Viagem como vocação. Itinerários, parcerias e formas de conhecimento, de Fernanda Arêas Peixoto, é um livro desafiador e surpreendente. Tanto surpreende os seus leitores, quer sejam leigos ou iniciados, com as múltiplas facetas do tema que enuncia quanto os desafia a enfrentar a complexidade de sua visada interpretativa. Eles não deixarão de notar, além disso, que têm em mãos um texto extremamente arguto. A argúcia está presente em diferentes momentos do trabalho, mas talvez se revele com mais força no modo de conjugar, em seu estilo narrativo, as experiências dos autores sobre os quais se debruça, fazendo com que o que é dito sobre a experiência enquanto tal possa se aplicar a si própria como intérprete. A escolha do vocabulário com que pontua sua reflexão é uma pista para isso. “Cartografia e miradas”, “primeira pausa”, “Roteiros africanos”, “segunda pausa”, são expressões que marcam o ritmo de sua caminhada, assim como o de todas as caminhadas, com pontos de partida, de chegada e pausas obrigatórias. A viagem é aqui uma metáfora para o ensaio, para um percurso de investigação que ultrapassa fronteiras disciplinares, continuamente deslocando o seu objeto, avaliando as suas descobertas, para dar início a novas incursões.
Assim como toda viagem, o livro começa expondo o plano do qual é resultado. A investigação “trata de viagens realizadas por profissionais (antropólogos, sociólogos/e ou historiadores) entre as décadas de 1930 e 1960: viagens de estudo, pesquisa e formação; viagens de passeio e turismo; de descoberta e/ou reconhecimento; viagens exteriores (deslocamentos no espaço) e interiores (modificadoras do self); viagens livrescas e expedições científicas” (p. 12). Os autores escolhidos são alguns daqueles com os quais Fernanda convive há alguns anos e que em dado momento foram postos em relação a partir da chave do diálogo. Refiro-me ao seu livro Diálogos brasileiros (Peixoto, 2000Peixoto, Fernanda Arêas. (2000). Diálogos brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide. São Paulo: Edusp.), no qual a obra do professor francês Roger Bastide é compreendida por meio da sua interlocução com autores brasileiros como Gilberto Freyre e Florestan Fernandes.
Em A viagem como vocação, entretanto, além da introdução de novos personagens, a chave parece ser outra. Diria que o mínimo denominador comum entre os autores analisados é antes a demonstração, a afirmação da multiplicidade, da polissemia e da pluralidade que a própria viagem. A premissa aqui é que o pensamento não deve ser redutor, mas multiplicador.
Por isso, o sentido e a natureza da viagem são vistos em sua variedade; também os perfis daqueles que registraram sob diferentes formas as suas experiências de deslocamento são ampliados no livro de Fernanda Peixoto, fazendo ver que, sob a denominação mais geral de viajantes, os autores podem assumir diferentes perspectivas, quer sejam as do intelectual, do pesquisador, do turista ou do explorador.
As viagens e os viajantes em questão são vários; assim como as rotas por eles percorridas, também diversos e não excludentes entre si são os seus motivos e objetivos. O caráter iniciático da viagem de Roger Bastide ao Brasil e à África pode ser referido ao contexto das viagens modernistas de redescoberta do Brasil, assim como, prosaicamente, pode ocorrer no contexto de uma viagem de férias e de estudo.
O sumário do livro já confirma essa sensação da multiplicidade de sentidos que a viagem possui para os seus personagens, desde antes da própria viagem; ou seja, antecipando-a, o olhar do viajante (e da autora) define uma direção e traça uma cartografia a partir de pontos de referência predeterminados.
Assim, a primeira parte do livro, “Cartografia e miradas”, procura mostrar como as cidades latino-americanas e os fluxos populacionais entre Brasil e África foram alçados a pontos de convergência para o confronto de visões e interpretações de autores que, ao colocar em xeque a modernidade no continente, o fizeram a partir de diferentes ângulos e contextos: Bastide, ao pensar a persistência da forma barroca e sua encarnação brasileira peculiar; Gilberto Freyre, que com sua noção de antagonismos em equilíbrio, desafia a ideia de um percurso não problemático da racionalidade ocidental ao sul do equador.
