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Claridade forte, mas no vazio? 1 1 Esse foi o título dado por Ana Maria a trabalho sobre escritos de Guimarães Rosa sobre o cerrado mineiro, que ela apresentou no Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia, realizado em Fortaleza em 2001. Faz alusão à conhecida luminosidade da região que foi por muitos considerada uma região vazia, desabitada, ao que Ana se contrapõe no seu trabalho com base em considerações do autor de Corpo de baile. Uma homenagem a Ana Maria Galano

Rio de Janeiro, 16 de junho de 2021

Estou muito feliz em estar com colegas e amigos nesta cerimônia de lançamento do prêmio Ana Maria Galano. Quero dar meus parabéns à Anpocs pela iniciativa, a seu presidente, professor André Botelho, a sua diretoria e a sua Comissão de Imagens. Boa tarde aos colegas que nos assistem.

Tive o privilégio de compartilhar com Ana, intensamente, os últimos anos de sua vida. Naquela ocasião, coordenávamos um projeto integrado apoiado pelo CNPq, visando fortalecer nosso interesse em ampliar a área de sociologia da cultura com pesquisa no recém-criado Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia. Esperávamos, ainda, consolidar a disciplina Sociologia III, que havíamos conseguido incluir no currículo da graduação em ciências sociais e estava voltada para o ensino da sociologia brasileira. Mas conversávamos, também, sobre nossas vidas, nossos anseios e desejos, nossos filhos. Ana tinha inteligência e sensibilidade raras, que se misturavam ao seu humor fino, e estavam impregnadas por vivências e experiências únicas que faziam dela uma pessoa muito especial. Conversávamos sobre nosso passado político, sobre a política do mundo, sobre o país.

Lembrando, com muita saudade, dessa convivência, gostaria de dizer algumas palavras sobre a atuação de Ana Maria como uma das pioneiras da sociologia das artes visuais, na nossa universidade. Ao abrir caminho para a docência e a pesquisa das imagens, ela se aventurou a conjugar “o estudo do cinema e da fotografia à literatura e à sociologia, sem perder de vista o horizonte da política”. Essa tríade composta por sociologia, literatura e representação visual diferencia a contribuição de Ana Maria de todas as demais contribuições voltadas para a fundação da sociologia do audiovisual entre nós.

A conjugação de diferentes áreas de conhecimento não é em absoluto, como vocês sabem, um acontecimento corriqueiro em nossos circuitos acadêmicos. Cada vez mais se espera dos docentes e pesquisadores que se especializem em área e tema bem delimitados. Mas Ana, ao contrário, estava mergulhada naquela tarefa, até que, em um momento propício, conseguiu formular o que pretendia. Isso ocorreu quando elaborou seu projeto sobre o “processo de modernização agrícola e a reconfiguração das paisagens do cerrado mineiro a partir das representações visuais” (Galano, 2002Galano, Ana Maria. (2002). Processos de modernização agrícola, reconfigurações de paisagem e suas representações visuais, subprojeto do Projeto Integrado de Pesquisa Interpretações do Moderno no Brasil: imagens e pensamento sociológico, coord. Ana Maria Galano, CNPq.). Com essa pesquisa, ela alcançou, finalmente, reunir a literatura, que aprendera nos seus anos de graduação em letras anglo-saxônicas, na UFRJ, e a sociologia rural, área em que se especializara no doutorado, realizado na Universidade de Paris X, em Nanterre, com a tese Trabalhadores rurais e camponeses na reforma agrária em Portugal. À sociologia e à literatura, Ana acrescentou sua paixão pelo cinema e pela fotografia.

O entrelaçamento da sociologia com a literatura e a imagem possibilitava a Ana Maria o conhecimento de um fenômeno social pela perspectiva da visualidade. No projeto, ela preconizava, primeiro, o conhecimento de processos de transformação social a partir das representações visuais, sugerindo a importância de tomar como ponto de partida algo singular e preciso - a imagem - para chegar ao entendimento de uma dimensão social mais ampla. Iniciava sua pesquisa, portanto, do singular para alcançar o geral, como fizera Simmel em seus ensaios sobre arte e cultura.

Em segundo lugar, a formulação de Ana Maria conferia um lugar especial às imagens na sociologia, convidando a se atentar para sua relevância não como um adorno ao lado de textos acadêmicos, mas como entidade autônoma, atuante na construção de sentidos e modos de pensar, e a partir da qual se pode percorrer caminhos para o entendimento de fatos sociais. Ana não esqueceu de acentuar que, por sua vez, são os processos sociais que desvendam os conteúdos de imagens. Em suas palavras, “a inteligibilidade das imagens é indissociável de análises de processos que transformaram profundamente a produção agrícola”.

Finalmente, ao reunir aquelas três áreas de conhecimento, Ana Maria buscava comprovar a hipótese elaborada por pesquisadores da arte e da imagem, na década de 1960, que afirmaram ter a representação da paisagem deixado de ser monopólio da literatura e da pintura, tendo agora o cinema e a fotografia como seus principais suportes. Não se descuidava assim da história da paisagem no âmbito das artes.

