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Os efeitos sociais do crime na dinâmica de Fortaleza, Ceará, Brasil* * Os resultados são de pesquisas apoiadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por meio do projeto “Os efeitos sociais do crime nas periferias urbanas de Fortaleza” (Processo n. 314306/2021-8), contemplado na Chamada CNPq n. 4/2021, do Programa Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Violência, Poder e Segurança Pública – Invips (Processo n. 406646/2022-8) e do Programa de Iniciação Científica da Universidade Federal do Ceará no âmbito do Laboratório de Estudos da Violência (Pibic UFC 2023-2024/Edital n. 2/2023). Elas são também tributárias do apoio da Fundação Ford por meio do projeto “Pesquisa Conflitos e violências nos territórios populares: mercantilização, gestão de precariedades e desafios para o engajamento cívico”, coordenado pelo Labcidade/USP. Dedicamos agradecimento especial aos bolsistas de iniciação científica Bruno Araújo Campos e Maria Vitória Conrado Saba. A primeira versão do texto foi discutida em momento ensejado pelo Labcidade e estendemos agradecimentos, especialmente, a Raquel Rolnik, Vera Telles, Carolina Grillo, Isadora Guerreiro e Gustavo Prieto. Agradecemos, também, ao professor Vianney Mesquita pela cuidadosa revisão de Língua Portuguesa.

Resumo

Este artigo aborda o choque das facções criminosas na cidade de Fortaleza, Ceará, destacando a influência no cotidiano, na dinâmica política e na situação de moradia em bairros populares. A pesquisa utilizou uma abordagem qualitativa, envolvendo análise de matérias de jornais, entrevistas e incursões aos territórios afetados. A perspectiva compreensiva adotada no artigo considera o ponto de vista de múltiplos agentes envolvidos, evidenciando o domínio consistente das facções em determinados territórios e seu influxo substantivo na vida das comunidades locais. Essa influência ocorre no âmbito das políticas públicas de habitação, afetando diretamente as decisões diárias das pessoas ante o controle ilegal exercido pelos grupos armados.

facção; violência; cidade; território; deslocamentos

Abstract

The article addresses the impact of criminal factions on the city of Fortaleza, state of Ceará, and highlights their influence on the daily life, political dynamics, and housing situation of popular neighborhoods. The study used a qualitative approach involving the analysis of newspaper articles, interviews, and visits to the affected territories. The comprehensive perspective adopted in the article considers the point of view of multiple agents involved, emphasizing the consistent dominance of factions over certain territories and their substantive impact on the lives of local communities. This influence occurs within the scope of public housing policies and directly affects people's daily decisions in the face of the illegal control exercised by armed groups.

faction; violence; city; territory; displacement

Introdução

Este texto é resultado da confluência entre investigações a respeito do problema da violência urbana e da maneira como a cidade é constituída por maneiras de morar, conviver e circular. Reúne um conjunto de colaborações com o objetivo de analisar o modo como o fenômeno da violência em Fortaleza, capital do estado brasileiro do Ceará, afetou dinâmicas sociais relativas à ocupação dos territórios urbanos e aos seus processos de garantias do direito à cidade. Em especial, o artigo reporta-se ao modo como o fenômeno das facções criminosas afetou as periferias urbanas de Fortaleza, na medida em que esses grupos impõem um domínio armado ao território e criam regras pelas quais os moradores devem orientar sua presença, circulação e relações. Releva evidenciar o fato de que, conforme demonstraram trabalhos importantes sobre a relação entre cidade e violência, o controle armado de territórios urbanos se tornou uma experiência com a qual pessoas no Brasil precisam aprender a conviver e traçar estratégias para acomodar suas vidas ao domínio arbitrário de determinados grupos (Machado da Silva, 2008MACHADO DA SILVA, L. A. (org.) (2008). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Faperj/Nova Fronteira, pp. 47-76.; Barbosa, 2012BARBOSA, A. R. (2012). Considerações introdutórias sobre territorialidade e mercado na conformação das Unidades de Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 6, n. 2, pp. 256-65.; Muniz e Dias, 2022MUNIZ, J. de O.; DIAS, C. N. (2022). Domínios armados e seus governos criminais: uma abordagem não fantasmagórica do "crime organizado". Estudos Avançados, v. 36, pp. 131-152.; Telles, 2015TELLES, V. da S. (2015). Cidade: produção de espaços, formas de controle e conflitos. Revista de Ciências Sociais: RCS. Fortaleza, v. 46, n. 1, pp. 15-41.; Grillo, 2019GRILLO, C. C. (2019). Da violência urbana à guerra: repensando a sociabilidade violenta. Dilemas-Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 12, n. 1, pp. 62-92.; Paiva, 2022PAIVA, L. F. S. (2022). O domínio das facções nas periferias de Fortaleza-CE. Revista Tomo. Aracaju, n. 40, pp. 87-87.; Barreira, 2008BARREIRA, C (2008). Cotidiano despedaçado: cenas de uma violência difusa. Campinas, Pontes.; Nascimento e Siqueira, 2022NASCIMENTO, F. E. de M.; SIQUEIRA, I. B. L. (2022). Dinâmicas "faccionais" e políticas estatais entre o dentro e o fora das prisões do Ceará. Revista Tomo, Aracaju, n. 40, pp. 123-123.). Dessa maneira, discute-se como é possível para moradores de territórios urbanos, em especial condomínios residenciais construídos com suporte em políticas públicas – como o Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) –, conviver com ações e controles de grupos reconhecidos socialmente como facções criminosas.

A pergunta norteadora desta reflexão é a seguinte: “Como é possível conviver com o controle arbitrário de facções que interferem significativamente na maneira de morar e se relacionar em um território urbano?”.

Essa é uma indagação de relevo que movimenta este estudo em sua ambição de explicar como quatro facções criminosas – o Primeiro Comando da Capital (PCC), o Comando Vermelho (CV), os Guardiões do Estado (GDE) e a Massa (TDN)1 1 A Massa também é reconhecida como Tudo Neutro e por isso a denominação TDN, fazendo menção a uma ideia que esteve muito presente no início de 2016, quando determinados envolvidos em crimes, no Ceará, resistiam à ideia de compor com a GDE, CV ou PCC, tentando manter uma relativa autonomia em um cenário cada vez menos propenso ao estilo de prática de crimes fora do escopo de uma facção. – estabelecidas em distintos momentos, com estruturas e atuações variadas, implantaram domínios territoriais que repercutem de modo expressivo na vida de pessoas que residem e não estão envolvidas em seus esquemas criminais. Supõe-se, de saída, que os moradores conduzem um conhecimento pela dor da violência imprimida pelas facções, seja pela ameaça iminente ou via efetivação de expulsões, agressões e assassinatos que marcam os territórios e criam um conhecimento pelo trauma causado pela prática da violência.2 2 Como explica Das (2020), a experiência da violência cria o trauma e a memória desta experiência um conhecimento que afeta o presente, um “conhecimento envenenado” que pauta a maneira como as pessoas habitam e se relacionam no mundo social.

É oportuno ressaltar que o fenômeno das facções é exaustivamente mapeado pelas Ciências Sociais brasileiras, com estudos sobre a história e as características dos variados grupos em ação nas distintas regiões do País. Entre eles, evidenciam-se as investigações sobre as duas facções mais antigas do País – o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, e o Primeiro Comando da Capital (PCC), do Estado de São Paulo. Pesquisas demonstraram o modo como a experiência do CV atuou na articulação de mercados ilegais de drogas e jogo do bicho, alçando as comunidades e criando rotinas de violência nas favelas cariocas (Misse, 2007; Machado da Silva, 2008MACHADO DA SILVA, L. A. (org.) (2008). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Faperj/Nova Fronteira, pp. 47-76.). O CV mobilizou pessoas envolvidas na prática de crimes em relações de “guerra”, mas à procura da “paz” em disputas contra a polícia e outras facções em territórios urbanos que, entre outras coisas, abrigavam trabalhadores pobres e suas famílias (Zaluar, 2012ZALUAR, A. (2012). A máquina e a revolta. Rio de Janeiro, Brasiliense.; Hirata e Grillo, 2019HIRATA, D. V.; GRILLO, C. C. (2019). Crime, guerra e paz: dissenso político-cognitivo em tempos de extermínio. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, v. 38, n. 3, pp. 553-571.; Hirata, Grillo e Telles, 2023). Em São Paulo, a experiência do PCC também envolveu a estruturação, iniciada nas prisões, com momentos de “guerra” e “paz” que se fazem necessários pelo modo como a própria facção administra a violência como recurso e expande seu domínio sobre os territórios urbanos (Dias, 2009DIAS, C. C. N. (2009). Da guerra à gestão: trajetória do Primeiro Comando da Capital (PCC) nas prisões de São Paulo. Revista Percurso. Maringá, v. 10, n. 2, pp. 79-96.; Marques, 2010MARQUES, A. (2010). "Liderança", "proceder" e "igualdade": uma etnografia das relações políticas no Primeiro Comando da Capital. Etnográfica. Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, Lisboa, v. 14, n. 2, pp. 311-335.; Biondi, 2018BIONDI, K. (2018). Junto e misturado: uma etnografia do PCC. São Paulo, Terceiro Nome.; Feltran, 2018FELTRAN, G. (2018). Irmãos: uma história do PCC. São Paulo, Companhia das Letras.). Essas duas experiências contribuíram para administrar um fenômeno que, em várias escalas, percorre os territórios urbanos nas capitais e cidades menores do Brasil, chegando até suas fronteiras e sendo hoje possível de visualizar em praticamente todos os Estados (Candotti, Melo e Siqueira, 2017; Manso e Dias, 2018MANSO, B. P.; DIAS, C. N. (2018). A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo, Todavia.; Siqueira e Paiva, 2019SIQUEIRA, I. B. L.; PAIVA, L. F. S. (2019). "No Norte, tem Comando": as maneiras de fazer o crime, a guerra e o domínio das prisões do Amazonas. Revista Brasileira de Sociologia. São Paulo, v. 7, n. 17, pp. 125-154.; Duarte, 2021DUARTE, T. (2021). PCC versus Estado? A expansão do grupo pelo Brasil. Contemporânea-Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, v. 11, n. 1.; Dias e Paiva, 2022DIAS, C. N.; PAIVA, L. F. S. (2022). Facções prisionais em dois territórios fronteiriços. Tempo Social. São Paulo, v. 34, pp. 217-238.; Siqueira, Nascimento e Moraes, 2022; Diogo, 2022DIOGO, P. (2022). Da cadeia à fronteira: a expansão territorial do Primeiro Comando da Capital. Revista de Ciências Sociais: RCS. Fortaleza, v. 53, n. 3, pp. 53-91.; Rodrigues, Feltran e Zambon, 2023).

