Open-access Ganhadeiras literárias: tecnologias editoriais de Deisiane Barbosa e tatiana nascimento

Ganhadeiras literárias: editorial technologies by Deisiane Barbosa and tatiana nascimento

Ganhadeiras literarias: tecnologías editoriales de Deisiane Barbosa y tatiana nascimento

Resumo

As tessituras das literaturas contemporâneas brasileiras têm apresentado uma diversidade de suportes utilizados para a publicação literária, especialmente as tecnologias editoriais geridas pelas escritoras negras. A dinamicidade compreendida nas curvas do tempo espiralar (Martins, 2021) nos permite ver as ganhadeiras literárias como reflexos das negras de ganho, que assumem, neste tempo, novos contornos, mas que ainda guardam uma memória do que foram/são. Com base nisso, o principal objetivo deste trabalho é nomear as escritoras-editoras Deisiane Barbosa e tatiana nascimento, que gerem as editoras independentes Andarilha Edições e Padê Editorial, respectivamente, como ganhadeiras literárias, aproximando os elementos constitutivos das negras de ganho aos das ganhadeiras literárias: o tabuleiro no suporte de publicação, o alimento comercializado na literatura escrita, a cabeça que carrega o tabuleiro como mina para a produção intelectual e artística.

Palavras-chave: ganhadeiras literárias; Deisiane Barbosa; tatiana nascimento; publicação independente; literatura contemporânea

Abstract

The textures of contemporary Brazilian literature presents a diversity of mediums used for literary publication, especially the editorial technologies managed by female Black writers. The dynamism understood in the curves of the spiral time (Martins, 2021) allows us to see literary earners as reflections of “negras de ganho” who, today, take on new contours while still carrying a memory of what they were/are. Based on this, the main objective of this article was to name the writer-editors Deisiane Barbosa and tatiana nascimento, who manage independent publishers, Andarilha Edições and Padê Editorial, respectively, as literary earners, bringing together the constitutive elements of “negras de ganho” that resemble those of literary earners: the stand in the support of publication, the food marketed in written literature, the head that carries the stand as a mine for intellectual and artistic production.

Keywords:  ganhadeiras literárias ; Deisiane Barbosa; tatiana nascimento; independent publishing; contemporary literature

Resumen

Las texturas de las literaturas contemporáneas brasileñas han presentado una diversidad de soportes utilizados para la publicación literaria, en especial, las tecnologías editoriales gestionadas por escritoras negras. La dinámica comprendida en las curvas del tiempo espiral (Martins, 2021) nos permite ver a las ganhadeiras literarias como reflejos de las “negras de ganho”, que asumen, en ese tiempo, nuevos contornos, pero que aún guardan una memoria de lo que fueron/son. A partir de esto, el objetivo principal de este trabajo fue nombrar a las escritoras-editoras Deisiane Barbosa y tatiana nascimento, quienes gestionan las editoriales independientes, Andarilha Edições y Padê Editorial, respectivamente, como ganhadeiras literárias, aproximando los elementos constitutivos de las “negras de ganho” que se asemejan a los de las ganhadeiras literárias: el tablero como soporte de publicación, el alimento comercializado en la literatura escrita, la cabeza que lleva el tablero como mina para la producción intelectual y artística.

Palabras-clave:  ganhadeiras literárias ; Deisiane Barbosa; tatiana nascimento; publicación independiente; literatura contemporánea

Não digam que eu fui rebotalho

Que vivia à margem da vida

Digam que eu procurava por trabalho

Mas sempre fui preterida.

Digam ao meu povo brasileiro

Que o meu sonho era ser escritora

Mas eu não tinha dinheiro

Pra pagar uma editora (Jesus, 1958).

Ôrí tem fome. E, “se tem gente com fome, dá de comer”, já disse o poeta Solano Trindade (1961, p. 65-66). A literatura brasileira contemporânea de autoria negra tem encontrado nas últimas décadas solo fértil, apesar de antigos/novos entraves, para a sua produção, circulação e recepção por parte de um leitor(a) sedento/a. Nesse cenário promissor, as editoras independentes com recorte de publicações literárias negro-brasileiras têm sido fundamentais “na tentativa de fazer suas palavras transitarem como o vento, a água ou fogo sobre a terra” (Das Mercês, 2021, p. 28).

Como é sabido, o amplo acesso às grandes editoras e, consequentemente, a visibilidade que isso proporciona privilegiam, salvo algumas exceções, certo grupo de escritores: homens brancos heterossexuais (Dalcastagnè, 2005). Posto isto, a publicação literária de autoria negra é marcada por obstruções e por várias pedras no caminho, porque, apesar de as mulheres negras escreverem e produzirem literatura de modo significativo, sobretudo nos últimos anos, a disparidade no acesso mais amplo às grandes editoras, à publicidade, à possibilidade de suas obras circularem a fim de serem lidas e reconhecidas nacionalmente e em grande escala, em certa medida, restringe tal produção, já que muitas obras são publicadas de modo independente ou em editoras de pequeno porte.

Essa desigualdade pode ser discutida com base em Silvio Almeida em O que é racismo estrutural? (2018), quando afirma que o racismo é sempre estrutural, pois integra a organização econômica e política da sociedade. Assim, o mercado editorial, enquanto parte da sociedade, vai reproduzir o racismo, porque isso faz parte da estrutura social. Em sua relação com a ideologia, “o racismo constitui todo um complexo imaginário social que a todo momento é reforçado pelos meios de comunicação, pela indústria cultural e pelo sistema educacional” (Almeida, 2018, p. 51).

Os livros, como produtos da indústria cultural, reforçam essa rede de sentidos compartilhados no coletivo, podendo contribuir para reafirmar o racismo ou questioná-lo. Regina Dalcastagnè (2005), em trabalho resultante de uma ampla pesquisa dos romances publicados no período de 1990–2004 de três editoras brasileiras grandes, constatou que 72,7% dos escritores publicados são homens. Destes, 93,9% são brancos, 78,8% possuem ensino superior, 36,4% são jornalistas, e a grande maioria reside nos estados do Sudeste, Rio de Janeiro ou São Paulo. Essa configuração reflete-se no enredo de suas obras, com 62,1% das personagens masculinas (Dalcastagnè, 2005).

