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Militarização, milicianização e gestão do crime na cidade neoliberal

Resumo

O artigo inicia com uma retomada teórica das teses sobre novos mecanismos de gestão da segurança urdidos nos últimos 40 anos no Norte Global, como as políticas de "tolerância zero" e o "novo urbanismo militar". Explora-se, em seguida, o nexo entre neoliberalismo, megaeventos, desigualdades e punição. Como reflexão empírica, debruçamo-nos no caso da Intervenção Federal na Segurança Pública no Rio de Janeiro em 2018. Assim, pretendemos contribuir para uma agenda de pesquisa que explora os engates entre novos desenhos urbanos, gestão populacional diferencial, punição e capitalismo neoliberal, além de apontar como as manifestações brasileiras destes processos têm contribuído para alterações nos arranjos sociais e políticos do País, sobretudo pelo fortalecimento dos grupos milicianos e da lógica que os sustenta.

novo urbanismo militar; punição; neoliberalismo; milicianização; governo do crime

Abstract

The article begins with a theoretical review of the theses on new security management mechanisms developed over the last forty years in the global North, such as "zero tolerance" and "new military urbanism". Then, it explores the nexus between neoliberalism, mega-events, inequalities, and punishment. As an empirical reflection, we focus on the Federal Intervention in Rio de Janeiro's Public Security in 2018. Thus, we aim to contribute to a research agenda that explores the links between new urban designs, differential population management, punishment, and neoliberal capitalism. We also aim to show that Brazilian manifestations of these processes have contributed to changes in the country's social and political arrangements, mainly by strengthening militia groups and the logic supporting them.

new urban militarism; punishment; neoliberalism; militianization; government of crime

Introdução

Neste artigo, argumentamos que a compreensão de boa parte das transformações que vem redefinindo o sentido, a natureza e o funcionamento dos mecanismos de segurança de diversos países, encontra um lugar – tanto físico quanto analítico – privilegiado: a cidade. A emergência de novas práticas de controle e dispositivos securitários parece estreitamente relacionada a tendências mais abrangentes de mudança urbana. Para além das teses referentes ao enraizamento paulatino de uma cultura do controle no cotidiano das cidades (Garland, 2001b) e à interpenetração estrutural entre o hipergueto e a prisão (Wacquant, 2010WACQUANT, L. (2010). Crafting the neoliberal state: workfare, prisonfare, and social insecurity. Sociological Forum, v. 25, pp. 197-220.), trata-se de conferir o devido peso analítico à questão de saber como o governo dos espaços, em algumas das principais cidades globais, articula-se cada vez mais ao governo do crime.

Por meio de considerações teóricas e de análise empírica, pretendemos indicar como certa racionalidade na produção e na gestão dos espaços urbanos, imbuída em um contexto mais amplo de espraiamento do neoliberalismo em muitas das cidades do capitalismo global, está implicada em algumas estratégias securitárias de prevenção do crime e sua repressão, contribuindo, nessa medida, para a redefinição do controle penal contemporâneo.

Iniciamos o artigo com uma retomada teórica das teses sobre novas formas de controle das condutas urdidas, grosso modo, nos últimos 40 anos no Norte Global, tais quais as políticas de "janelas quebradas" e de "tolerância zero". Em seguida, realizamos uma discussão sobre o assim chamado novo urbanismo militar, modalidade de gestão dos espaços urbanos que estabelece padrões militarizados de gestão do espaço urbano. Apresentamos, a seguir, uma reflexão empiricamente embasada com atenção especial dispensada ao caso da Intervenção Federal na Segurança Pública no Estado do Rio de Janeiro, entre fevereiro e dezembro de 2018, sob o comando do general Walter Souza Braga Netto. Com isso, pretendemos contribuir para uma agenda de pesquisa nacional e internacional que busca explorar os engates que se estabelecem entre novos desenhos urbanos, gestão populacional diferencial, punição e capitalismo, em sua forma neoliberal, bem como apontar as formas pelas quais as manifestações brasileiras desses processos dialogam com a realidade local específica e têm contribuído para alterações nos arranjos sociais e políticos do País, sobretudo pelo fortalecimento dos grupos milicianos e da lógica que os sustenta.

Novas práticas de controle

Ao longo das últimas quatro décadas (1980-2020), novas práticas de controle das populações têm surgido e se desenvolvido em algumas das principais cidades do capitalismo global, tais como o policiamento de “janelas quebradas” e a “tolerância zero”, o “controle situacional do crime” e o retorno de práticas de banimento do espaço urbano.

Na perspectiva dos formuladores do policiamento de “tolerância zero”, bairros e regiões que convivem com “janelas quebradas” emitem o sinal de ausência de controle social. A prevenção e a repressão do menor desvio e das condutas de pequeno potencial ofensivo (“janelas quebradas”) aparecem como medidas profiláticas destinadas a evitar a ocorrência de crimes considerados mais graves. O pressuposto é de que certo ideal de “comunidade saudável” se expressa espacialmente (Herbert e Brown, 2006HERBERT, S.; BROWN, E. (2006). Conceptions of space and crime in the punitive neoliberal city. Antipode. Worcester, v. 38, pp. 755-777.). Aqui, a distinção entre comunidades “ordeiras” e comunidades “desordeiras” encontra a distinção “dentro” e “fora”, e, não por acaso, técnicas securitárias de remoção dos marcados como indesejáveis são privilegiadas.

Do ponto de vista operacional, o policiamento de “tolerância zero” prega, em sintonia com a cartilha dos programas de total quality management, a necessidade de um choque empresarial no aparato repressivo do Estado, envolvendo a informatização e a integração de extensivos bancos de dados, a fixação de indicadores de performance para a corporação policial, o aumento do rigor na cobrança de resultados e, especialmente, uma agressiva estratégia de marketing. Como se sabe, o aumento da "eficiência" na estratégia de neutralização das populações consideradas perigosas tem levado ao aumento expressivo da brutalidade policial e gerado uma série de protestos por parte de setores organizados da sociedade civil.

No que diz respeito à prevenção situacional do crime, o objetivo é intervir no espaço urbano de maneira a minimizar as oportunidades para a prática de crimes. Assim, o criminoso é concebido como ator racional em busca de maximização de utilidades. Debruçando-se especialmente sobre a produção de Becker (1968)BECKER, G. (1968). Crime and punishment: an economic appproach. Journal of Political Economy, v. 76, n. 2, pp. 169-217., Foucault (2008FOUCAULT, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, Martins Fontes., pp. 329-364) já havia dissecado esse modo tipicamente neoliberal de definição do crime e do criminoso como um agente econômico como todos os demais – isto é, que, em face de bens escassos, realiza escolhas entre fins alternativos por meio de um cálculo de ganhos marginais – e não uma figura aberrante. No âmbito dessa racionalidade econômico-penal, o crime se previne pela criação de situações em que o cálculo de custo-benefício seja desfavorável à prática da conduta. A construção e a gestão dos espaços urbanos possuem papel central na busca desse objetivo. Entretanto, não obstante o apelo à normalidade do crime por parte de seus formuladores e em sintonia com o pressuposto de uma razão utilitária universal, essa prática de prevenção do crime opera com a distinção entre usuários “normais” e usuários “anormais” do espaço urbano, o que nos remete ao campo do governo das condutas.