No Nordeste, as facções penetraram os sistemas prisionais e alcançaram o cotidiano de periferias diversas de capitais e, também, em cidades menores (Melo e Paiva, 2021MELO, J.; PAIVA, L. F. S. (2021). Violências em territórios faccionados do Nordeste do Brasil: Notas sobre as situações do Rio Grande do Norte e do Ceará. Revista USP. São Paulo, n. 129, pp. 47-62.; Rodrigues et al. 2022RODRIGUES, F. de J. et al. (2022). Apresentação do Dossiê Políticas, Mercados e Violência no Norte e Nordeste do Brasil. Tomo. Aracaju, v. 40, pp. 9-38.; Paiva, Dias e Lourenço, 2022). Em muitos estados, CV e PCC atuaram por meio de alianças e conflitos entre si, com articulações que envolvem grupos locais cuja organização replica de modos múltiplos o método criado pelas duas facções da região Sudeste – embora cada grupo tenha especificidades singulares como indicam importantes pesquisas desenvolvidas nos estados da região Nordeste (Paiva, 2019PAIVA, L. F. S. (2019). "Aqui não tem gangue, tem facção": as transformações sociais do crime em Fortaleza, Brasil. Caderno CRH. Salvador, v. 32, n. 85, pp. 165-184.; Rodrigues, 2020RODRIGUES, F. de J. (2020). "Corro com o PCC", "Corro com o CV", "Sou do crime": facções, sistema socioeducativo e os governos do ilícito em Alagoas. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 35, n. 103, pp. 1-21.; Lourenço e Almeida, 2013LOURENÇO, L.; ALMEIDA, O. (2013). "Quem mante´m a ordem, quem cria desordem" Gangues prisionais na Bahia. Tempo Social. São Paulo, v. 25, n. 1, pp. 37-59.; Matos Júnior, Santiago Neto e Pires, 2022; Paiva e Pires, 2023; Briceño-Leon, Barreira e Aquino, 2022). A configuração da violência desenvolvida no Nordeste, portanto, é constituída por conflitos entre grupos armados que, em decorrência da pulverização das facções, geraram escaladas importantes nos números de homicídios, entre outros problemas graves em variados territórios (Paiva, Barros e Cavalcante, 2019CAVALCANTE, C. T. L. (2019). As dinâmicas das ruas de Fortaleza: os processos e transformações nas vidas de pessoas às margens da cidade. Dissertação de mestrado. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará.; Feltran et al., 2022FELTRAN, G. et al. (2022). Variações nas taxas de homicídios no Brasil: uma explicação centrada nos conflitos faccionais. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social. Rio de Janeiro, v. 15, pp. 311-348.; Motta et al., 2022MOTTA, L. et al. (2022). Fora do crime no 'mundo do crime': Experiências juvenis em meio à guerra em periferias de Maceió e Belo Horizonte. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social. Rio de Janeiro, v. 15, pp. 387-414.; Matos Júnior e Santiago Neto, 2022). Expresso fato produziu inúmeras consequências na maneira como a vida passou a ser desenvolvida nos territórios urbanos, afetando decisivamente as práticas de habitação dos espaços sociais, sobretudo nas periferias.

Para ajudar a pensar o fenômeno das facções, recorremos à ideia de que esses grupos não se mostram compreensíveis apenas como expressão de suas ações criminosas. As facções são tratadas como um fenômeno social, com repercussão na economia, política e cultura das populações alcançadas pelo seu domínio (Paiva, 2022PAIVA, L. F. S. (2022). O domínio das facções nas periferias de Fortaleza-CE. Revista Tomo. Aracaju, n. 40, pp. 87-87.). Em linhas gerais, as facções são pensadas aqui como comunidades morais e políticas, exercendo ações de dominação e integração de pessoas que se relacionam com amparo em referenciais simbólicos constitutivos do grupo, cultivando ideais e valores que transbordam o próprio grupamento e alcançam a sociedade ao redor em territórios nos quais atuam e em extensas redes formadas para o desenvolvimento de negócios e objetivos políticos. As facções atuam em diversas escalas e com múltiplas associações para diversificadas atividades. Sua integridade intenta ser mantida pelos compreendimentos e posições políticas de seus integrantes, mas também decorre de conflitos e disputas pelas visões de mundo e orientações morais estruturantes de cada grupo.3 3 Como demonstrou a pesquisa em Ciências Sociais, as facções são um fenômeno geral e particular, com manifestações e características distintas nos estados brasileiros e no Distrito Federal, assim como em razão da sua história e modalidades de expansão das suas ações (Dias e Paiva, 2022; Rodrigues et al., 2022; Feltran, 2018; Grilo, 2019).

Como uma comunidade moral e política, as facções criam laços sociais e afetivos, sendo possível observar maneiras de integração não associadas a um esquema criminal, mas a crenças e expectativas compartilhadas entre seus membros (Paiva, 2019PAIVA, L. F. S. (2019). "Aqui não tem gangue, tem facção": as transformações sociais do crime em Fortaleza, Brasil. Caderno CRH. Salvador, v. 32, n. 85, pp. 165-184.). Encontram-se em torno das facções jovens com a expectativa de entrar no grupo, componentes familiares, vizinhos, cônjuges e pessoas diversas agenciadas para missões específicas. São os vínculos com uma facção constituídos por meio de relações cultivadas de múltiplas formas e em diversos espaços sociais. Tais vinculações são tecidas por trabalhos em várias escalas, pois envolvem desde uma missão dentro de um território até circuitos nacionais e internacionais. As facções são comunidades morais e políticas que se movimentam e se transformam, no espaço e no tempo, se adaptando às condições sociais e às conjunturas políticas impostas ao seu desenvolvimento. Em suas dinâmicas de integração, as facções oferecem possibilidades de proteção e recompensas, ao mesmo tempo que exigem responsabilidades e compromissos, tecendo uma economia política da vida e da morte que alcança seus integrantes e pessoas afetadas pela repercussão social de suas ações.

Ao considerar justamente como as ações das facções repercutem como um fenômeno social que atinge a cidade, este escrito denota a situação de localidades que compõem a periferia da cidade de Fortaleza, a capital e o maior centro urbano do estado do Ceará, no Nordeste do Brasil. A investigação privilegiou a fala de pessoas que moram, trabalham e circulam nas periferias de Fortaleza, sobretudo em conjuntos habitacionais oriundos de programas sociais, convivendo com facções que exercem, em variadas escalas, um domínio da vida em determinados territórios. Não cogitamos definir aqui o trabalho da facção ou a extensão do seu domínio, mas saber como os interlocutores desta investigação relataram experiências perante um fenômeno que ganhou lastro, penetrou a vida cotidiana e compõe a dinâmica local dos territórios. As narrativas dos entrevistados nem sempre se pautaram sobre um fenômeno no âmbito do qual eles mensurariam com exatidão o grau do risco vivido, mas todas elas foram exaustivas em evidenciar a existência de um perigo iminente de violência por parte de pessoas armadas que, explícita ou implicitamente, impõe sua presença como algo que deve ser considerado por parte de cada pessoa que habita o território. A seguir, expomos algumas considerações a respeito do caminho percorrido para chegar aos resultados desta experimentação.

O caminho teórico- -metodológico da pesquisa

Este artigo se ancora em uma perspectiva compreensiva do fenômeno da violência (Weber, 2000WEBER, M. (2000). Economia e sociedade, v. 1. Brasília, Editora Universidade de Brasília.; Barreira, 1998BARREIRA, C. (1998). Crimes por encomenda. Violência e pistolagem no cenário brasileiro. Rio de Janeiro, Relume Dumará.; Misse, 2010MISSE, M. (2010). Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria" bandido". Lua Nova: Revista de Cultura e Política. São Paulo, n. 79, pp. 15-38.), no intento de compreender como a ação promovida por grupos armados reconhecidos como facções alcança o cotidiano de moradores de determinadas áreas residenciais da cidade de Fortaleza, em especial na sua periferia. Como acontece em outras cidades brasileiras, as periferias de Fortaleza são um fenômeno histórico decorrente da territorialização de cidades estruturadas pela desigualdade social em um sistema injusto de acumulação e distribuição de riqueza.4 4 Estudos de Adorno (2002), Caldeira (2000), Valladres (2005) e Diógenes (1998), entre outros, retratam as dinâmicas das periferias brasileiras construídas socialmente em cidades atravessadas pela expansão do capitalismo e dos processos de exclusão, desigualdades, dissidências e invenções de centros e margens dos territórios urbanos fronteirizados. Conformam, também, locais racialmente constituídos e abrigam a maior parte da população negra do estado do Ceará, conforme dados do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2022. Os fatores de classe e raça são elementos cruciais, quando se intenta compreender o modo como o crime afeta a vida da população urbana de uma cidade brasileira, pois ele não alcança os estratos médios, muito menos as elites, predominantemente brancas, de semelhante jeito (Cerqueira e Coelho, 2017CERQUEIRA, D.; COELHO, D. S. C. (2017). Democracia racial e homicídios de jovens negros na cidade partida. Texto para discussão 2267. Rio de Janeiro, Ipea.; Silva e Freitas, 2018SILVA, F. R. do N.; FREITAS, G. J. de (2018). Práticas poéticas: juventude, violência e insegurança em Fortaleza. Tensões Mundiais. Fortaleza, v. 14, n. 26, pp. 129-155.; Mattos, 2017MATTOS, G. (2017). Flagrantes de racismo: imagens da violência policial e as conexões entre o ativismo no Brasil e nos Estados. Revista de Ciências Sociais: RCS. Fortaleza, v. 48, n. 2, pp. 185-217.).

Ao considerar os fatores de classe e raça, é preciso ainda ressaltar que este estudo se debruça sobre as falas, os atos de testemunhar de pessoas que experimentam em seu dia a dia situações de violência. Configuram-se testemunhas da ação de facções, seus mandos e sua capacidade de agir com violência em razão de seus interesses. Dialoga-se, neste passo, com uma compreensão muito específica das falas, explorando o sentido dado por essas testemunhas, cujas interpretações passam pela maneira como seu mundo foi estruturado pela violência. Como um evento perturbador do cotidiano, a violência é uma experiência que desorganiza o mundo como ele deveria ser para o reorganizar como possibilidade de coexistir com suporte nas maneiras de conviver com a violência, superá-la ou diminuir a sua incidência sobre a vida (Das, 2020). Em sendo assim, ao considerar a violência das facções, os moradores precisam trabalhar com a probabilidade de algo acontecer, caso não considerem o risco efetivo imposto pelo mando das facções em seus territórios.