Quase 20 anos após os resultados da amostragem da pesquisadora, percebemos que ao longo dos anos ocorreu uma pequena mudança no que diz respeito à presença da autoria negra no mercado editorial, em grande parte por conta da ação das editoras independentes com recorte de publicações de autoras/es negras/os1.

Além disso, algumas experiências e/ou projetos de publicação independente, autopublicação e outras estratégias desenvolvidas por escritoras negras brasileiras também se fazem notar, como Cidinha da Silva com a Kuanza Produções, Dinha por meio da Me Parió Revolução, Maré de Matos com Bendito Ofício, Marilene Felinto em MFelinto Edições, Manoela Ramos mediante a Escritora Viajante, Ryane Leão por meio das redes sociais intituladas Onde Jazz Meu Coração, Deisiane Barbosa com a editora Andarilha Edições, tatiana nascimento2 à frente da Padê Editorial etc.

Esses projetos refletem uma articulação coletiva para movimentar o mercado editorial literário na contramão das tiragens das grandes editoras, fazendo com que as produções literárias de pessoas negras alcancem o público leitor. Nesse sentido, a criação literária e a gestão das editoras independentes por parte das escritoras-editoras — Deisiane Barbosa, com a Andarilha Edições, e tatiana nascimento, responsável pela Padê Editorial — refletem, em suas ações, um ir e vir para conquistar que as aproxima substancialmente das negras de ganho.

A trajetória dessas mulheres é marcada por autogestão, resistência, criação, ancestralidade e autonomia, o que nos permite nomeá-las como ganhadeiras literárias, ao passo que circulam com as suas editoras independentes na comercialização da sua literatura. A aproximação às mulheres africanas que desempenharam atividades comerciais fundamentais na constituição do Brasil no contexto colonial, em sistema escravocrata, parte do pressuposto de que precisamos retornar o nosso olhar para essas experiências como referências contracoloniais.

Desse modo, ao nomear as escritoras que gerem suas editoras independentes para publicação de suas obras e de outras/os como ganhadeiras literárias, estamos assim “enfeitiçando a língua”, nos termos de Antônio Bispo dos Santos (2023). Esse gesto diz respeito à necessidade de semear palavras contra a ordem colonial. Na guerra das denominações, como o pensador quilombola aponta, é importante “contrariar as palavras coloniais e enfraquecê-las” (Santos, 2023, p. 3).

Logo, ao recuperar a imagem e a nomeação de ganhadeiras para o contexto das produções literárias contemporâneas, pretendemos enfraquecer a nomeação de origem colonial e potencializá-la mediante novos termos e concepções. Por esse motivo, a cabeça, o tabuleiro e o alimento criado são interpretados como elementos alegóricos e essenciais nas trajetórias das autoras Deisiane Barbosa e tatiana nascimento. São ganhadeiras, porque disputam o mercado literário com suas editoras independentes. Além disso, a palavra que é manuseada por elas, ingrediente principal da literatura, coze uma produção literária que reflete a identidade que constitui a autoria.

A IDENTIDADE DAS NEGRAS DE GANHO REFLETIDA

A historiadora Beatriz Nascimento, no documentário Ôrí (1989), realça a necessidade da imagem para que a identidade seja recuperada, “porque um rosto de um é o reflexo de outro, o corpo de um é o reflexo do outro, e em cada um o reflexo de todos os corpos” (Ôrí, 1989). A ideia de uma identidade refletida apresentada por Nascimento ganha ressonância, especialmente quando nos aproximamos de uma concepção do tempo como espiralar. Dito isso, é possível afirmar que as curvaturas do tempo colocam as negras de ganho de ontem e as ganhadeiras literárias de hoje lado a lado. Assim, uma não pode ser lida sem a outra, pois suas identidades se friccionam nas espirais do tempo.

Para Leda Maria Martins (2021), o tempo é uma ontologia. Desse modo, tudo o que somos e nos modos como somos responde a cosmopercepções, já que a concepção espiralada do tempo permite compreendermos a possibilidade do tempo de se dilatar e apreender experiências anteriores que podem ser percebidas em outras temporalidades. Esse arcabouço ancestral herdado, dessa maneira, alimenta as identidades que são construídas hoje, refletindo identidades que as antecedem, mas que marcam presença em suas tramas contemporâneas. A teórica destacou que a

ideia de que o tempo pode ser ontologicamente experimentado como movimentos de reversibilidade, dilatação e contenção, não linearidade, descontinuidade, contração e descontração, simultaneidade das instâncias presente, passado e futuro, com experiências ontológica e cosmológica que têm como princípio básico do corpo não o repouso, como em Aristóteles, mas, sim, o movimento. Nas temporalidades curvas, tempo e memória são imagens que se refletem (Martins, 2021, p. 23).

Nesse sentido, a memória reflete as temporalidades que a constituem. Ao passo que ela é refletida na composição das identidades, é possível apreender suas movimentações espiralares, pois são as experiências de outros tempos que fertilizam a memória. Dessa forma, podemos entender essa relação como “um tempo espiralar, que retorna, restabelece e também transforma, e que em tudo incide” (Martins, 2021, p. 63). Logo, a dinamicidade compreendida nas curvas do tempo nos permite ver as ganhadeiras literárias como reflexos, que assumem neste tempo novos contornos, mas que ainda guardam uma memória do que foram/são.

Sendo assim, é possível afirmar que a imagem das ganhadeiras aqui reivindicada almeja, desse modo, recuperar a identidade nas negras de ganho ao indicar que os seus reflexos ecoam especialmente nas trajetórias das escritoras-editoras Deisiane Barbosa e tatiana nascimento, mas esses reflexos também podem ser vistos nas experiências de outras mulheres empreendedoras.

As negras de ganho foram mulheres, em sua maioria, que vieram do continente africano e que no território brasileiro desenvolveram e desempenharam atividades comerciais ou realizaram prestações de serviço fundamentais entre os séculos XVI e XIX. A presença dessas mulheres era abundante em todo o território, principalmente nas cidades metropolitanas, como em Salvador (BA) e no Rio de Janeiro (RJ).