O caso das closed-circuit television (CCTVs) é paradigmático. Ainda que a disseminação do monitoramento do espaço público por câmeras de circuito fechado possa ser vista como mero aporte tecnológico à política de prevenção do crime, na prática, essa técnica securitária encerra o objetivo de realizar “uma visão enfaticamente moral de ordem, frequentemente comunicada por uma linguagem de censura que se dirige aos setores mais desprivilegiados da sociedade” (Coleman, 2004COLEMAN, R. (2004). Images from a neoliberal city: the State, surveillance and social control. Critical Criminology. Columbus, v. 12, n. 1, pp. 21-42., p. 28). Nesse sentido, trata-se menos de prevenir e reprimir o crime enquanto tal do que de construir determinada visão de ordem urbana. O que se busca é assegurar, sobretudo ao “cidadão de bem”, um ambiente seguro para o consumo e o investimento. É nessa direção que se põe o imperativo de monitorar condutas, nem todas tipificadas como infrações penais.1 1 Veja-se o contexto britânico: legislação editada em Liverpool veda o comércio ambulante, em especial, a venda de flores em bares, restaurantes e vias públicas, proíbe crianças de participarem do tradicional evento da noite de Guy Fawkes, em que elas saem às ruas para arrecadar uns trocados (a penny for the guy) – atividade equiparada ao ato de esmolar –, e coíbe a prática do skate no espaço público. Nos termos da lei, trata-se de evitar a obstrução do fluxo das pessoas no espaço urbano. Para um de seus formuladores, trata-se, também, de evitar a impressão de práticas econômicas “rebaixadas”, como o mercado da “pura barganha”, que seriam próprias do consumo ambulante. Em cidades como Essex, Hampshire e Cornwall, autoridades policiais públicas e privadas podem impedir a circulação de jovens vestidos com os proverbiais gorros de jaquetas de moletom e bonés de beisebol, pois, supostamente, essa indumentária poderia impedir a identificação das pessoas por câmeras de segurança (Coleman, 2004, p. 34).

O retorno contemporâneo da velha prática de banimento inscreve-se na mesma lógica securitária das estratégias de prevenção situacional do crime e das práticas de policiamento de “tolerância zero” e de “janelas quebradas”. O caso norte-americano é emblemático. Trata-se, em grande medida, do resultado de uma engenharia jurídica que visa driblar o reconhecimento da inconstitucionalidade de leis tradicionais que tipificavam a mendicância e a ociosidade como contravenções penais. A descriminalização dessas condutas tem levado inúmeros municípios, às voltas com o crescimento da população em situação de rua, a editar regulamentos de natureza civil e administrativa que conferem a autoridades policiais públicas e privadas a prerrogativa de banir temporariamente pessoas de parques públicos, bibliotecas, campi universitários, centros de compras e outros espaços urbanos. O descumprimento da medida implica a possibilidade de recolhimento do infrator à prisão (Beckett e Herbert, 2010BECKETT, K.; HERBERT, S. (2010). Penal boundaries: banishment and the expansion of punishment. Law & Social Inquiry. Cambridge, v. 35, n. 1, pp. 1-38.).

Dessa forma, uma nova arquitetura jurídica permite sancionar criminalmente, pelo descumprimento, condutas ilícitas de natureza civil ou administrativa. No mesmo passo, por não se tratar de regras expressamente reconhecidas como penais, essa arquitetura restringe o direito de defesa dos acusados, dispensando a exigência de prova das alegações oferecidas pelas autoridades que impõem as ordens e a representação por advogado legalmente constituído. O caráter de exceção dessas medidas repousa em sua inequívoca natureza penal, operando, na prática, a suspensão de princípios jurídicos inerentes ao direito de defesa dos acusados sob a capa formal de sua natureza meramente civil ou administrativa (Beckett e Herbert, 2010BECKETT, K.; HERBERT, S. (2010). Penal boundaries: banishment and the expansion of punishment. Law & Social Inquiry. Cambridge, v. 35, n. 1, pp. 1-38.; Minhoto, 2015MINHOTO, L. D. (2015). Foucault e o ponto cego na análise da guinada punitiva contemporânea. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 95, pp. 289-311.).

O que se pode verificar, portanto, é que essas práticas de controle parecem resultar da articulação crescente entre um padrão seletivo de gestão do espaço, a lógica de eficiência econômica, a adoção de medidas jurídicas de exceção e o objetivo de regular condutas urbanas consideradas de risco, tudo em nome de certa concepção de ordem pública e de certo ideal de civilidade.

Encarceramento, novo urbanismo militar e milicianização

Entre outras consequências, essas práticas de controle possuem papel decisivo na produção e na reprodução de dois dispositivos securitários que tendem a se inscrever cada vez mais nos modos de governo de muitas cidades do capitalismo global: o encarceramento em massa e o urbanismo militar. Nos termos da conhecida formulação de Garland (2001a, p. 5), o encarceramento em massa – “um evento sem precedentes na história das democracias ocidentais” – caracteriza-se, primeiramente, pelo fato bruto da abrangência da população prisional e da magnitude das taxas de encarceramento; depois, pode-se dizer que o encarceramento se torna massivo quando deixa de funcionar como mecanismo de aprisionamento do indivíduo transgressor da lei penal e passa a operar enquanto aparato de aprisionamento de setores inteiros da população. Atualmente, segundo o autor, nos EUA, “a prisão deixa de ser o destino de uns poucos criminosos para tornar-se a instituição modeladora de vastas parcelas da população” (ibid., p. 6), constituindo-se como parte do processo de socialização de grupos e comunidades em certos espaços da cidade. Como se sabe, trata-se, sobretudo, de jovens negros e pobres dos grandes centros urbanos.

As altas taxas de encarceramento que se verificam hoje em países do Norte e do Sul Global, como nos EUA e no Brasil, países que se encontram no topo dessa peculiar “corrida carcerária”, parecem estreitamente relacionadas à adoção dessas novas práticas de controle. A regulação e o monitoramento de condutas tidas como indesejáveis em vias públicas, parques, complexos comerciais, espaços residenciais e outros equipamentos públicos responde, em grande medida, pela disseminação do encarceramento de curta duração, pelo alto grau de rotatividade de parte da população penitenciária (“prende e solta”), pelo crescimento das prisões provisórias e pela extensão seletiva da rede de controle penal, que se expressa na crescente sobrerrepresentação de jovens pobres, negros e migrantes na população penitenciária. O caráter seletivo do encarceramento em massa vai a par com o caráter seletivo das novas formas de controle do espaço urbano.

Dessa perspectiva, se é certo que o encarceramento em massa se relaciona à adoção de leis mais severas de controle penal, em especial a política de guerra às drogas (de que a famigerada three strikes and you are out constitui emblema), bem como à introdução de sentenças mandatórias e determinadas que limitam a discricionariedade dos juízes na análise de casos concretos (sempre na direção do aumento do uso da prisão e dos termos de duração da pena e erosão de garantias processuais), pode-se verificar uma vinculação crescente entre essas inovações legislativas e judiciais e o governo dos espaços urbanos (cf. Minhoto, 2014MINHOTO, L. D. (2014). Nota crítica sobre a teoria dos sistemas, o neoliberalismo e o direito à cidade. Revista Direito e Práxis, v. 5, n. 2, pp. 462-474., 2015MINHOTO, L. D. (2015). Foucault e o ponto cego na análise da guinada punitiva contemporânea. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 95, pp. 289-311.).

Na produção do encarceramento em massa, muitas das novas estratégias de controle da conduta encontram, na gestão dos espaços urbanos, justamente as condições para a ativação de uma lógica de securitização de espaços que se põe, cada vez mais, em termos de monitoramento de riscos, policialização de condutas e eficiência sistêmica.

Ao buscar prover segurança a cidadãos concebidos como consumidores de serviços de justiça, com base na elaboração de perfis de risco de agregados populacionais e na regulamentação e policialização de condutas consideradas indesejáveis, a lógica securitária subjacente às novas estratégias de controle que estão na raiz do encarceramento em massa tende a operar um baralhamento crescente das fronteiras entre crime e condutas indesejáveis. Esse baralhamento parece, cada vez mais, o resultado de técnicas de controle dos fluxos populacionais no espaço urbano. É justamente a circulação de migrantes, mendigos, grafiteiros, skatistas, drogaditos e outros alvos “privilegiados” da atuação policial que revela como a “desordem se converte em gradiente do crime – quebrar janelas, jogar lixo nas ruas, pular uma catraca constituem graduações de um espectro que no limite se estende ao homicídio” (Harcourt, 2001HARCOURT, B. (2001). Illusion of order: the false promise of broken windows policing. Cambridge, Harvard University Press., p. 149).