Para entender como os moradores lidam com o problema das facções, apoiamo-nos nos estudos de Das (2011) sobre o ato de testemunhar, com o propósito de entender como as pessoas interpretam a relação entre a violência e a própria subjetividade, emprestando aos pesquisadores suas reflexões sobre como seu mundo social existe povoado por facções. Convém salientar que, para fins deste trabalho, a violência é tratada como uma experiência cultural que envolve a percepção de limites morais e éticos que ensejam um dano à vida e a maneira como o mundo é percebido e vivenciado (Das, 2020DAS, V. (2020). Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo, Editora Unifesp.). A experiência constitui um jeito de ver o mundo e dar sentido às ações e relações que a constituem. Ao perseguir esse sentido da ação, o artigo dialoga com a tradição de uma sociologia compreensiva, com vasta literatura que a sustenta, desde os trabalhos seminais de Weber (2000)WEBER, M. (2000). Economia e sociedade, v. 1. Brasília, Editora Universidade de Brasília. e Schutz (2012)SCHUTZ, A. (2012). Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis, Vozes., assim como a contribuição importante feita por Geertz (1989)GEERTZ, C. (1989). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC. em seu trabalho etnográfico. Dessa maneira, o tratamento dado às entrevistas realizadas considerou a demanda pelo sentido possível de ser compreendido, destacando que, como observa Piedade Lalanda (1998)LALANDA, P. (1998). Sobre a metodologia qualitativa na pesquisa sociológica. Análise social. Lisboa, v. 33, n. 148, pp. 871-883., as falas das pessoas entrevistadas retratam apenas “uma versão de uma história” (p. 874). Segue-se, ainda, a indicação de Bourdieu (1996)BOURDIEU, P. (1996). A economia das trocas linguísticas. São Paulo, Edusp., ao considerar que “compreender não é reconhecer um sentido invariante, mas apreender a singularidade de uma forma que só existe num contexto particular” (p. 159). Por isso, o leitor não encontra aqui a verdade sobre as facções, mas uma versão da história contada com apoio no testemunho de agentes de Estado e moradores das periferias urbanas de Fortaleza afetados pelos grupos armados.

Outros tipos de investimentos de pesquisa são encontrados em outras versões, como a própria experiência de pessoas distintas demonstrou durante a investigação. Moradores jovens que participaram de um dos grupos focais realizados evidenciaram que os grupos armados afetam de maneira diferente pessoas residentes em um mesmo território. Uma jovem negra e um jovem negro relataram que não conseguiam andar livremente pelo bairro, mesmo eles integrando um coletivo engajado em lutas sociais na região. Durante a conversa, um jovem branco de olhos verdes, do mesmo grupo, relatou: “isso não acontece comigo, eu consigo andar por todo canto sem ninguém mexer comigo”. A fala é sempre uma formulação social que revela evidências do mundo vivido, mas em circunstâncias específicas e demarcadas pelas diferenças sociais de gênero, raça e classe.

Para compreender a situação dos territórios, a investigação se desenvolveu com suporte numa estratégia de pesquisa qualitativa e multissituada, com levantamento de dados da imprensa, visitas ao território, grupos focais, conversações e entrevistas. O material coletado da imprensa recolheu 58 documentos de ocorrências na Cidade, desde o ano de 2016, quando as facções se transformaram em fenômeno público amplamente disseminado pela existência de grupos como a GDE e CV nos territórios. Também foram feitas visitas a dois conjuntos habitacionais atendidos pelo MCMV, com o objetivo de conversar com moradores a respeito dos acontecimentos, privilegiando a observação da estrutura dos conjuntos e a discrição para preservar os interlocutores dispostos a nos guiar em campo. Adicionaram-se a esse esforço um seminário, dois grupos focais e seis entrevistas em profundidade feitas na Universidade Federal do Ceará (UFC), com objetivo de debater o problema da violência e do controle social das facções nos territórios, sobretudo nos conjuntos habitacionais. Destaque seja imprimido para o fato de o seminário ter sido uma iniciativa de movimentos sociais vinculados à luta por moradia para entender o fenômeno da violência promovida por facções, sendo a estrutura do evento pensada com base nos problemas evidenciados pelos participantes. Ademais, foram feitas entrevistas no Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham) da Defensoria Pública do Ceará, Núcleo de Atendimento à Vítima de Violência (Nuavv) e Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco) do Ministério Público do Ceará, Delegacia de Combate às Ações Criminosas Organizadas (Draco) da Polícia Civil-CE, Habitafor da Prefeitura de Fortaleza e Secretaria das Cidades do Governo do Estado do Ceará. Para fins desta publicação, optamos pelo mantenimento do anonimato, com referências de maneira indireta às falas e descrição de características gerais para preservar a identidade dos interlocutores.

Convém salientar que os expressos resultados se valem, ainda, de dados oriundos de atividades multidisciplinares de extensão universitária desenvolvidas pelos Laboratório de Estudos da Violência (LEV) e Laboratório de Estudos da Habitação (Lehab) da UFC. Destacam-se os diálogos e intercâmbios por meio de cursos, reuniões e atividades de extensão organizadas em conjunto com movimentos sociais, com foco no tratamento de problemas sociais relacionados à segurança pública, garantia de direitos e habitação popular. Evidencia-se, ainda, o fato de que o Lehab desenvolve, desde 2013, esforços para compreensão de ações estatais relacionadas ao Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), cujos desdobramentos se incorporam aos resultados desta pesquisa e reforçam as análises de problemas evidenciados por pesquisadores, desde a concepção do projeto em todos os empreendimentos contratados na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) (Pequeno e Rosa, 2015PEQUENO, L. R. B.; ROSA, S. V. (2015). Inserção urbana e segregação espacial: análise do programa Minha casa Minha Vida em Fortaleza. In: XVI ENANPUR ESPAÇO, PLANEJAMENTO E INSURGÊNCIAS. Anais. Belo Horizonte. e 2016; Pequeno, Rosa e Silva, 2015).

Este artigo segue a apresentação de resultados e análises do fenômeno em três segmentos complementares, reveladores de aspectos fundamentais do problema: a) o efeito das facções na vida de moradores das periferias urbanas; b) o contexto da experiência de moradia em áreas afetadas pela ação de facções; e c) o deslocamento de moradores em razão da presença de fronteiras traçadas pela intervenção das facções no território. Em linhas gerais, sobra demonstrado que a experiência de moradia em conjuntos habitacionais situados nas periferias de Fortaleza está afetada pela atuação de grupos armados que, como o texto demonstra à continuidade, exercem controle social da vida de seus moradores, afetando, significativamente, a prática de moradia em uma das principais cidades do Brasil. Em transposição às dimensões locais, o estudo revela aspectos de um problema social que se distribui pelo País, na medida em que as facções avançam como um fenômeno de massa, afetando dinâmicas econômicas, políticas e culturais dos 5.568 municípios brasileiros.

O efeito-facção no crime e na vida

As facções criminosas alteraram de maneira substantiva não apenas as dinâmicas criminais, no Ceará, desde sua ascensão em 2016, como também mudaram a maneira como as populações locais convivem com pessoas envolvidas em atividades criminosas. Em 2005, por exemplo, era possível encontrar, no mesmo bairro de Fortaleza, grupos armados constituídos por pessoas envolvidas no tráfico de drogas e armas, além de assaltos e outras atividades ilegais. Em geral, esses grupamentos ocupavam territórios específicos reconhecidos dentro do bairro como comunidades. Em um mesmo bairro havia diversas comunidades e grupos armados identificados como daquela comunidade específica. Entre esses grupos, havia rixas com longa história de conflitos e enfrentamentos violentos, fazendo com que as comunidades fossem “fronteirizadas” por essas diferenças. Mesmo que as pessoas da localidade não soubessem relatar o motivo que originou o conflito entre os grupos de comunidades de um mesmo bairro, elas sabiam do peso dele na sua existência e dos efeitos disso na vida comunitária.5 5 Um pouco dessa história, na região do Grande Bom Jardim, foi contada na pesquisa realizada por Paiva (2014), ao estudar a maneira como moradores de bairros populares lidavam com os problemas da violência em seu cotidiano.

Nas décadas de 1980 e 1990, era comum que os grupos fossem conhecidos como gangues, enquanto, nos anos de 2000, as quadrilhas de traficantes foram se constituindo como formato dominante, sem perder as dimensões territoriais constituídas pelas gangues nos anos anteriores. Consoante informa Diógenes (1998)DIÓGENES, G. M. dos S. (1998). Cartografias da cultura e da violência: gangues, galeras e o movimento hip hop. São Paulo, Annablume., a denominação de gangue era como jovens elaboravam sua visibilidade para si e para o outro, consolidando uma modalidade de integração para “fazer enxame”, resolver “tretas” e instituir uma identidade. A gangue era, portanto, uma instituição social, com ritos de entrada e emblemas marcadores da distinção. Como um fenômeno social, as gangues no microcosmos dos seus territórios estabeleceram elementos que, em alguma medida, repercutiram, tanto na atuação de quadrilhas de traficantes quanto nas facções contemporâneas, em Fortaleza. Assim, quando os mercados ilegais de drogas expandiram e se organizaram nas periferias de Fortaleza, nos anos de 1990, as pessoas envolvidas na prática dessa atividade criminal guardaram muitos elementos das gangues, suas divisões territoriais e formatos de instituição social para estabelecer as identidades de quadrilhas vinculadas aos territórios urbanos. Elas guardaram as fronteiras territoriais e herdaram rixas, fazendo perpetuar sistemas de vingança entre pessoas envolvidas na prática do tráfico de drogas.

Como explicaram lideranças comunitárias entrevistadas, tinha curso um certo equilíbrio entre as pessoas que faziam o crime e outras envolvidas nos movimentos sociais de base para lutas por direitos sociais. Mesmo em áreas consideradas perigosas, existia alguma segurança, e as pessoas envolvidas em atividades criminosas “não mexiam com as pessoas que trabalhavam e atuavam na luta pela comunidade” – explicou uma interlocutora durante uma conversação. Isso possibilitava isolar, no imaginário social, as dinâmicas locais entre os que atuavam no mundo do crime e os trabalhadores, lideranças comunitárias, agentes de Estado e cidadãos que moravam nos territórios sem participação em atividades criminosas. Algumas situações eram suscetíveis de fugir do roteiro previsto, mas este equilíbrio parecia organizar as relações sociais em bairros populares. Apesar das fronteiras territoriais, crimes graves aconteciam, em geral, entre os envolvidos, havendo um sentimento de que as pessoas não vinculadas a atividades criminais viviam em relativa paz, mesmo em territórios marcados por altos indicadores de violência (Barreira, 2008BARREIRA, C (2008). Cotidiano despedaçado: cenas de uma violência difusa. Campinas, Pontes.; Paiva, 2014PAIVA, L. F. S. (2014). Contingências da violência em um território estigmatizado. Campinas-SP, Pontes.).

E o que mudou desde a ascensão das facções como principais grupos que organizam e orientam a atividade criminosa no estado do Ceará? A princípio, as facções mudaram as maneiras de fazer o crime em Fortaleza, obrigando que todos estivessem sob a proteção de uma facção e eliminando as resistências de quem não intencionava se posicionar ou aderir a um grupo determinado. Atualmente, é possível exprimir, com alguma segurança, que é impossível para alguém envolvido no crime sobreviver sem a proteção de uma facção. Era comum, ainda, que jovens pobres fizessem atividade de furto ou roubo dentro das próprias comunidades e, após as facções, foram proibidos de tal prática. Os que não obedeceram às ordens de não roubar na comunidade foram sequestrados, torturados e, em alguns casos, mortos. Assim, aos poucos, de 2016 a 2023, todas as atividades criminosas, no Ceará, passaram a acontecer sob orientação de uma facção criminosa.

