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Gingando na escrita da literatura negro-brasileira

Gingando in the writing of afro-Brazilian literature

Gingando en la escritura de la literatura afrobrasileña

Resumo

Este artigo analisou o conto “Chão”, de Allan da Rosa (2016)ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós., explorando a linguagem como uma arena discursiva, refletindo sobre a complexidade do fazer literário do autor. A noção de literaginga age como instância de movimento, estética e escrita, pois dá vazão à mudança de perspectiva sobre a ideia aqui apresentada. No conto o autor constrói seu texto como um jogo de capoeira no qual a oralidade e a performance literária se entrelaçam. Como metodologia, o conto foi examinado utilizando as características da literaginga: configuração semântica em oralidade, movimentos oralizados, corporificados e estéticos, mandinga e cadência. Buscou-se apontar que o conto apresenta a oralidade usando coloquialismos e escolhas verbais que evocam a cadência do jogo de capoeira. A análise destaca a cadência do texto, evidenciada pelo ritmo verbal, cantigas de capoeira e construções contrastantes que dão vida à narrativa. O conto revela uma abordagem estética única, enraizada na cultura negro-brasileira e na experiência periférica. O objetivo central foi analisar um conto da obra selecionada, Reza de mãe (2016), para compor o corpus, apresentando o teor performático no tecer literário do autor, abeirando os saberes ancestrais com seus textos. Ademais, buscou-se ratificar a eficiência da categoria de análise desenvolvida, a literaginga. Para fomentar os estudos da performance aproximando-os da literatura, recorreu-se ao campo de estudos da performance.

Palavras-chave:
literatura; capoeira; performance ; literaginga

Abstract

This article undertakes an analysis of the short story “Chão” by Allan da Rosa (2016)ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós., exploring language as a discursive arena that reflects the complexity of the author’s literary craft. The concept of literaginga is introduced as an instance of movement, aesthetics, and writing, offering a shift in perspective on the understanding of the work. In the story, the author constructs his narrative as a game of capoeira, intertwining orality and literary performance. The methodology employed involves applying the characteristics of literaginga, namely semantic configuration in orality, embodied and aesthetic movements, mandinga, and cadence. Emphasis is placed on the presence of orality in the text, manifested through colloquialisms and verbal choices that evoke the characteristic cadence of capoeira. The analysis highlights the cadence of the text, evidenced by verbal rhythm, capoeira songs, and contrasting constructions that breathe life into the narrative. The short story reveals a unique aesthetic approach rooted in Afro-Brazilian culture and peripheral experience. The central objective of the study was to analyze a short story from the selected work Reza de Mãe (2016), emphasizing the performative essence in the author’s literary weaving, bridging ancestral knowledge with his texts. Additionally, the study sought to validate the effectiveness of the proposed analytical category, literaginga, to enhance performance studies intersecting with literature, drawing from the field of performance studies.

Keywords:
literature; capoeira; performance; literaginga

Resumen

Este artículo realizó un análisis del cuento “Chão” de Allan da Rosa (2016)ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós., explorando el lenguaje como una arena discursiva que refleja la complejidad del hacer literario del autor. Se introduce el concepto de literaginga como una instancia de movimiento, estética y escritura, ofreciendo un cambio de perspectiva sobre la comprensión de la obra. En el cuento, el autor construye su narrativa como un juego de capoeira, entrelazando oralidad y performance literaria. La metodología empleada implica aplicar las características de literaginga, a saber, la configuración semántica en la oralidad, movimientos encarnados y estéticos, mandinga y cadencia. Se destaca la presencia de la oralidad en el texto, manifestada a través de coloquialismos y elecciones verbales que evocan la cadencia característica de la capoeira. El análisis resalta la cadencia del texto, evidenciada por el ritmo verbal, las canciones de capoeira y construcciones contrastantes que insuflan vida a la narrativa. El cuento revela un enfoque estético único, arraigado en la cultura afrobrasileña y la experiencia periférica. El objetivo central del estudio es analizar un cuento de la obra seleccionada Reza de Mãe (2016), enfatizando la esencia performativa en el entramado literario del autor, conectando el conocimiento ancestral con sus textos. Además, el estudio buscó validar la eficacia de la categoría analítica propuesta, literaginga, para mejorar los estudios de performance que se cruzan con la literatura, tomando elementos del campo de los estudios de performance.

Palabras-clave:
literatura; capoeira; performance; literaginga

INTRODUÇÃO

A roda não tem fim, a roda tem começo, meio e começo de novo (Nego Bispo).

Ao gingar, o corpo que fala se inclina para um lado e para o outro, buscando entender seu parceiro de jogo, encaixando o corpo nos espaços que o outro corpo permite, mandigando vivências, completando o não espaço, em um ritual de comunhão entre os capoeiristas, pois o capoeirista é antes de tudo um corpo vivo.

Ainda, é possível entender o jogo de capoeira como um tabuleiro, e a linguagem como arena discursiva, em que a codificação serve de estratégia, mecanismo e materialidade de resistência. A ginga, movimento que durante muitos anos balançou o corpo negro, funciona como linguagem corporal desse tabuleiro. Na atualidade, de certa forma, ela determina o ritmo da escrita da literatura contemporânea negro-brasileira e com isso, reproduz a oralidade, que por sua vez projeta a imagem cotidiana desses corpos. Por meio dessa apropriação de seus corpos e vivências, busca-se por intermédio da literatura questionar várias representações que durante muito tempo foram postas conforme o olhar hegemônico.

A literatura, sendo um reflexo da experiência humana e cultural que transcende os limites do tempo e do espaço, tem desempenhado papel fundamental na expressão das identidades e na narrativa da complexa teia de relações que compõem a sociedade, no entanto essa tessitura é intrincada, e a voz da literatura não é uniforme. Pelo contrário, ela é multifacetada, incorporando uma rica diversidade de perspectivas e vivências. Um dos fios condutores dessa mandinga literária é a literatura negro-brasileira.

