Cecília Rodrigues: Quem é Julie Dorrico? Você se identifica como brasileira ou você se situa para além de uma identificação nacional? Qual é a relação entre ser brasileira e ser macuxi para você?
Julie Dorrico: Olá, eu sou indígena macuxi e, como macuxi, tenho adotado o nome que meu vô me deu recentemente: Trudruá, que significa formiga. Eu tenho consciência de que tenho cidadania brasileira, isto é, direitos e deveres enquanto cidadã brasileira, mas reafirmo minha identidade étnica. Eu sei que isso me coloca num lugar de tensão, já que ser indígena em qualquer Estado nacional significa lembrar genocídios e regimes de violência que existiram para que o país, na configuração que conhecemos atualmente, passasse a existir e, mais, para que pudesse se sustentar e, por consequência, continuar com a estrutura de Estado nação.
Cecília Rodrigues: Você está despontando como uma importante historiógrafa da literatura indígena brasileira contemporânea. Como funcionou o início do seu processo de catalogação de escritores e de livros? De que modo você tem dado continuidade a esse trabalho?
Julie Dorrico: Durante meu doutoramento, graças à bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à taxa de bancada, comecei a comprar obras de autoria indígena. Inicialmente, destinavam-se apenas à minha pesquisa. Ao longo dos anos, porém, percebi que os clubes de leitura estavam buscando maior representatividade, assim como os eventos culturais, mas tinham pouquíssima representação indígena. Foi aí que comecei a catalogar mais sistematicamente, no ano de 2019 para ser mais precisa, com o intuito de informar à sociedade dominante que o número de autores, fato que eu tinha recém-aprendido também, era maior que cinco, e mesmo dez. Também foi fundamental para concluir a minha tese, A literatura indígena contemporânea no Brasil: a autoria individual e a poética do eu-nós. Agora continuo com a divulgação nas redes e compartilhando em cursos sobre literatura indígena que ministro.
Cecília Rodrigues: Quantos escritores indígenas você tem catalogado? Quantas mulheres escritoras? Para quem se interessar em obter essas informações sempre atualizadas, que recursos você recomenda?
Julie Dorrico: Atualmente tenho catalogadas 90 obras, de 20 autores. Tenho uma lista específica de autoria feminina, nela tenho 14 autoras e 21 obras. Essa é uma lista pessoal que aos poucos divulgo nas redes, mas há uma feita sob a coordenação de Daniel Munduruku, que lista 60 autores e suas obras. Deixo aqui o link: Bibliografia das publicações indígenas do Brasil/Lista de autores (por origem) - Wikilivros (wikibooks.org).
Cecília Rodrigues: Seu trabalho de visibilização da literatura indígena brasileira para um público não indígena também é muito forte. Você pode comentar sobre os meios que usa para essa divulgação? Você tem alguma iniciativa nova visando à divulgação da literatura indígena brasileira?
Julie Dorrico: Inicialmente, por conta da vida acadêmica, eu usava muito os artigos e capítulos de livros como forma de dialogar com os pesquisadores universitários sobre esses autores e obras. Agora, tenho me voltado mais às redes sociais numa tentativa de chegar ao âmbito cultural do país. Há uma iniciativa coletiva, uma tentativa de articular uma Associação de Literatura Indígena, onde escritores e artistas possam ter uma referência para consultar sobre direitos autorais e temas correlatos. Como parte desse processo, acreditamos que um ponto de referência como esse pode impulsionar o trabalho de palestras, cursos, oficinas literárias indígenas a chegarem a outros espaços de cultura do país. Também tenho notado a importância de estarmos em bibliotecas de espaços educativos museológicos. Minha última curadoria foi via Associação Vaga Lume para o Instituto Moreira Salles, um museu de São Paulo (SP). Uma reunião de autores indígenas em um instituto cujas obras majoritariamente são indigenistas muda muito a percepção de que, como temas, a autoria indígena deve ser priorizada.
Cecília Rodrigues: Qual é sua avaliação da Lei n° 11.645/2008, que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática história e cultura afro-brasileira e indígena? A implementação da lei está sendo efetivada? Que avanços e desafios você analisa 15 anos após sua criação?