Para o historiador João José Reis (2019), essas ações faziam parte do sistema de ganho, que incluía tanto homens como mulheres. Assim, os escravizadores combinavam um valor a ser pago por semana com essas/es trabalhadoras/es ambulantes e, em troca, elas/es podiam embolsar uma parte do ganho. Acumular tal quantia, durante anos e por meio de muito esforço, poderia resultar na compra da carta de alforria e na de outras/os escravizadas/os.

Avistar diante de si a possibilidade de liberdade estando em servidão poderia ser muito esperançoso. Diferentemente do que estavam acostumadas/os, o esforço do seu trabalho renderia alguma vantagem; acumular pecúlio estabelecia-se como uma possibilidade na encruzilhada. Para os homens e para as mulheres que participavam do ganho, ao tomarem a posse das ruas e se dedicarem a alguma empreitada, para além do empenho necessário, cintilava diante de si a liberdade.

Na maioria das vezes, as ganhadeiras, na condição de escravizadas, tinham de desempenhar uma dupla jornada, na rua e na casa do escravizador. Sobre essas mulheres, Reis (2019, p. 20, grifo nosso) acrescentou:

As ganhadeiras vendiam de tudo um pouco: verduras, frutas, peixe, carne verde, moqueada e cozida, quitutes doces e salgados, panos da costa, toda sorte de quinquilharias, entre outros produtos locais e importados, mormente da África, mas doutras partes do globo também. Sobre essas mulheres, uma antiga postura municipal, republicada em 1873, estabelecia, entre vários “locais” onde era permitida a venda de carne verde, as “cabeças das ganhadeiras”. As cabeças das negras eram então um lugar fundamental na geografia econômica de Salvador.

As atividades desenvolvidas pelas mulheres, especialmente na venda de comidas prontas e de alimentos, eram bem lucrativas. Por isso, muitas delas conseguiram conquistar sua alforria. Além disso, para a historiadora Sheila Faria (2004), uma justificativa para as mulheres escravizadas conseguirem alcançar a liberdade com maior recorrência do que os homens estava no fato de elas representarem cerca de 70% do valor dos escravizados do gênero masculino.

A historiadora denominou algumas dessas mulheres como damas mercadoras. Faria (2004) argumenta que essas empreendedoras acumularam posses significativas para a época e deixaram registrado o seu interesse de que aquilo que haviam acumulado ao longo da vida fosse repassado a outras mulheres. Em vista disso, os resultados obtidos pela historiadora acrescentam uma nova perspectiva na compreensão de que as ganhadeiras são expressões de mobilidade social para as mulheres negras em diáspora, no entanto é importante levar em consideração que as suas ações empreendedoras já faziam parte dos arranjos sociais aos quais pertenciam antes da travessia forçada.

Por isso, é substancial entender que a diáspora africana trouxe consigo não apenas corpos para a mão de obra escravizada, mas pessoas com culturas e organizações sociais internalizadas, ao passo que, embora na condição de escravizada/o ou fora dela, desenvolveram modos de ser e viver relacionais assentados em um novo território, imbricando aquilo que trouxeram com a terra imposta. A esse respeito, Luiz Rufino (2019, p. 39) disse:

As experiências transatlânticas constituídas a partir dos processos de dispersão/travessia das populações negro-africanas nas Américas — conhecida como diáspora africana — tecem uma esteira de saberes que forjam um assentamento comum nos processos de ressignificação do ser, suas invenções de territorialidades, saberes e identidades. Essas experiências buscam reconstituir — a partir de um imaginário em África — os elos de pertencimento alterados a partir do trânsito contínuo e da impossibilidade de retorno. A diáspora negra está a se constituir cotidianamente nas práticas, tecendo conhecimentos que nos possibilitam a produção de um projeto político/poético/ético antirracista/descolonial.

As ganhadeiras compartilham com as ganhadeiras literárias tal assentamento. Suas experiências constituídas em novo território refletem o modo como ressignificaram uma nova identidade, imbricando os conhecimentos e os saberes que atravessaram com elas. As práticas e experiências de pessoas negras em diáspora são marcadas pela (re)invenção; são manifestações que atinam por meio de suas marcas a invenção de um futuro possível sem o racismo e as violências coloniais.

Saidiya Hartman (2021, p. 118), mediante sua fabulação crítica, vai dizer que os

escravizados africanos sustentaram, reformaram e abandonaram costumes, comportamentos e tendências do Velho Mundo. Criaram uma nova língua a partir das línguas que conheceram e das que lhes foram impostas. Dançaram as danças antigas com novos propósitos. Construíram assentamentos como aqueles em que viveram, mas com novos materiais. Lembraram e renomearam antigas divindades e inventaram e adotaram novas. Clivagem — a separação em relação ao Velho Mundo e o apego a ele — deu origem não apenas à despossessão mas também a um novo conjunto de possibilidades.

A criação, novos propósitos, novos materiais e a (re)invenção das práticas, costumes e vivências dos povos africanos em diáspora resultaram em um conjunto de possibilidades que pode ser exemplificado no tabuleiro das negras de ganho. Nele, as mulheres levavam doces e salgados que eram feitos com a mandioca e o milho cultivados no Brasil, acompanhados da pimenta-malagueta e do azeite de dendê, de origem africana. O alho e o sal português e também o coco, que passou a ser cultivado aqui por influência asiática, complementavam os preparos, bem como o leite de coco, compondo os preparos dos doces, juntamente com o açúcar da cana, produzido e exportado em grande escala para a Europa (Faria, 2004).

As mulheres que equilibravam os tabuleiros com uma diversidade de sabores, cheiros e texturas organizavam igualmente folguedos, lundus, batuques, tudo muito regado a uma diversidade de comidas e pela aguardente de cana (Faria, 2004). Nesses encontros, nasceram e firmaram-se as raízes do que hoje nós chamamos de cultura popular brasileira. Para Sheila Faria (2004), a figura da negra de tabuleiro funcionaria como uma categoria social que representa o encontro dos povos que constituíram o Brasil.