Outro fator a ser considerado, antes de tratar de como as facções afetaram o equilíbrio entre envolvidos e não envolvidos, é o fato de no Ceará existirem facções disputando o controle dos territórios e das atividades criminosas. Em 2016, o Primeiro Comando da Capital (PCC), o Comando Vermelho (CV) e a Família do Norte (FDN) atuavam no nosso Estado, quando surgiu a facção local Guardiões do Estado (GDE). Embora, no primeiro momento, esses grupos tenham atuado apaziguando guerras entre as quadrilhas herdeiras dos conflitos territoriais em curso desde as décadas anteriores com as gangues, ainda no ano de 2016, as facções entraram em choque com tênues alianças entre GDE e PCC, de um lado, e CV e FDN, do outro. No mencionado período, surgiram manifestações de pessoas envolvidas no crime que se exprimiam como “Neutros” e constituíam a “Massa carcerária”. É válido garantir que, principalmente, GDE e CV protagonizaram, de 2016 a 2020, uma guerra pelo controle de territórios que se estende por todo o Ceará. Desde 2020, pelo menos, esses grupos enfrentam ainda cismas internos geradores de outros grupos, como o Comando da Laje e, desde 2021, a Massa – como uma facção que disputa com a GDE e o CV territórios em todo o estado cearense.

Independentemente das especificidades de cada facção, a existência dessa configuração de grupos criou problemas difíceis que impactaram de maneira contundente a relação dos envolvidos com as comunidades controladas por parte de cada um desses grupos. No período das gangues e quadrilhas de traficantes, os territórios estavam demarcados, e as pessoas de um território em guerra com o outro dificilmente iriam tomar o do outro porque havia algo no local que criava uma identificação. O grupo armado era daquele território e o componente do grupo armado era daquele grupo em razão da sua pertença ao território. Isso gerava um efeito estático, com os grupos convivendo com o domínio territorial e crimes ensejados pela rivalidade e os interesses decorrentes de esquemas de tráfico de drogas. Por exemplo, enfraquecer um território era um jeito de ter vantagens na hora de vender ou ser o principal ponto de venda dentro de determinado bairro, angariando vantagens pelo fluxo comercial. As facções, malgrado estarem no território, inclusive nos mesmos das gangues e quadrilhas de traficantes, não são um grupo do território. A sua identificação e seu compromisso não se estabelecem pela sua história com os territórios. Elas existem além do território, cada uma com seu estatuto, símbolos, orientações morais e políticas que, em linhas gerais, estabelecem os outros grupos como inimigos a serem enfrentados e derrotados.

Ao quebrar com a lógica do território que marcou a existência de gangues e quadrilhas de traficantes, as facções criaram algo que se repetiu de maneira recorrente nos últimos sete anos no Ceará: a invasão do território pelo grupo inimigo. Desde 2016, as facções movimentam um conflito móvel, com tomada de territórios e ações violentas que causaram inúmeras mortes por meio de chacinas. Um caso emblemático foi a Chacina das Cajazeiras, quando 14 pessoas foram assassinadas após a GDE invadir uma festa em um território do CV. Segundo relatos, as pessoas foram mortas apenas por estarem ali e a festa era parte da rotina do bairro, sem qualquer vínculo com o CV. A ação provocou uma grande repercussão e foi uma entre várias invasões com mortes violentas e alcance de envolvidos e não envolvidos.

As invasões são um componente importante da dinâmica criminal cearense, com ampla repercussão na maneira como envolvidos com práticas de crimes passaram a atuar nos territórios. No período das gangues e quadrilhas, as invasões aconteciam de maneira circunstancial para a morte de um membro ou mais do grupo, sem que incidisse sobre o controle do território. Chacinas eram situações excepcionais das quais não se ouvia falar com tanta recorrência quanto se passou a noticiar desde 2016. O incremento da violência e o risco de perder completamente o controle do território instituíram a necessidade de incrementar sistemas de controle social para efetivamente impedir a entrada de grupos inimigos. É comum observar, logo na entrada de algumas comunidades das periferias urbanas de Fortaleza, as inscrições “baixem o vidro dos carros”. Existem relatos na imprensa cearense que retratam situações de violência contra pessoas que não obedeceram às ordens e por essa razão tiveram seus veículos alvejados por envolvidos, sendo em alguns casos com desfecho fatal para os integrantes do veículo. Como várias chacinas envolveram essa entrada de veículos com pessoas fortemente armadas, é possível escutar de moradores relatos de compreensão da ordem em virtude do perigo iminente que os faccionados do território passaram a enfrentar em suas rotinas.

As invasões também levaram a uma desconfiança generalizada, considerando que os alvos no território fossem passíveis de estar em perigo por informações que seus inimigos teriam de sua rotina e localização. Para evitar essa situação, as facções criaram mais um problema para eventuais moradores que, por acaso, tenham qualquer tipo de relação descoberta com pessoas de uma facção diferente da que domina o território. Sob esse aspecto, a pesquisa identificou na fala dos moradores uma variedade ampla daquilo considerável como mobilizador da desconfiança dos faccionados locais contra determinada pessoa, família ou grupo de moradores. Verificaram-se situações em que o morador tem um parente reconhecido como integrante efetivo do outro grupo. Outros são acusados de uma relação de amizade ou de serem originários de territórios dominados por grupos rivais do que domina o território onde ele mora agora. Mulheres também são acusadas, em virtude de alguma relação afetiva com integrantes de outros grupos, mesmo quando eventual e passada. Apesar de, em todas essas situações, ser possível encontrar alguma evidência, por mais frágil que aparente, os interlocutores falaram ainda de outras em que, simplesmente, o morador é acusado, sem que exista qualquer prova da acusação. Em todas essas situações, a expulsão do território é um destino praticamente certo e, quando não obedecido, um motivo para outros tipos de violência – como sequestro, tortura e assassinato.

E justamente foi na vida dos moradores não envolvidos em práticas criminais que as facções passaram a exercer um poder de dominação muito efetivo, com o controle de atividades cotidianas inédito antes da efetivação de seus domínios. Segundo os moradores, embora os antigos traficantes locais tivessem certo grau de incidência na comunidade, as facções ampliaram a experiência de intervir diretamente na vida dos moradores. A fala a seguir ilustra de maneira substantiva essa incidência.

Essa entrada de facções, do crime, tirou muito a liberdade dos moradores. Para vocês terem uma ideia, minha colega lá na comunidade, ela plantou uma árvore e para ela cortar a árvore porque estava atrapalhando, ela teve que falar com as autoridades [integrantes de uma facção] lá dentro. Ela se revoltava. Assim, “eu plantei e tenho que pedir autorização de alguém?” Então assim, tirou muito da nossa liberdade, a gente que trabalhava como líder na comunidade, para resolvermos alguma coisa teríamos que pedir autorização deles. (Trecho da discussão de grupo focal realizado na UFC)

Outros relatos semelhantes ajudaram a perceber como o poder das facções, em Fortaleza, se estendeu e alcançou atividades rotineiras em territórios minudentemente controlados. Manter o controle do território se transformou em uma das atividades estruturantes do trabalho das facções, com relativo dispêndio de sua energia para tal fim. Isso transformou as facções em um elemento objetivo e digno da atenção de qualquer morador que, porventura, resida em local controlado por elas. Nos casos dos residenciais, o comparecimento das facções se faz, segundo o relato dos moradores, desde o momento em que a pessoa recebe o imóvel e, em seguida, há visita de integrantes das facções questionando de onde a pessoa vem.6 6 Em um relato, a entrevistada assegurou que havia pessoas com as listas oficiais dos contemplados para o conjunto e os dados em mãos dos moradores que chegavam ao conjunto habitacional. Ao questionar o órgão público responsável, a informação não foi comprovada, mas toda a equipe destacou as dificuldades encontradas no território, confirmando as interferências das facções. Após a resposta, a pessoa é suscetível de já ser informada de que não deverá ficar no local, precisando sair em um prazo estabelecido. “Não é possível chamar a polícia ou demais órgãos para garantir o direito à moradia?”. Esta foi uma indagação feita aos moradores em praticamente todas as entrevistas. As respostas evidenciaram vários problemas, pois moradores relatam situações que envolvem desde esquemas de corrupção até uma omissão relativamente a fatos recorrentes e de conhecimento do Poder Público. Entre outras situações, a falta de garantias de uma solução permanente faz com que os moradores decidam pela resolução do problema recorrendo à fuga, ao contrário de procurar as instituições do Estado para garantir sua permanência no local.

Segundo os moradores entrevistados, os grupos são constituídos por pessoas com voz de comando, evidenciando a existência de integrantes que lideram, nos territórios, as ações das facções. Ainda de acordo com os relatos, é comum observar movimentações relativas a mudanças na dinâmica do controle local, pois, malgrado as dificuldades de intervenção do Estado para garantir a segurança da população, são feitas operações policiais e executadas prisões dessas lideranças nos territórios. Convém, inclusive, ressaltar que, conforme avaliação de agentes de segurança pública e justiça entrevistados, “todas as lideranças lá do começo [da ação de facções em Fortaleza] estão mortas ou foram presas”. Existe essa leitura de que, em boa parte, as pessoas envolvidas com a prática de crimes por facções já foram presas, ou seja, em alguma medida, elas foram alcançadas pelo Estado e suas instituições de justiça. Mesmo assim, sete anos desde o surgimento da facção local GDE, as facções continuam existindo, trabalhando e controlando territórios em Fortaleza e em, praticamente, todos os municípios do estado do Ceará. É possível encontrar, na fala de agentes estatais, a ideação de que a GDE está mais fraca hoje em dia, mas, ao mesmo tempo, uma nova força – como a Massa – surgiu, reivindicando territórios e havendo promovido mais ondas de conflitos armados no ano de 2023. As facções não somente permanecem, como também desafiam a imaginação social, quando se impõem como um problema de solução difícil para o Poder Público.

Segundo interlocutores das forças policiais cearenses, ainda não existe território onde uma força policial – como a Polícia Militar do Ceará (PMCE) – não tenha condição de entrar. Em variados instantes da pesquisa, entretanto, interagimos com agentes do Estado, porém não policiais, cujo testemunho acentua ser necessária a autorização de criminosos para entrar na comunidade e realizar algum trabalho.