Como se sabe, diferentes topoi de conotação marcial têm informado os debates político e jurídico sobre segurança pública – guerra às drogas, ao crime, ao terror, direito penal do inimigo, emergência e estado de exceção, “fortaleza Europa”, etc. –, indicando uma indistinção crescente nas fronteiras entre controle do crime e de operações de guerra. Em especial, após o 11 de Setembro, os discursos, práticas e organizações acionados no âmbito da guerra ao terror tendem a se normalizar na rotina de operações de controle do crime cujos alvos têm classe social, cor e lugar. Recentemente, a ascensão da extrema-direita, mundialmente, reativou a mesma distinção bélica entre in-group e out-group – que, note-se, já estava em operação no fascismo clássico (cf. Adorno et al., 1950ADORNO, T. W. et al. (1950). The authoritarian personality. New York, Harper & Brothers.) – a exemplo das propostas de Donald Trump de construir um muro na fronteira entre EUA e México para repelir "bad hombres" e projetar seu governo, tendo como base um misto de equipe da Special Weapons and Tactics (Swat) com uma grande empresa estadunidense listada na Fortune 500; as bravatas de Marine Le Pen sobre a "França para os franceses"; os slogans da Alternative für Deutschland (AfD), tal qual "Novos alemães? Nós mesmos fazemos"; ou de Jair Bolsonaro, para quem uma guerra santa entre o bem e o mal está sendo travada todos os dias em nome da pátria, da família e da liberdade.2 2 Para uma análise desse fenômeno, ver Brown (2019).

No campo das políticas penais anti-imigração e antidrogas, entrecruzam-se cada vez mais o discurso do inimigo, na chave da criminologia do outro e da orientalização (Garland, 2001b), na vigilância ostensiva e a distância, nos controles físicos e virtuais de fronteiras sociais e espaciais e no emprego de medidas de exceção. Além do aumento muito expressivo das taxas de encarceramento de migrantes em muitos países europeus, expande-se a rede de centros de detenção, campos de refugiados e zonas de espera, que formam uma espécie de arquipélago carcerário para estrangeiros – deveras lucrativo, note-se.3 3 Nos EUA, a agência encarregada do controle migratório (ICA) é obrigada por lei, desde 2007, a garantir que, no mínimo, 34 mil detentos sejam mantidos em centros de detenção para migrantes, a maioria administrada por empresas privadas, independentemente da avaliação concreta de suas condutas, prática conhecida como detention-bed mandate (Morgenthau, 2014).

No interior desse processo, destaca-se a imbricação entre medidas penais e medidas administrativas, de tal sorte que, em países como os EUA, as leis que dispõem sobre migração já não são mais um simples mecanismo administrativo para controlar a entrada e saída de estrangeiros, mas, antes, um mecanismo para a detenção de pessoas suspeitas sem a observância dos requisitos constitucionais que, ordinariamente, regulam o instituto da prisão preventiva (Coleman, 2004COLEMAN, R. (2004). Images from a neoliberal city: the State, surveillance and social control. Critical Criminology. Columbus, v. 12, n. 1, pp. 21-42.). Muitos detentos dessas instituições não são formalmente detidos em razão da prática de um delito penal, mas, antes, concebidos como “risco securitário”, são confinados em não lugares, justamente “os lugares em que a exceção se torna a regra” (Aas, 2007AAS, K. F. (2007). Globalization and crime. Londres, Sage., pp. 87-88).4 4 Sobre a imbricação contemporânea entre exceção soberana e governamentalidade, que opera pela suspensão da lei ou pelo seu uso tático pelo Estado, ver Butler (2004).

Na esteira da guerra ao terror e da nova política anti-imigração, milhares de distritos policiais têm recebido equipamentos militares, a princípio, pensados como apoio à construção de redes de inteligência antiterrorista, que vêm sendo crescentemente utilizados para operações policiais rotineiras e controle de protestos políticos, como os do movimento Occupy Wall Street e Black Lives Matter, nos EUA,5 5 A respeito, veja-se a intensa militarização da repressão dos protestos em Ferguson, Mississipi, em razão do assassinato, pela polícia, de Michael Brown, em 9/8/2014, jovem negro, de 18 anos, desarmado. Em Ferguson, 67% da população é de negros e 94% da força policial é composta de brancos. Na esteira da militarização do controle do crime, em todo o país (EUA), entre 2006 e 2012, um policial branco matou uma pessoa negra pelo menos duas vezes por semana (Smith, 2014). e dos protestos contra a reforma da previdência na França.

Em relação à política antidrogas, há outro caso emblemático da experiência norte-americana no controle do crime. Trata-se do redirecionamento das operações da Swat, das equipes de operações táticas e armas especiais e principais consumidoras de armamentos militares, que, implementadas na esteira das revoltas políticas dos anos 1960, cada vez mais têm atuado no “combate” ao tráfico e ao uso de entorpecentes, executando mandados de prisão, monitorando transações e realizando o patrulhamento ostensivo de zonas de alta criminalidade (Vitale, 2021VITALE, A. (2021). Fim do policiamento. São Paulo, Autonomia Literária.).

Essa crescente militarização do controle penal se insere no contexto mais abrangente de emergência do que se tem chamado de “novo urbanismo militar”. Segundo Graham (2016)GRAHAM, S. (2016). Cidades sitiadas: um novo urbanismo militar. São Paulo, Boitempo., o urbanismo militar contemporâneo consiste na reconfiguração crescente do espaço e da vida cotidiana nas cidades por uma racionalidade militar, vale dizer, por práticas e discursos que têm, no centro, a noção de guerra, convertendo questões e eventos da ordem do cotidiano das cidades em assuntos bélicos. Um modo de conceber e de construir a vida urbana de forma militarizada espraia-se, combinando-se de modo particular às racionalidades próprias de outras esferas da vida social, como a econômica, a política, a jurídica, etc.

Nos termos desta literatura (Graham, 2009GRAHAM, S. (2009) Cities as battlespace: the new military urbanism. City, v. 13, n. 4, pp. 383-402.; 2016; Sassen, 2010SASSEN, S. (2010). When the city Itself becomes a technology of war. Theory, Culture & Society, v. 27, n. 6, pp. 33-50.; Boyle e Haggerty, 2009BOYLE, P.; HAGGERTY, K. D. (2009). Spectacular security: mega-events and the security complex. Political Sociology, v. 3, n. 3, pp. 257-274.), o urbanismo militar aparece fortemente associado às seguintes tendências de mudança social: (1) erosão das fronteiras entre guerra e paz, civil e militar, forças armadas e polícia, segurança pública e privada – transcendendo os limites convencionais de tempo e espaço, a guerra urbana se converte, crescentemente, em guerra permanente e geograficamente ilimitada; (2) a formação de uma rede global de troca de informação, tecnologia, assessoria e venda de pacotes de militarização que possibilita a constituição de uma indústria da militarização do espaço urbano – que passa pela mídia, pelo cinema, pela indústria automobilística e do entretenimento (como se pode ver na organização de grandes eventos esportivos mundiais).

A partir dessas bases, Dardot et al. (2021DARDOT, P. et al. (2021). A escolha da guerra civil: uma outra história do neoliberalismo. São Paulo, Elefante., p. 255) ressaltam como o processo de militarização urbana contemporâneo “tende a se transformar em milicianização”, que envolve, portanto, o acionamento cada vez mais aberto e explícito de dispositivos de exceção em determinadas regiões da cidade e contra todas as populações ou os grupos que poderiam representar riscos para a (re)produção da cidade-empresa e dos sujeitos empreendedores; e o uso cada vez mais recorrente de práticas de achaque e despossessão como formas de policiamento (nesse sentido, cf. Minhoto, 2020MINHOTO, L. D. (2020). Encarceramento em massa, racketeering de estado e racionalidade neoliberal. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 160, pp. 161-191.; Wang, 2022WANG, J. (2022). Capitalismo carcerário. São Paulo, Igrá Kniga.). Em outras palavras, gestão dos despossuídos e das zonas urbanas vistas como “perigosas”, repressão de movimentos sociais, políticos dissidentes e práticas de policing for profit se aglutinam como algumas das expressões da tendência de milicianização decorrente do novo urbanismo militar.