Faz-se necessário ressaltar que a literatura negro-brasileira é um universo que emerge da diáspora africana, das margens da sociedade, das lutas e dos triunfos de uma população historicamente marginalizada. Nesse contexto, a metáfora da ginga, emprestada da capoeira, é particularmente apropriada no fazer literário. A ginga consiste na essência da capoeira. Nela o corpo se move em harmonia com o ritmo, equilibrando-se entre a defesa e o ataque. Assim também é a literatura negro-brasileira, na qual as palavras dançam no papel, equilibrando a resistência e a celebração, o lamento e a esperança. Neste artigo, buscou-se o balanço do mundo da literatura negro-brasileira, explorando suas raízes históricas, sua evolução e a multiplicidade de vozes que compõem esse cenário literário. Ao gingar na escrita da literatura negro-brasileira, pretende-se não apenas compreender a sua complexidade, mas também reconhecer a sua importância na construção da identidade cultural do Brasil.

É importante lembrar o que Mestre Pastinha (apud Assunção, 2019ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig (2019). Mestre Canjiquinha. In: Capoeira: A History of an Afro-Brazilian Martial Art. Routledge.) dizia sobre a capoeira: “Seu princípio não tem método, seu fim é inconcebível ao mais sábio dos capoeiristas”. Semelhantemente ocorre na literatura, que também apresenta a capacidade de construir mundos, percepções, ou seja, inverter ordens. Pode-se dizer, com isso, que se pensa aqui em duas manifestações que têm como característica a ruptura com o linear, que cria e rompe leis de práticas.

Para pontuar a respeito do jogo de capoeira, Letícia Vidor de Sousa Reis (2023)REIS, Letícia Vidor de Sousa (2023). A gramática corporal da capoeira: ou sim, sim, sim ou não, não, não. Portal Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/a-gramatica-corporal-da-capoeira-ou-sim-sim-sim-ou-nao-nao-nao/. Acesso em: 15 mar. 2023.
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fala:

O jogo de capoeira caracteriza-se por ser uma negociação constante dos capoeiristas pela ampliação de espaço para sua movimentação corporal na roda, pois, uma vez que não há confronto direto entre eles, buscarão sempre aproveitar o “vacilo” do outro para atacá-lo. Isto é, trata-se de atentar para o lugar exato da vulnerabilidade do adversário, onde o que mais importa na verdade é saber, por meio da ginga, simular e dissimular a intenção do ataque inesperado no momento preciso. Assim, o jogo de capoeira constitui-se em um conjunto de linguagens verbais e não-verbais.

No artigo “A gramática corporal da capoeira: ou sim, sim, sim ou não, não, não”, a pesquisadora apresenta a ideia do diálogo entre os capoeiristas em um jogo. Ela discorre sobre o poder da comunicação não verbal para a leitura do outro. Além disso, fala sobre esse movimento ritmado que rodeia a capoeiragem, em que, ao mesmo tempo que as coisas são, podem deixar de ser. Com isso, “revela-se a ginga verbal do capoeirista” (Reis, 2023REIS, Letícia Vidor de Sousa (2023). A gramática corporal da capoeira: ou sim, sim, sim ou não, não, não. Portal Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/a-gramatica-corporal-da-capoeira-ou-sim-sim-sim-ou-nao-nao-nao/. Acesso em: 15 mar. 2023.
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).

Ao aproximar a ideia da roda de capoeira, pode-se determinar que ela, a roda, consiste em um mundo simbólico, no qual o capoeirista entra por meio de um movimento que investe seu corpo de cabeça para baixo. No jogo de angola, por exemplo, a entrada na roda ocorre com a cabeça no chão ou muito perto dele, como uma teatralização, como quem busca comunicação com a terra. Já dizia mestre Canjiquinha (apud Swift, 2019SWIFT, M. (2019). The Father of Capoeira Angola: Mestre Pastinha. Black Then. Disponível em: https://blackthen.com/the-father-of-capoeira-angola-mestre-pastinha/. Acesso em: 30 maio 2024.
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): “As ideias estão no chão. Eu tropeço, encontro soluções”. Nessa inversão de corpos/ideia, cabe a construção do novo, mediante inúmeras rupturas ao longo dos tempos. O movimento do corpo invertido integra a percepção da essência da capoeira, em que não há respostas para todas as perguntas, já que a capoeira é a arte do improviso.

Sendo assim, à medida que se observam as narrativas literárias, percebe-se que, assim como na ginga, a literatura negro-brasileira é um ato de equilíbrio e flexibilidade. Levando-se em consideração que os textos escritos estão atravessados por contextos históricos distintos, toda e qualquer ferramenta de produção pode ser ponto de partida para que sua recepção aconteça. Ao aproximar essas ferramentas de produção das da capoeira, é possível ampliar essa comunicação e reconhecer outras possibilidades de escrita. Sobre isso, esclarece Zumthor (1993, p. 67)ZUMTHOR, Paul (1993). A letra e a voz: A literatura medieval. São Paulo: Companhia de Letras.:

Nem toda palavra é Palavra. Existe o tempo da palavra-jogo, comum, banal ou superficialmente demonstradora, e o tempo da palavra-força. Mas esta última pode ser destruidora: equívoca à maneira do fogo, uma de suas imagens. Daí uma série de ambiguidades, até mesmo de contradições, na prática. Opõe-se à palavra popular — inconsistente e versátil —, uma palavra mais regulamentada, enriquecida com seu próprio acervo, arquivo sonoro cujo manejo, em certas etnias, cabe a “pessoas da palavra” e como tal socialmente definidas: assim os griôs da África ocidental. Mas ao mesmo tempo, a palavra é fêmea, uma conaturalidade liga-a à mulher; um aro fixado no lábio assegurará sua inocuidade.

