico e permite o domínio sobre um número muito maior de empreendimentos.

Não foi encontrada indicação de que os corretores imobiliários presentes na Rocinha são membros orgânicos do tráfico, mas, segundo o entrevistado, alguns são ligados ao grupo, o que, para ele, é uma vantagem para a cobrança dos aluguéis e das parcelas da compra, tendo em vista o receio de uma intervenção direta do tráfico na cobrança.46 46 “Eu não sei nenhum caso berrante [de inadimplência]. Eu sei que algumas imobiliárias também são ligadas ao tráfico e aí ninguém vai deixar de pagar ele né? Ou paga ou muda. [...] Agora quanto a despejo, eu acho que é possível que... uma só imobiliária, eu só sei de uma que é ligada, é provável que essa imobiliária que é ligada faça despejo forçado. Eu não sei de caso, mas é possível que faça”. (Kawahara, 2023, p, p. 166) A possível relação dos agentes imobiliários com o tráfico de drogas parece incidir não apenas nos imóveis que tenham tal relação, já que o receio de uma intervenção violenta do grupo armado pode facilitar a cobrança mesmo nos casos em que os proprietários não estão envolvidos. São comuns os relatos que indicam baixa inadimplência, ainda que os despejos violentos, com cortes de água, de energia elétrica ou arrombamentos também estejam presentes. Uma hipótese é a de que isso ocorre, porque os proprietários, geralmente, são moradores mais antigos e têm relação mais próxima com o conjunto dos moradores, enquanto os locatários costumam ter mobilidade maior, conferindo maior legitimidade para o despejo, inclusive diante do tráfico. A baixa inadimplência e a facilidade de despejo, nesse quadro, são elementos importantes que permitem a não exigência de garantias como comprovações de renda e de propriedade, o que pode aumentar a demanda sobre os imóveis e, por consequência, o aumento dos preços.

Assim como a produção habitacional do tráfico de drogas parece mais relacionada às conjunturas específicas, os modos de dominação e regulação do território também parecem ser muito mais relacionados com um complexo de instituições presentes nas favelas. Como os exemplos dados podem demonstrar, a regulação da construção e do mercado imobiliário se dá, em determinadas conjunturas, com predomínio das associações de moradores, do tráfico ou de instituições do poder público, como os Pousos, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)47 47 Segundo um morador de uma favela da Zona Sul: “A UPP resolvia tudo, o cara estava precisando de uma manilha, falou com o major, no dia seguinte estava pronto, “mas não é papel dele, tem que falar com a RA [...], mas falar com a RA é o mesmo que nada”. Você tira o tráfico e bota a polícia, ela decide tudo, mas não é ela que tem que resolver as coisas”. (Kawahara, 2018, p, p. 116) e, em muitos casos, a justiça comum.48 48 Segundo um representante de associação de moradores, ocorre “muito despejo, toda hora, várias vezes no mesmo mês, quase todo dia. O oficial de justiça passa na associação. Também procuram a associação para mediar, mas a associação não tem autonomia para tirar ninguém. [...] nós mandamos entrar na justiça”. (Kawahara, 2018, p, p. 151) Identificar a predominância de determinado agente em uma conjuntura específica não significa o seu monopólio sobre a regulação. Na realidade, o que se encontra, em muitos casos, é o oposto: há superposição ou justaposição dos agentes, sendo a prática marcada por complementaridade ou antagonismo (Corrêa, 2016CORRÊA, R. L. (2016) "Sobre agentes sociais, escala e produção do espaço: um texto para discussão". In: CARLOS, A. F. A.; SOUZA, M. L. de; SPOSITO, M. E. B. A produção do espaço urbano: agentes e processos, escalas e desafios. São Paulo, Contexto., p. 48). Por exemplo, os registros de posse e de transferência podem continuar sendo realizados pela associação de moradores mesmo em casos onde há uma regulação mais forte do poder público ou em processos de regularização fundiária; as UPPs, os Pousos, as associações de moradores ou o tráfico podem ser acionados para a resolução de conflitos de igual natureza, a depender da rede de contatos dos agentes envolvidos; em muitos casos, a associação de moradores ou o poder público atuam de forma independente na regulação, mas apenas sob determinados limites impostos pelo tráfico. A cobrança de taxas de proteção pelo tráfico e pela milícia sobre construções ameaçadas pelo poder público ilustram esses limites. O domínio do tráfico sobre a associação de moradores tem sido indicado com frequência. No mercado imobiliário, isso significa, além de um meio de cobrança de taxas sobre produtos e serviços no controle sobre a mediação de conflitos, uma produção de normas internas e um modo mais direto de negociação com o poder público, o que pode incluir desde incidências sobre projetos urbanísticos até a negociação sobre casos específicos de embargos e demolições. Também foi relatado que o tráfico impede, por meios violentos, a ação da fiscalização sobre seus empreendimentos, o que acaba por desmoralizá-la em um âmbito mais amplo. Um dos moradores indicou, ainda que com pouca convicção, que há casos em que tanto o tráfico como os moradores comuns subornaram os fiscais para romper com as normas estabelecidas. Nesse caso, foi indicado que o pagamento é feito pela autorização, diferentemente do que ocorre com o Escritório do Crime, que o faz negociando a cada flagrante, como sugerido na conversa telefônica reproduzida.