Cada uma aqui tem uma história para contar, uma, duas, três, até quatro. Que a gente teve que sair da área por conta que o tráfico solicitou nossa saída porque já tava na hora de eles trabalharem ou porque aconteceu alguma briga de família e de casal e quem faz a intervenção são eles e a gente não podia estar na área ou porque estava de certa forma atrapalhando algum contato que eles teriam que ter naquele momento, ou porque realmente chegou outra facção e começou o tiroteio e a gente teve que sair. (Trecho de grupo focal com operadores da política municipal de habitação em Fortaleza)

Geralmente, para isso, eles precisam escutar e seguir determinação específica no que é pertinente a local, tempo da atividade, entrada e saída da comunidade. Inclusive, pessoas de determinados territórios não trabalham em local controlado por facção diferente daquela onde moram. Ademais, são estipuladas proibições – e até comunicados às instituições públicas são feitos para evitar possíveis retaliações das facções. E não se é capaz de fazer nada contra essas pessoas que ameaçam o próprio Estado? Na prática, como demonstrado anteriormente, as ações do Estado acontecem, sendo a prisão de envolvidos algo comum nos territórios. O problema é que a detenção, mesmo as de um número significativo de faccionados em uma operação policial, não elimina a atuação das facções e tampouco garante a segurança das pessoas que terão que seguir vivendo, trabalhando e interagindo nesse território. É comum que, após operações policiais, com a realização de várias prisões, os moradores observem a chegada de novos integrantes ou apenas a substituição da liderança por outros do mesmo grupo que irão dar continuidade às práticas de controle territorial.

A resiliência para continuidade acional de uma facção, mesmo após intervenções estatais, é um elemento importante e considerado pelos moradores em suas decisões. Eles sabem que a prisão de determinados integrantes não significa o fim do grupo e isso é decisivo para que assumam atitude de cuidado e descrédito relativamente às tarefas das forças de Estado. A seguir, o trabalho evidencia o impacto do fenômeno das facções no contexto da moradia e como isso influenciou nos deslocamentos urbanos pela cidade de Fortaleza. Como está demonstrado à frente, o fenômeno das facções afeta a vida nas periferias de maneira contundente, pois os grupos se exprimem como forças capazes de atuar e resistir às instituições de Estado, impondo aos moradores escolhas em que se coloca em jogo seu bem-estar e a própria sobrevivência.

O contexto social da moradia afetado pelas facções

Fortaleza é uma cidade desigual, cuja ocupação urbana e exercício das facções concentradas nas periferias revela um contexto específico de problemas que, em geral, alcançam de um jeito particular as populações das áreas mais pobres da cidade. A Capital possui mais de um milhão de pessoas vivendo em assentamentos precários e mais de 230 mil famílias inscritas na Secretaria de Habitação (Habitafor) como potenciais beneficiárias de programas habitacionais. A demanda por uma vaga nos conjuntos habitacionais do Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) é considerável. Isso porque conforma uma oportunidade – em muitos casos, única ocasião favorável, ao considerar as listas de espera pelo imóvel – de acessar uma moradia formalmente, realizando o “sonho da casa própria”. No extenso da pesquisa, notamos que a realização desse “sonho”, alimentado durante anos por alguns entrevistados, se transformou em um “pesadelo”, ou seja, representa um problema efetivo, em virtude da interferência de um grupo armado controlador do conjunto, que estabelece regras e define quem vai ali permanecer ou não.

Segundo explicações obtidas na Defensoria Pública do Ceará,

Assim, até 2015 existiam esses deslocamentos forçados, como são chamados, mas geralmente eram decorrentes da prática de tráfico, naquelas questões em que se alegava que a família era “dedo-duro” da polícia; houve até notícias nos jornais de que expulsaram famílias, queimaram as casas… isso até 2015 era pontual na cidade. A partir de 2016, principalmente com a entrega dos imóveis do programa Minha Casa Minha Vida, e quando populações foram deslocadas de outros bairros da cidade para esses grandes conjuntos habitacionais, eu comecei a perceber um fenômeno novo: as pessoas eram expulsas, mas não porque tinham denunciado a prática de crimes, e sim porque ou vieram de outro bairro onde era dominado por uma facção e chegaram em um bairro dominado por uma facção diferente, ou por necessidade da facção que se instalou naquele local de ter controle total sobre aquele conjunto, ou por necessidade de fazer caixa, ou por necessidade de ter um local para os seus afilhados morarem. A minha percepção é que isso teve início próximo de 2016. (Trecho de entrevista com equipe do Nuham da Defensoria Pública do Ceará)

Verificamos, na pesquisa, como o fenômeno da violência e produção do espaço urbano por meio de políticas públicas, por um lado, deslocou populações para as periferias da cidade ou entre seus circuitos e, por outro, não cumpriu seu papel na gestão da política de habitação e garantia de direitos. A investigação demonstrou, ainda, que o poder estatal parece perder centralidade como estrutura mediadora de relações sociais, em detrimento de grupos que escalonam em violência e expropriação, subjugando a parcela da sociedade que sempre esteve à margem das cidades. Assim expresso, é cabível uma explicação sobre o MCMV.7 7 Sobre o programa MCMV, Rolnik et al. (2015, p. 131) explicam que ele foi “um fator determinante para a reprodução do padrão periférico da moradia da população de baixa renda no país”. Entre outras circunstâncias, a escolha dos terrenos e do modelo de condomínio foram fatores que, como demonstrado por oportuno, influenciam, hoje, negativamente, nos problemas de violência vividos nos conjuntos. Este constitui um programa federal de construção de unidades habitacionais em larga escala, lançado em 2009, como estratégia de enfrentamento da crise financeira mundial à época. Não nos cumpre dissertar detalhadamente sobre concepção e efetivação do MCMV, mas realçar elementos relevantes para a investigação em curso, em virtude de como facções penetraram e passaram a atuar em meio à efetivação dessa política pública.

É oportuno considerar a importância da existência, desde então, de um programa federal de larga escala que, entre outras coisas, priorizou o atendimento a famílias de baixa renda, onde se concentra a maior parte do déficit habitacional brasileiro. O problema é que a estruturação do Programa desconsiderou aspectos importantes do fato de habitar a cidade haja vista a ocorrência dos seus problemas. Assim, após a sua efetivação, os problemas alcançam a vida da população, como no caso de sua exposição aos grupos armados. Convém salientar que muitas críticas foram colocadas desde antes do lançamento do programa (Arantes e Fix, 2009ARANTES, P. F.; FIX, M. (2009). Como o governo Lula pretende resolver o problema da habitação. Brasil de fato, São Paulo. Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16004. Acesso em: 20 fev 2024.
http://www.cartamaior.com.br/templates/m...
; Ferreira, 2012FERREIRA, J. S. W. (org.) (2012). Produzir casas ou construir cidades? Desafios para um novo Brasil urbano. São Paulo, Labhab - Fupam.; Rolnik e Nakano, 2009ROLNIK, R.; NAKANO, A. K. (2009). As armadilhas do pacote habitacional. Le monde diplomatique Brasil. São Paulo, mar., pp. 1-5.), por meios acadêmicos ou via redes da sociedade civil, com destaque para componentes do Fórum Nacional de Reforma Urbana.8 8 “O Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) é uma articulação nacional que reúne movimentos populares, sociais, ONGs, associações de classe e instituições de pesquisa com a finalidade de lutar pelo direito à cidade, modificando o processo de segregação social e espacial para construirmos cidades verdadeiramente justas, inclusivas e democráticas”. Disponível em: https://forumreformaurbana.org.br/quem-somos/. Acesso em: 20 fev 2024. Entre estas, o problema da escala do projeto foi um dos destaques importantes.

Ao priorizar escala em vez de qualidade na produção habitacional, dezenas de milhares de famílias foram inseridas, em poucos anos, nas áreas que, como indica a lei do Plano Diretor de Fortaleza, deveriam ter uma ocupação restrita, ou, antes de receber as populações, passarem por uma requalificação urbana. Muitas dessas áreas não dispunham de infraestrutura mínima, com equipamentos e serviços públicos disponíveis. A decisão locacional dos empreendimentos é também “justificada” pela mudança na fase 2 do Programa que passou a aceitar empreendimentos de mais de cinco mil unidades por contrato, a despeito das críticas de especialistas, bem como dos posicionamentos de entidades no terreno do direito à Cidade. Segundo os grupos que constituem o FNRU, o limite de 500 unidades habitacionais era importante para assegurar acesso à terra urbana de qualidade. Ao priorizar escala na produção, sabe-se que apenas terrenos localizados em áreas periféricas proporcionam espaço para tantas unidades. Isso ocasionou enorme margem de lucro a construtores e incorporadores, lucro este a ser pago, principalmente, pelos moradores na redução de sua qualidade de vida.

Destaca-se, ainda, a ausência ou má qualidade do trabalho social prévio e pós-mudança, que prepararia e organizaria as famílias para experiência de viver, conviver e fazer gestão de um condomínio. Os apartamentos foram padronizados, não considerando a diversidade das famílias e suas respectivas maneiras de habitar o mundo social. Os projetos priorizaram o máximo de unidades no terreno, o que implica, também, o mínimo de áreas de lazer e convivência, dificultando a sociabilidade das famílias em momentos festivos e de descanso. Ao mesmo tempo, a alta densidade compromete a privacidade dos moradores e os expõe a situações de risco.

A seleção das famílias deslocadas para conjuntos foi responsabilidade dos municípios, com base em critérios que consideram especificidades locais aliadas a regras nacionais. Os empreendimentos receberam, então, famílias oriundas de demandas dos movimentos/entidades, atingidos por obras públicas, provenientes de áreas de risco, entre outros critérios. Além disso, muitos vêm dos sorteios realizados dentre os cadastrados no Habitafor. Em pesquisa conduzida pelo Lehab, sabe-se que 90% dos domicílios dos conjuntos pesquisados eram chefiados por mulheres, sendo a metade destas sem cônjuge. Isso agrava a situação de vulnerabilidade, porquanto o papel de cuidadora reservado às mulheres fica sobrecarregado – para não exprimir inviabilizado – em circunstâncias de desamparo estatal como é a vivência nestes novos guetos urbanos criados por uma política habitacional. Tal fato contribuiu para a criação de condições excelentes para grupos armados irem ocupando, alcançando as pessoas vulneráveis e ora se mostrando como protetores, ora como aqueles que cobram pela proteção, impondo uma unidade e eliminando possíveis indesejados.

A permanência das famílias nos conjuntos do MCMV resta dificultada por inúmeros fatores. Já nas entrevistas realizadas pelo Lehab, em 2013 e 2014, era apontada a existência de apartamentos trocados, alugados, vendidos ou simplesmente vazios/abandonados. Os síndicos, à época, destacavam casos de repasses de unidades a familiares e desistências de imóveis decorrentes da localização e quebra dos vínculos sociais nos seus locais originários (Pequeno e Rosa, 2015PEQUENO, L. R. B.; ROSA, S. V. (2015). Inserção urbana e segregação espacial: análise do programa Minha casa Minha Vida em Fortaleza. In: XVI ENANPUR ESPAÇO, PLANEJAMENTO E INSURGÊNCIAS. Anais. Belo Horizonte.). Ao mesmo tempo, havia o interesse de compradores em decorrência dos muros e cercas elétricas de alguns condomínios que transpareciam como locais mais protegidos do que aqueles do seu entorno, o que, no entendimento de quem já vivia neles, não se confirmava. Esta foi uma queixa recorrente dos moradores entrevistados pelo Lehab, indicando que, mesmo com portaria, cercas elétricas e altos muros, os condomínios se mostram vulneráveis. Síndicos ameaçados, imóveis entregues em razão da dívida com o tráfico, abandono de imóveis – e mesmo homicídios – foram relatados nas entrevistas (ibid., p. 13).