Assim, o emprego cotidiano da racionalidade da guerra e das forças militares, na gestão de muitas cidades do capitalismo global, marca uma espécie de internalização urbana da noção de campo de batalha e passa a ser decisivo para a geração e a garantia de continuidade de novos negócios, o desenvolvimento de novas tecnologias e o fortalecimento do ethos do empreendedorismo, a articulação crescente entre indústria da guerra e do entretenimento, o combate e a gestão do crime, a formulação e a execução do planejamento urbano e a legitimação política das administrações das cidades.

A cidade neoliberal

Quais são os nexos específicos que articulam essas práticas e esses dispositivos securitários aos modos de governo de muitas das cidades do capitalismo global? Qual é, exatamente, a concepção de segurança que lhes é subjacente? Sem pretender responder de modo exaustivo a essas indagações, procuramos chamar a atenção para a forma como algumas das tendências contemporâneas de mudança urbana direcionam os modos de governo das cidades para a adoção de formas seletivas e excludentes de controle do espaço urbano que parecem estar na raiz do encarceramento em massa e do novo urbanismo militar.

As tendências de recrudescimento penal e as lógicas hiperpunitivas de gestão de populações urbanas se inserem em um contexto global de espraiamento globalizado e de capilarização social daquilo que Foucault (2008)FOUCAULT, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, Martins Fontes. denominou "governamentalidade" neoliberal. Após cinco décadas de uma contrarrevolução mundial, cujo embrionário teste prático se deu em Santiago, desenhos urbanos, formas de Estado, políticas públicas de segurança e formas subjetivas foram moldadas de acordo com o padrão da forma da empresa neoliberal, tendo critérios como eficiência, competição, desempenho e maximização de ganhos como suas linhas de força.

O novo padrão de gestão securitária da vida ora discutido, simultaneamente, responde a e promove dois efeitos aparentemente contraditórios legados por todas as experiências de neoliberalização já postas em marcha até hoje: de um lado, o aprofundamento de um abismo social que cinde a sociedade de modo indelével (a sociedade do 1% versus 99%); de outro, os imperativos neoliberais de empreendedorismo, gestão e extração de valor que insistem em promover uma forma de sociedade e de subjetividade que gera o abismo social em primeiro lugar. Como afirmam Davis e Monk (2007)DAVIS, M.; MONK, D. B. (eds.) (2007). Evil paradises: dreamworlds of neoliberalism. New York, New Press., emerge aí um padrão de urbanismo da exclusão e de paisagens da desigualdade afinado com uma lógica mais ampla, neoliberal:

A lógica espacial do neoliberalismo (cum plutonomia) revive os padrões coloniais mais extremos de segregação residencial e consumo zoneado. Em todos os lugares, os ricos e quase-ricos estão se retirando para complexos suntuários, cidades de lazer e réplicas muradas de subúrbios imaginários da Califórnia [...]. Enquanto isso, uma subclasse criminosa demonizada [...] fica do lado de fora do portão [...], fornecendo uma justificativa autointeressada para o retiro e fortificação de estilos de vida luxuosos. (Ibid., pp. 10-11)

Em outras palavras, em um planeta que estabelece nexo entre favelas, enclaves urbanos, shopping centers, megaeventos e centros de capital financeiro, a militarização da vida urbana torna-se a forma de gestão privilegiada de conflitos sociais cada vez mais patentes. Complexos prisionais, empresas enxutas, configurações militarizadas de policiamento ostensivo, manuais de empreendedorismo e dispositivos de vigilância ubíqua pertencem, assim, a uma constelação contemporânea de guerra social travada tanto por mecanismos hard de intervenção direta e corpórea quanto por circuitos soft – embora nem por isso menos consequentes – de reformulação subjetiva e estatal furtivas. Ambos constituem dois lados da mesma moeda de um projeto neoliberal de sociedade em que concentração de renda e monopolização da economia andam de mãos dadas com demandas por responsabilização individual e empreendedorismo de si.

Por trás da disseminação das novas formas de controle, é possível divisar como certa semiótica do espaço anda de par com uma estética hegemônica e uma política da visão que prescrevem “quem ou o que pode ou não pode ser visto” no espaço urbano (Coleman, 2004COLEMAN, R. (2004). Images from a neoliberal city: the State, surveillance and social control. Critical Criminology. Columbus, v. 12, n. 1, pp. 21-42., p. 28). Uma política da visão feita, cada vez mais, de juízos específicos de normalidade e de imagens seletivas de ordem e de civilidade que se quer difundir pela organização dos espaços da cidade. Juízos e imagens construídos a partir de quais critérios?

Do ponto de vista de uma analítica de governo, trata-se de considerar como novas formas de ver, de produzir verdade e de constituir subjetividades requeridas pelo trabalho de promoção e venda de lugares da cidade vão se disseminando tanto para o governo da cidade quanto para o governo do crime. Dessa perspectiva, o governo do – e pelo – crime torna-se um dos componentes centrais do fazer a cidade contemporânea. É justamente nesse fazer que se poderia flagrar o sujeito econômico e o ethos empreendedor da governamentalidade neoliberal como definidores dos modos de governar o espaço urbano e o crime. Um governo que, combinando medidas de soberania, disciplina e segurança, dissemina e faz inscrever a forma empresa em espaços urbanos estratégicos do capitalismo global.

Sublinha-se, aqui, a centralidade do Estado na produção de uma cultura política de inovação e investimento permanentes em tecnologias de gestão de fluxos populacionais e apartação social e urbana. No limite, essa centralidade do Estado está alinhada à sua governamentalização neoliberal e à sua redefinição como uma espécie de metaempresa e autoridade de licenciamento de novos negócios:

[...] pela terceirização de suas funções, o Estado foi transformado em algo semelhante a uma holding, uma metacorporação sob o signo de “Nationalidade Ltda.”: uma autoridade licenciadora, isto é, no jogo de terceirizar serviços sociais, de segurança, financeiros, carcerários, administrativos, militares e outros para empresas com fins lucrativos. (Comaroff e Comaroff, 2016COMAROFF, J.; COMAROFF, J. L. (2016). The truth about crime: sovereignty, knowledge, social order. Chicago, University of Chicago Press., p. 52; tradução nossa)

Em suas palestras de 1978 e 1979, no Collège de France, Foucault (2008)FOUCAULT, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, Martins Fontes. já havia alertado para esse elemento basilar da reprogramação do liberalismo em curso durante todo o século XX, a saber, a ambição de moldar cada grão do corpo social – Estado incluso – a partir da forma empresa. Seja em sua iteração ordoliberal ou estadunidense, operadores do pensamento neoliberal arquitetaram uma proposta de enformação (termo do próprio Foucault) do Estado a partir das determinações da empresa capitalista.

Retomando esse topos foucaultiano, Brown (2017)BROWN, W. (2017). Undoing the demos: neoliberalism's stealth revolution. Nova York, Zone Books. desenvolve a noção de uma "revolução furtiva" neoliberal que, agindo por uma lógica de cupim (ibid., p. 35) que corrói as entranhas do Estado deixando sua casca exterior (instituições, partidos, eleições) aparentemente intacta. Ao fazê-lo, reconfigura noções democráticas basilares – igualdade, justiça, deliberação pública, autogoverno e busca do bem comum –, substituindo-as por parâmetros neoliberais – competição, desigualdade, empreendedorismo, inputs e outputs, externalidades. Seguindo a autora, a desdemocratização está intimamente relacionada com a produção de um cidadão “ademocrático” (undemocratic citizen), aquele que já não aspira mais

[...] nem à liberdade, nem à igualdade, mesmo em chave liberal, que não espera mais accountability nas ações governamentais, que não se aflige nem se angustia com a concentração exorbitante de poder político e econômico, nem tampouco com as restrições crescentes ao estado de direito. (Brown, 2006BROWN, W. (2006). American nightmare: neoliberalism, neoconservatism, and de-democratization. Political theory, v. 34, n. 6, pp. 690-714., p. 692)

Segundo Brown, essa neutralização política da cidadania é acompanhada pela privatização e pela corrosão da vida pública, uma vez que o “projeto de navegação do social converte-se em discernir, bancar e buscar soluções estritamente pessoais para problemas socialmente produzidos” (ibid., p. 704). Nas palavras de Foucault (2008FOUCAULT, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, Martins Fontes., p. 311), o homus oeconomicus neoliberal – concebido como um “empreendedor de si mesmo, sendo para si mesmo seu próprio capital, sendo para si mesmo seu próprio produtor, sendo para si mesmo a fonte de seus rendimentos”– é responsável por gerir individual e privadamente os riscos associados à desigualdade, violência, desemprego e enfermidade, enfim, a toda sorte de infortúnios que são, original e estruturalmente, coletivos e sociais.