Julie Dorrico: Acredito que a lei é uma referência para reivindicarmos o estudo das culturas indígenas e da vertente da literatura nas salas de aula e universidades. Por onde passei, no entanto, não vi a implementação da lei. Da graduação e mestrado (Universidade Federal de Rondônia), em Rondônia, ao doutorado (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), em Porto Alegre (RS), não tive disciplinas, sequer obras que tratassem de povos indígenas. Mas eu sei que existem programas na Bahia, Minas Gerais e Paraná que criaram disciplinas para suprir essa lacuna. Não sei dizer com precisão, mas esse é um estudo que gostaria de fazer.
Cecília Rodrigues: Seu livro Eu sou macuxi e outras histórias, de 2019, ganhou o Prêmio Tamoios no mesmo ano. Você pode comentar sobre o papel do prêmio para a literatura indígena e em que categoria você venceu?
Julie Dorrico: O Concurso Tamoios, do Instituto UKA e da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), é voltado especificamente à busca de novos talentos indígenas. É uma forma de estimular os parentes a publicarem e serem protagonistas de suas histórias e memórias. Eu venci nessa categoria, de Novos Escritores Indígenas, e fortaleceu minha apresentação em vários setores, acadêmicos e culturais, como por exemplo ser chamada para palestrar em eventos do Serviço Social do Comércio (Sesc) no Brasil, Itaú Cultural, entre outros.
Cecília Rodrigues: Como se deu seu processo de escrita? Você sentiu dificuldades em publicar o livro?
Julie Dorrico: O meu processo de escrita começou no caderninho para elaborar minhas memórias. E é disto que trata minha escrita, de reaver a minha identidade por fragmentos de memórias individuais e coletivas. Certo dia, eu vi uma matéria de minha amiga de faculdade em que ela contava sobre a publicação de seu livro, Lauren. minha amiga é a Bibi, e no vídeo ela comentava todo o caminho para a publicação. Eu não sabia o caminho até eu assistir ao vídeo. Depois disso, enviei para a editora, eles gostaram e falaram que iam publicar. Eu confesso que fiquei surpresa. Mas os editores foram superatenciosos e fizeram um bonito trabalho de diagramação. A avaliação deles foi importante demais para mim. O Edu e o Cris, que são escritores, têm esse olhar profissional de escritor e editor, e a opinião deles contou muito para que eu não desistisse do projeto.
Cecília Rodrigues: Entre os estudos críticos sobre literatura indígena brasileira, a questão da autoria indígena parece receber especial atenção. São várias as estudiosas e estudiosos que apontam a complexa relação entre o eu autoral (e até um nós autoral) e a voz coletiva do grupo, ou de ancestrais, ou ainda de espíritos encantados. De que modo a poética do eu-nós, também pesquisada por você, norteia seu livro de estreia?
Julie Dorrico: Importante saber que, quando falamos de autoria indígena, automaticamente falamos de identidade coletiva. Isso significa que todo sujeito indígena, nativo, originário pertence a uma sociedade/nação/etnia cuja história, memória e códigos nacionais ou foram apagados, ou foram interrompidos drasticamente de viver sua autonomia, ou continuam concomitantemente vivendo esses processos. É um pouco triste, não é, saber que nossas nações viveram e vivem processos de subordinação e que somos nós mesmos que temos de denunciar os processos de violência a que somos submetidos. Continuando a reflexão sobre a autoria indígena, é um pouco dessa mensagem que quero passar, que todo indígena possui o pertencimento à sociedade originária que antes de tudo não comunga com o ideal explorador/colonial/etnogenocida da sociedade ocidentalizada e seus derivados. Nisso, ao escrever, escrevo junto a meus ancestrais, à memória de sobrevivente, ou, diria, de refugiada em meu próprio território. A poética do eu-nós é essa autoria que é fundamentalmente assentada na identidade e a reflete, mas também é essa escrita que escolhe um modo de vida que não é acidental ou metafórico, que é antes de tudo uma poesia que eu sequer sei exprimir e que é uma parte desse livro aberto que conhecemos como lavrado ou terras de Makunaimã.
Cecília Rodrigues: Em “A castanheira”, uma das narrativas de Eu sou macuxi e outras histórias, a narradora retorna ao lugar da infância e se vê perdida naquele espaço não urbano e não de todo ocidental, onde uma castanheira serve como ponto de referência para se encontrar o banco, por exemplo. Desorientada, a narradora se pergunta por que já não vê as árvores e por que não percebe as gentes-floresta. De que maneira o processo de escrita propiciou à narradora fazer esse caminho de volta, como revela Daniel Munduruku no prefácio?