Na citação, pode-se compreender a complexidade que a palavra carrega com ela e todas as suas nuanças. Zumthor (1993)ZUMTHOR, Paul (1993). A letra e a voz: A literatura medieval. São Paulo: Companhia de Letras. faz um improviso semântico para definir palavra-jogo, arranjo que aproxima o que ele escreveu da perspectiva de análise deste artigo, de modo que é possível afirmar que existe sempre um jogar no tecer literário, afinal escrever é um embaralhar de palavras que consigam transmitir as provocações desejadas, como o arriscar de um golpe, que pode não acertar no ponto indicado e transformar-se em um contra-ataque. Seguindo essa lógica, é importante pensar desde o início desse embaralhar de palavras e perceber cada movimentação como motivação para a nova sequência delas.

Pensando nas aproximações entre literatura e sociedade, pretendeu-se neste trabalho estabelecer um diálogo entre a literatura e o jogo de capoeira, fazendo uma fusão com a ginga, pois, como dizia Mestre Pastinha (A História da Capoeira Angola: Mestre Pastinha, 2017A HISTÓRIA DA CAPOEIRA ANGOLA: MESTRE PASTINHA (2017). Produção: TVE. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FPzGrKHZ2xQ & t=86s. Acesso em: 15 mar. 2020.
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): “A capoeira é tudo o que a boca come”. Com base nessa metáfora, reafirma-se a necessidade de comer a literatura como forma de resistência e existência do ser capoeirista e, dessa maneira, sinalizar as suas construções e representações na literatura.

Para isso, foi necessária inicialmente a criação de um neologismo. Para esse propósito, aproximou-se a constância da base da capoeira, a ginga e a literatura, fundamentando-se no entendimento de que ambas carregam consigo saberes que se fundem. É mediante essa fusão de saberes que nasce a palavra-performance: literaginga.

Para a construção dessa palavra, foi preciso considerar os mecanismos de sua criação, ou seja, o neologismo, processo que consiste na junção do que é o radical da palavra literatura, permanecendo apenas litera, mais a palavra ginga, que representa o movimento base da capoeira. Entende-se que as unidades lexicais de uma língua constituem um inventário ilimitado. Portanto, as línguas são dotadas de mecanismos que possibilitam aos falantes a criação de unidades lexicais (Guilbert, 1975GUILBERT, Louis (1975). La créativité lexicale. Paris: Larousse.). Essa possibilidade permitiu a criação do neologismo já mencionado anteriormente.

É fundamental ressaltar a necessidade de propor outros prismas, uma nova epistemologia, que permita criar alicerces sobre perspectivas que atravessam conhecimentos já existentes e, assim, compreender a criação da palavra de forma que a ideia semântica seja conceituada. Este artigo apresenta a categoria de análise literaginga como maneira de sinalizar os movimentos oralizados, corporificados e estéticos presentes na literatura negro-brasileira, de modo a nomear algumas análises que já estão sendo realizadas nessa mesma perspectiva1 1 Observa-se semelhança em análise de literaturas canônicas e/ou contemporâneas em que se usa a ginga, aproximando assim este estudo das análises de Eduardo de Assis Duarte (2020), em seu artigo “Capoeira literária de Machado de Assis”, em que apresenta a caracterização do estilo machadiano como “capoeira verbal”. Com isso, usa-se o conceito literaginga como uma nomenclatura de categoria de análise que contempla determinadas movimentações na literatura. .

O conceito literaginga, enquanto categoria de análise, foi aplicado no corpus do trabalho como forma de aproximar as configurações sociais que, ao dialogar entre si, promovem intensa reflexão dos mecanismos sociais que determinam a sociedade. Com base nos saberes da capoeiragem, é possível observar na literatura negro-brasileira movimentos que se assemelham com a performance da ginga, como os mecanismos de movimentações que a literatura se apropria e transforma em posicionamentos críticos de resistência da literatura negro-brasileira, bem como as características oralizadas que algumas literaturas apresentam como um resgate de vozes ancestrais e da sabedoria popular.

Pretendeu-se, então, analisar o conto “Chão”, da obra Reza de mãe (Rosa, 2016ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós.), selecionada para compor o corpus deste trabalho, em que são apontados aspectos que destacam as características do conto aproximando-os da categoria de análise, a literaginga. Além disso, quis-se marcar o teor performático no tecer literário ao aproximar os saberes ancestrais do fazer literário do autor, sobretudo os aspectos em que se pode perceber a literaginga de forma predominante. Ainda, intencionou-se apontar o sujeito capoeirista e suas representações. Por fim, foi feita uma busca por elementos na escrita de Allan da Rosa em que se ratifique a eficiência da categoria de análise aqui desenvolvida.

RASTEIRA DE PALAVRAS: AS MANDINGAS LITERÁRIAS DE ALLAN DA ROSA

A performance é uma pintura sem tela, uma escultura sem matéria, um livro sem escrita, um teatro sem enredo... ou a união de tudo isso (Sheila Leirner).

A rasteira é um movimento da capoeira, predominantemente da capoeira angola, que consiste em o capoeirista passar o pé arrastado ao chão, de modo a tentar alcançar os pés ou as mãos do outro. Há na capoeira variantes de rasteira. A mais comum faz uma volta completa em seu próprio eixo. Esse golpe, além de possibilitar a queda do outro, proporciona a visão geral de toda a roda. Situação confortável para um bom capoeirista, o qual entende que um jogo acontece dentro e fora da roda, de forma concomitante. Allan da Rosa mostra-se como um desses jogadores, que valoriza a visão em 360º.