Nota-se como são exatamente essa subjetividade contábil e sua grade econômica de inteligibilidade que podem se entrever no campo de muitas das novas práticas de controle do crime e das condutas. A respeito, Simon (2010)SIMON, J. (2010). Consuming obsessions: housing, homicide, and mass incarceration since 1950. University of Chicago Legal Forum. Chicago, v. 2010, pp. 165-204. refere que a emergência do mercado imobiliário voltado ao financiamento e à aquisição da casa própria na década de 1950, nos EUA, e seus desdobramentos históricos posteriores poderiam prover uma explicação para traços distintivos e decisivos da penalidade contemporânea, em particular,

[...] a enorme expansão no uso do encarceramento, a sua guinada na direção de uma orientação categórica (ou de massa) e a relativa falta de crescimento do policiamento público (em comparação com o policiamento prisional e privado), incluindo também a persistência da pena capital e a importância das armas para a política do crime na América. (Ibid., 2010, p. 167; tradução nossa)

Trata-se de uma situação exemplar em que se articulam o cálculo do valor do patrimônio nos mercados financeiro e imobiliário, as sensibilidades de risco em relação ao crime e a adoção de esquemas públicos e privados de defesa e proteção da propriedade no espaço urbano. Nesses termos, a prisão expandida e revigorada de hoje e a tendência à militarização do controle do crime parecem, justamente, o resultado desse encontro entre governamentalidade neoliberal da cidade e estruturas sociais crescentemente polarizadas. Vejamos, agora, como essa articulação entre militarização de espaços urbanos, gestão diferencial do crime e racionalidade neoliberal manifesta-se em um caso brasileiro concreto.

Intervenção Federal: neoliberalismo, militarização e milicianização

O cenário nacional destaca-se como ponto privilegiado de análise dessas tendências contemporâneas, pois permite jogar luz sobre formas possíveis de entrelaçamento entre distintas tecnologias de poder, o desenho de estratégias de controle e o desempenho de atividades policiais específicas, tais como a segurança de espaços sanitizados, a repressão de protestos políticos e o controle do crime nas margens da cidade, que parecem se encontrar na produção seletiva do encarceramento em massa, na militarização dos modos de operação das polícias e na reprodução de uma ordem social profundamente hierárquica. A organização de megaeventos em que elites locais e globais se encontram em ambiente urbano gentrificado e sanitizado, a partir do emprego de novas técnicas de controle e experimentos – como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro (Hirata, Grillo e Telles, 2023; Oliveira, 2016) e as “operações delegadas” em São Paulo (Brito, 2015BRITO, J. (2015). Copa para quem? Estado de exceção e resistências em torno da Copa do Mundo FIFA 2014. Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo.) – e, ainda, a extensão dessas técnicas ao policiamento dos protestos urbanos que se disseminaram pelo País nos últimos tempos (Brito e Oliveira, 2013BRITO, F.; OLIVEIRA, P. R. (2013). Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. São Paulo, Boitempo.) – como se pôde ver nos protestos pela mobilidade e contra o aumento da tarifa no transporte público –, conformam um repertório de inovações de controle em que se verifica uma espécie de militarização global dos modos de operação das polícias na sociedade brasileira, de que não escapam nem mesmo as guardas municipais (IBCCrim, 2010IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (2010). Advertências à militarização da ideia de segurança pública - Editorial. Boletim IBCCrim, n. 206.).6 6 Para uma reconstrução da emblemática “Operação sufoco”, na região da assim chamada “cracolândia”, em São Paulo, ver Magalhães (2017).

Em outras palavras, pode-se dizer que as tendências que impulsionam o urbanismo militar neoliberal no País se articulam de forma complexa ao padrão histórico de acumulação social da violência (Misse, 2023MISSE, M. (2023). Malandros, marginais e vagabundos: a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Lamparina/Faperj. e de controle social militarizado e violento vigente, em uma conformação híbrida local que parece apontar caminhos relevantes para a compreensão das tendências gerais trabalhadas neste artigo.

Diversas metrópoles brasileiras – São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, entre outras – têm vivido, nas últimas duas décadas, a disseminação de novas técnicas de policiamento e de controle das cidades para sua promoção como commodities no mercado global. O caso do Rio de Janeiro, contudo, aparece como o mais emblemático, uma vez que tem sido palco de sucessivos experimentos de práticas que mesclam eficiência econômica e militarização para a gestão dos territórios e das populações empobrecidas (Hirata, Grillo e Telles, 2023). Os projetos de segurança dos “megaeventos esportivos” – do Panamericano de 2007 e a chacina que o acompanhou até as Olimpíadas de 2016, passando, decisivamente, pela Copa do Mundo de 2014 –, todo o processo de instalação das UPPs com o uso de verdadeiras operações de guerra extremamente midiatizadas e o recorrente uso das Forças Armadas em operações de “Garantia de Lei e da Ordem” (GLO) foram alguns dos experimentos recentes que marcaram a cidade.7 7 Diversos estudos e relatos jornalísticos se debruçaram sobre estes experimentos e mostraram seus trágicos resultados para a cidade (por exemplo: Camargos, 2022; Hirata, Grillo e Telles, 2023; Menezes, 2023; Viana, 2021): os absurdos níveis de violência policial contra populações marginalizadas, o fortalecimento das milícias, a reestruturação dos mercados legais e ilegais, e a recorrência de casos de violência política são alguns dos efeitos - intensificados, sobretudo, após a Intervenção Militar.

Estes experimentos, contudo, forneceram as bases para uma das maiores e mais violentas ações de militarização da segurança na cidade radicadas na lógica da guerra ao inimigo interno e impulsionada por uma racionalidade econômica neoliberal: a Intervenção Federal na Segurança Pública no Estado do Rio de Janeiro, realizada entre fevereiro e dezembro de 2018, por meio da qual as Forças Armadas, sob o comando do General do Exército Walter Souza Braga Netto, assumiram o controle de toda a estrutura da Segurança Pública do Estado, com os objetivos declarados de “pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública” (Brasil, 2018BRASIL. (2018). Decreto n. 9.288, de 16 de fevereiro. Presidência da República, Brasília.).

Idealizada pela administração de Michel Temer, com o apoio de nomes de alta patente das Forças Armadas brasileiras, a Intervenção Federal foi decretada em um momento de baixíssima popularidade do Governo Federal e de intensas crises sociais, econômicas e políticas no Brasil, assim como de um alardeado caos na Segurança Pública, amplamente divulgado na mídia a partir de, entre outros fatores, pressões empresariais diante de casos de roubos de carga ocorridos nas estradas do Estado e de "crimes de rua" cometidos durante o carnaval (Hirata, Grillo e Telles, 2023).