A cobrança de taxas costuma ser uma prática associada às milícias e, nos últimos anos, difundiu-se a ideia de que o tráfico está imitando a prática das milícias. No entanto, em algumas favelas, já encontramos um esquema bastante avançado de tributação de produtos e serviços envolvendo ou não o domínio sobre a associação de moradores. Foi indicada a taxação de gás, água, cerveja, carvão, vans e mototáxis, lojistas e comerciantes de rua, TV a cabo, internet e condomínio, além da taxa de proteção na produção imobiliária. Uma parte dos produtos e serviços é tributada no fornecimento aos comerciantes locais; outra, na garantia do monopólio a determinado comerciante. Também foi identificada, na Maré, a produção de imóveis comerciais para aluguel em espaços públicos. Segundo uma moradora, o comércio local também está sendo utilizado para o escoamento de produtos oriundos de roubos de carga.49 49 “De dois ou três anos para cá está tendo roubo de carga. Eu vi um caminhão entrando e a gente sempre teve uma feira em um determinado dia que chama feira de Itaipava vendendo roupas, só que agora vende produtos roubados também. Horrível né, bem mais barato. A gente descobriu, porque muitas roupas vêm com a etiqueta da loja, na esquina lá tinha um monte de vestido bonito, eu fui olhar, estava lá a etiqueta da C&A, com o preço, aí o garoto que estava lá cuidando falou: ‘ó tia, metade do preço aí viu’”. (Kawahara, 2023, p, p. 183)

Em um seminário organizado pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, determinada moradora da Indiana, na Tijuca, indica que a distribuição de apartamentos produzidos para a realocação da população removida na favela foi negociada com o tráfico:

Uma casa, até 11 apartamentos foram sendo distribuídos e as pessoas lá da secretaria de habitação negociavam também, apartamentos, com o “poder paralelo”. Isso não acontece só na Indiana não, mas na Indiana foi muito explícito. [...] Dão a um presidente de Associação de Moradores: — “olha, quando você quiser seus apartamentos, você pega eles com o presidente da Associação de Moradores”. É assim que se distribui apartamentos? (Kawahara, 2018KAWAHARA, I. Z. (2018). A produção do espaço na favela: elementos para a análise do mercado imobiliário. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro., p. 118)

O controle sobre os conjuntos habitacionais produzidos pelo poder público também costuma ser atribuído exclusivamente à milícia, no entanto, esse depoimento indica que tal prática não é tão incomum no caso do tráfico. As estratégias são diferentes nos dois casos. Geralmente, é relatada uma entrada posterior das milícias com a implementação de esquemas de extorsão e de expulsão de moradores. No caso da Indiana, o tráfico negociou a distribuição dos apartamentos diretamente com o poder público.

Conclusão

Para Marx, o capital é um modo de igualdade homogeneizante que constitui a equiparação universal dos heterogêneos, isto é, a equiparação universal entre produtos do trabalho é a equiparação universal entre indivíduos humanos e o modo de universalidade do capitalismo se constitui na “equiparação em lugar da comunalidade e da universalidade efetivas” (Marx, 2011, p. 109). Em Nação, raça, classe, Balibar e Wallerstein (2021)BALIBAR, E.; WALLERSTEIN, I. (2021). Raça, nação, classe: as identidades ambíguas. São Paulo, Boitempo. Edição original de 1988. defendem que o universalismo iluminista carrega um impulso classificatório sobre o qual se assenta a hierarquização da humanidade. Em “O valor dos pobres”, Feltran (2014)FELTRAN, G. de S. (2014). O valor dos pobres: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo. Cadernos CRH. Salvador, v. 27, n. 72, pp. 495-512. sugere que esquadrinhar e essencializar os recortes produzidos é a função primeira da “maquinaria de governo” e que isso permite valorar os grupos. Ainda que bandidos, trabalhadores, policiais, playboys e outros grupos sejam figurados em universos morais distintos, a monetização das relações garante um modo de vida comum, ou seja, “O dinheiro é objetivamente elevado ao estatuto de forma mediadora entre grupos populacionais em conflito” (ibid., p. 497). Para o autor, a centralidade da “questão social” é deslocada dos “trabalhadores” e do direito social universalista para os “marginais” e a prevenção da violência. Nesse quadro, a população é dividida entre o bandido a encarcerar e o “consumidor” ou “empreendedor” a inserir via mercado.

Esse modelo fica bastante explícito no discurso de alguns formuladores de políticas públicas como o de Hernando de Soto, no Banco Mundial; Marcelo Neri, na FGV; Ricardo Henriques, na Secretaria Estadual de Assistência Social do Rio de Janeiro (SEASDH). A que se resume a integração nesse quadro? Para De Soto (2019), a favela é uma ciclópica reserva de capital morto que, se reativada, poderia gerar ciclos econômicos virtuosos, beneficiando o conjunto da sociedade. Para Neri (2011)NERI, M. (2011). UPP 2 e a economia da Rocinha e do Alemão: do choque de ordem ao de progresso (UPP*Upgrades Produtivos Populares = UPP 2 ). Rio de Janeiro, FGV., o ponto fundamental são os ganhos de capital e de arrecadação, a sustentabilidade das políticas públicas – em seu caso específico, da UPP – depende do superávit estatal. A ideia fundamental é que a favela abriga um mercado consumidor e uma capacidade produtiva que pode ser “incorporada” e incentivada. Para De Soto (2019)DE SOTO, H. (2019). El misterio del capital. Lima, Editorial Planeta Perú., a legalização dos imóveis poderia gerar um ativo a ser investido em empreendimentos de toda natureza. Para Neri (2011)NERI, M. (2011). UPP 2 e a economia da Rocinha e do Alemão: do choque de ordem ao de progresso (UPP*Upgrades Produtivos Populares = UPP 2 ). Rio de Janeiro, FGV., a “pacificação” é o ponto de partida para a criação de um ambiente de estabilidade favorável para os investimentos. É curioso que, ainda que no interior do paradigma da integração, o ponto de partida das análises seja uma vocação natural dos favelados para o empreendedorismo. Henriques, em entrevista para o jornal O Globo (Rocha, 2010ROCHA, C. (2010). Após pacificação, UPP social é a aposta do secretário estadual de Assistência Social para levar cidadania às favelas. Disponível em: <glo.bo/44aOHup>. Acesso em: 5 mar 2023.
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), é ainda mais surpreendente em sua análise. Para o ex-secretário, o “pré-sal” dessa investida estatal é o jovem que, treinado pelo tráfico, reúne as principais virtudes necessárias para o mercado de trabalho. Em suas palavras:

O jovem tem grandes fragilidades, como baixíssima escolaridade, mas uma grande capacidade de iniciativa, de trabalhar em equipe e de fazer que os outros trabalhem, tudo o que o mercado de trabalho valoriza hoje. E aprenderam tudo isso no mundo do tráfico, da ilegalidade.

Para Botelho (2013BOTELHO, M. L. (2013). "Crise urbana no Rio de Janeiro: favelização e empreendedorismo dos pobres". In: BRITO, F.; OLIVEIRA, P. R. Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. São Paulo, Boitempo., p. 202), na realidade, pacificar e servir as favelas de modo a incentivar atividades econômicas que logo serão taxadas já é uma prática antiga do tráfico e da milícia e, afinal, esses grupos são a vanguarda do tipo de operação colocada em prática pela UPP.

Se até um representante do governo de um dos maiores estados do país se refere ao tráfico como um eficiente capacitador de jovens para o mercado de trabalho, cabe analisar o tráfico e a milícia como estruturas empresariais e, como tais, o que elas mobilizam é o trabalho. Aqui o que foi separado pelo governo em “públicos-alvo” a serem encarcerados ou absorvidos volta a se unir sob o signo do trabalho. Isso ocorre em dois sentidos, no primeiro, já indicado por Feltran (2014)FELTRAN, G. de S. (2014). O valor dos pobres: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo. Cadernos CRH. Salvador, v. 27, n. 72, pp. 495-512., as relações entre policiais e criminosos, criminosos e moradores, locadores e locatários são mediadas pelo dinheiro, isto é, pelo trabalho, na forma de “arregos”, taxas e aluguéis, e a retirada desse mediador resulta em conflitos, como as operações policiais, expulsões e despejos; no segundo, a eficácia da atividade criminosa depende de ela própria ser entendida como um trabalho. Para Arantes (2011ARANTES, P. (2011). Sale Boulot: uma janela sobre o mais colossal trabalho sujo da história: uma visão no laboratório francês do sofrimento social. Tempo Social, v. 23, n. 1, pp. 31-66., p. 35), ao analisar o mecanismo neoliberal de mediação entre opressores e explorados, Christophe Dejours pôde perceber que “[...] a fonte da banalização do mal é menos o vazio do pensamento [...] do que o trabalho”. Segundo o autor, Dejours, em sua redefinição do processo de trabalho, “[...] ilumina as duas épocas históricas [o holocausto nazista e a acumulação neoliberal atual] sem amalgamá-las”, com destaque para uma variante de sua descrição: “trabalho é zelo” (ibid.). Se o holocausto não seria possível sem o espírito da racionalidade instrumental, para Arantes, a dinâmica despe-se de sua carapaça burocrática, mas aumenta a sua capacidade de coordenação; não bastava que os trabalhadores dos campos da morte seguissem ordens, era necessária a colaboração para a execução eficiente. Numa palavra, “Em nome do trabalho, sempre se poderá valorizar uma desgraça. Este o segredo de toda ‘colaboração’” (ibid., p. 38).

A alegação de que o trabalho também é central na atividade dos grupos criminosos, tanto na justificação de ações moralmente condenáveis em outros âmbitos como na troca “justa” estabelecida na mediação monetária dos conflitos, é reforçada pela percepção dos próprios integrantes desses grupos. Uma moradora da Maré afirma que, em um episódio, um traficante reivindicou o seu direito ao silêncio, argumentando que havia passado a noite em claro trabalhando:

[...] eu ouvi uma voz de homem: “vocês aí, ô taxista, tira esse som daí, não pensa que só porque eu sou vagabundo, que eu sou traficante, que eu não trabalho, eu sou trabalhador também, e eu fiquei a noite toda acordado, agora eu quero dormir”. Aí os caras olharam para cima, um traficante dando ordens, botaram o rabinho entre as pernas... e felizmente não tem mais aquele som todo sábado dando na janela. (Kawahara, 2023KAWAHARA, I. Z. (2023). Mercado imobiliário em favelas: um estudo sobre os promotores imobiliários. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense., p. 330; grifos meus)

Em uma conversa entre milicianos interceptada pela Gaeco, ambos demonstram se sentirem lesados pelo alto preço cobrado pelos funcionários públicos para a legalização das empresas e a cooperação com os esquemas de ocultação da atividade criminosa.