Julie Dorrico: O exercício da escrita alfabética sempre esteve presente em minha vida. Desde criança, sempre escrevi; quando jovem, o mesmo. Analisar os meus rascunhos ao longo da vida foi importante para perceber que minhas mensagens refletiam minha própria confusão ou a confusão que fui impelida a incorporar ao longo dos anos de minha formação como leitora. Quem me formou? As bancas de jornais, as leituras obrigatórias das escolas, os livros das vizinhas da minha mãe, os livros das bibliotecas universitárias, toda essa conjuntura, especialmente a escola, me formaram nesse sentido, contudo foi um sentido esquizofrênico, considerando que a imagem com a qual eu fui conduzida a me identificar era a de personagens brancas, como Ceci, de O guarani, ou mesmo, Ana Karenina, de Leo Tolstói. Falando dele, lembro-me de Dostoiévski e outros autores que falavam do terror da guerra, que, aos poucos, foi me trazendo um sentido de subjetividade e mesmo devoção para os horrores que aconteciam na Europa, como se eu própria não vivesse já uma miséria que foi construída para mim, uma guerra na qual, com um pouco menos de sorte e resistência de minha família, eu sequer estaria aqui. Então, ao compreender um pouco mais minha identidade, percebi como os códigos da cidade criavam uma linguagem que nos afastava da floresta, de como tinha me afastado da floresta, logo eu que cresci agarrada nos galhos, comendo frutas que dão conforme as estações, com micuim pelo corpo e mordidas de jiquitaia. Logo eu que não contemplei o rio, mas vivi dele, pulei o barranco dele; eu que respirava um ar fresco e ouvia toda noite o canto dos sapos e outros bichos. Eu confesso que, quando escrevi essa crônica, eu chorei, como agora também me emociono nesse momento. Outro dia conversando com o Gustavo Caboco, quem ilustrou o livro, falávamos do tempo do casulo e do voo. Todo mundo que vive na cidade merece, precisa até (mas quem sou eu para dizer como as pessoas devem viver), um tempo de casulo na floresta, lembrar quem foram primeiro, quem ainda podem ser. O nosso trabalho é estar aqui e lá, e eu sei que nosso espírito se sente bem na nossa terra. O jeito é trazer a terra com a gente, aonde a gente vai, para esses lugares onde a gente voa.
Cecília Rodrigues: As ilustrações são sempre muito simbólicas nos livros indígenas, construindo o sentido da obra juntamente com a palavra escrita. Como se estabeleceu a parceria com o ilustrador Gustavo Caboco?
Julie Dorrico: Eu conheci o Gustavo no ano de 2018, no encontro dos escritores indígenas que antes da pandemia acontecia de forma presencial no Rio de Janeiro (RJ). Lá eu soube que ele era artista e escritor, com especial atenção para a bananeira. Quando comecei a escrever me veio a memória da bananeira de meu quintal, e logo me lembrei dele. Apresentei a proposta para ele, e hoje temos o livro. Eu acredito que as imagens são as nossas primeiras letras macuxis. São os desenhos inscritos no Monte Roraima, deixados por Makunaimã, Anikê, Insikiran, Maikan, que contam as primeiras literaturas. Tenho dito que o avô é nosso primeiro escritor, porque ele deixou essas histórias de origem para nós, mas ele é também nosso primeiro artista, porque imagine criar um povo, não tem arte maior que essa, e ainda deixar registrada na terra a sua criação humana e não humana. É indescritível a potência existencial e da arte. Por isso, ter na obra alguém que fosse neto do vô foi muito importante para mim. Somos de povos com troncos linguísticos diferentes. Macuxi é Karib, e Wapichana é Aruak. Mesmo assim, compartilhamos essa origem, e talvez seja por isso que, para mim, faça tanto sentido que minha primeira obra tenha tido Gustavo com suas bonitas ilustrações. Quem sabe essa história também não tenha sido escrita pelo vô?