Sendo Allan da Rosa uma figura ímpar no panorama literário contemporâneo, sua trajetória é uma intrincada dança entre a palavra e a vida, em que as fronteiras entre ficção e realidade se esvanecem. Nascido e criado em solo brasileiro, o autor tece sua obra com as linhas da cultura negro-brasileira e das experiências da periferia de São Paulo, criando uma prosa rica e complexa que desafia as convenções literárias tradicionais. Suas obras costumam apresentar os desafios diários dos moradores da periferia, porém o que faz de suas histórias marcantes é a busca contínua, além de seu ambiente imediato, do que dê sentido à vida. O resultado é a aparição de momentos conectados à cosmologia negro-brasileira para introduzir possibilidades nos debates literários.

Em “Rasteira de palavras: as mandingas literárias de Allan da Rosa”, propõe-se analisar a produção estética e literária do autor, que compõe a gama contemporânea de escritores negro-brasileiros; e os textos performáticos que o autor produz, por meio das contiguidades entre enunciados e visualidades e com isso da reprodução da oralidade, que, por sua vez, projeta a imagem cotidiana. Visou-se, aqui, apontar elementos de sua obra que funcionem como uma tela em movimento, de maneira a representar novos corpos, tornando possível captar suas linguagens e seus afluentes, usando o texto como ferramenta que se expande em movimento de resistência literária negro-brasileira.

Para isso, cabe iniciar esse jogo dialogando com o pensamento do próprio autor acerca de suas produções. Em uma entrevista ao canal TV Brasil, o autor disse:

Eu acho que abrir um livro é abrir uma fresta. Abrir uma roda de Capoeira Angola é abrir a fresta no tempo, tem um tempo próprio. É jogo, né? Você sai do tempo, mergulhando nele, pra voltar mais dentro do tempo. É a festa na fresta, fartura na fratura… E essa fratura da palavra, eu acho que é uma dádiva dela para a gente. Quebrar o osso dela, comer o tutano, o ossobuco. Eu boto muita fé na possibilidade que a palavra em si tem (apud Faria, 2011FARIA, Alexandre (2011). A parabélum e o passarinho: entrevista com Allan da Rosa. Darandina. Disponível em: http://www.ufjf.br/darandina/files/2011/07/Entrevista-Allan-da-Rosa.pdf. Acesso em: 30 maio 2024.
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, p. 14).

A citação do autor sobre abrir um livro como abrir uma fresta, assim como abrir uma roda de capoeira angola, fornece uma analogia sobre a experiência de mergulhar nas palavras para transcender o tempo. A metáfora entre o jogo de capoeira e a escrita literária como uma “festa na fresta” é sugestiva, indicando uma celebração e uma experiência além dos limites convencionais. Com base nessa afirmativa, explora-se como o autor utiliza a linguagem de maneira revolucionária, muitas vezes subvertendo normas estabelecidas para dar voz às narrativas marginalizadas, além do seu fazer mandingueiro. Por meio de sua escrita, Allan da Rosa revela um desdobramento das palavras, como se ele precisasse antes de escrevê-las transformá-las em pedaços e só depois as unir de forma a atribuir ritmo para sua escrita. Na própria citação exibida, o autor brinca com isso e reconstrói o sentido no quebrar de palavras.

O livro Reza de mãe (2016), publicado pela editora Nós, apresenta 15 textos, sendo 14 contos e um poema introdutório. Destaca-se a inversão de cores na diagramação do livro: o poema foi escrito na cor branca em folhas vermelhas, e todos os contos foram escritos com letras vermelhas em páginas brancas, como uma marcação visual dos gêneros, que, apesar de diferentes, se misturam em certos tons. Os contos dialogam entre si não apenas por meio de personagens que aparecem em várias histórias, mas especialmente por elencar temas relevantes à realidade negro-brasileira e periférica no Brasil, como o racismo, o preconceito, a opressão da polícia, a humilhação e falta de assistência do Estado. Cada conto aborda uma adversidade específica, que se origina de um cotidiano periférico.

Sobre a obra, em entrevista concedida a Juca Guimarães (2016)GUIMARÃES, Juca (2016). Escritor Allan da Rosa lança livro sobre personagens que “lutam para serem reconhecidos como gente”. Portal Geledés. Disponível em: http://bit.ly/3qfLFzL. Acesso em: 15 out. 2019.
http://bit.ly/3qfLFzL...
, Allan da Rosa comenta:

A busca deste livro é se desvencilhar do fácil maniqueísmo, que é uma imensa tentação pra nossa arte há tempos e pode engessar e congelar a compreensão. O desafio é se enredar em nossos labirintos, ir pra além das noções simplistas de bom e de mau. Questionar o sistema, suas pauladas em nosso cotidiano, sua força racista em nossa história, mas também se emaranhar nas nossas dúvidas, necessárias em tempo de tanta exclamação raivosa e rasa.

Na citação o autor chama a atenção para as problematizações que servirão de conteúdo de seus contos, porém, para além das questões sociais, o autor apresenta em seu livro recortes de cenas do cotidiano, com uma descrição precisa de quem domina a cena periférica, como por exemplo no 11º conto do livro, “Chão”, um texto relativamente pequeno. Nele o autor revela sua essência angoleira e descreve a cena de uma roda de capoeira de rua: “Desceu pro pé da roda e se benzeu” (Rosa, 2016ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós., p. 83). Interessante pensar que ele começa o texto com a cena que representa o início da roda de capoeira, como se estivesse construindo um diálogo de aglutinação entre a literatura e a cadência do jogo de capoeira.