A categoria de intermediadora visualizada na figura das ganhadeiras deve ser pensada para além da condição de cozinheiras; são detentoras do poder de alimentar a si e aos seus semelhantes, agindo sobretudo como criadoras, pois construíram um arsenal de comidas que simbolizava e que simboliza ainda hoje um retorno possível. Ao confabular sobre o desejo de retorno em perspectiva com os povos africanos em diáspora, Hartman (2021, p. 120, grifo nosso) vai dizer:

O retorno é aquilo a que você se agarra após ter sido arrancada de seu país, ou quando você se dá conta de que não há futuro no Novo Mundo, ou de que a morte é o único futuro. O retorno é a fome por todas as coisas que um dia você desfrutou ou a ânsia por tudo que você nunca desfrutou. Ele carrega a impressão de tudo aquilo que lhe foi tirado. É o último recurso dos derrotados. É o desvio de suicidas e de sonhadores. É o outro lugar de insurrectos. É o desejo ardente daqueles que podem “convocar amor filial por pessoas e lugares que nunca conheceram”. Como o mito da mãe, a promessa de retornar é tudo o que resta na esteira da escravidão. Ao fechar os olhos, é possível imaginar novamente a proteção dos braços dela.

Desse modo, quando a pessoa negra em diáspora elabora o retorno, o seu desejo impregna o que se cria em diáspora. Em tudo que assentamos os olhos por algum tempo, saltam os traços do continente africano. A diáspora africana como encruzilhada é marcada tanto pela tragédia como pela necessidade de (re)invenção. Nesse sentido, ela encruza inúmeros saberes, alinhando e realinhando experiências negro-africanas em diáspora (Rufino, 2019). Assim, os sabores que eram originados por essas mulheres permitiam às/os africanas/os rememorarem a sua terra, nação e vida anterior quando se alimentavam, porque essas comidas possuíam estreita semelhança com sabores que lhes eram familiares.

Essas comidas são impregnadas de axé, energia vital, na perspectiva iorubá. Para Rufino (2019, p. 65): “O axé, enquanto elemento que substancia a vida, só é potencializado, circulado, trocado e multiplicado a partir das operações de Exu”. Portanto, quando as negras de ganho se movimentavam nas ruas, nos mercados e nas esquinas vendendo as suas comidas, imantadas de axé, elas fortaleciam aquelas/es que se alimentavam, proporcionavam certo encantamento por meio de sabores, cheiros e texturas que “retornavam” os sentidos a traços já conhecidos.

De tal modo, as palavras das ganhadeiras literárias também vislumbram um desejo por outro lugar; não se trata de um retorno literal para a África, mas para um futuro que permita à/o negra/o em diáspora sonhar e viver em paz.

GANHADEIRAS LITERÁRIAS EM ESPIRAL

Em Perder a mãe, a teórica estadunidense Saidiya Hartman (2021, p. 202) provoca: “Com que finalidade alguém evoca o fantasma da escravidão se não para incitar as esperanças de transformar o presente?”. De tal modo, com que finalidade evocamos as ganhadeiras se não para incitar as esperanças de transformar o presente? Ao fazer uso dessa identidade, percebemos que ela não se encontra distante de nós; pode ser vista com estreitas semelhanças nas movimentações de mulheres negras, especialmente na dupla jornada empreendida pelas autoras que escrevem, editam e publicam a sua literatura de modo independente, interpretadas neste estudo como escritoras-editoras.

Ao mirarmos as experiências das negras de ganho, alguns elementos que as constituem se fizeram notar no reflexo das ganhadeiras literárias. Inicialmente, a cabeça, que equilibra o tabuleiro. As cabeças das ganhadeiras foram fundamentais na construção de uma identidade alimentar brasileira. As nossas tradições alimentares nasceram na cabeça dessas mulheres que circulavam com tabuleiros, gamelas e cestas equilibrados com muita habilidade sobre o torço. Não obstante, a potência da cabeça carece ser lida como um lugar fértil para a criação, tanto a invenção por meio de insumos como a escrita literária mediante palavras.

Ao inserirmos uma dimensão significativa sobre a cabeça, passamos a compreendê-la como o ôrí, cabeça em iorubá, lugar de ligação com o transcendental. A historiadora Beatriz Nascimento diz:

Ôrí significa uma inserção a um novo estágio da vida, a uma nova vida, um novo encontro. Ele se estabelece enquanto rito e só por aqueles que sabem fazer com que uma cabeça se articule consigo mesma e se complete com o seu passado, com o seu presente, com o seu futuro, com a sua origem e com o seu momento... Então toda dinâmica desse nome mítico, oculto, que é o Ôrí, se projeta a partir das diferenças, do rompimento numa outra unidade. Na unidade primordial que é a cabeça, o núcleo. O rito de iniciação é um rito de passagem, de uma idade para outra, de um momento pra outro, de um saber pra outro, de um poder atuar para outro poder atuar (apud Ôrí, 1989).

Para Nascimento (apud Ôrí, 1989), Ôrí é o lugar que permite aos descendentes africanos em diáspora terem acesso a uma memória que é ritualizada, de modo que as temporalidades passado, presente e futuro são não lineares e fundamentais para a reconstrução de uma identidade que é ao mesmo tempo individual e coletiva. Beatriz Nascimento e Leda Maria Martins aproximam-se quando percebem o Ôrí como um lugar privilegiado nas curvaturas do tempo espiralar. Para Luiz Rufino (2019, p. 147) em Pedagogia das encruzilhadas:

Assim, segundo os conhecimentos versados nos terreiros, Bara é o elemento individual corporificado que, junto ao Ori, individualiza o ser. Bara, o corpo, e Ori, a cabeça, que, integrados, marcam as individualidades e os caminhos que cada um de nós carregamos. Elegbara é o domínio de Exu que o titula como o senhor do poder mágico. A este domínio estão creditados o dinamismo e o pulsar das energias que constituem, conectam e perpassam as existências como um todo. É nos domínios de Elegbara que se assentam os princípios e potências de todo e qualquer movimento e ação criativa.