Por outro lado, Fernanda traça o roteiro de um debate que no seu conjunto visa mostrar a especificidade daquelas partes do mundo por meio das viagens; sempre no plural, a viagem, aqui, é remetida ao seu sentido metafórico de conhecimento, e que, no seu limite, chega por vezes a prescindir da experiência, como nas viagens livrescas. Contudo, a apreensão cognitiva de suas formas específicas de representação e conhecimento, plasmadas na arquitetura, arte e religião, tem seu eixo nas noções de deslocamento e alteridade do pesquisador.
Roger Bastide é abordado, como diz Fernanda, por uma trilha lateral. Explora aspectos menos evidentes da sua bibliografia, como as observações que fez sobre as cidades brasileiras − São Paulo, principalmente − desde que o espaço urbano constituía um tema central no Brasil que se modernizava. A escolha desse ângulo lhe permite colocá-lo em diálogo com escritores brasileiros da sua época, entre as ideias que circulavam no meio intelectual e acadêmico. A cartografia desse debate mostra como Bastide, apesar de reproduzir o topos modernista da cidade vertical e tentacular, aponta, reforçando a visão ambivalente dos nossos modernistas quanto às cidades, para outras dimensões do espaço urbano, que o relativizam. Trata-se da convivência, aqui, da paisagem moderna com a tradição, sobretudo a percepção da persistência do barroco brasileiro. Contra a dominação do utilitarismo nas formas culturais da primeira, afirma a importância da imaginação, da estética sem função, das imagens formadas na memória de uma outra experiência do urbano que é preciso preservar. A volta do barroco preconizada pelo autor, como visão de homem e de mundo, teria como fonte inspiradora o gosto francês pelo abrandamento das dicotomias, suavizando contrastes excessivos? Essa é uma das vias que podemos percorrer com Fernanda Peixoto para a compreensão das ideias do professor e pesquisador Bastide.
O livro também nos leva a explorar os matizes entre as diferentes interpretações. Embora Bastide tenha muitas afinidades com a visão de Gilberto Freyre, principalmente pelo fato de que, como nos diz Fernanda, ambos concordam que “a modernização brasileira se implanta pela manutenção da tradição senhorial”, Bastide parece assumir uma perspectiva, junto com Lucio Costa e Niemayer, segundo a qual a harmonia entre a forma e a função deve ser buscada, ao passo que, para Gilberto, o equilíbrio dos contrários não exclui e não deve excluir a permanente tensão entre eles.
Gilberto Freyre também nos é apresentado por uma senda lateral, mediante a relação de amizade que travou com Oliveira Lima. Foi o historiador, sociólogo e diplomata, seu conterrâneo, quem lhe proporcionou a espécie peculiar de viagem, a viagem livresca, a partir da qual o autor de Casa-grande & senzala entra em contato com a América Latina. Fernanda nos mostra como o gosto de Oliveira Lima pela arte dos países da América hispânica influencia Gilberto a ponto de ele ter levado para a sua obra o tenso equilíbrio entre o muralismo e o retrato, cujos princípios, convertidos à sua forma discursiva, se expressam no contraste entre a visão panorâmica − entre o enquadramento amplo e o olhar aproximado, minucioso − e a descrição dos detalhes, que serão aguçados e por vezes modificados pelas outras viagens, de núpcias e de trabalho, que fez à Argentina, ao Uruguai, ao Paraguai e à Venezuela.
Na segunda parte, “Roteiros africanos”, a viagem realça, para além da metáfora, o seu sentido de uma experiência real e suas implicações teóricas e metodológicas (e políticas) para o fazer antropológico.