MANOEL: Conseguiu falar com o cara? FÁBIO: Falei com ele, ele me ligou. [...] Ele falou que primeiro ele aprova aí depois a gente acerta com ele, o senhor acerta com ele entendeu [...]. MANOEL: Mas só que ele quer Cinco o outro. FÁBIO: Caraca, pô isso aí tá virando uma máfia. MANOEL: Eles travam lá pra, ele pediu sabe quanto, Vinte, eu falei que Vinte eu fechava a loja, aí quando foi hoje. FÁBIO: Vinte, caraca. MANOEL: Pelo que tu falou aí ele resolve rápido, quando não pega dinheiro logo é porque resolve. FÁBIO: [...] Tem que resolver logo isso, eu nunca demorei tanto assim pra resolver uma busca prévia, na verdade eu nunca paguei pra ter busca prévia, é a primeira vez. MANOEL: Mas é o mundo que a gente vive. FÁBIO: Esse país aqui é foda, esse país é uma porcaria. (Gaeco/MPRJ, 2019GAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 59; grifos meus)

A moralidade explicitada no discurso pressupõe, por um lado, que o risco envolvido na operação estabelece um preço justo e que a violação da equivalência é condenável mesmo em atividades, já por princípio, criminosas. Por outro lado, a noção de que o ganho ilícito do funcionário público depende da prosperidade dos empreendimentos da milícia também é colocada na mesa de negociações. Nessa conjuntura em que os grupos armados extorquem a população, dependendo de seus ganhos para manter as próprias fontes e, por sua vez, o poder público estabelece o mesmo tipo de relação com as facções, notam-se dois caminhos, já destacados por Feltran (2014)FELTRAN, G. de S. (2014). O valor dos pobres: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo. Cadernos CRH. Salvador, v. 27, n. 72, pp. 495-512., para a pacificação: o extermínio e encarceramento; e a monetização dos conflitos sociais. O dinheiro serve para comprar tempo, e a retirada desse elemento mediador pode explodir, como ocorre de forma corriqueira, em conflitos de extrema violência.

Ao mesmo tempo, se a promoção imobiliária na favela é uma realidade anterior ao domínio dos grupos armados e, no modo de ação desses grupos, é possível detectar uma estrutura empresarial em que elementos como a autonomia dos investidores e a colaboração mútua podem ser encontrados de forma bastante sofisticada, não é de surpreender que os nossos representantes neoliberais das políticas públicas nas favelas tenham esse tipo de reação apologética em relação ao potencial empreendedor encontrado em suas incursões, em especial na figura dos grupos armados. Ao que parece, na busca por inserir as favelas nos circuitos de mercado existentes, eles encontram uma realização muito mais completa do seu próprio ideal de trabalhador, isto é, alguém capaz de resolver problemas de modo criativo e “fazer que outros trabalhem” (Ricardo Arantes, em entrevista a Rocha, 2010ROCHA, C. (2010). Após pacificação, UPP social é a aposta do secretário estadual de Assistência Social para levar cidadania às favelas. Disponível em: <glo.bo/44aOHup>. Acesso em: 5 mar 2023.
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). Este é, para Arantes (2011)ARANTES, P. (2011). Sale Boulot: uma janela sobre o mais colossal trabalho sujo da história: uma visão no laboratório francês do sofrimento social. Tempo Social, v. 23, n. 1, pp. 31-66., o significado da colaboração no neoliberalismo; em nome de sua execução eficaz, o trabalho valoriza a si mesmo, independentemente do quão inimaginável seja o que ele realiza.

Nota de Agradecimento

Agradeço aos meus orientadores Cristina Lontra Nacif, Fabrício Leal de Oliveira, Lia de Mattos Rocha e Maria Lais Pereira da Silva, sem os quais este trabalho não seria possível, e ao Adauto Lúcio Cardoso que me possibilita prosseguir com a pesquisa.

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  • MARX, K. (2017). O capital: crítica da economia política: livro III: o porcesso global da produção capitalista. São Paulo, Boitempo. Edição original de 1894.
  • NAZARETH, M. B. F.; ZUQUIM, M. de L. (2016). Núcleo urbanizado: uma nova (velha) cidade? In: SEMINÁRIO URBFAVELAS, Rio de Janeiro.
  • NERI, M. (2011). UPP 2 e a economia da Rocinha e do Alemão: do choque de ordem ao de progresso (UPP*Upgrades Produtivos Populares = UPP 2 ). Rio de Janeiro, FGV.
  • REGUEIRA, C.; BOASSON, G.; BRASIL, M. (2018). Milícia invade áreas públicas e constrói prédios em Rio das Pedras, no Rio. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/10/22/milicia-invade-areas-publicas-e-constroi-predios-em-rio-das-pedras-no-rio.ghtml>. Acesso em: 5 mar 2023.
    » https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/10/22/milicia-invade-areas-publicas-e-constroi-predios-em-rio-das-pedras-no-rio.ghtml>
  • RIBEIRO, L. C. de Q. (2015). Dos cortiços aos condomínios fechados: as formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Letra Capital.
  • RIO DE JANEIRO (2018) Lei Complementar n. 188, de 12 de junho. Altera dispositivos das Leis Complementares n. 160 e 161, ambas de 15 de dezembro de 2015, e da Lei Complementar n. 165, de 19 de maio de 2016 e dá outras providências. Rio de Janeiro, DCM n. 84, pp. 3-4.
  • ROCHA, C. (2010). Após pacificação, UPP social é a aposta do secretário estadual de Assistência Social para levar cidadania às favelas. Disponível em: <glo.bo/44aOHup>. Acesso em: 5 mar 2023.
    » glo.bo/44aOHup
  • ROCHA, L. de M. (2008). Território, política e criminalidade violenta em uma favela carioca: limites e possibilidades para a atuação das associações de moradores. Os Urbanitas. Revista de Antropologia Urbana, v. 5, n. 8.
  • SUGAI, M. I. (2009). “Há favelas e pobreza na ‘Ilha da Magia’?” In: ABRAMO, P. Favela e mercado informal: a nova porta de entrada dos pobres nas cidades brasileiras. Porto Alegre, Antac, v. 10.
  • TOPALOV, C. (1984). Ganancias y rentas urbanas: elementos teóricos Madrid, Siglo Veintiuno.