Dessa forma, ao considerar o Ôrí como um lugar de transcendência, fertilizado de capacidade criativa, é possível provocar que suas criações refletem todo um acervo ancestral de temporalidades espiralares. São criações que ajudam a compor a identidade das criadoras. Os alimentos produzidos pelas negras de ganho eram feitos por meio de ingredientes sagrados. De tal modo, a literatura das ganhadeiras literárias é tecida mediante palavras e estéticas que refletem a sacralidade do Ôrí.

Logo, a produção literária das ganhadeiras literárias são oferendas do Ôrí, e, tratando-se de pessoas negras em diáspora, essa literatura vai funcionar como alimento tanto para quem coze/escreve como para quem lê/saboreia. Essa literatura que é escrita por mãos negras se sustenta em um passado histórico para alimentar horizontes imagináveis.

As ganhadeiras literárias assumem na composição de suas obras literárias uma contemporaneidade impregnada de passados. Essa temporalidade é circular, retroalimenta-se e propõe em cada obra novas perspectivas do que se viveu com base no que se vive hoje.

No poema “fala, preta”, de tatiana nascimento, presente em Palavra preta (2021), avistamos a relação da literatura como alimento no bojo do texto:

eles queriam a gente calada

mas quando uma preta fala, sua palavra

aliment a voz de todo povo preto na diáspora

eles queriam a gente alisada

mas quando uma preta encrespa sua palavra

aliment a beleza de todo povo preto na diáspora

eles queriam a gente estuprada

mas quando uma preta goza sua palavra

alimenta o prazer de todo povo preto na diáspora

eles queriam a gente domesticada, colonizada

mas quando uma preta revoluciona sua palavra

aliment a liberdade de todo povo preto na diáspora

eles queriam a gente entre a cruz e a espada

mas quando uma preta exuzilha sua palavra

alafia o caminho de todo povo preto na diáspora

— Laroyê! —

eles queriam a gente tudo isolada, brigada, rivalizada

mas quando uma preta compartilha sua palavra

alimenta os laços de todo povo preto na diáspora

eles queriam a gente assassinada,

morta, exterminada cláudia-arrastada-pelo-camburão

mas quando uma preta vive sua palavra

aliment a vida de todo povo preto na diáspora

por isso eu não me calo, preta

por isso que eu falo, preta

y por isso eu preciso

ouvir tua voz preta

que quando você fala, preta, alimenta

também

a minha palavra

(nascimento, 2021, p. 54-55)

No poema, manuseia-se a palavra como quem alimenta aos poucos, a cada verso. A palavra que alimenta é preta, assim como quem a escreve. Nos versos, a relação da palavra como alimento transcende as linhas. Servida, a palavra “aliment a vida de todo povo preto na diáspora”, mas há de ser falada para que sustente, tanto pelo eu poético como por outras, como se faz ver no chamado ao final do poema. Essa oferenda poética, desse modo, revela-se como uma ponte para outro momento, rito de passagem própria de quem se sacia.

Essa nova configuração é percebida quando acontece uma quebra de expectativa nos versos que se iniciam com “mas quando...”, evidenciando um contraponto às violências da ordem colonial que são expressas nos versos antecedentes “eles queriam”. Assim, à medida que a palavra-alimento no presente fala, encrespa, goza, revoluciona, exuzilha, compartilha e vive, a palavra preta abandona no passado as violências que a calavam. No banquete, serve-se primeiramente quem tem prioridade. Logo, ao “exuzilhar” a palavra, referencia-se Exu, como saúda Cidinha da Silva (apud Moreira, 2023), que cunhou o termo ao refletir sobre a sua produção.

As mãos que manusearam os insumos e fizeram deles alimentos fartos, vistosos e saborosos se encontram nas mãos que movem palavras e escrevem literatura densa, com uma diversidade de formas e de texturas. Em uma das cartas escritas por Deisiane Barbosa no livro Cartas à Tereza (2021), em correspondência datada no dia 19 de junho, lemos:

em toda manhã de quinta-feira, preparo a porção de

tempero que deverá durar uma semana de cozimentos.

descasco uma dúzia de dentes de alho, pimentões

sempre verdes, coentro, tomates na flor da idade.

desfolho algumas cebolas roxas e, a essa altura,

não contenho meus olhos sensíveis. em seguida,

vou moendo o viço dos vegetais. macero junto os

pensamentos, repiso as lembranças. em seguida ~ e

talvez no restante de todo o dia ~ vão ressurgindo,

aqui e ali, em pitadas de pimentas do reino, as

minhas maiores inconformidades

(Barbosa, 2021).

Na carta há um ritual de preparo com o uso dos condimentos. A autora, na construção do texto, intercala o preparo de cada item com o seu próprio preparo do eu-narrativo, como lido nos trechos “desfolha cebolas [...] não contenho meus olhos sensíveis”. Nota-se a mistura dos condimentos paralelamente à mistura no próprio processo. Além disso, ao aproximar com o fazer das ganhadeiras, percebe-se que se mudam os tempos, mas o fazer permanece, como uma forma de manutenção das tradições. Os temperos, assim como figuram importantes no cozimento da arte das ganhadeiras, assumem na carta o protagonismo.

A qualidade de criar encontra fertilidade na trajetória dessas mulheres. Cozinhar, tecer, escrever, cortar a palavra, ferver o verbo. Mãos hábeis gesticulam a palavra-alimento para alimentar estômagos famintos. A literatura produzida pelas ganhadeiras literárias é como um ebó de palavras. Ebó é uma oferenda, é a manifestação daquela/e que o oferta aos orixás, como um sacrifício.

Ao considerar a literatura das ganhadeiras literárias como um ebó de palavras, assimilamos: “Os ebós são, em suma, as múltiplas tecnologias inventadas e praticadas como possibilidade para a potencialização das energias que nos movem na/para a abertura de caminhos e acúmulo de força vital. O ebó é artimanha de encante e de sobrevida” (Rufino, 2019, p. 40). Desse modo, o ebó de palavras das ganhadeiras literárias, fruto de processos criativos, permite potencializar as/os leitoras/as por meio da interlocução com suas obras literárias que encantam, que abrem caminhos e movimentam saberes ancestrais.