Cecília Rodrigues: Alguns aspectos do seu livro demonstram a preocupação em educar o público não indígena brasileiro. Penso no glossário ao fim do livro, por exemplo. Você tem ideia da recepção do livro tanto em comunidades indígenas como também em espaços não indígenas?
Julie Dorrico: Não sei mensurar o alcance dele nas comunidades indígenas e entre os parentes, apesar de receber com felicidade parentes nas redes sociais compartilhando a aquisição da obra, mas é um desejo que o livro chegue, principalmente, ao meu povo. No que diz respeito aos não indígenas, tenho percebido como ele tem sido adotado por clubes de leitura e leitores da academia.
Cecília Rodrigues: De que maneira as funções de escritora e pesquisadora dialogam na sua prática intelectual?
Julie Dorrico: Antes de tudo sou indígena, e como indígena sei exatamente o que quero falar e onde quero atuar. Com isso, quero dizer que minha identidade orienta minha escrita literária e a minha pesquisa. Sinto que a pesquisa fortalece a atuação pública, e a escrita literária atua na parte afetiva, mas ambas constroem minha resistência diante das monoculturas de fé, históricas, políticas e representacionais que oprimem os povos indígenas.
Cecília Rodrigues: Já é possível vislumbrar implicações positivas do chamado boom da literatura brasileira indígena das últimas três décadas? Você sente que alguns frutos já estão sendo colhidos em termos de visibilidade para os povos indígenas? Penso numa possível mudança de comportamento, por exemplo, tanto das comunidades indígenas como da sociedade nacional.
Julie Dorrico: Já é sim, vejo isso em números e ações. Em termos de números, a existência de quase 60 escritores indígenas publicando denota também um movimento desses escritores palestrando, publicando, atuando na área. Em termos de ações, desde 2004 há os concursos Tamoios e Curumim, voltados à promoção das literaturas e culturas indígenas em parceria com a FNLIJ. Já existe uma livraria especializada em literatura indígena, a Maracá. A Lei n° 11.645/2008, que respalda o estudo e a aplicação de culturas e literaturas em sala de aula. Nós, que estamos nas redes, vemos a adesão cada vez maior de pesquisadores e estudiosos ao tema.
Cecília Rodrigues: Que outras medidas e iniciativas você julga necessárias para a legitimação da literatura indígena brasileira no cenário nacional? Em outras palavras, quais são os desafios e as metas para o futuro?
Julie Dorrico: Acredito na necessidade do fomento a novos escritores indígenas, mais publicações e descentralização para que a literatura indígena chegue a todo o território nacional comunicando sobre a diversidade étnico-racial que existe. Eu juntamente com vários escritores estamos articulando a criação de uma associação para que esses caminhos sejam possíveis. Queremos cada vez mais estimular mais publicações editoriais e o surgimento de escritores indígenas, em diferentes áreas e gêneros. Mas é complicado falar desse crescimento sem responsabilidade. Por isso proponho na minha tese maior responsabilização e sensibilização das editoras para com os povos indígenas, pagando ou fazendo ações com povos que figurarem em obras editoriais. A ideia é não apenas ver a inserção dos indígenas nesse ramo editorial, mas que outros comportamentos sejam possíveis com base nas realidades indígenas, e isso inclui desde o papel até como lidar com a propriedade intelectual indígena. Temos muito a construir ainda, em termos de direitos políticos e descolonização do imaginário colonial, mas sinto que avançamos e estamos avançando cada vez mais.
Cecília Rodrigues: Por fim, como você descreveria a literatura indígena brasileira contemporânea para uma audiência interessada em aprender mais?
Julie Dorrico: Como um movimento legítimo de estética, política e identidade. De caráter resistente, é uma literatura que denuncia metalinguisticamente as lutas, ao mesmo tempo que celebra o orgulho do pertencimento étnico, da relação com a terra, com os humanos e não humanos. É um movimento que continua defendendo outros regimes, outras cosmovisões, outras ancestralidades. Possui suas próprias especificidades, mas em muito contribui para a consciência pan-indígena no que chamamos hoje de América e outros países da Europa e, por isso mesmo, deve ser lida e difundida.
REFERÊNCIAS
- DORRICO, Julie (2019). Eu sou Macuxi e outras histórias Nova Lima: Caos e Letras.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Out 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
19 Abr 2023 -
Aceito
26 Abr 2023