Ao conceber a visualidade como uma questão sociológica, Ana Maria deu um enorme passo para a abertura da sociologia das imagens entre nós. Diferente da história e da antropologia, o approach da sociologia com a imagem era tímido, eximindo-se a disciplina de colocar na ordem do dia o problema da visualidade. Em artigo intitulado “Lendo e agenciando imagens: o rei, a natureza e seus belos naturais”, Lilia Schwarcz (2014)Schwartz, Lilia M. (2014). Lendo e agenciando imagens: o rei, a natureza e seu belos naturais. Sociologia &Antropologia, 4/2, p. 391-431. formula bem o problema das imagens no campo da história, indagando em que medida as imagens, sejam elas representações do “real” ou objetos, instituem a definição de um fato ou evento, marcando os contornos de sua identidade. É justamente essa valorização das imagens como agentes que atribuem sentido a certos fatos que pode ser vista no trabalho de Ana Maria. Nesse sentido, sua proposta de uma sociologia das imagens enriqueceu o escopo metodológico de sua disciplina.

No projeto sobre a reconversão da paisagem do cerrado mineiro, Ana classificou três conjuntos de imagens que definiam, digamos assim, a “identidade” de três importantes etapas da reconfiguração daquela paisagem, cuja atualidade é sem dúvida espantosa.

A primeira fase da reconfiguração se definia pelos vastos desmatamentos das chapadas, troncos empilhados à beira das estradas (e o aumento de fornos artesanais de carvão vegetal, com forte participação do trabalho infantil).

A segunda reconversão definia-se pela sede das cooperativas do sul, com silos de grãos e prédios administrativos, e lotes dos cooperados, com plantio a perder de vista pelas chapadas, onde circulavam tratores, colheitadeiras e caminhões transportando assalariados rurais; mais tarde tal paisagem cedeu lugar a equipamentos e construções de grandes estruturas metálicas de irrigação, galpões dotados de sistema mecânico etc.

A terceira fase dessa reconfiguração paisagística ocorreu em sedes de municípios ou distritos rurais, nos quais o amplo afluxo de populações deu origem a bairros populares ou proletários.

Observem a seguir como imagens que atuam no debate político atual sobre questões ambientais no Brasil se assemelham àquelas que Ana Maria selecionou para seu estudo há mais de 20 anos, evidenciando que os problemas permanecem intocáveis:


Agro negócio em Matopiba

Silos abarrotados de grãos

Enquanto analisava as imagens, Ana percebeu que os altíssimos investimentos no cerrado eram justificados pelo fato de a região ser considerada uma área vazia. O tratamento do cerrado como área vazia, ou área que estava para ser ocupada e transformada no grande celeiro de alimentos para o mundo, tomou conta dos discursos oficiais e não oficiais - tanto dos discursos de elogio à produtividade quanto dos discursos sobre as questões ambientais ou, mesmo, daqueles que criticavam os processos de exclusão de coletividades da região.

Ana conta que

A insistência em falar de deserto me chamou a atenção desde as primeiras entrevistas para um estudo sobre as transformações sociais e modernização da agricultura do cerrado mineiro. As superfícies que, nos últimos vinte anos, passaram a ser cultivadas com soja, trigo, café etc. eram sistematicamente apresentadas como áreas até então desabitadas, ou quase. Ali tudo seria começo. Os pioneiros, originários do Sul do país, teriam sabido aproveitar as novas estradas, os incentivos fiscais, as vantagens creditícias, a assistência técnica oferecidos aos que quisessem se instalar como agricultores modernos no cerrado.

Ademais de área vazia, o discurso da modernização capitalista da agricultura afirmava que a população local, quando existia, não tinha “‘espírito aventureiro’, a ‘coragem’ ou a ‘mentalidade’ para lançar-se no empreendimento de conquista do cerrado” (Galano, 1994Galano, Ana Maria. (1994). Particulares de “Campo Geral”, novela de Guimarães Rosa. Novos Estudos Cebrap, 38, p. 206-334.: 206). Com o intuito de se contrapor a essa justificativa e melhor entender a ocupação moderna do cerrado, Ana Maria se lança nas leituras minuciosas das viagens de Von Martius e Saint Hilaire pela região, mas, principalmente, do livro Corpo de baile, de Guimarães Rosa, de 1956.

“É contra a representação do cerrado mineiro como área deserta que foi conduzida a análise da novela ‘Campo Geral’, de João Guimarães Rosa”, ela informa no início de seu artigo “Particulares de ‘Campo Geral’, novela de Guimarães Rosa” (Galano, 1994Galano, Ana Maria. (1994). Particulares de “Campo Geral”, novela de Guimarães Rosa. Novos Estudos Cebrap, 38, p. 206-334.: 206).2 2 Rosa, João Guimarães. Campo geral. In: Manuelzão e Miguelin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

A leitura do projeto sobre as transformações do cerrado mineiro e de outros textos que Ana escreveu sobre o assunto não deixa dúvida sobre o modo particular como reuniu a sociologia à imagem e à literatura. Para mim, esse é o grande legado de Ana Maria. Ela nos deixou delineado um caminho original para o florescimento de uma sociologia da imagem que, ao realçar sua efetiva ligação com os processos sociais e com a literatura, instaura uma perspectiva alargada de estudo da imagem na sociologia.