Além disso, ao interpretar a literatura criada por essas mulheres em diáspora como ebós, é importante considerar Exu, afinal ele está em tudo que é criado. Exu é anterior às criações, participa delas, compõem-nas e desfá-las para que sejam novamente reconstruídas (Rufino, 2019). Nesse sentido, quando consideramos as criações literárias das ganhadeiras literárias:

Pra mim, esse desafio só pode ser feito elegendo Exu como esfera de saber, já que ele é a própria linguagem, é ubíquo, se faz presente em todas as palavras, corpos, movimentos, em todo ato criativo e em toda e qualquer forma de comunicação — das letras escritas em tratados e livros raros em suntuosas bibliotecas até a gíria torta parafraseada na esquina; das notas mais valiosas cobiçadas no mercado até a palavra cuspida no chão da avenida; da assinatura de um decreto ao gole da cachaça na encruzilhada (Rufino, 2019, p. 36).

Um ebó de palavras é uma criação que se movimenta. Como elaboração de mulheres negras em diáspora, encontra-se em uma encruzilhada. É uma literatura atravessada pela raça, noção de não existência e de alvo da violência colonial, como também é potência, pois se reinventa em muitos caminhos e possibilidades. É pelos limites da linguagem que se refaz e desfaz, inventa.

Quando estamos diante das palavras de tatiana nascimento e de Deisiane Barbosa, bem como de outras mulheres negras que escrevem, verificamos as violências coloniais ainda vivas e pulsantes, mas também vislumbramos as táticas de sobrevivência das ganhadeiras. As estratégicas das ganhadeiras literárias inscrevem-se tanto em seus textos como nas articulações de seus projetos editoriais. Assim, na esquina do mercado literário, elas criam e gerenciam as suas próprias editoras.

DEISIANE BARBOSA E A ANDARILHA EDIÇÕES

Nas reticências talvez esteja a melhor definição de Deisiane Barbosa; o acabamento não é da sua natureza. Nas redes sociais, ela se intitula como artista-etc., artista que, entre outras coisas, alinhava os ofícios da escrita, edição, performance e pesquisa. O lugar geográfico no qual está situada talvez seja o melhor desenho do seu “espalhamento”, como ela mesmo fala. Ela conta: “Nasci à beira do rio Paraguassu, em São Félix, ano de 1992. sigo no recôncavo da Bahia, vivendo no povoado do cruzeiro, de onde coordeno a andarilha edições, uma editora independente e artesanal” (Deisiane Barbosa, 2023)3.

A escritora-editora é um destaque na produção literária baiana contemporânea. Está à frente tanto da Andarilha Edições como do projeto cultural Casamendoeira, seu recente empreendimento. O lugar, situado em uma casa no povoado do Cruzeiro, construída em 1967 por seu avô Firmino, envolve a residência artística e a experiência com a poesia e a arte. É a mesma casa em que a poetisa cresceu e se “formou poeticamente”, como menciona ao apresentar o projeto nas redes sociais. É da vida na roça que a sua literatura se materializa, alinhavada na sua formação acadêmica em artes visuais e em literatura com a terra ao qual pertence.

O seu primeiro livro publicado foi Cartas à Tereza, costurado por ela em 2015, e desavesso foi seu segundo livro, de 2016. A poetisa chegou a publicar também por outra editora, a Segundo Selo, em 2019 o livro de poemas Refugos, em uma coleção intitulada Das Pretas. Em 2023, publicou casamendoeira pela Andarilha Edições, livro que a autora fala que é casa e ateliê, pois reflete essa experiência recente da reforma da casa antiga em nova sede, a fim de abrigar a residência artística, que aconteceu no mesmo ano da publicação do livro. A ocupação casamendoeira foi contemplada pelo Editorial Setorial de Artes Visuais em 2019, por meio de política pública do estado da Bahia4.

“Elegbara é aquele andarilho que vagueia mundos” (Rufino, 2019, p. 147). O domínio de Exu como Elegbara diz respeito a toda energia dinâmica que o constitui e que conecta todas as existências. São nos princípios de Elegbara que se encontram a movimentação e a criação. A nomeação da editora de Deisiane Barbosa como Andarilha Edições, desse modo, é significativa, pois apreende a essência caminhante de Exu e deposita na encruzilhada do mercado editorial um despacho contra-hegemônico.

Essas reflexões certificam-se ainda mais quando deparamos com o site em que a editora, além de manter alguns pormenores sobre as características da casa editorial, evidencia a sua proposta: “Andarilha é uma editora caminhante”, “o que nos movimenta é a criação de livros artísticos” (Andarilha Edições, 2023). Sobretudo, destaca-se o trecho que assenta a mobilidade como incumbência: “Nossa instiga é fortalecer a pluralidade no setor editorial, potencializando o registro de narrativas diversas, produzidas, especialmente, de lugares dissidentes ~ das bordas. por isto, o movimento, a busca ~ as conexões que somente o caminho estabelecem5” (Andarilha Edições, 2023).

São três as mulheres que fazem parte da Andarilha: Deisiane Barbosa é a coordenadora editorial, responsável pela produção gráfica e comunicação; Luana Oliveira, artista visual e ilustradora, realiza as encadernações artesanais; e Maíra Vale, que, além de revisora e editora, é escritora e antropóloga. A composição feminina da equipe pertencente ao território do recôncavo já é um indicativo de transgressão e resistência na composição de um empreendimento comercial. A editora existe desde 2019. São quase quatro anos de atividades propondo-se a realizar “espalhamentos poéticos”. Para se dedicarem aos detalhes artesanais de cada obra, realizam a tiragem de 50 a 200 exemplares.