No decorrer do jogo/texto, são apresentadas ao leitor situações importantes que compõem a personagem do conto. Trata-se de um homem que vende chocolates na rua e cuja mãe enfrenta uma doença e dores fortes de cãibra. Essas informações são reveladas durante o jogo, em praça pública. Entre um golpe e outro, a personagem reflete sobre sua própria existência. No conto, o escritor retrata a cena de um jogo de capoeira, como se fizesse com que o leitor participe da roda. Assim, Allan da Rosa (2016, p. 83)ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós. sinaliza o início do jogo:

Saíram de AÚ Angoleiro, se mantinha próximo à mãe-terra, devagar e ligeiro no seu movimento, a guarda constante da cabeça. Floreava e escapava do rabo de arraia, já lançou um chapa como pergunta e se esquivando da ponteira que vinha como resposta. [...] O corpo, o pensar: um só eixo de concentração. [...] Era ele e sua mandinga.

O autor brinca com a performance do jogo de capoeira, criando uma atmosfera cadenciada no conto que seduz o leitor a entrar na roda angoleira. Aproximando as categorias de análise, pode-se observar que o conto se encaixa em todas as categorias propostas neste estudo. As categorias de análise apresentadas se pautaram na minha percepção enquanto leitora/pesquisadora de certa recorrência de elementos em literatura negro-brasileira. Ao esmiuçar determinadas aproximações do fazer literário de algumas/ns autoras/es, também foi identificado o distanciamento dessas mesmas literaturas, como um gingar.

Dessa forma, ao pensar em quatro características que, de forma recorrente, observei no tecer literário de literatura negro-brasileira, esquematizei as categorias para minimamente demonstrar que é possível a utilização do dispositivo de análise. Alerto para aquilo que foge dessa roda. Faço isso por uma preocupação particular de não me arriscar em um jogo rasteiro que limite as diferentes possibilidades. Como uma boa defensora do jogo livre, não quero com esse dispositivo fechar a roda de análises. Pelo contrário, a ideia é sempre buscar novas possibilidades de perguntas e respostas.

Sendo assim, apresento um encaminhamento para compreender as características do que reconheço como uma literatura que se aproxima da análise da literaginga. Para chegar a essa sequência, foi feito um trabalho de observação e comparação entre as literaturas, de forma que as características recorrentes foram destacadas e categorizadas. Para a categoria de análise, destacam-se aquelas qualidades que se aproximam do gingar escrito/performático. Para isso, foi organizada uma sequência lógica de fatores, buscando características na escrita do texto, bem como nos aspectos oralizados e na construção rítmica, de modo que a junção desses fatores possa auxiliar na análise aproximando as produções. As categorias são2 2 Chamo atenção para a proposta do artigo, a de sintetizar a sistematização feita, para elencar as categorias. É possível encontrar de maneira mais aprofundada o material na dissertação intitulada Do berimbau à caneta: a mandinga literária em Machado de Assis, Conceição Evaristo, Allan da Rosa e Cidinha da Silva. :

  • Configuração semântica em oralidade;

  • Movimentos oralizados, corporificados e estéticos presentes na literatura (negro-brasileira);

  • Mandinga: problematização de maneira não direta;

  • Cadência: ritmo verbal.

Na sequência, são detalhadas as características de cada categoria, a fim de exemplificar como cada ponto se revela no texto performático:

  • Configuração semântica em oralidade: observar no texto a configuração de sentido das palavras utilizadas, de modo que a palavra escrita consiga transmitir o mesmo poder na oralidade e que sua semântica seja preenchida de todo significado sonoro que carrega;

  • Movimentos oralizados, corporificados e estéticos presentes na literatura (negro-brasileira): pensa uma composição de fatores que alcançam a totalidade da imagem por meio dos sons, do ritmo e do corpo em movimento. Inicialmente, é importante pensar na concepção do ritmo para a capoeira e a cultura africana, cujo ritmo não compreende a concepção europeia, em que há um conjunto de marcações. Para a capoeira, o ritmo está muito próximo do balanço; os diferentes tons se encaixam no vazio, a fim de que as marcações rítmicas encontrem espaços provisórios;

  • Mandinga: problematização de maneira não direta: foi feita genuinamente por Machado de Assis, que conseguiu criticar os senhores escravocratas sem ser tachado de panfletário. Mais que isso, a ginga machadiana de se fazer ser lido por essa mesma elite escravocrata é a síntese desse ir e vir literário. Ao observar diferentes escritores de variados movimentos, é notório que há nessa maneira não direta, o que na capoeira se chama ginga, em que o movimento faz que vai, mas não vai, o intuito de iludir o oponente. Ou seja, é possível apontar, desde a obra de Machado de Assis, essa movimentação no fazer literário, que apresenta essa estética quase circular, que ginga na literatura sem ser percebida. Ao sintetizar isso em uma palavra, temos a literaginga;

  • Cadência: ritmo verbal. Em outras palavras, o ritmo ou uma cadência que algumas/ns autoras/es constroem em seus textos, proposta em sua dimensão rítmica, que possibilita, de forma singular, a produção e a circulação de significantes nas verbalizações, aproximando um movimento do que se escreve daquele do que se lê.

Após a apresentação das características das categorias, inicia-se a análise do conto proposto para este artigo. Na sequência há a identificação dos elementos que se apresentam no texto performático de Allan da Rosa (2016)ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós. e que atravessam as categorias.