No capítulo sobre as viagens de Roger Bastide e Pierre Verger à África, Fernanda preocupa-se em mostrar como essa experiência está profundamente marcada pelo signo da troca e da união, desde as trocas intersubjetivas − a relação de amizade entre os viajantes − à busca das evidências das trocas culturais, ou seja, a perspectiva de ver, “do Brasil, a África”; “Da África, o Brasil”, assim como de um desejo, explicitado sobretudo por Verger, de intervenção, de “religar os dois mundos”.
A viagens de Gilberto Freyre às colônias portuguesas de então possibilitam à autora explorar os vínculos entre viagem e memória, o que de certa forma implica uma revisão das consequências das interpretações e críticas mais duras das posições conservadoras do autor, além de lhe permitir repensar a própria ideia da viagem como uma experiência de alteridade.
“O olho do etnógrafo” fecha o périplo de Fernanda em torno do conjunto de questões que tangenciaram as análises dos demais capítulos. O confronto que estabelece entre esse artigo de Michel Leiris, que antecede a sua viagem à África, integrando a missão Dakar-Djibouti, com o seu relato posterior, A África fantasma, é uma demonstração de virtuosismo da pesquisadora no manejo das várias questões que o tema da viagem evoca: entre muitas outras, a relação entre conhecimento e subjetividade, entre imagens preconcebidas de uma época e a possibilidade de educar o olhar, a relação entre saberes e formas expressivas.
À guisa de conclusão, acrescentaria apenas breves observações sobre esse belo trabalho de Fernanda Peixoto.
A primeira, a partir do seu título: a viagem como vocação, na acepção laica do termo, aparece como um chamado do self contemporâneo (um self que se pensa plástico, susceptível a modelagens externas e internas) para o exercício da crítica. Por consequência, o deslocamento espacial converte-se em um deslocamento temporal, tornando a crítica do presente moderno possível graças à experiência de uma outra temporalidade que a viagem possibilita. Seja no sentido de reiterar posições prévias, adquiridas nas viagens livrescas, seja no sentido da capacidade de a experiência alterar a cartografia previamente definida, como no caso exemplar de Leiris. O livro mostra, portanto, a afinidade entre esse self reflexivo e a experiência antropológica, na esteira de autores como Lévi-Strauss e James Clifford, e, podemos perceber, é justamente essa plasticidade que, por sinal, permite a um pesquisador como Bastide o contraste e as aproximações entre a cidade moderna tentacular e as cidades mineiras barrocas, o candomblé barroco e o espírito do capitalismo originário das práticas econômicas protestantes.
Em segundo lugar, penso que podemos apreciar o livro de Fernanda Peixoto como uma experiência formal de bricolagem, desde um certo princípio de composição que é autorreflexivo, ou seja, que pensa a sua própria trajetória de pesquisa, seus itinerários e parcerias. Como a autora anuncia nas primeiras linhas, “à primeira vista os assuntos tratados neste volume parecem diversos, mas foram concebidos como parte de uma mesma investigação, que se iniciou há mais de dez anos” (p. 11). O que, a propósito, resulta em libertar os autores em tela de um quadro interpretativo fixo.
Não posso concluir sem comentar a riqueza e o significado da iconografia do livro. Fotos, desenhos dos autores, pinturas, mapas não são apenas ilustrações, mas conversam com o texto, reforçando a ideia de intertextualidade, cara aos autores trabalhados e necessária para a apreensão da pluralidade e da multiplicidade dos significados em jogo. E mais: a bela imagem em baixo-relevo da bússola na noite sem estrelas que a cor da capa representa aponta para uma certa direção, mas, como o conteúdo do livro o demonstra, para as muitas outras que também podem ser seguidas por aqueles que se aventurarem com ele nessa empreitada de decifração do Brasil por intermédio dos seus intelectuais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- Peixoto, Fernanda Arêas. (2000). Diálogos brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide. São Paulo: Edusp.
- Leiris, Michel. (1988) [1934]. L’Afrique fantôme. De Dakar à Djibouti (1931-1933). Paris: Gallimard
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2018
Histórico
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Recebido
09 Fev 2018 -
Aceito
15 Fev 2018