As linhas que costuram os livros da Andarilha Edições tecem uma rede de alinhavos férteis, de palavras outras, trançadas e costuradas em publicações que ganham o mercado editorial a partir das suas beiradas. O uso da costura ao tecer o livro ressignifica um gesto antigo e velho, comum nas mãos de muitas mulheres que não publicaram, mas que escreveram muitas palavras ao tramarem em linhas outras. A escritora-editora conta essa experiência imantada de poeticidade:

criança, eu via mainha costurar seus panos e achava aquilo bonito. tempos depois, comecei tecendo palavra e fui fazendo alinhavos de poesia imagem palavra. quando dei fé na possibilidade de costurar papel e criar meus próprios cadernos, quis também fazer livro para voar. tomei gosto.

quando comecei acreditar nessa coisa delicada de costurar livro à mão, foi então um caminho (cheio de curvas, totalmente) sem volta. a paixão de fazê-los me provoca a pesquisa constante por modos de ampliar o corpo das palavras ~ o livro jamais será um mero suporte, quando pode ser ele próprio uma rica experiência artística.

minhas mãos nasceram primeiro que o restante do corpo ~ escrevi um dia desses. e isto reverbera vida adentro: as mãos da andarilha edições nasceram antes mesmo do seu nome (Andarilha Edições, 2023).

Ao costurar os livros e coser as palavras, há no gesto uma necessidade expressa de ampliação do próprio livro como suporte, bem como do corpo de palavras a outros espaços e cantos. Aqui, o corpo anda juntamente com a palavra. Um corpo que se movimenta, dança e baila também quer palavra que anda, corre e chega, e retorna. Deisiane Barbosa no recente lançamento da Coleção Cachoeiras fala que o interesse sempre foi pensar em “narrativas expandidas”. Desse modo, a artesania de produzir os livros e de costurá-los manualmente é um ofício que preza pela concepção do livro como uma manifestação artística em sua completude, palavras e suporte.

TATIANA NASCIMENTO E A PADÊ EDITORIAL

No campo da poesia brasileira contemporânea, o nome da brasiliense tatiana nascimento aparece com recorrência. Isso acontece porque os seus poemas possuem marcas estéticas que já se configuram como a sua assinatura, bem como pela presença desses textos nas redes sociais. A poetisa possui as habilidades de manusear as palavras e de movimentá-las como o vento, a correnteza ou no tato das mãos. Ela assume em seus textos outras perspectivas para a/o negra/o em diáspora que funcionam como “chave de dissolução da colonialidade ao evadir o paradigma da dor que o racismo nos impõe” (Nascimento, 2019, p. 15 e 16).

Aos 35 anos, em 2016, reuniu os seus poemas em uma primeira publicação, de nome Lundu. O livro encontra-se disponível para leitura na internet6. A autora também reúne no site gratuitamente, além dessa obra, outras publicações de escritoras lésbicas, bissexuais e transexuais (LBTs), em iniciativa da própria autora. Ademais, possui outros livros de poemas lançados, como mil994 (2018) e 07 notas sobre o apocalipse, ou, poemas para o fim do mundo (2019), bem como ensaios publicados sobre literatura, as feridas da colonialidade na sociedade brasileira contemporânea etc. Em 2022, lançou Palavra preta pela editora baiana Segundo Selo, que alcançou a indicação ao Prêmio Jabuti em 2022, importante premiação da literatura brasileira.

Padê é uma oferenda feita para Exu, uma farofa de dendê que acompanha cachaça e cantos rituais para que Exu traga bom axé e cumpra o seu papel de mensageiro entre o visível e o invisível. A oferta é colocada na encruzilhada, lugar de encontro e circulação de pessoas. Homenageando o orixá da palavra, da comunicação e das movências, a Padê Editorial é uma iniciativa que publica livros artesanais de “autoras negras periféricas, lésbicas, fora dos grandes (curto-)circuitos literários”7.

A editora foi fundada em 2015 por tatiana nascimento e Bárbara Esmênia, paulistana, atriz, escritora e arte-educadora. O empreendimento iniciou as suas publicações por meio do contato com as publicações cartoneras. tatiana nascimento conta, em postagem no Instagram da Padê em agosto de 2018, que quando ganhou um livro cantoneiro da editora argentina Eloisa Cartonera sentiu que essas materializações livrescas eram a revolução da literatura. Em conversa com a autora Cidinha da Silva no programa Almanaque Exuzilhar, ela comenta com mais detalhes sobre o contexto que fomentou o surgimento da editora:

A Padê começou com uma ideia, uma ideia de fazer livro de capa de papelão, que é [...] algo ao mesmo tempo muito simples e muito ousado assim porque [...] é… as editoras cartoneras fazemos livros com materiais que iriam pro lixo, papelão de caixa de supermercado mesmo, e vivendo no meio do mundo capitalista de supremacia da palavra né… e do registro escrito da palavra, vivendo no meio de sociedades grafocêntricas, portanto, quem tem poder de publicar, de fazer livros, tem poder, dizer é poder e publicar é mais poder ainda né… então a gente vive num país que é muito pensado e muito dito como um país que não lê e que também é um país de grandes editoras que publicam poucos autores de um circuito sempre bem parecido assim, autores brancos, autores homens cis, autores héteros, autores sudestinos, e eu não tô falando de minas né… mas sudeste São Paulo, sudeste Rio de Janeiro. autores que têm grana, e aí montar uma editora pra fazer livros de papelão nesse contexto e pra publicar autoras negras e pessoas LBTs principalmente tem a ver com compromisso com a democratização da palavra (Almanaque Exuzilhar, 2020).

Empenhada em realizar de modo palpável o que nomeou de democratização da palavra, a Padê Editorial tece um projeto político e estético que é marcado pela movimentação das bordas para o centro. Isso acontece quando nomeiam e publicam aquelas/es que se encontram afastadas/os dos lugares de legitimação da palavra. Ao tomar como feitio a presença de Exu em suas atividades editoriais, o empreendimento saúda os cantos e as bordas, bem como legitima as palavras que ocupam esses espaços fronteiriços, das esquinas, dos limites.