Em tempo, não é permitida a comercialização de imóveis do MCMV, mas casos de venda e aluguel ocorrem frequentemente desde os primeiros conjuntos entregues. Esse tema das remoções foi bem desenvolvido na terceira parte deste texto, mas já pontuamos aqui a relevância crescente do território em si, como fronteira de expansão de mercado, pois os grupos faccionados passam a extrair mais renda naquela delimitação geográfica por terem o poderio da força e, assim, conseguem controlar as fontes de consumo de bens ou serviços pelos moradores do local. Como ressaltado anteriormente, não há uma identificação direta nem compromisso com a história daquele local, mas a delimitação territorial é estrutural nesta fase das facções no Ceará.

Pelo apreendido por outros estudos, o Poder Público sempre subdimensionou esse fenômeno dos deslocados pelas facções, bem como sua capacidade de gerar controles sociais em determinados territórios (Paiva e Pires, 2023). Consoante observamos, conforme relato de uma moradora ao falar das facções, “nos conjuntos é pior, não sei por quê”. Essa afirmação foi ouvida em uma das entrevistas e seu sentido foi reiterado em distintos momentos, com outros interlocutores. Importa evidenciar que, no caso dos conjuntos, as facções atuam no interior de uma política pública, alterando à sua maneira o funcionamento de uma ação estatal de garantia de direitos. O componente das invasões e tomadas de territórios por grupos rivais, citado anteriormente, é dificultado nos conjuntos habitacionais, segundo os agentes estatais ouvidos. Assim, quem controla um MCMV tem mais segurança de permanecer com seus negócios ali por mais tempo.

Pelo que nos foi dado observar, a estruturação do MCMV funciona para dar mais efetividade aos controles dos grupos faccionados nos territórios. Sabe-se que há um ciclo de vulnerabilidades imputado historicamente aos moradores de periferias. Os estudos demonstram que a mudança para os conjuntos aprofundou os problemas de segurança pública. Em ultrapasse aos fatores implicados na segregação socioterritorial, tem-se a inserção de pessoas de territórios diversos de maneira abrupta em um mesmo conjunto. Parte desses realocados, ao chegarem à tão esperada “casa própria”, se deparam com a proibição de permanecerem no conjunto dominado por facção diferente do seu lugar de origem.

A informação de qual grupo comandará aquele residencial é inclusive prévia à entrega dele. Há famílias que nem se dão ao trabalho de se mudar, pois sabem que não conseguirão ficar. Como destacou uma interlocutora, “nem conseguimos descarregar o caminhão da mudança”. Há quem consiga chegar e ficar, contudo, a ameaça de remoção é constante. Ela é ocorrente por diversos motivos, inclusive não declarados. Pelo que apreendemos, há casos de famílias expulsas porque um dos membros desobedeceu algum comando ou desagradou alguém do grupo; porque o apartamento tem uma localização estratégica para vigilância do conjunto; porque precisam do imóvel para armazenar drogas, armas ou produtos de crimes; porque querem usar o espaço para reuniões e outras atividades da organização; para alocar famílias protegidas ou indicadas que não foram beneficiárias do programa, tendo estas que pagar aluguel à facção; ou até casos em que um bloco inteiro de apartamentos foi desalojado e virou uma facção de roupas, gerenciada pelo tráfico. Além dos apartamentos, os conjuntos do MCMV também têm seus espaços de lazer (salões de festa) e lixeiras transformados em lugares comerciais, também sob controle dos grupos.

E o que acontece com quem sai? Mesmo com sete anos de registros de ocorrências desses casos, ainda não há, por parte do Poder Público Estadual nem Municipal de Fortaleza, um protocolo de acolhimento, proteção e resolução do problema habitacional dessas famílias. No trabalho de campo realizado, verificou-se que, em pequena escala, algumas entidades da sociedade civil e do sistema de justiça concedem algum suporte, com foco na atenção psicológica, jurídica e de encaminhamento a serviços assistenciais. Não obstante, não se trata de solução permanente, e mesmo operadores do Estado procuram desaconselhar que as pessoas retomem o imóvel.

Olha, vou ser bastante sincera, eu não recomendo que volte. Aqui eu já falo isso. Ai eu vou exigir que a pessoa for submetida a violência? A moradia também implica em local seguro, enquanto ela não estiver segura eu recomendo que não volte. O trabalho feito dentro de um empreendimento não é de resposta imediata. Às vezes o pessoal da área do crime pede pra que eu consiga alguém pra testemunhar os crimes. As medidas que a gente atua e trabalha não é a curto prazo. (Trecho de entrevista com equipe do Nuavv do MPCE)

No caso de beneficiários do MCMV removidos, inclusive, havia o agravante de continuarem devendo as parcelas. Responsáveis pela gestão dessa dívida relataram que trabalham pelo reconhecimento deste problema por parte das entidades financiadoras e a criação de saídas administrativas/jurídicas para que, ao considerar a expulsão por grupos armados, se realize o distrato das famílias devedoras e que estas retornem à enorme fila do cadastro. Algumas ações de iniciativa do Governo do Estado e/ou do Ministério Público ensejam operações policiais nos conjuntos habitacionais. Sobre elas, circulam muitas críticas advindas dos movimentos sociais nesses territórios quanto à sua truculência e a ineficácia. “A polícia tá sempre presente. Não é falta de polícia”, disse uma moradora. Ademais, nas entrevistas há registros de medo pela presença da polícia nos conjuntos, como destacou outra interlocutora, “a polícia nos dá uma sensação de insegurança tão grande”. Conforme relatos de profissionais de segurança, mesmo que a polícia consiga entrar nas unidades e retomar os imóveis, as famílias beneficiárias originais não querem e não têm condição de retornar. Inclusive alguns entrevistados relataram que a própria polícia orienta que não voltem para as casas, pois as forças de segurança disponíveis não se encontram habilitadas a garantir sua segurança.

No âmbito do planejamento urbano, usa-se a caminhabilidade (Ghidini, 2011GHIDINI, R. (2011). A caminhabilidade: medida urbana sustentável. Revista dos Transportes Públicos -ANTP. São Paulo, v. 33, pp. 21-33.) como um importante critério de avaliação de qualidade no acesso a serviços e equipamentos comunitários. A gravidade dos limites estabelecidos pelas facções em Fortaleza torna este critério descabido. Ao mapear que próximo de conjunto tal existem X escolas, creches, posto de saúde, pontos de ônibus, é possível que alguns dos MCMV sejam caracterizados atualmente como bem servidos. De que modo, entretanto, visibilizar as fronteiras invisíveis e tão concretas? Nas conversas, foi lembrado o caso do jovem morto com 14 tiros indo para a escola, a 500 metros do conjunto. A distância razoável da caminhabilidade nessa situação é outra.

São diversas as modalidades de controle incidentes sobre as famílias que passam a ocupar os imóveis e são permanentemente vigiadas. Vale ressaltar, ainda, que a dimensão política local também é por demais afetada. Como já evidenciado, pessoas envolvidas em atividades criminosas nos territórios populares sempre existiram, mas a pesquisa revelou uma significativa ingerência, ao ponto de haver indicação de lideranças por parte dos coletivos criminais em alguns espaços de representação. “Eu não conheço mais a minha comunidade como eu conhecia antes. A facção tirou as nossas rodas de conversa, a vivência comunitária” – relatou moradora com importante história de luta social na cidade de Fortaleza. A violência alcançou as organizações, impedindo atividades, constrangendo lideranças, ocasionando, inclusive, morte de referências comunitárias. Esse fenômeno é observado na cidade, principalmente desde 2016. Isso mudou o papel de quem hoje faz a mediação de conflitos nos territórios populares, operando numa lógica extralegal.

Nos conjuntos habitacionais do MCMV, a atuação política se tornou ainda mais difícil, provavelmente por serem mais recentes e constituídos já na conjuntura de domínio das facções. Os relatos indicam que os conjuntos não têm lideranças expressivas, apesar de, em vários deles, morarem membros de movimentos populares, os quais continuam envolvidos em lutas várias, mas para fora do território, em sua maioria. Nota-se certa mobilização em alguns conjuntos, demandando por infraestrutura e denunciando as operações policiais ocorridas, inclusive com características de perseguição a militantes.

Tanto os interlocutores da Defensoria Pública como do Ministério Público afirmam que conjuntos do MCMV onde há membros de movimentos sociais entre os beneficiários têm menos casos de remoção. Ao mesmo tempo, a leitura dos interlocutores das forças policiais indica uma suspeição de pessoas vinculadas a movimentos sociais, alegando que, na atualidade, é preciso negociar qualquer tipo de atuação, favorecendo o mando das facções como o elemento estruturante das relações sociais nos conjuntos. Assim, a organização popular que se insurge nessas condições, com redes de solidariedade e sociabilidade constituídas historicamente, é reconfigurada atualmente. Sem a participação cotidiana do Estado que não seja por meio da violência policial, e a insuficiência dos circuitos de proteção social, as pessoas desenvolvem estratégias de convívio com esses controles e da gestão das diversas precariedades.

O deslocamento ocasionado pelas fronteiras das facções

Conforme verificamos, a atuação de facções nos conjuntos habitacionais deu azo à expulsão de moradores que, na linguagem popular, são considerados “espirrados”. Isso produz uma discussão importante sobre o fenômeno do deslocamento forçado em Fortaleza. A violência, seja ela decorrente de conflitos armados, guerras civis, disputas territoriais ou de grupos criminosos, tem o poder de deslocar populações inteiras à demanda de segurança e proteção, qualificando-se como um fator migratório atuante em diversos contextos de “guerra” e, também, observado na realidade das disputas territoriais em Fortaleza.9 9 Importa evidenciar que, como demonstra o estudo de Cantor (2014), o deslocamento forçado por organizações criminosas sucede em variados países, com influxos importantes para a sociedade conforme observado em países da América como, por exemplo, México, El Salvador, Honduras e Guatemala. Em Fortaleza, o trabalho de Silva Filho e Mariano (2020) ilustra o fenômeno na cidade. Nesses casos, a fuga se torna uma questão de sobrevivência e, em inúmeras ocasiões, esses deslocamentos são feitos improvisadamente e sem recursos adequados, resultando em condições precárias para os deslocados e dificultando o acesso a serviços essenciais.

A violência observada nos conjuntos está relacionada a disputas maiores pelo controle do tráfico de drogas em diversas regiões. A violência engendrada nessa disputa afeta, diretamente, a vida das pessoas, produzindo medos, inseguranças e deslocamentos. Nos conjuntos, escutam-se histórias e boatos sobre situações de famílias inteiras que precisaram fugir, tendo ou não uma justificativa para sua saída da unidade habitacional recebida por meio da política pública. É possível afirmar que, em linhas gerais, os moradores participantes do Programa MCMV vivem sob constante ameaça e violência, pois, mesmo permanecendo, existem receios quanto à continuidade do próprio grupo que domina e dos humores de quem efetivamente exerce o poder de mando na comunidade. Essa situação retrata a ideia de Viana (2019)VIANA, R. S. L. (2019). Deslocadas internas: violência urbana como vetor de mobilidade no estado. Dissertação de mestrado. Fortaleza. Universidade Estadual do Ceará. sobre os processos de “inclusão excludente” no caso da política habitacional como está configurada, uma vez que coloca a população contemplada em contextos de insegurança e intimidação.