Notas

  • 1
    Hoje os únicos dados mais amplos que podemos mobilizar para a análise do mercado imobiliário nas favelas da cidade do Rio de Janeiro são: o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e as análises de imagens aerofotogramétricas realizadas pelo Instituto Pereira Passos – IPP.
  • 2
    Para uma exposição mais completa do levantamento e análise das fontes apresentadas conforme Kawahara (2023)KAWAHARA, I. Z. (2023). Mercado imobiliário em favelas: um estudo sobre os promotores imobiliários. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense..
  • 3
    Segundo o autor, o preço dos aluguéis nas favelas do Brasil, em 2006, era em média 2,37% do preço de comercialização, enquanto os preços dos imóveis no restante da cidade tendem a estar abaixo de 1% (Abramo, 2007ABRAMO, P. (2007). A cidade com-fusa: a mão inoxidável do mercado e a produção da estrutura urbana nas grandes metrópoles latino-americanas. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 9, n. 2, pp. 25-64., pp. 40-41).
  • 4
    Autorizadas pelo Processo n. 0243673-27.2018.8.19.0001.
  • 5
    A denúncia indica que, ao longo das investigações, foram identificados os crimes de “poder paralelo ao Estado, com envolvimento em grilagem, construção, ramo imobiliário com venda e locação ilegais de imóveis, receptação de carga roubada, posse e porte ilegal de arma de fogo, extorsão de moradores e comerciantes da região mediante cobrança de taxas referentes ao “serviços” prestados pela malta, ocultação de bens adquiridos com os proventos das atividades ilícitas praticadas através da utilização de “laranjas”, falsificação de documentos públicos, pagamento de propina a agentes públicos, agiotagem, utilização de ligações clandestinas de água e energia para o abastecimento dos empreendimentos imobiliários ilegalmente construídos, prática de homicídio, uso da força como meio de intimidação e demonstração de poder e mantença da dominação territorial”. (Gaeco/MPRJ, 2019GAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., pp. 11-12)
  • 6
    A denúncia adiciona os crimes de: “supressão de vegetação protegida, dano às áreas circundantes ao Parque da Tijuca, extração de recursos minerais sem autorização do órgão competente, parcelamento clandestino do solo para fins urbanos, falsificação de documentos, corrupção de agentes públicos, ligações clandestinas de água e energia para abastecimento dos empreendimentos imobiliários construídos ilegalmente, ocultação de bens adquiridos com os proventos das atividades ilícitas e outros delitos necessários para o êxito da exploração imobiliária clandestina, a fim de promover a ocupação, construção, venda, locação, regularização, financiamento e outras atividades relativos a imóveis”. (Gaema/MPRJ, 2019, p. 11)
  • 7
    “Renato diz que passou para eles o valor de R$150.000,00 (cento e cinquenta mil reais), mas que no preço de investidor o imóvel fica R$120.000,00 (cento e vinte mil reais)”. (Gaema/MPRJ, 2019, p. 82)
  • 8
    “VM: Patrão. MANUEL: Fale. VM: Esse relógio aqui do lado do João vai ficar no nome de quem? MANUEL: Bota qualquer diabo aí. VM: Vou botar no do Izamar então”. (Gaeco/MPRJ, 2019GAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 30)
  • 9
    Inclusive um dos sócios empreendedores preocupado com uma possível queda dos preços diz: “O que que eu vou fazer? Eu contratei uma agência de marketing, né? Eles estão fazendo o impulsionamento no google, facebook, instagram... eu vou botar aquele negócio para andar, entendeu? Aí tô colocando dois corretores, que vão revezar... pra alugar garagem, pra alugar apartamento, pra vender apartamento. Vô colocar o teu no pacote aí, pra gente alugar...”. (Gaema/MPRJ, 2019, pp. 63-64)
  • 10
    Como demonstra a fala de um dos sócios empreendedores. “E a outra também eu preciso porque eu compro muita coisa tem que ter um bocado de CNPJ pra fugir do imposto entendeu”. (Gaeco/MPRJ, 2019GAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 58)
  • 11
    “Nesse sentido, a quebra de sigilo bancário e fiscal demonstra a existência de oito depósitos em favor de conta titularizada por BRUNO, no valor total de R$ 67.727,10, cujo remetente foi Escavusca Comércio de Alimentos (proprietário da franquia Domino’s acima mencionada), ao passo que nenhum depósito em favor de FERNANDO foi detectado”. (Gaema/MPRJ, 2019, pp. 38-39)
  • 12
    Um trecho das escutas telefônicas revela uma negociação entre um laranja e um corretor e, em seguida, a autorização do proprietário de fato para a realização da venda do imóvel. “CORRETOR: Fala comigo. MANOEL: O cara não dá Cento e Vinte na mão não? CORRETOR: Não, só tem cento e dez. [...] MANOEL: Homem, vê se bota a sua comissão aí em cima. CORRETOR: Ele não tem dinheiro nenhum, não tem dinheiro nenhum, não tem um real mais, tá cento e dez na agulha. MAURÍCIO: Fala meu amigo, é o Maurício. CORRETOR: Fala Maurício! MAURÍCIO: O cara quer pagar os cento e dez? CORRETOR: Ele só tem os cento e dez na mão, não tem mais um real. MAURÍCIO: Pode pegar” (Gaeco/MPRJ, 2019GAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 19).