A respeito desse assunto, me perdoem, mas não posso deixar de mencionar que ao projeto sobre o cerrado mineiro antecedeu “Intelectuais de província”, estudo que tinha como base a pesquisa sobre o periódico Paca Tatu Cutia-Não, publicado por jovens da pequena cidade de São Gotardo, localizada na região. Esses jovens fizeram o registro de tudo que identificavam como um processo de recolonização, escrevendo sobre as centenas de famílias de origem japonesa, italiana e alemã, integrantes de cooperativas agrícolas do sul do país, que se deslocavam para o cerrado. Em poemas, crônicas e testemunhos fictícios sob a forma de monólogos interiores, os redatores de Paca Tatu Cutia-Não registraram os extensos desmatamentos sistemáticos, a introdução da monocultura mecanizada de grãos e, principalmente, as alterações na paisagem urbana da pequena cidade e nas atitudes e mentalidade das diferentes camadas de sua população.

Não consigo imaginar o que teria sido desse precioso acervo com materiais sobre os Intelectuais de Província engajados no Paca Tatu Cutia-Não, não fosse a presença e o apoio de André Botelho, que coordenou a organização desse e de outros arquivos, enquanto orientava os alunos3 3 Eliene Cunha, Fabienne Vasconcelos e Felipe Cerqueira. com bolsa de iniciação científica que Ana deixara.

Muitas outras coisas poderiam ser ditas sobre Ana Maria. Algumas já foram mencionadas pelos colegas que me antecederam, outras certamente serão relembradas pelos que falarão em seguida. Não desejo me estender. Para concluir, queria dizer, apenas, que me recordo sempre de alguns momentos especiais de nossa convivência. Uma de minhas melhores lembranças é a dos dias que passamos juntas para cortar o material bruto e fazer a edição do documentário Continuidade & rupturas: 50 anos do curso de ciências sociais (1939-1989). Foi realmente uma experiência única para mim. Não só aprendi muito, como me diverti com a companhia bem-humorada de Ana.

Outra lembrança que tenho é de sua capacidade para lidar com tantos alunos e convocá-los para ler, discutir e fotografar, analisar as imagens, falar sobre o trabalho de campo realizado. Exemplo disso ocorreu durante a realização de “Fotografando a moradia popular no Rio de Janeiro”. O pequeno texto que ela escreveu sobre as atividades dos alunos nesse projeto revela seu modo especial de se relacionar com eles. Certamente, não à toa, por ocasião de sua morte, seus alunos a homenagearam com uma placa hoje exposta no pátio interno do IFCS, à porta do antigo Laboratório de Pesquisa Social.

Me deixa muito feliz ver que nessas duas décadas sem Ana Maria, tanta coisa, que ela deixou entre nós, floresceu. Muitos dos seus alunos estão atuando com sucesso nas áreas do cinema, da fotografia, da arte e da cultura em instituições diversas. Me alegra ver tomar corpo a iniciativa de Eliska Altmann de construção do site do Grupo de Reconhecimento dos Universos Artísticos e Audiovisuais (Grua), no qual podem ser consultados os arquivos do Núcleo Audiovisual de Documentação/Navedoc, que Ana coordenava. Por fim, mas, não menos importante, me deixa particularmente feliz estar aqui comemorando com vocês o lançamento do prêmio Ana Maria Galano pela Anpocs, que com certeza vai incentivar a pesquisa e a produção da imagem nas ciências sociais, que Ana tanto desejava.

NOTAS

  • 1
    Esse foi o título dado por Ana Maria a trabalho sobre escritos de Guimarães Rosa sobre o cerrado mineiro, que ela apresentou no Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia, realizado em Fortaleza em 2001. Faz alusão à conhecida luminosidade da região que foi por muitos considerada uma região vazia, desabitada, ao que Ana se contrapõe no seu trabalho com base em considerações do autor de Corpo de baile.
  • 2
    Rosa, João Guimarães. Campo geral. In: Manuelzão e Miguelin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
  • 3
    Eliene Cunha, Fabienne Vasconcelos e Felipe Cerqueira.

Referências

  • Galano, Ana Maria. (2002). Processos de modernização agrícola, reconfigurações de paisagem e suas representações visuais, subprojeto do Projeto Integrado de Pesquisa Interpretações do Moderno no Brasil: imagens e pensamento sociológico, coord. Ana Maria Galano, CNPq.
  • Galano, Ana Maria. (1994). Particulares de “Campo Geral”, novela de Guimarães Rosa. Novos Estudos Cebrap, 38, p. 206-334.
  • Schwartz, Lilia M. (2014). Lendo e agenciando imagens: o rei, a natureza e seu belos naturais. Sociologia &Antropologia, 4/2, p. 391-431.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    17 Jun 2021
  • Aceito
    01 Jul 2021
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