No que se refere às questões relacionadas à configuração semântica em oralidade, pode-se observar que a provocação da construção do texto se fundamenta no uso coloquial, fazendo com que a oralidade se apresente marcando a cadência do conto. Rosa (2016, p. 83)ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós. escreve: “Tava treinado, alongado, tinha escorregado por baixo de duas catracas”. O autor optou por usar o verbo estar na forma reduzida, própria da oralidade, construindo o imaginário com base nos significantes e significados da semântica. Relacionar essa opção da redução verbal com o período completo da ação da personagem pode ser lido como um mecanismo para construir essa imagem do cotidiano apressado das pessoas, reduzindo, portanto, tudo o que excede a fluidez do dia, para escorregar nas catracas do tempo. A imagem que o autor consegue projetar apenas com essa escolha verbal faz com que o leitor absorva a rapidez das cenas cotidianas e se reconheça na cena literária, ou ao menos reflita acerca das pessoas que precisam ser ágeis nos transportes públicos. Pode-se abeirar ao que Zumthor (2018, p. 27)ZUMTHOR, Paul (2018). Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify. diz:

Por isso, tratando-se da presença corporal do leitor de “literatura”, interrogo-me sobre o funcionamento, as modalidades e os efeitos (em nível individual) das transmissões orais da poesia. Considerando com efeito a voz, não somente nela mesma, mas (ainda mais) em sua qualidade de emanação do corpo e que sonoramente, o representa de forma plena.

Ao pensar nos efeitos da voz com relação à emanação, é interessante observar o encontro entre a voz e a página que Allan da Rosa (2016)ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós. produz em seus textos, como um mecanismo de escrita em que o autor recorre meticulosamente à escolha das palavras para encurtar a distância da palavra falada da sua versão escrita, fazendo com que a página se transforme em suporte vocal da palavra. Talvez por essa razão, frequentemente, há relatos de leitores falando sobre a leitura em voz alta dos textos de Allan da Rosa, como uma tentativa de buscar o que este estudo aponta como a construção semântica oralizada, já que “a palavra proferida pela voz cria o que diz” (Zumthor, 2018ZUMTHOR, Paul (2018). Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify., p. 128).

Ainda sobre o conto “Chão”, pode-se trazer para o jogo de análise a categoria que se refere aos movimentos oralizados, corporificados e estéticos presentes na literatura (negro-brasileira), já que o texto consiste em um grande movimento no chão, dando nome ao conto. O primeiro período do conto é curto e objetivo, fazendo com que de maneira imediata o leitor se incline para a sua leitura: “Desceu pro pé da roda e se benzeu” (Rosa, 2016ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós., p. 83). O trecho evidencia o movimento do corpo no texto como se a própria palavra estivesse descendo ao pé do berimbau. Ao avançar na leitura do conto, o autor revela: “O jogo ia tomando grau. Ele sinalizou para chamada. Aquele bruto não sorria, era duro e parecia antever seus movimentos” (Rosa, 2016ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós., p. 83). Ao final do conto: “Antes do crânio machucar o chão, ainda ouviu a arrelia dos capoeiristas, na roda do mundo” (Rosa, 2016ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós., p. 83).

Há nesses três fragmentos movimentos em diferentes aspectos. No primeiro, o autor movimenta o seu texto de modo a iniciar a roda; depois, as informações aparecem de forma que ora é sobre a cena, ora é sobre o pensamento e lamento da personagem, como em uma roda de capoeira, em que as ações acontecem de maneira aleatória; e por fim, ao finalizar o texto, o autor resgata a ideia de chão com a queda do capoeirista batendo nele seu crânio, como um movimento circular em que o fim também é o começo.

Essa movimentação estética do texto, e que também é do corpo, se apresenta como marca nos contos de Allan da Rosa. De certa forma, o autor consegue desenhar a estética da roda, mas sem necessariamente descrevê-la. Ele movimenta sua escrita por não explicar muito sobre as expressões, do tipo: “Ele sinalizou para chamada”, que se trata de um golpe de capoeira que pode ser realizado de três maneiras, mas em todas os dois adversários precisam aproximar-se e fazer uma dança, levando o corpo para frente e para trás, até o momento em que o que solicitou a chamada sinalizar o retorno ao jogo.

É esse movimento do corpo que marca o texto, cadenciando essa estética como se fosse extensão do corpo/da palavra. Faz-se possível acrescentar, ainda, que na aproximação da chamada com a interação literária, durante a parada, os capoeiristas angoleiros em geral se tocam (o que pode ser entendido como um chamamento ao leitor). Ou seja, há um ponto de contato, o que poderia ser metaforicamente entendido como o entre (autor-texto-leitor) em que consiste a leitura. É essa imagem textual que se movimenta em busca da estética do texto de Allan da Rosa (2016)ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós..

Essa construção dos movimentos corporificados no texto se mostra interessante para pensar acerca da percepção que se reflete como efeito da cinesia, de modo que a palavra se movimenta em busca do balancê no texto, fazendo com que o corpo e o texto se fundam como se fosse um só. Todavia, é válido destacar algumas perguntas iniciais: que corpo é esse? Que estética é essa? Este estudo entende que se trata de uma estética literária que só o axé, a ginga e a cadência revelam. Essa sapiência no texto de Allan da Rosa (2016)ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós. remonta a estética e se aproxima do corpo, seja de forma física, seja apenas no fazer de se balançar as palavras, ao tentar interpretar as provocações do texto.

Dando sequência para a próxima categoria de análise, destaca-se que a mandinga se revela como fator fundamental na elaboração do texto aqui analisado. Com isso, elencar as características sobre mandinga: problematização de maneira não direta ajuda na compreensão total dos apontamentos deste estudo. Há nessa mandinga uma tentativa de aproximar as questões sociais e raciais, sem confundir o que é escuta e o que é texto, no sentido de que as problematizações aconteçam em um plano não direto. Dessa maneira, a mandinga conduz o leitor a pensar sobre questões sociais e raciais:

Um êxtase eletrificou o jogador. Histórias de quilombos, de amores... relampeavam nas gargantas. Num relance, o vulto de uma queixada passou soprando sua orelha: pelos assovios da roda lembrou que estava só. Era ele e sua mandinga (Rosa, 2016ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós., p. 83).