  • 13
    “A conta de luz geralmente está na conta do proprietário e aí o cara acaba sendo acionado pela light, o nome do cara vai pro SPC, o inquilino vai lá, faz um gato e aí como é que você fica?”. (Kawahara, 2018KAWAHARA, I. Z. (2018). A produção do espaço na favela: elementos para a análise do mercado imobiliário. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro., p. 149)
  • 14
    “O referido diálogo revela que uma das manobras utilizadas pela organização criminosa para o abastecimento de energia dos empreendimentos imobiliários era o registro dos relógios em nome de terceiros, “laranjas” da matilha. Um dos principais “laranjas” é Isamar Moura, um dos sócios da empresa ConstruRio Mz, outro empreendimento da organização criminosa”. (Gaeco/MPRJ, 2019GAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 30)
  • 15
    “Se eu sou o construtor, construo e meu prédio cai, a associação de moradores me tira o terreno”. (Kawahara, 2023KAWAHARA, I. Z. (2023). Mercado imobiliário em favelas: um estudo sobre os promotores imobiliários. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense., p. 162)
  • 16
    “A gente tá desmembrando na Prefeitura. É uma plantinha que tem que aprovar na Prefeitura. O arquiteto já fez...”. (Gaema/MPRJ, 2019, p. 37)
  • 17
    “Indivíduo não identificado, possível engenheiro projetista dos diversos empreendimentos imobiliários da organização criminosa, dá conta da venda de uma das lojas da malta na comunidade de Muzema para a Igreja Universal”. (Gaeco/MPRJ, 2019GAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 28)
  • 18
    “Tá, eu tô levantando ali pra poder fazer, já tem topografia, sondagem, tenho tudo ali. Eu tô levantando com o engenheiro e que é a parte de obra né. Mas você também já tem essa experiência né, Thiago? Tu fez ali né? Você que fez ou terceirizou?”. (Gaema/MPRJ, 2019, p. 58)
  • 19
    Em conversa com um sócio investidor, um sócio empreendedor solicita ajuda para a busca por novos receptores para dar conta do fluxo de caixa. “Eu recebo, por exemplo, o mercado. O mercado, eu tô entregando pra ele agora, em dezembro, né? Com exceção a esse pedacinho de obra, ele tem que me pagar 700 mil em dez vezes, dez cheques ou 10 promissórias, com a garantia do imóvel. Porra, se tu tiver alguém... às vezes eu preciso, né irmão... porque o meu negócio aqui, o meu fluxo de caixa é pesado, irmão, às vezes descasa. [...] Às vezes eu preciso queimar um chequinho desses... ou dois, ou três. Eu vendi um negócio para uma igreja agora, não é igreja evangélica não, é uma igreja católica, ela me comprou um andar daquele de garagem. [...] Então eu vendi um negócio para eles... 10 parcelas de 100 mil. Eles deram um sinal de 50, aí vão dar mais 50 na escritura, que é do corretor, e vou ter nove de 100. Porra, também é um negócio que se tiver alguém para trocar, fazer um dinheirinho, entendeu? Troca um, troca dois, a gente vai conversar irmão, a gente tem muito negócio para fazer”. (Gaema/MPRJ, 2019, pp. 56-57)
  • 20
    “É cara, senão, pô, pega malzão, eu vender mais barato. Se for um negócio é... de ocasião, entendeu? E também eu não poderia falar com eles... eles pagam na hora, mas aí os caras vão ficar depois mal acostumados, entendeu? Eles pagam 130 lá, dá um por cento de renda para eles, entendeu, irmão?”. (Gaema/MPRJ, 2019, p. 56)
  • 21
    “MANOEL: “Meus dez eu to contigo, é teu entendeu, pode deixar o teu lá, eu to contigo, é teu, agora eu não posso chegar e falar pro Mauricio que o Marquinhos não pode entrar. FRANK: Mas o Mauricio não sabia do acordo né? MANOEL: Ele manda em tudo, como ele não vai mandar no prédio entendeu?”. (Gaeco/MPRJ, 2019GAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 20)
  • 22
    “Antônio: “A área é muito boa. É firme. Dá para fazer um loteamento do caralho. [...] Bruno: E ele tá pedindo quanto? Antônio: Não... aí o coroa é maluco... eles lá tão passando um filme na cabeça deles... são 6 posseiros... cada posseiro quer setecentos mil e ainda tem que dar parece que três milhões para o Alfredo”. (Gaema/MPRJ, 2019, p. 46)
  • 23
    Biagio: “[...] Aí, bem, pra isso, a gente tem que fazer: tem que dar 2 e 100 pro cara lá que tá vendendo, e a gente vai fazer um documento que a gente fica dono de 2/3 do empreendimento e 1/3 é pra recuperação dele”. (Gaema/MPRJ, 2019, p. 58)
  • 24
    Regueira, Boasson e Brasil (2018) relatam que uma praça foi invadida pela milícia, que construiu no local uma casa de shows.
  • 25
    “Os envolvidos recolhem taxas referentes ao gatonet (cinquenta reais), internet (setenta reais), gás (noventa reais) e gato de luz (cem reais) por residência. Relata que os moradores que não pagarem são expulsos de suas próprias residências, que depois são alugadas de forma irregular pelos envolvidos”. (Gaeco/MPRJ, 2019GAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 83)