Se, por um lado, Hirata, Grillo e Telles (ibid.) mostram com precisão como este experimento estava plenamente articulado com a (re)configuração dos mercados legais e ilegais na cidade, com as modulações neoliberais, interessa-nos observar, por outro, como todo o desenho e a aplicação desta política foram plenamente imbuídos na lógica específica empresarial de gestão dos espaços urbanos a partir dos primados da eficiência econômica. Como todos os discursos de autoridades envolvidas e os documentos produzidos pelo Gabinete da Intervenção Federal (GIF) evidenciam, a Intervenção tinha, em seu centro, a articulação entre o urbanismo militar e a já mencionada cartilha do total quality management: o choque de gestão empresarial no aparato repressivo do Estado, a informatização e a integração de extensivos bancos de dados, o uso recorrente de indicadores de performance para o policiamento, a cobrança de resultados e om marketing agressivo. Com um léxico típico de manuais de administração corporativa enxutos e de peças publicitárias de think tanks acometidos por phobie d'État (cf. Foucault, 2008, pFOUCAULT, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, Martins Fontes., p. 103), nas palavras de Etchegoyen (2023, pETCHEGOYEN, S. W. (2023). Entrevista concedida a Celso Castro, Adriana Marques, Igor Acácio e Verônica Azzi. In: CASTRO, C. (org.). Forças Armadas na segurança pública: a Visão Militar. Rio de Janeiro, FGV Editora., p. 207), “o que o interventor, o general Braga Netto, fez [...] foi um choque de gestão”.

Braga Netto (2018), por sua vez, afirmou que a Intervenção foi realizada com o “propósito de proporcionar a todos os envolvidos uma janela de oportunidades” para “recuperar a capacidade operativa dos órgãos de segurança pública e baixar os índices de criminalidade, visando fundamentalmente a recuperação da sensação de segurança pela população carioca” (ibid.). Para o general, o objetivo era realizar um “trabalho eficiente e eficaz”, extinguindo qualquer “influência política” e mantendo a hierarquia e a disciplina por meio da “ocupação de seus cargos e promoção de seu capital humano com base na meritocracia” (ibid.).

As bases do choque de gestão proposto ficam evidentes, ademais, na análise do Plano Estratégico da Intervenção Federal no Rio de Janeiro, elaborado sob a coordenação de Braga Netto (ibid.) com o intuito de direcionar os trabalhos, estabelecer os indicadores de desempenho e estruturar as ações a serem realizadas. Para estruturar as ações, o Plano utiliza a técnica de gestão empresarial Strengths, Weaknesses, Opportunities e Threats (Swot) – ou, em português, Forças, Oportunidades, Fraquezas e Ameaças. Dentre outras, a Intervenção via como “oportunidade” para o exército a “sensação de insegurança manifestada pela sociedade” e a suposta “tradição de eficiência, seriedade, honestidade e profissionalismo das Forças Armadas”, enquanto – seguindo a cartilha conjunta de desprezo à democracia, tanto do Exército brasileiro quanto da visão neoliberal de mundo (cf. Chamayou, 2020CHAMAYOU, G. (2020). A sociedade ingovernável: uma genealogia do liberalismo autoritário. São Paulo, Ubu Editora.; Dardot et al., 2021DARDOT, P. et al. (2021). A escolha da guerra civil: uma outra história do neoliberalismo. São Paulo, Elefante.) – via como “ameaças” à sua atuação a “falta de apoio da população à Intervenção Federal” e a “realização de manifestações e protestos por parte de grupos sociais politizados”.

A partir do diagnóstico, o Plano apresenta um mapa estratégico que desdobra a visão central da Intervenção – isto é, a “recuperação incremental das capacidades operativas dos OSP [Órgãos de Segurança Pública] estaduais [e] diminuição gradual dos índices de criminalidade” – em quatro eixos de ações gerenciais, voltados à “produtividade e o crescimento” (Braga Netto, 2018, pp. 27-28) das agências de segurança do Estado: (1) “buscar confiança e credibilidade da população”, ou, a “satisfação do cliente”, nas reveladoras palavras do Plano; em segundo, (2) “dinamizar os processos e práticas internas”, ou a “geração de valor para o cliente”; (3) garantir a “eficiência administrativa”, ou a “sustentação orçamentária”; e (4) “valorizar a dimensão humana”, ou o “tratamento dos ativos intangíveis: capital humano, capital organizacional e capital informacional”.

Com base nesse mapa e nos eixos estabelecidos, o Plano apresenta a forma central de aferir os resultados da Intervenção: diversos indicadores e diversas metas a serem cumpridas, que indicariam o sucesso das ações do Gabinete. Todas as ações tomadas ao longo da Intervenção – seja na esfera administrativa, seja no policiamento das ruas – deveriam, portanto, ter como base os indicadores propostos e o objetivo de atingir as metas estabelecidas.

Com a finalidade de atingir tais metas de performance, portanto, o “choque de gestão” forneceu os pilares para os diversos choques físicos (Klein, 2008KLEIN, N. (2008). The shock doctrine: the rise of disaster capitalism. Londres, Penguin Books.) que foram colocados em curso pelas Forças Armadas. Tratava-se, na definição do relatório produzido pelo Centro de Estudos e Pesquisa em História do Exército (Cephimex, 2019), de “aplicar o poder militar” – ou seja, usar os preceitos de eficiência para reforçar a guerra contra determinadas populações e regiões urbanas. Assim, o Gabinete da Intervenção adquiriu e transferiu ao Sistema de Segurança do Rio de Janeiro uma extensa parafernalha de guerra e controle dos órgãos de Segurança Pública do Estado, chamado de “legado tangível da Intervenção Federal”, que contou com armamentos letal e menos letal, diversos veículos, incluindo blindados do tipo “caveirão”, helicópteros e caminhões de transporte, assim como drones, ferramentas de mapeamento aéreo, softwares, câmeras, entre outros. Ao lado disso, as Forças Armadas mantiveram-se como as principais responsáveis pelas ações ostensivas de policiamento do Estado, pela sequência da Operação de GLO que ocorria no Estado desde 2017.

A organização das ações ostensivas ficou a cargo de um Comando Conjunto (CCj), chefiado pelo general Antônio Manoel de Barros. O modelo escolhido foi o de coordenar a intensificação das chamadas “Operações Especiais”, ou seja, diversas incursões violentas em favelas e regiões empobrecidas do Estado e, sobretudo, da capital e de sua região metropolitana.8 8 De acordo com os dados do Observatório da Intervenção (Ramos, 2019), foram registradas 636 operações na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (de um total de 711 em todo o Estado) entre fevereiro e dezembro de 2018 – pouco mais de 12 operações por semana. Com o uso dos sistemas estatísticos e de georreferenciamento, tais zonas urbanas eram apontadas como aquelas com maior incidência dos tipos criminais que a Intervenção desejava coibir. Tratava-se, portanto, das zonas consideradas “perigosas”, em que as práticas de guerra deveriam ser aplicadas para governar as populações destes locais – também constantemente rotuladas como “perigosas” ou “suspeitas” – para tentar alcançar as metas preconizadas no Plano Estratégico.

Para desencadear as ações, o comandante do CCJ estabeleceu, expressamente, “princípios operacionais para ações em comunidades” (ibid., 2019, p. 72.), que eram: “demonstração de força, para aumentar a sensação de segurança; obtenção de inteligência; redução dos índices de criminalidade na[s] área[s], remoção de barreiras e obstáculos, e estabilização da[s] área[s]”. As Operações eram prontamente divulgadas em canais midiáticos, assim como eram propagandeadas para as populações afetadas por meio da distribuição de flyers exaltando a atuação do exército (ibid.).