No trecho, inicialmente, é possível envolver-se com a dinâmica da roda de capoeira e seus movimentos sendo atravessados entre as palavras. Porém, em dois momentos, interessa pensar na personagem principal, pois ela, a princípio, se lembra de sua origem, das histórias de quilombos e amores. Trata-se de elemento importante para a crítica literária, tendo em vista que anteriormente personagens como tal eram representados na literatura de maneira quase que esvaziada, sem lembranças, ou sentimentos. Pelo contrário, apenas como um capoeirista lutador e, muitas vezes, agressivo. Na passagem, há o reconhecimento do passado desse capoeirista, que lembra das suas histórias e de seus amores, um detalhe no texto que muda a perspectiva da compreensão dessa personagem. Mais ao final do fragmento, tem-se: “Lembrou que estava só. Era ele e sua mandinga” (Rosa, 2016ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós., p. 83). Aqui há uma problematização contemporânea bem profunda, em que é possível pensar na solidão do homem.

No conto não aparece a informação de que a personagem principal é um homem negro, contudo há vertigens que fazem entender que sim, como, por exemplo, quando fala sobre quilombo. Além disso, há o fato de que o autor definiu a raça da personagem secundária: “Nas artérias ocultas sob sua pele suada e rosada” (Rosa, 2016ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós., p. 83-84). A definição pode ser entendida como outra evidência da cor das personagens, pois, ao marcar a raça de uma apenas, se subtende que a outra não faz parte dessa mesma raça.

Lembrar que estava só revela sobre a roda da capoeira, mas também indica sobre estar sozinho no mundo como um todo, porque, ao passo que é anunciada a história da personagem, se descobre que ela acabou de perder a mãe e que, portanto, estava sozinha no mundo. É simbólico pensar que jogar na roda sozinho é só mais um recorte da solidão enfrentada pela personagem. Logo, tem-se no recorte a problematização não direta de todas essas questões, que são inerentes à sociedade. O autor consegue falar sobre tais assuntos, mandigando, balançando o texto de modo a sacudir as questões sem necessariamente discuti-las. Essa problematização já foi apresentada por outros pesquisadores, porém compreendê-la como parte da categoria de análise pode ampliar a concepção dos estudos relacionados à literatura-negro brasileira, no sentido de que esse fazer literário se revela como um mecanismo pensado sobre o texto. Há nessas produções uma elaboração de escolha para que se consiga essa mandinga, essa ilusão.

Por fim, destaca-se a categoria cadência: ritmo verbal, em que é apontada a cadência do texto. Sobre isso, o teórico Alfredo Bosi, em 1992BOSI, Alfredo (1992). A dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras., no livro A dialética da colonização, afirmou: “Rima e ritmo são procedimentos de retorno, de encurvamento, de reversibilidade interna, estrutura” (Bosi, 1992BOSI, Alfredo (1992). A dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras., p. 28). Portanto, há desde sempre preocupação com o ritmo no qual o texto se estrutura. Sendo assim, para a categoria, é interessante pensar na ideia de “dançar a palavra, cantar o gesto, fazer ressoar em todo movimento um desenho de voz, um prisma de dicções, uma caligrafia rítmica, uma cadência” (Martins, 2019MARTINS, Leda Maria (2019). Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 90), que transcende a ideia da palavra escrita, como se a palavra fosse um desenho do som.

No conto, Allan da Rosa (2016)ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós. usa diferentes possibilidades para a construção do ritmo, desde elementos óbvios, como fragmentos de cantigas de capoeira, marcando a construção do texto: “ÊÊÊ O FACÃO BATEU EMBAIXO, A BANANEIRA CAIU” (Rosa, 2016ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós., p. 83). Aqui se pode entender que o autor optou por colocar essas cantigas em caixa-alta como se estivesse deslocando a informação e, com isso, sinalizando o que é texto história do que é texto música. Com as cantigas, é possível perceber a intensidade do jogo, que ora parece mais calmo, ora se mostra mais frenético: “QUANDO VENHO DE ARUANDA, NÃO VENHO SÓ, QUANDO VENHO DE ARUANDÊ, NÃO VENHO SÓ” (Rosa, 2016ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós., p. 83).

Após esses versos, o autor constrói todo o parágrafo com informações acerca das lembranças da personagem, uma interessante construção, pois o fragmento da cantiga escolhida tem essa característica melancólica de lembrança do passado em sua melodia completa, como se fosse uma releitura da ideia da cantiga. Ademais, esse ritmo banzo marca a intensidade do parágrafo, cadencia o pensamento da personagem e faz com que o leitor perceba o que é jogo imediato e o que é lembrança.

Além desse recurso, o autor consegue construir outras possibilidades de ritmo: “Devagar e ligeiro no seu movimento” (Rosa, 2016ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós., p. 83). Com a construção de palavras em oposição, ele dá ritmo ao texto. Mais ao final do conto, o autor escreve: “Seguia na dança moleca, sorriso malaco e olhar de assombrado. Rasteira cabeça” (Rosa, 2016ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós., p. 84). No fragmento o autor brinca com a sonoridade das palavras moleca e malaco e novamente com a construção de oposição entre rasteira, movimento do chão, e cabeça, que é outro movimento feito no alto; essa construção em contraste determina o ritmo da ginga no texto, marcando a cadência no conto. Igualmente, ao aproximar a rasteira da cabeça, podem-se abrir possibilidades para compreender a escrita, a literatura e as palavras como uma rasteira arquitetada esteticamente, proporcionando golpes da e na esfera pensada e intelectualizada, de modo que a imagem da rasteira cabeça pode ser lida como uma metáfora do fazer literário do autor.