É importante evidenciar que os moradores relatam um equilíbrio tênue nas forças ora dominantes do conjunto. A cada nova tomada de território, todo modo de vida anterior é alterável e alguém que goza de uma vida tranquila sob controle de um determinado grupo é capaz de, nas circunstâncias anteriores, ser objeto de sérias mudanças na sua condição de morador. Isso faz com que muitos casos de expulsão de moradores sejam consequência direta desse contexto de violência armada. Existem, ainda, os conflitos internos aos próprios grupos, os acertos de conta e cobranças feitas pela própria facção local. Existem casos de homicídios dentro da própria unidade habitacional, abalando de maneira grave o bem-estar dos vizinhos da pessoa alvo da retaliação por parte da facção.

Certo é o fato de que cada expulsão de moradores produz um influxo social significativo. Além de perderem suas residências, muitas famílias perdem, também, as redes de apoio, como vizinhos e amigos. A demanda por outro lugar para morar é provável de ser difícil, principalmente para aqueles que têm recursos financeiros limitados. Além disso, a expulsão de moradores contribui para o aumento do êxodo urbano, com pessoas deixando a cidade à procura de locais mais seguros e tranquilos para viver. Cavalcante (2019)CAVALCANTE, C. T. L. (2019). As dinâmicas das ruas de Fortaleza: os processos e transformações nas vidas de pessoas às margens da cidade. Dissertação de mestrado. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará. chama a atenção para o fato de que uma parte dessas expulsões recai nas ruas de Fortaleza, principalmente na Praça do Ferreira, no centro da cidade, produzindo um choque no quantitativo de pessoas em situação de rua e uma dificuldade, posterior, ainda maior, de reinserção na política habitacional. Em sua pesquisa, ela trata de casos diversos de pessoas que ficaram desabrigadas pelas facções e impossibilitadas de irem para outro lugar que não fosse a rua. Entre os casos, está o do Sr. Alex, morador de rua há 15 anos, contemplado com uma casa do programa MCMV e não toma posse por ser em um território da GDE. O fato também influenciou negativamente na sua visão nas ruas da cidade, pois frequentava a Praça do Ferreira, considerada um território controlado pelo CV. Assim, habitar a própria rua significava seguir orientações e fronteiras das facções como condição para estar, minimamente, seguro.

A prática do deslocamento forçado, como verificada em vários contextos, é destinada a manter uma ordem estabelecida por grupos armados internos dos territórios que pretendem controlar, dentre outros acontecimentos, a entrada e saída de pessoas. Esses deslocamentos ocorrem pelos mais variados motivos e são diferentes dos que aconteciam no passado. Conforme apontado por Cavalcante (ibid.), as expulsões são suscetíveis de acontecer por muitas razões desde uma dívida até uma desconfiança ou a família se recusar a participar de algum esquema ou mesmo por algum interesse na unidade habitacional. Elas, também, atingem distintos agentes e movimentos sociais. Tal fato corrobora os achados da pesquisa agora relatada, considerando que, em uma das visitas à comunidade, contamos com a participação de um militante social que relatou sua experiência de deslocamento forçado. Segundo ele, foi preciso ir para outro residencial em consequência de ameaças recebidas e que comprometeram sua atuação social junto à comunidade.

Em havendo sido assim, consideramos a existência de uma estratégia desenvolvida com o objetivo de acumular espaços que serão redistribuídos com suporte nos interesses dos grupos armados. Apropriar-se violentamente de bens de uma pessoa, mesmo quando ela não tem envolvimento, é uma ação recorrente, mas que também tem um custo simbólico em virtude da necessidade de afirmar uma autoridade. Duriez (2014)DURIEZ, T. (2014). Les Déplacements Forcés Intra-Urbains dans les Comunas 4 et 6 de Soacha (Colombie): Entre Violences Urbaines et Urbanisation de la Guerre. Tese de doutorado. Nice, Université Nice--Sophia Antipolis. ensina que esse tipo de deslocamento, considerado por ela como um deslocamento interno intraurbano, só é possível porque um agente armado ilegalmente intenta denotar sua autoridade e seu domínio, por pretextos econômicos e estratégicos sobre determinada comunidade, utilizando a força e a coação para atingir esse objetivo. Isso implica que é preciso um investimento considerável em armas, relações sociais e vínculos que deixem o mando ser exercido com a menor resistência possível, sendo bem-sucedido quando o morador sai da unidade habitacional com a maior brevidade possível.

Esse deslocamento acarreta uma série de características que afetam profundamente a vida das pessoas envolvidas, conforme apontam Pacífico et al. (2020)PACÍFICO, A. P. et al. (2020). O Estado da Arte sobre refugiados, deslocados internos, deslocados ambientais e apátridas no Brasil: atualização do Diretório Nacional do ACNUR de teses, dissertações, trabalhos de conclusão de curso de graduação em João Pessoa (Paraíba) e artigos (2007 a 2017). Campina Grande, EDUEPB., colocando-as em uma situação de “[...] alta vulnerabilidade, haja vista as condições reais e concretas em que vivem e as questões psicológicas desencadeadas pela experiência ameaçadora que originou o deslocamento” (p. 38). Os traumas psicológicos e os efeitos psicossociais que ele provoca são temas amplamente trabalhados, tanto na perspectiva antropológica como sociológica, quando se trata do fenômeno do deslocamento. Aqueles que são obrigados a deixar suas casas enfrentam uma perda significativa, incluindo o prejuízo de segurança, estabilidade, pertencimento e identidade. Essas experiências traumáticas são capazes de resultar em sintomas de estresse pós-traumático, ansiedade, depressão e aspectos outros de saúde mental, uma vez que são os episódios de expulsão permeados pelo medo e o silêncio. Durante as entrevistas realizadas pela pesquisa, uma fala foi muito significativa para representar esse medo do outro engendrado pelo trauma violento do deslocamento: “nós tamo tão pressionado, com tanto medo, que até uma criança [tá] falando do medo”. É instaurado um estado de medo e insegurança constantes, que passa a organizar a vida nos conjuntos.

Sabe-se que cidade é um espaço complexo, repleto de fronteiras físicas e simbólicas, nem sempre evidentes às nossas observações. Além dos limites geográficos, existem também fronteiras simbólicas que permeiam as disputas territoriais, conducentes ao deslocamento forçado. Grupos criminosos e facções estabelecem as próprias fronteiras dentro da cidade, delimitando territórios onde exercem poder e controle. Essa “fronteirização” propicia uma deterioração na problemática da violência e insegurança, gerando territórios de exceção, onde há códigos específicos, que se sobrepõem à norma vigente e que devem ser seguidos, pois esses grupos armados são capazes de exercer o poder de vida ou de morte sobre a existência da população. Ademais, Silva Filho (2019) aponta que essas situações extremas ensejam o agravamento ou a “[...] impossibilidade de acesso ao serviço público” (p. 105). Ele chama a atenção para o alargamento, nesse contexto, da noção de “envolvido”, que passa a não necessariamente ter relação com a prática de algum delito, mas o simples fato de as pessoas terem relações e circularem pelo território.

É de relevância evidenciar que essas fronteiras estabelecidas pelas facções não são estáticas e são mutáveis. Conforme as disputas territoriais evoluem, novas fronteiras são capazes de aflorar e outras passíveis de desaparecer. Essa dinâmica é suscetível de levar a um ciclo de deslocamentos forçados, que influencia, também, as rotas de locomoção dos moradores pela cidade, com pessoas sendo constantemente afetadas pelas disputas territoriais. Durante entrevistas realizadas com jovens em cumprimento de medida de restrição de liberdade no sistema socioeducativo do Ceará, uma fala se destaca, ao exprimir essa complexidade de deslocamento territorial na lógica das fronteiras invisíveis estabelecidas pelas facções, que criam barreiras físicas e simbólicas, a dificultarem a mobilidade das pessoas. Ao ser perguntada por onde costumava andar, uma jovem de 16 anos respondeu: “Eu [me] sinto mais confortável no Barroso II do que no José Walter, eu [me] sinto mais confortável no Lagamar, no Alto da Balança do que no José Walter, se [me] sinto confortável no Castelo Encantado, Vicente Pinzon do que no José Walter, José Walter, Pirambu, Genibaú, esses bairro aí eu não vou”.10 10 Pesquisa realizada no âmbito da consultoria sobre as dificuldades no acesso às escolas nas periferias de Fortaleza para o Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Haja vista a intensidade das disputas territoriais travadas em Fortaleza, é provável que esse mapa mude de tempos em tempos, pois os territórios apontados, como aqueles onde a interlocutora se sente mais ou menos confortável, estão ainda em decurso de pressão pelas disputas entre facções.

A restrição de acesso ao território inimigo das facções é uma prática comumente adotada em contextos de conflito armado ou disputas violentas entre grupos rivais. Essa regulação do acesso ou não acesso a determinados territórios impõe à comunidade geral condições muito específicas de deslocamento pela cidade, particularmente nos conjuntos habitacionais. Há uma narrativa subliminarmente imposta a dizer que a quem é de um território do CV, ou da GDE, ou da TDN, ou do PCC, só é permitido circular por esses territórios, de sorte que casos como o do Sr. Alex se multiplicam, aumentando o défice habitacional na cidade e dificultando a reinserção na política habitacional. Essa territorialização marca de maneira muito significativa a comparência das facções, não apenas em Fortaleza, como também noutras regiões do estado cearense.

A territorialização, independentemente de ser periferia, pois, também, já há uma dominância desses criminosos no “interior” (isto é, nos municípios pequenos) vai variar. Uns são GDE, outros são CV, Massa né. E as disputas territoriais são justificadas por isso. Você vê muito conflito na Caucaia porque tem todos os grupos criminosos atuantes lá. Esse é um grande motivo dos conflitos: um bairro aqui é GDE, um aqui é CV e um aqui é Massa, fica uma zona de tensão o tempo todo. Uma hora um sai para fazer atentado aqui, outro faz atentado ali e assim o ciclo de violência vai se perpetuando. A Caucaia é o melhor exemplo disso porque tem a atuação dos três grupos criminosos, cada qual com seus territórios e tentando invadir o do outro. (Trecho de entrevista com quepe da Draco da PCCE)

A tomada de território por uma facção, quando um grupo ocupa o lugar que outrora foi da facção inimiga, estrutura diversos movimentos de deslocamentos urbanos, pois são muitos os motivos pelos quais uma família é passível de ser associada aos integrantes do grupo derrotado naquele território. Haja vista o exposto, observa-se que o deslocamento forçado, em decorrência da ocupação feita por uma facção, é uma manifestação do poder e da capacidade de controle de determinado grupo armado. O deslocamento revela a fragilidade do exercício de um Estado de direito em um território dominado cuja população precisa levar a sério as ordens arbitrárias de quem exerce seu mando por meio de ameaças de violência e outras violações. Constitui uma realidade na qual uma facção regula, por meio da coação física e psicológica, a vida e morte em uma comunidade. A legitimidade dessa ordem social regulada pelas facções repousa na crença dos moradores, não apenas na autoridade, mas, também, na capacidade de um grupo fazer valer sua vontade por meio da coação física e psicológica. Poder e dominação, com procedência numa perspectiva weberiana (2014), são as duas faces que expressam essa probabilidade tanto de impor a própria vontade sobre o outro como a de encontrar obediência nessa relação. Essas duas faces só são possíveis em um contexto no qual a violência e o medo legitimam essas ações e onde as diversas vulnerabilidades impostas aos moradores os situam num estado de aceitação, não por concordância, mas por míngua de escolha.