Como diversos estudos e relatos mostram (FBSP, 2018FBSP - Fórum Brasileiro de Segurança Pública; DATAFOLHA (2018). Rio sob Intervenção. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/07/fbsp-rio-sob-intervencao-2018-relatorio.pdf. Acesso em: 23 maio 2024
https://forumseguranca.org.br/wp-content...
; Ramos, 2019RAMOS, S. (2019) (coord.). Intervenção federal: um modelo para não copiar. Rio de Janeiro, CESeC.), as operações e as ações de patrulhamento coordenadas e/ou realizadas pelas Forças Armadas foram colocadas em curso como verdadeiros empreendimentos de guerra, em que toda a parafernália militar aterrorizava a população daquelas regiões e todos os que circulavam pelos espaços eram considerados como inimigos em potencial. Nessa lógica, fiscalizações agressivas contra a população, como paradas para revista sem qualquer indício que as justificassem, seguindo o modelo nova-iorquino do stop and frisk, outra grande cidade-laboratório de práticas neoliberais punitivas (cf. Peck, 2012PECK, J. (2012). Constructions of neoliberal reason. Oxford, Oxford Univ. Press., p. 134 et seq.), detenções e prisões injustificadas, invasões de domicílios sem ordem judicial e, sobretudo, casos de torturas e assassinatos cometidos por agentes estatais tornaram-se parte (ainda mais frequente) da rotina das populações das regiões pobres do Rio de Janeiro. Nos casos mais graves, helicópteros (os chamados “caveirões voadores”) foram utilizados para atirar indiscriminadamente, contra favelas.

Toda a campanha de marketing – que acompanhou a intervenção antes, durante e depois de sua realização – teve como foco a circunstância de que algumas das metas estabelecidas de “redução da criminalidade” foram atingidas.9 9 Como apontam os estudos do Observatório da Intervenção (Ramos, 2019), os próprios indicadores elaborados pela Intervenção Federal abrem portas, na verdade, para o questionamento dos seus resultados. Em primeiro lugar, a redução de alguns dos índices apontados foi muito pequena e, comparando-se com anos anteriores da série histórica (de 2014 a 2017), encontra-se dentro da variação normal verificada na cidade. Em segundo lugar, os indicadores usam apenas dados do Estado inteiro, sem levar em consideração áreas específicas que tiveram presença constante das Forças de Intervenção e viram, pelo contrário, os indicadores subirem. Por fim, outros estados brasileiros (como São Paulo), que não estavam sob a Intervenção, também tiveram variações semelhantes no período. Contudo, outros indicadores trágicos ficaram, propositalmente, de fora das campanhas de divulgação e comemoração do suposto “sucesso da intervenção” (Ramos, 2019RAMOS, S. (2019) (coord.). Intervenção federal: um modelo para não copiar. Rio de Janeiro, CESeC.). Durante a Intervenção, o número de pessoas assassinadas pelas forças de segurança no Estado aumentou de 1.127 pessoas em 2017 para 1.534 pessoas em 2018, atingindo o maior número registrado na série histórica desde então. Além disso, o período teve um aumento no número de tiroteios na cidade, bem como no número de chacinas e de pessoas assassinadas em chacinas (ibid.), engendrando um processo de estatização das chacinas (Hirata et al., 2023HIRATA, D. V. et al. (2023). Chacinas policiais no Rio de Janeiro: estatização das mortes, mega chacinas policiais e impunidade. Rio de Janeiro, Fundação Heinrich Böll/Faperj.) que se fortaleceria nos anos posteriores.

Assim, como os resultados da Intervenção Militar nos mostram, a lógica econômico-empresarial que caracteriza parte significativa do novo urbanismo militar brasileiro encontrou terreno fértil em uma sociedade marcada por um contínuo processo de acumulação social da violência baseado na construção de inimigos internos (Misse, 2023MISSE, M. (2023). Malandros, marginais e vagabundos: a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Lamparina/Faperj.). A lógica de guerra aos territórios urbanos em que vivem as populações marginalizadas por marcadores sociais de classe e raça – constantemente reconstruída na história do País – viu uma nova e violenta escalada a partir do seu engate com os preceitos da gestão empresarial, do uso de sistemas estatísticos e dos preceitos de maximização da performance. Em outras palavras, a grade de inteligibilidade econômica que sustentou a Intervenção Militar parece ter contribuído para tornar mais eficientes as práticas violentas de exclusão, de controle e de gestão diferencial dos ilegalismos que historicamente marcam a segurança urbana no país.

Neste sentido, a análise de como a articulação entre a racionalidade econômica, a lógica de guerra e a gestão urbana dos ilegalismos estruturou a Intervenção Federal parece fornecer pistas, também, para a compreensão de como a tendência de milicianização decorrente da militarização da segurança (Dardot et al., 2021DARDOT, P. et al. (2021). A escolha da guerra civil: uma outra história do neoliberalismo. São Paulo, Elefante.) tem, no Brasil, uma faceta bastante concreta. Como diversas pesquisas mostram (Hirata et al., 2022HIRATA, D. V. et al. (2022). A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados. Rio de Janeiro, Fundação Heinrich Böll.; Hirata, Grillo e Telles, 2023; Ramos, 2019RAMOS, S. (2019) (coord.). Intervenção federal: um modelo para não copiar. Rio de Janeiro, CESeC.), um dos principais efeitos das sucessivas experiências de militarização ocorridas nas cidades brasileiras e, principalmente, no Rio de Janeiro foi o fortalecimento das redes ligadas a mercados ilegais conhecidas como “milícias”. Herdeiras dos esquadrões da morte da ditadura, estas redes parapoliciais – compostas principalmente por agentes e ex-agentes das forças de segurança – voltadas à extorsão, ao assassinato e à venda de mercadorias políticas ganharam a sua conformação contemporânea nos anos 1990 e desdobraram-se, desde então, sobre diversos mercados e áreas (físicas e simbólicas) de influência (Misse, 2011MISSE, M. (2011). Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades. Revista de Sociologia e Política. Paraná, v. 19, n. 40.).

Apoiadas no aparato bélico - e no “capital humano” – das forças de segurança, nas escolhas políticas do Estado e no discurso que mescla gestão e guerra, estas redes, que já vinham crescendo com as reconfigurações urbanas verificadas ao longo dos anos 2000 (Cano e Duarte, 2008), expandiram significativamente a sua atuação a partir da segunda metade dos anos 2010, para as “vastas ‘zonas cinzentas’ que se espalham nas franjas da cidade” (Hirata, Grillo e Telles, 2023, p. 13) na esteira das Operações Militares, principalmente após a Intervenção Federal.

Por um lado, o fortalecimento da milicianização se deu pelo uso diferencial das próprias operações policiais de “retomada de territórios”, que abriu espaço para as milícias ao enfocar os espaços controlados pelos grupos armados ligados ao comércio de drogas, sobretudo o Comando Vermelho (Hirata et al., 2022HIRATA, D. V. et al. (2022). A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados. Rio de Janeiro, Fundação Heinrich Böll.; Hirata, Grillo e Telles, 2023). Ao lado disso, diante das conexões entre milícias e polícias, o aparato de guerra transferido às forças de segurança do estado também contribuiu para o crescimento dos grupos milicianos.

Por outro, no que mais interessa aos objetivos do presente artigo, cumpre destacar como a articulação entre lógica de guerra, racionalidade neoliberal e o histórico brasileiro de controle social violento (Misse, 2023MISSE, M. (2023). Malandros, marginais e vagabundos: a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Lamparina/Faperj.) que sustentaram a Intervenção e os experimentos anteriores de militarização são, precisamente, as articulações que se encontram na base do funcionamento das próprias redes milicianas. O primado da eficiência na gestão urbana militarizada se exprime, assim, na imbricação das forças estatais com estas redes, que atuam – de forma ainda mais direta – na gestão dos “inimizados” por meio de sua eliminação e levam às últimas consequências os imperativos de maximização da performance, com uso da força e do aparato do Estado para a extração de lucro, seja pela conformação dos mercados de proteção e de outras mercadorias, seja pela inserção constante nos distintos mercados nas fronteiras entre o legal e o ilegal (Hirata, Grillo e Telles, 2023).

Conclusões

Ou seja, o que parece se verificar é que as novas formas de controle que hoje se disseminam por muitas cidades globais estão estreitamente articuladas à instituição de juízos de normalidade e de imagens de ordem urbana construídos à imagem e semelhança do homo oeconomicus e da forma empresa e à inscrição no espaço urbano e em suas representações sociais de marcas comercializáveis de distinção comercial. Tais formas, contudo, não se limitam às intervenções situacionais e às oportunidades dos agentes tomados como racionais, como havia preconizado a análise de Foucault (2008)FOUCAULT, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, Martins Fontes.. Ao contrário, essas intervenções atualizam e reposicionam, constantemente, os dispositivos disciplinares e soberanos, representados, principalmente, no encarceramento massivo de setores da população e na expansão constante da militarização urbana.