A análise do conto “Chão”, de Allan da Rosa (2016)ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós., presente na obra Reza de Mãe, revela uma intricada teia de elementos literários que enriquecem a experiência do leitor e aprofundam a compreensão da obra. A configuração semântica em oralidade, primeira categoria de análise, se destaca como uma ferramenta poderosa na transmissão da mensagem, conferindo ao texto autenticidade e vitalidade que ressoam com as tradições da oralidade. Os movimentos oralizados, corporificados e estéticos, segunda categoria, emergem como expressões vívidas da literatura negro-brasileira. Allan da Rosa (2016)ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós. utiliza não apenas palavras, mas também gestos, ritmos e expressões corporais para enraizar sua narrativa na rica herança cultural afro-brasileira. Essa abordagem multifacetada enriquece a experiência literária, permitindo que o leitor sinta e vivencie a história de maneira única.

A terceira categoria de análise, mandinga, revela uma problematização sutil e não direta. Allan da Rosa (2016)ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós. tece uma trama complexa que desafia as convenções narrativas tradicionais, convidando o leitor a explorar camadas mais profundas de significado. A mandinga presente na obra atua como um convite à reflexão, estimulando a mente do leitor a questionar e reinterpretar as nuanças da narrativa. Por fim, a quarta categoria, cadência, destaca-se como um elemento fundamental no ritmo verbal do texto. A escolha cuidadosa das palavras, a cadência única e o fluxo harmônico contribuem para a musicalidade intrínseca ao texto.

Essa cadência não somente encanta auditivamente, porém igualmente influencia a maneira como a narrativa é absorvida, proporcionando uma experiência sensorial que transcende o simples ato de leitura. Assim, a análise das quatro categorias da literaginga no texto de Allan da Rosa (2016)ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós. revela tanto o fazer literário do autor ao incorporar elementos orais, corporificados, estéticos e rítmicos como a profundidade e complexidade de uma obra que se destaca na literatura brasileira contemporânea.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao gingar na escrita da literatura negro-brasileira, este artigo buscou explorar a interseção entre a capoeira, manifestação cultural marcada por sua rica tradição e simbolismo, e a literatura, especificamente no conto “Chão”, de Allan da Rosa (2016)ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós.. A análise empreendida revela que a literatura negro-brasileira, ao assimilar elementos da capoeira, consegue criar uma linguagem própria, marcada pela oralidade, movimentos corporificados, mandinga e cadência. O conto “Chão”, pertencente à obra Reza de Mãe, apresenta-se como uma manifestação estética única, enraizada na cultura negro-brasileira e na experiência periférica. Allan da Rosa (2016)ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós., como autor, demonstra maestria ao tecer suas palavras como um jogo de capoeira, em que a oralidade e a performance literária se entrelaçam de maneira sinestésica.

A literatura negro-brasileira, aqui analisada sob a lente da literaginga, revela-se como uma arena discursiva em que as palavras dançam, equilibrando resistência e celebração, lamento e esperança. A busca por uma linguagem que ultrapasse os limites convencionais, desafiando o maniqueísmo e provocando reflexões, é uma constante nessa literatura, e o conto de Allan da Rosa (2016)ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós. exemplifica essa abordagem estética e política. A categorização proposta neste estudo — configuração semântica em oralidade, movimentos oralizados, corporificados e estéticos, mandinga e cadência — permitiu uma análise do conto, destacando elementos que aproximam a literatura da capoeira. A oralidade, presente nos coloquialismos e escolhas verbais, evoca a cadência do jogo de capoeira. A mandinga, expressa na abordagem indireta de questões sociais, questiona a visão simplista e estimula a reflexão. A cadência do texto, evidenciada pelo ritmo verbal e cantigas de capoeira, dá vida à narrativa, criando uma experiência única para o leitor.

O autor, ao ser confrontado sobre suas produções, expressa a ideia de que abrir um livro é como abrir uma fresta, uma roda de capoeira angola, um tempo próprio. Essa metáfora sugere que a literatura negro-brasileira não apenas reflete a experiência humana e cultural, mas também transcende o tempo, criando espaços para reflexão, celebração e resistência.

Diante do exposto, a literatura negro-brasileira, ao adotar elementos da capoeira, revela-se como uma forma de resistência estética e cultural. Allan da Rosa (2016)ROSA, Allan Santos da (2016). Reza de mãe. São Paulo: Nós., particularmente, destaca-se por sua habilidade em capturar a essência da capoeira em palavras, contribuindo para a ampliação das possibilidades da literatura contemporânea. Este estudo, ao analisar o conto “Chão” e suas categorias específicas, busca contribuir para o entendimento mais profundo dessa interseção entre literatura e capoeira, promovendo diálogos enriquecedores no campo acadêmico das letras.

Notas

  • 1
    Observa-se semelhança em análise de literaturas canônicas e/ou contemporâneas em que se usa a ginga, aproximando assim este estudo das análises de Eduardo de Assis Duarte (2020)DUARTE, Eduardo de Assis (2020). Seleção, notas, ensaios. Machado de Assis afrodescendente. 3. ed. Rio de Janeiro: Malê., em seu artigo “Capoeira literária de Machado de Assis”, em que apresenta a caracterização do estilo machadiano como “capoeira verbal”. Com isso, usa-se o conceito literaginga como uma nomenclatura de categoria de análise que contempla determinadas movimentações na literatura.
  • 2
    Chamo atenção para a proposta do artigo, a de sintetizar a sistematização feita, para elencar as categorias. É possível encontrar de maneira mais aprofundada o material na dissertação intitulada Do berimbau à caneta: a mandinga literária em Machado de Assis, Conceição Evaristo, Allan da Rosa e Cidinha da Silva.

REFERÊNCIAS

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Editores:

Paulo César Thomaz e Rejane Pivetta

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    4 Dez 2023
  • Aceito
    13 Maio 2024
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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