  • 26
    “Estão vendendo as calçadas das casas para colocação de barracas e na beira do rio também vendeu pontos para barracas. No início do areal, onde existia uma escola municipal que desabou, ocuparam o terreno e transformaram em estacionamento”. (Gaeco/MPRJ, 2019GAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 35)
  • 27
    “Eles cobram cerca de R$50,00 mensais de cada comerciante, realizam prática de agiotagem e se apropriam de terrenos para revender”. (Gaeco/MPRJ, 2019GAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 22)
  • 28
    “Na comunidade Rio das Pedras, localiza-se a associação de moradores onde podem ser encontrados diariamente, a partir das 13h, os milicianos "Dalmir Pereira Barbosa", "Mauricio Silva da Costa", "Adriano Magalhães da Nóbrega" e "Jorge Alberto Moretti", vulgo "Beto Bomba" (não caracterizados), que extorquem os comerciantes e moradores do local”. (Gaeco/MPRJ, 2019GAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 40)
  • 29
    “[Os membros da organização] cometem os crimes de homicídio, extorsão de comerciantes, instalações clandestinas de internet e venda ilegal de botijões de gás. [Segundo os relatos,] eles também podem ser encontrados na praça da associação, às quartas-feiras, depois das 17h”. (Gaeco/MPRJ, 2019, pGAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 40)
  • 30
    “O denunciado Jorge Alberto Moreth, epíteto de “Beto Bomba”, é o presidente da Associação de Moradores da comunidade de Rio das Pedras, onde se consolidam as transações de compra e venda dos imóveis construídos ilegalmente, bem como são manipulados os documentos necessários às operações ilícitas realizadas”. (Gaeco/MPRJ, 2019, pGAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., pp. 51-52)
  • 31
    “Rio das Pedras. No endereço citado, fica a associação de moradores, onde o presidente "Roberto Moreti", vulgo "Beto Bomba", o vice-presidente "Fabrício" e um indivíduo, vulgo "Laerte", são milicianos. Com um grupo, eles invadem as residências, dizendo estar à procura de armas e drogas, mas furtam os pertences dos moradores. Alguns dos milicianos abusam de meninas adolescentes na presença dos familiares e, por medo, as famílias não os denunciam e fogem do local. Os milicianos estão executando moradores de rua da comunidade e adolescentes que são usuários de drogas”. (Gaeco/MPRJ, 2019, pGAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 53)
  • 32
    “[Os relatos acrescentam] que os citados cobram taxas no valor de R$100,00 a R$1.000,00 por mês dos comerciantes da localidade. [Finalizam] informando que eles estão construindo lojas em vias públicas e vendendo os pontos das lojas”. (Gaeco/MPRJ, 2019, pGAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 53)
  • 33
    “No interior da comunidade Rio das Pedras, localiza-se a associação de moradores onde pode ser encontrado o presidente "Jorge Alberto Moreti", vulgo "Beto Bomba ou Beto Moreti", e seu braço direito "Fabrício" que realiza a venda das calçadas de moradores da comunidade. Ele vendeu a praça situada na rua Turmalina, ao lado do restaurante Serra Grande”. (Gaeco/MPRJ, 2019, pGAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., pp. 53- 54)
  • 34
    “Complementa a denúncia 4603.3.2016 e informa que, na rua mencionada, localiza-se a associação de moradores, cujo presidente "Beto Bomba", com milicianos da localidade (não identificados), está cobrando dos moradores taxas de segurança”. (Gaeco/MPRJ, 2019, pGAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., pp. 53-54)
  • 35
    “De acordo com o Relatório Final da CPI das milícias, o denunciado Jorge Alberto teria sido eleito, pela força da milícia, presidente da Associação de Moradores de Rio das Pedras, em 17/10/2008, local onde se encontra exercendo seu domínio até a presente data”. (Gaeco/MPRJ, 2019, pGAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 52)
  • 36
    “Aí o cara chamou aqui e falou que o Beto Bomba falou aqui que amanhã vai ter Operação pediu pra tirar a escada aqui, pediu pra ninguém trabalhar aqui na obra” (Gaeco/MPRJ, 2019, pGAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 52).
  • 37
    Cinco parlamentares foram citados na CPI das milícias; três deles foram condenados.
  • 38
    “Diálogo interceptado na data de 16/10/2018, às 16h56min30seg, revela o denunciado Manoel insinuando que o denunciado Fábio oferecesse vantagem ilícita a funcionário público em troca da liberação de empresa comandada pela malta criminosa”. (Gaeco/MPRJ, 2019, pGAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 65)
  • 39
    “Conversa entre o denunciado ANTÔNIO e pessoa identificada como Rafael demonstra não só o liame entre os denunciados BRUNO, ANTÔNIO e THIAGO na execução de loteamentos e construções clandestinas como também comprova que a atividade é realizada mediante corrupção de servidores públicos que recebem dinheiro para não impedirem os empreendimentos ilícitos”. (Gaema/MPRJ, 2019, p. 44)