Como se o tempo fosse o mesmo, assim como as negras de ganho se juntavam em atividades comerciais, envolvidas nos preparos, cozinhando juntas, compartilhando saberes e técnicas, a Padê faz os livros de modo artesanal juntamente com a sua escritora, compartilhando com ela os saberes fundamentais para que ela possa futuramente também fazer os seus próprios livros. Em recente entrevista concedida ao pesquisador Matheus Messias Santos (2023, p. 146), tatiana conta:

Na Padê, a publicação depende muito da participação da autora/do autor. os livros são feitos manualmente um a um e fazemos oficinas de encadernação em que compartilhamos ferramentas, formas de fazer, afeto; depois que o livro é lançado, a pessoa autora fica com o .pdf do miolo, além do saber artesanal, pra que assim possa seguir fazendo seus livros e vendendo-os, com renda exclusiva pra ela.

É notável assim nas ações da Padê Editorial o desenvolvimento de uma prática solidária com as/os autoras/es publicadas/os; existe um interesse da editora em instrumentalizar o/a escritor/a com as práticas necessárias para a feitura de livros, o que permite que novos livros sejam feitos e publicados sem necessariamente terem o selo editorial da casa. Essa atitude retoma características fundamentais presentes, por exemplo, nas negras de ganho, que trabalhavam em comunhão, compondo empreendimentos majoritariamente femininos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As ganhadeiras literárias são mulheres negras que escrevem literatura, tecelãs, circulam as suas potencialidades nas suas obras como estratégia de sobrevivência em um sistema que não fundamenta as suas existências. Elas escrevem, publicam e criam tecnologias editoriais, porque “a ideia de que se tem de escrever, quase como uma obrigação moral, incorpora a crença de que a história pode ‘ser interrompida, apropriada e transformada através da prática artística e literária’” (hooks, 1990, p. 152 apud Kilomba, 2019, p. 27)

Quando colocamos lado a lado a trajetória das duas escritoras-editoras, algumas semelhanças são evidentes: o compartilhamento de uma diversidade de ocupações, para além do fato de serem mulheres que escrevem, editam e publicam sua literatura. Há uma infinitude em ambas e uma disposição criativa que fazem com que de algum modo reverberem em diferentes produções e idealizações. A palavra-alimento metamorfoseia-se, bem como suas criadoras. Articula-se com as artes visuais, com o canto, com o corpo, com a crítica, com a vida.

A arte de ganhar diz respeito ao repertório ancestral que foi herdado pelas negras de ganho e pelas ganhadeiras literárias. Assim, ao gerirem tecnologias editoriais, as ganhadeiras literárias viabilizam a publicação de suas obras em um mercado que, além de não ser receptivo para publicá-las, toma a mulher negra como mercadoria. As escritoras-editoras, ganhadeiras literárias, com seus tabuleiros, circulam suas obras, movimentando o mercado editorial e refletindo a identidade diaspórica que as constituem.

Notas

  • 1
    Por exemplo: Arole Cultural (SP), Ciclo Contínuo (SP), Dandara Editora (SP), Ogum’s Toques Negros (BA), Nia Produções Literárias (RJ), Coletivo Quilombhoje (SP), Kitembo (RJ), Malê (RJ), Mazza Edições (MG), Nandyala Editora (MG), Oríkì Editora (RJ), Selo Negro Edições (SP), Aziza (SP), Pallas (RJ), entre tantas outras.
  • 2
    A autora prefere que o seu nome seja grafado com letras minúsculas.
  • 3
    Informações sobre a autora e o acesso aos seus livros podem ser realizados por seu site.
  • 4
    A rede social da Casamendoeira possui todas as informações sobre a casa, a ocupação que aconteceu este ano e os registros da exposição. Disponível em: https://www.instagram.com/casamendoeira/?img_index=1. Acesso em: jun. 2023.
  • 5
    Tendo em vista o caráter poético dos relatos e a história da editora registrados no domínio, optamos pela transcrição em itálico.
  • 6
    Disponível em: https://lesboteca.com/. Acesso em: maio 2022.
  • 7
    Recorte utilizado pela editora.

Referências

  • ALMANAQUE EXUZILHAR (2020). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PQpbkHZvFL8&t=4409s.Acesso em: out. 2023.
    » https://www.youtube.com/watch?v=PQpbkHZvFL8&t=4409s
  • ALMEIDA, Silvio (2018). O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento.
  • ANDARILHA EDIÇÕES (2023). Portal Disponível em: https://andarilhaedicoes.com.br/ Acesso em: nov. 2023.
    » https://andarilhaedicoes.com.br/
  • BARBOSA, Deisiane (2021). Cartas à Tereza: Deisiane Barbosa. 2. ed. Conceição da Feira: andarilha.
  • DALCASTAGNÈ, Regina (2005). A personagem do romance brasileiro contemporâneo (1990-2004). Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 26, p. 13-71.
  • DAS MERCÊS, Calila (2021). Movimentos e (re)mapeamentos de mulheres negras na literatura brasileira contemporânea 220f. Tese (Doutorado em Literatura) – Universidade de Brasília, Brasília.
  • DEISIANE BARBOSA (2023). Portal Disponível em: https://www.deisianebarbosa.com.br/ Acesso em: out. 2023.
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  • HARTMAN, Saidiya. (2021). Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.
  • JESUS, Carolina Maria de (1958). O drama da favela escrito por uma favelada. Folha da Noite, São Paulo.
  • KILOMBA, Grada (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó.
  • MARTINS, Leda Maria (2021). Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó.
  • MESSIAS SANTOS, Matheus (2023). “a nossa escrita é um reflexo, é um recorte, é um pedaço”: uma conversa com tatiana nascimento. Abatirá, v. 3, n. 6, p. 135-147.
  • MOREIRA, Jéssica (2023). Cidinha da Silva conta sua trajetória na literatura e dá conselhos honestos para quem quer seguir o fazer literário profissionalmente. O Casulo, São Paulo, n. 13. Disponível em: https://issuu.com/editorapatua/docs/9-1-23_casulo-13_reduzido Acesso em: nov. 2023.
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  • REIS, João José (2019). Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo: Companhia das Letras.
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  • SANTOS, Antônio Bispo dos (2023). A terra dá, a terra quer São Paulo: Ubu/Piseagrama.
  • TRINDADE, Solano (1961). Cantares ao meu povo São Paulo: Fulgor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2023
  • Aceito
    13 Maio 2024
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Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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