Considerações finais

As facções atuantes em Fortaleza são um fenômeno social de massa, com repercussões econômicas, políticas e culturais que afetam a cidade e seus formatos de moradia, circulação e segurança. Ao se constituírem como comunidades morais e políticas, as facções impõem um domínio territorial por meio de orientações, mandos e controles efetivos da vida cotidiana. Seu alcance não se explica apenas pela capacidade de determinado grupo desenvolver atividades criminais, mas, ainda, pela sua capacidade política de produzir adesão, gerenciar territórios, promover negócios, relações sociais e resistências às modalidades tradicionais de controle estatal. A pesquisa demonstrou que a experiência de moradia em conjuntos habitacionais investigados, situados em territórios periféricos e estruturados com base no Programa MCMV, está profundamente afetada pela atuação de facções que controlam os territórios, desenvolvem mercados ilegais e impõem seu mando por meio de suas ordens e presença armada.

É possível encontrar nos territórios controlados atuações das instituições de governo em quase todas as áreas, inclusive na gestão de programas de habitação e segurança pública. Não obstante, foi flagrante a falta de eficiência e capacidade das instituições públicas em gerar segurança e garantir o pleno exercício do direito à moradia em condições adequadas para o bem-estar da população atendida. As facções prosperaram nos conjuntos habitacionais e conseguem impor seus controles que se estendem dos moradores aos agentes estatais, cuja ação precisa considerar os domínios impostos à comunidade. Isso demonstra a fragilidade do poder de Estado, com a naturalização do mando das facções como algo que, nas condições do tempo que flui, precisa ser considerado. Dessa maneira, decisões como fugir do território, abandonar a casa, procurar o distrato da dívida e abandonar o sonho da casa própria são as “coisas certas a fazer”, restando a resiliência ante a força incontornável da ordem arbitrária de um grupo armado.

Não ser expulso e ser possível morar na sua casa não representa sorte ou liberdade, pois sua vida é passível de monitoramento contínuo. Ao chegar a um território, o morador tem sua vida esquadrinhada pela facção que está no controle, respondendo a questões e, em determinadas ocasiões, já precisando lidar com informações obtidas sobre ele. Conforme explicado nas entrevistas, a facção tem um papel determinante na permanência das pessoas no território, legislando sobre sua vida e aplicando punições ao lume das suas regras. Ainda mais grave é conviver com a expectativa decorrente das mudanças na gestão desse poder arbitrário. O controle de um grupo é substituível pela ação violenta de outro. Isso altera todo o equilíbrio ali existente, transformando a vida de um morador aceito em um futuro morador expulso. Tais movimentações entre as facções são estruturantes dos deslocamentos urbanos observados em variadas escalas.

Os resultados revelam, à guisa de remate, o modo como o fenômeno da violência se encontra com o problema social da habitação em uma das principais capitais do País. As facções estruturaram relações entre si e as comunidades, promovendo domínios por meio de uma ação violenta estruturante das maneiras de viver e sobreviver nas periferias urbanas de Fortaleza. As políticas públicas de habitação, pois, não encontram mais espaços para servir à população de maneira autônoma, exigindo dos agentes públicos a consideração a respeito de qual grupo e de quais regras se impõem aos cidadãos daquele território. As negociações para garantir direitos exigem, em linhas gerais, uma adequação entre o Poder Público e o poder efetivo exercido por pessoas armadas e integradas pelo laço social constitutivo da facção. Transformou-se em lugar-comum avaliar que não se vive apenas em um território, mas em um território que pertence, efetivamente, a um grupo armado capaz de impor ao próprio Estado as suas regras de conduta. Prosperam, com efeito, os sentimentos de medo e insegurança que, talvez, também sejam traduzíveis como um profundo desalento em decorrência de um projeto de sociedade incapaz de gerar paz, bem-estar e segurança nos conjuntos habitacionais estudados.

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  • ZALUAR, A. (2012). A máquina e a revolta Rio de Janeiro, Brasiliense.

Notas

  • 1
    A Massa também é reconhecida como Tudo Neutro e por isso a denominação TDN, fazendo menção a uma ideia que esteve muito presente no início de 2016, quando determinados envolvidos em crimes, no Ceará, resistiam à ideia de compor com a GDE, CV ou PCC, tentando manter uma relativa autonomia em um cenário cada vez menos propenso ao estilo de prática de crimes fora do escopo de uma facção.
  • 2
    Como explica Das (2020)DAS, V. (2020). Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo, Editora Unifesp., a experiência da violência cria o trauma e a memória desta experiência um conhecimento que afeta o presente, um “conhecimento envenenado” que pauta a maneira como as pessoas habitam e se relacionam no mundo social.
  • 3
    Como demonstrou a pesquisa em Ciências Sociais, as facções são um fenômeno geral e particular, com manifestações e características distintas nos estados brasileiros e no Distrito Federal, assim como em razão da sua história e modalidades de expansão das suas ações (Dias e Paiva, 2022DIAS, C. N.; PAIVA, L. F. S. (2022). Facções prisionais em dois territórios fronteiriços. Tempo Social. São Paulo, v. 34, pp. 217-238.; Rodrigues et al., 2022RODRIGUES, F. de J. et al. (2022). Apresentação do Dossiê Políticas, Mercados e Violência no Norte e Nordeste do Brasil. Tomo. Aracaju, v. 40, pp. 9-38.; Feltran, 2018FELTRAN, G. (2018). Irmãos: uma história do PCC. São Paulo, Companhia das Letras.; Grilo, 2019).
  • 4
    Estudos de Adorno (2002)ADORNO, S. (2002). Exclusão socioeconômica e violência urbana. Sociologias [on-line] n. 8, pp. 84-135., Caldeira (2000)CALDEIRA, T. P. do R. (2000). Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Editora 34., Valladres (2005) e Diógenes (1998)DIÓGENES, G. M. dos S. (1998). Cartografias da cultura e da violência: gangues, galeras e o movimento hip hop. São Paulo, Annablume., entre outros, retratam as dinâmicas das periferias brasileiras construídas socialmente em cidades atravessadas pela expansão do capitalismo e dos processos de exclusão, desigualdades, dissidências e invenções de centros e margens dos territórios urbanos fronteirizados.
  • 5
    Um pouco dessa história, na região do Grande Bom Jardim, foi contada na pesquisa realizada por Paiva (2014)PAIVA, L. F. S. (2014). Contingências da violência em um território estigmatizado. Campinas-SP, Pontes., ao estudar a maneira como moradores de bairros populares lidavam com os problemas da violência em seu cotidiano.
  • 6
    Em um relato, a entrevistada assegurou que havia pessoas com as listas oficiais dos contemplados para o conjunto e os dados em mãos dos moradores que chegavam ao conjunto habitacional. Ao questionar o órgão público responsável, a informação não foi comprovada, mas toda a equipe destacou as dificuldades encontradas no território, confirmando as interferências das facções.
  • 7
    Sobre o programa MCMV, Rolnik et al. (2015ROLNIK, R. et al. (2015). O Programa Minha Casa Minha Vida nas regiões metropolitanas de São Paulo e Campinas: aspectos socioespaciais e segregação. Cadernos Metrópole. São Paulo, v. 17, n. 33, pp. 127-154., p. 131) explicam que ele foi “um fator determinante para a reprodução do padrão periférico da moradia da população de baixa renda no país”. Entre outras circunstâncias, a escolha dos terrenos e do modelo de condomínio foram fatores que, como demonstrado por oportuno, influenciam, hoje, negativamente, nos problemas de violência vividos nos conjuntos.
  • 8
    “O Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) é uma articulação nacional que reúne movimentos populares, sociais, ONGs, associações de classe e instituições de pesquisa com a finalidade de lutar pelo direito à cidade, modificando o processo de segregação social e espacial para construirmos cidades verdadeiramente justas, inclusivas e democráticas”. Disponível em: https://forumreformaurbana.org.br/quem-somos/. Acesso em: 20 fev 2024.
  • 9
    Importa evidenciar que, como demonstra o estudo de Cantor (2014)CANTOR, D. J. (2014). The new wave: Forced displacement caused by organized crime in Central America and Mexico. Refugee survey quarterly, v. 33, n. 3, pp. 34-68., o deslocamento forçado por organizações criminosas sucede em variados países, com influxos importantes para a sociedade conforme observado em países da América como, por exemplo, México, El Salvador, Honduras e Guatemala. Em Fortaleza, o trabalho de Silva Filho e Mariano (2020) ilustra o fenômeno na cidade.
  • 10
    Pesquisa realizada no âmbito da consultoria sobre as dificuldades no acesso às escolas nas periferias de Fortaleza para o Comitê Internacional da Cruz Vermelha.
  • *
    Os resultados são de pesquisas apoiadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por meio do projeto “Os efeitos sociais do crime nas periferias urbanas de Fortaleza” (Processo n. 314306/2021-8), contemplado na Chamada CNPq n. 4/2021, do Programa Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Violência, Poder e Segurança Pública – Invips (Processo n. 406646/2022-8) e do Programa de Iniciação Científica da Universidade Federal do Ceará no âmbito do Laboratório de Estudos da Violência (Pibic UFC 2023-2024/Edital n. 2/2023). Elas são também tributárias do apoio da Fundação Ford por meio do projeto “Pesquisa Conflitos e violências nos territórios populares: mercantilização, gestão de precariedades e desafios para o engajamento cívico”, coordenado pelo Labcidade/USP. Dedicamos agradecimento especial aos bolsistas de iniciação científica Bruno Araújo Campos e Maria Vitória Conrado Saba. A primeira versão do texto foi discutida em momento ensejado pelo Labcidade e estendemos agradecimentos, especialmente, a Raquel Rolnik, Vera Telles, Carolina Grillo, Isadora Guerreiro e Gustavo Prieto. Agradecemos, também, ao professor Vianney Mesquita pela cuidadosa revisão de Língua Portuguesa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2023
  • Aceito
    5 Mar 2024
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