  • 40
    “Tem os documentos aí, está com o advogado do Thiago, fala com o Bruno que está com o advogado do Thiago aí... e tá todos os pipa, tá o pedidos que foi feito para a CEDAE, entendeu... que nós estamos usando é pipa, que o Ricardo já arrancou a tubulação toda...”. (Gaema/MPRJ, 2019, p. 67)
  • 41
    “Dos diálogos interceptados verifica-se que o denunciado Manoel não só negociava os valores de locação e venda dos imóveis, mas atuava como verdadeiro síndico dos condomínios pertencentes à malta, resolvendo quaisquer tipos de problemas dos moradores”. (Gaeco/MPRJ, 2019, pGAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 28)
  • 42
    “Você tem condomínios com porteira e aí você entra no guichê da... eu vi isso, os caras com talonários para o pagamento dos condomínios. Do jeito que é, aquilo ali é financiado pela milícia, imagina quanto dinheiro a milícia ganha com cada talão desse. E com certeza o vigia que está ali é uma pessoa dessa rede da milícia, não é um cara qualquer que está movimentando um dinheiro daquele valor. Eu vi os talões de condomínio na mesa”. (Kawahara, 2023, pKAWAHARA, I. Z. (2023). Mercado imobiliário em favelas: um estudo sobre os promotores imobiliários. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense., p. 308)
  • 43
    “[...] então avisa aí os dois, se não pagar hoje amanhã de noite não entra ninguém mais se não pagar”. (Gaeco/MPRJ, 2019, pGAECO/MPRJ (2019). Denúncia REF.: MPRJ 201801270571. Rio de Janeiro, [s.n.]., p. 30)
  • 44
    Não identificada a fim de proteger os entrevistados.
  • 45
    “Não, isso é um... o tráfico tem muita coisa no nome de outras pessoas, essas pessoas são laranjas, você tem um prédio sendo construído é o João que está lá, mas na verdade é do Joaquim, todo mundo conhece o João que é o dono, passa recibo e tudo, mas é do tráfico. Tem o seu João que é o dono mesmo, mas ele tem a permissão do tráfico para construir, mas tem muitos caras que são testa de ferro. Tem uma loja de móveis aqui grande, é do tráfico, mas todo mundo sabe quem é o cara que está lá. Ele tem um padrão, tem um percentual bom para ele, diferente de um laranja comum, porque ele mora em São Conrado, ele tem carro com motorista, tem vida né? Não sei se é bem um laranja, mais sócio né”. (Kawahara, 2023, pKAWAHARA, I. Z. (2023). Mercado imobiliário em favelas: um estudo sobre os promotores imobiliários. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense., pp. 253-254)
  • 46
    “Eu não sei nenhum caso berrante [de inadimplência]. Eu sei que algumas imobiliárias também são ligadas ao tráfico e aí ninguém vai deixar de pagar ele né? Ou paga ou muda. [...] Agora quanto a despejo, eu acho que é possível que... uma só imobiliária, eu só sei de uma que é ligada, é provável que essa imobiliária que é ligada faça despejo forçado. Eu não sei de caso, mas é possível que faça”. (Kawahara, 2023, pKAWAHARA, I. Z. (2023). Mercado imobiliário em favelas: um estudo sobre os promotores imobiliários. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense., p. 166)
  • 47
    Segundo um morador de uma favela da Zona Sul: “A UPP resolvia tudo, o cara estava precisando de uma manilha, falou com o major, no dia seguinte estava pronto, “mas não é papel dele, tem que falar com a RA [...], mas falar com a RA é o mesmo que nada”. Você tira o tráfico e bota a polícia, ela decide tudo, mas não é ela que tem que resolver as coisas”. (Kawahara, 2018, pKAWAHARA, I. Z. (2018). A produção do espaço na favela: elementos para a análise do mercado imobiliário. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro., p. 116)
  • 48
    Segundo um representante de associação de moradores, ocorre “muito despejo, toda hora, várias vezes no mesmo mês, quase todo dia. O oficial de justiça passa na associação. Também procuram a associação para mediar, mas a associação não tem autonomia para tirar ninguém. [...] nós mandamos entrar na justiça”. (Kawahara, 2018, pKAWAHARA, I. Z. (2018). A produção do espaço na favela: elementos para a análise do mercado imobiliário. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro., p. 151)
  • 49
    “De dois ou três anos para cá está tendo roubo de carga. Eu vi um caminhão entrando e a gente sempre teve uma feira em um determinado dia que chama feira de Itaipava vendendo roupas, só que agora vende produtos roubados também. Horrível né, bem mais barato. A gente descobriu, porque muitas roupas vêm com a etiqueta da loja, na esquina lá tinha um monte de vestido bonito, eu fui olhar, estava lá a etiqueta da C&A, com o preço, aí o garoto que estava lá cuidando falou: ‘ó tia, metade do preço aí viu’”. (Kawahara, 2023, pKAWAHARA, I. Z. (2023). Mercado imobiliário em favelas: um estudo sobre os promotores imobiliários. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense., p. 183)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2023
  • Aceito
    15 Abr 2024
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