Assim, a articulação entre a gestão empresarial e o governo do e pelo crime, nas cidades contemporâneas, aparece como um dos mecanismos centrais de condução dos preceitos do capitalismo em sua forma neoliberal, estimulando, simultaneamente, a construção dos sujeitos empreendedores e a inimização de todos aqueles que teriam “falhado” no jogo da competição e daqueles que se desviam de suas normas ou se opõem a elas. A milicianização – com os achaques, a violência política e as práticas de exceção que a constituem – aparece como um dos produtos mais acabados dessa articulação, que vem ganhando formas distintas nos variados contextos urbanos mundiais.

Como procuramos mostrar, o caso brasileiro e, sobretudo, o do Rio de Janeiro, um dos mais concretos exemplos da tendência de milicianização decorrente da militarização urbana contemporânea, constitui um espaço privilegiado para a análise, ao evidenciar as entranhas de como as articulações apresentadas atuam para reproduzir os padrões violentos de uma ordem social calcada em hierarquias e desigualdades abissais.

A partir do enquadramento teórico-analítico e das reflexões empíricas propostas, o argumento exposto ao longo deste artigo mostra-se, portanto, como um primeiro passo para que outras pesquisas se aprofundem nas questões abertas no âmbito dessa agenda. Por um lado, a investigação de como as articulações evidenciadas têm se apresentado em outros contextos urbanos nacionais e internacionais – no Norte e no Sul Global – pode trazer contribuições extremamente relevantes. Por outro, abre-se espaço para a investigação de como essas lógicas se desdobram, também, para outras esferas sociais, como a política institucional, a economia formal, a educação, entre outras.

Nota de agradecimento

Os autores gostariam de registrar os agradecimentos aos demais participantes do projeto de pesquisa O governo da segurança na cidade neoliberal (FFLCH/USP), sobretudo às integrantes Mariana Amaral e Helena Wilke, pelas discussões que ajudaram a compor os argumentos do presente artigo.

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  • WANG, J. (2022). Capitalismo carcerário São Paulo, Igrá Kniga.

Notas

  • 1
    Veja-se o contexto britânico: legislação editada em Liverpool veda o comércio ambulante, em especial, a venda de flores em bares, restaurantes e vias públicas, proíbe crianças de participarem do tradicional evento da noite de Guy Fawkes, em que elas saem às ruas para arrecadar uns trocados (a penny for the guy) – atividade equiparada ao ato de esmolar –, e coíbe a prática do skate no espaço público. Nos termos da lei, trata-se de evitar a obstrução do fluxo das pessoas no espaço urbano. Para um de seus formuladores, trata-se, também, de evitar a impressão de práticas econômicas “rebaixadas”, como o mercado da “pura barganha”, que seriam próprias do consumo ambulante. Em cidades como Essex, Hampshire e Cornwall, autoridades policiais públicas e privadas podem impedir a circulação de jovens vestidos com os proverbiais gorros de jaquetas de moletom e bonés de beisebol, pois, supostamente, essa indumentária poderia impedir a identificação das pessoas por câmeras de segurança (Coleman, 2004COLEMAN, R. (2004). Images from a neoliberal city: the State, surveillance and social control. Critical Criminology. Columbus, v. 12, n. 1, pp. 21-42., p. 34).
  • 2
    Para uma análise desse fenômeno, ver Brown (2019)BROWN, W. (2019). Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo, Politeia..
  • 3
    Nos EUA, a agência encarregada do controle migratório (ICA) é obrigada por lei, desde 2007, a garantir que, no mínimo, 34 mil detentos sejam mantidos em centros de detenção para migrantes, a maioria administrada por empresas privadas, independentemente da avaliação concreta de suas condutas, prática conhecida como detention-bed mandate (Morgenthau, 2014MORGENTHAU, R. M. (2014). The US keeps 34,000 immigrants in Detention each day simply to meet a quota. Disponível em: https://www.thenation.com/article/archive/us-keeps-34000-immigrants-detention-each-day-simply-meet-quota/. Acesso em: 23 maio 2024.
    https://www.thenation.com/article/archiv...
    ).
  • 4
    Sobre a imbricação contemporânea entre exceção soberana e governamentalidade, que opera pela suspensão da lei ou pelo seu uso tático pelo Estado, ver Butler (2004)BUTLER. J. (2004). Precarious life. Londres, Verso..
  • 5
    A respeito, veja-se a intensa militarização da repressão dos protestos em Ferguson, Mississipi, em razão do assassinato, pela polícia, de Michael Brown, em 9/8/2014, jovem negro, de 18 anos, desarmado. Em Ferguson, 67% da população é de negros e 94% da força policial é composta de brancos. Na esteira da militarização do controle do crime, em todo o país (EUA), entre 2006 e 2012, um policial branco matou uma pessoa negra pelo menos duas vezes por semana (Smith, 2014SMITH, M. D. (2014). Strange Fruit in Ferguson. Disponível em: https://www.thenation.com/article/archive/strange-fruit-ferguson/. Acesso em: 23 maio 2024.
    https://www.thenation.com/article/archiv...
    ).
  • 6
    Para uma reconstrução da emblemática “Operação sufoco”, na região da assim chamada “cracolândia”, em São Paulo, ver Magalhães (2017)MAGALHÃES, T. (2017). Campos de disputa e gestão do espaço urbano: a Operação Sufoco na "cracolândia" paulistana. Ponto Urbe. São Paulo, v. 21, p. 1-14..
  • 7
    Diversos estudos e relatos jornalísticos se debruçaram sobre estes experimentos e mostraram seus trágicos resultados para a cidade (por exemplo: Camargos, 2022CAMARGOS, P. A. P. (2022). Guerra ao crime organizado e política criminal nos governos FHC e Lula: entre os processos de neoliberalização e as hibridizações da guinada punitiva brasileira. Dissertação de mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo.; Hirata, Grillo e Telles, 2023; Menezes, 2023MENEZES, P. V. (2023). Entre o "fogo cruzado" e o "campo minado": a "pacificação" das favelas cariocas. Rio de Janeiro, Editora Uerj.; Viana, 2021): os absurdos níveis de violência policial contra populações marginalizadas, o fortalecimento das milícias, a reestruturação dos mercados legais e ilegais, e a recorrência de casos de violência política são alguns dos efeitos - intensificados, sobretudo, após a Intervenção Militar.
  • 8
    De acordo com os dados do Observatório da Intervenção (Ramos, 2019RAMOS, S. (2019) (coord.). Intervenção federal: um modelo para não copiar. Rio de Janeiro, CESeC.), foram registradas 636 operações na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (de um total de 711 em todo o Estado) entre fevereiro e dezembro de 2018 – pouco mais de 12 operações por semana.
  • 9
    Como apontam os estudos do Observatório da Intervenção (Ramos, 2019RAMOS, S. (2019) (coord.). Intervenção federal: um modelo para não copiar. Rio de Janeiro, CESeC.), os próprios indicadores elaborados pela Intervenção Federal abrem portas, na verdade, para o questionamento dos seus resultados. Em primeiro lugar, a redução de alguns dos índices apontados foi muito pequena e, comparando-se com anos anteriores da série histórica (de 2014 a 2017), encontra-se dentro da variação normal verificada na cidade. Em segundo lugar, os indicadores usam apenas dados do Estado inteiro, sem levar em consideração áreas específicas que tiveram presença constante das Forças de Intervenção e viram, pelo contrário, os indicadores subirem. Por fim, outros estados brasileiros (como São Paulo), que não estavam sob a Intervenção, também tiveram variações semelhantes no período.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2023
  • Aceito
    19 Abr 2024
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