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Nicho ecológico e nicho simbólico nos poemas-bicho de Olga Savary

Ecological niche and symbolic niche in Olga Savary’s animal poems

Nicho ecológico y nicho simbólico en los poemas animales de Olga Savary

Resumo

Este artigo procura desvelar os mecanismos pelos quais a escrita poética de Olga Savary elabora formas de expressão de subjetividades animais no livro Anima Animalis: voz de bichos brasileiros (2008), considerando a interseção entre um saber empírico acerca dos modos de existência dos animais e um repertório simbólico que os circunda. Evidenciando o teor interdisciplinar dos estudos literários, elabora-se a analogia entre o conceito proveniente dos estudos do meio ambiente de nicho ecológico e a proposta de um nicho simbólico. Para isso, são traçados diálogos teórico-metodológicos com tendências críticas que reafirmam o caráter transitivo do poético, como a ecocrítica e os estudos animais. Sob essa lente, percebe-se, no livro de Savary (2008)SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., a pulsante presença de traços de uma animalidade esteticamente trabalhada mediante a emergência de uma (bio)diversidade animal que territorializa o espaço da composição poética e se faz ouvir no papel de sujeitos da enunciação.

Palavras-chave:
poéticas da Terra; animalidade; zoopoética; Olga Savary

Abstract

This paper seeks to unveil the mechanisms through which the poetic writing of Olga Savary elaborates forms of expression of animal subjectivities in the book Anima Animalis: voz de bichos brasileiros (2008), considering the intersection between empirical knowledge of the ways of existence of animals and the symbolic repertoire that surrounds them. Highlighting the interdisciplinary content of literary studies, an analogy is elaboreted between the concept derived from environmental studies of “ecological niche” and the proposal of a “symbolic niche.” Theoretical-methodological dialogues are outlined with critical tendencies that reaffirm the transitive feature of the poetic, such as Ecocriticism and Animal Studies. Through this lens, one can perceive, in Savary’s book (2008)SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., the pulsating presence of traces of an aesthetically crafted animality from the emergence of an animal (bio)diversity that territorializes the space of poetic composition and is voiced as subjects of enunciation.

Keywords:
poetics of the Earth; animality; zoopoetic; Olga Savary

Resumen

Este artículo busca desvelar los mecanismos a través de los cuales la escritura poética de Olga Savary elabora formas de expresión de subjetividades animales en el libro Anima Animalis: voz de bichos brasileiros (2008), considerando la intersección entre un conocimiento empírico sobre los modos de existencia de los animales y un repertorio simbólico que los rodea. Resaltando el contenido interdisciplinario de los estudios literarios, se establece una analogía entre el concepto derivado de los estudios ambientales de “nicho ecológico” y la propuesta de uno “nicho simbólico.” Para eso, se perfilan diálogos teórico-metodológicos con tendencias críticas que reafirman el carácter transitivo de lo poético, como la Ecocrítica y los Estudios Animales. Bajo esta lente, se puede percibir, en el libro de Savary (2008)SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., la presencia pulsante de huellas de una animalidad estéticamente elaborada a partir del surgimiento de una (bio)diversidad animal que territorializa el espacio de la composición poética y se hace escuchar en el papel de sujetos de la enunciación.

Palabras clave:
Poéticas de la Tierra; animalidad; zoopoética; Olga Savary

VOZES À ESPREITA

Em 2023, o histórico de anos de descaso, violência e extermínio contra os povos originários do território brasileiro ganhou mais uma marca indelével. O resultado de políticas genocidas passou a ocupar as páginas dos principais veículos de comunicação nacionais e internacionais devido à situação-limite vivenciada por indígenas Yanomami na Região Norte do país. A fome, as doenças e os casos de morte contabilizados têm origem na exploração dos ecossistemas por meio de práticas de extração de recursos naturais empreendidas por garimpos ilegais que avançam florestas e rios adentro.

Isso se deve a uma visão dicotômica historicamente construída no Ocidente, que erigiu uma cisão fundante entre os domínios da cultura, eminentemente humana, e da natureza, que engloba o restante de seres bióticos e abióticos que existem na Terra com nossa espécie. Nesse sentido, e sob a lente capitalista-desenvolvimentista, o planeta transformou-se em um repositório de matéria-prima do qual é preciso se apossar para dar continuidade ao movimento incessante da “máquina do mundo”. Contrariamente a essa leitura reducionista, muitos povos indígenas elaboram cosmovisões nas quais as relações com os demais seres são mediadas com base em outros valores, que instauram porosidades entre os campos cultural e natural, incluindo a dimensão mítico-espiritual nesse trânsito de subjetividades.

Para os Yanomami, por exemplo, o mundo é entendido como um grande ecossistema, uma imensa “terra-floresta” (urihi a, na língua original). Nas palavras do xamã Davi Kopenawa (2023KOPENAWA, Davi (2023). Urihi a. In: ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. O espírito da floresta. São Paulo: Companhia das Letras. p. 29-32., p. 30), esse grande emaranhado de viventes é percolado por uma substância que os mantém respirando, em movimentos e transformações constantes, a qual se chama wixia. Diferentemente da vida individual e intransferível de cada ser, que é curta, a vida da floresta é incessante e perene, pois, de maneira regular, seus habitantes do plano espiritual a renovam. Para o líder indígena, mesmo se “você não vê o sopro dela, [...] a floresta respira. Ela não está morta. Olhe para ela, suas árvores estão bem vivas, com folhas brilhantes. Se não tivesse sopro de vida, elas estariam secas” (Kopenawa, 2023KOPENAWA, Davi (2023). Urihi a. In: ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. O espírito da floresta. São Paulo: Companhia das Letras. p. 29-32., p. 30).

Como seres capazes de atravessar as fronteiras entre o empírico e o espiritual, entre o humano e o não humano, os xamãs têm a incumbência de convocar os ancestrais, os xapiri, fazendo-os dançar (Kopenawa; Albert, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce (2015). A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras.), para, assim, renovar o mundo visível. Muitos desses espíritos de um período atávico adquiriram a aparência dos animais e, em suas coreografias, aparentam duas imagens: uma que só pode ser vista pelos olhos iniciados dos xamãs; e outra materializada em formas diversas, sendo esta as dos bichos encontrados no meio da floresta.

Para os habitantes da cidade, o encontro com o espaço arbóreo pode tornar-se semelhante à entrada em um labirinto, cuja trama de caminhos é formada pelo entrelaçamento de raízes, troncos, galhos e folhas que, muitas vezes, inibem até mesmo a chegada da luz ao solo. Contrapondo-se a essa miríade vegetal, o antropólogo Bruce Albert (2023ALBERT, Bruce (2023). A floresta poliglota. In: ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. O espírito da floresta. São Paulo: Companhia das Letras. p. 119-136., p. 120) destaca o conjunto de sinais que podem ser captados na floresta quando, no lugar dos olhos, os ouvidos são mobilizados na apreensão do ambiente. Do período em que o pesquisador compartilhou a morada com os Yanomami, ele chama atenção para a sensibilização acústica na formação dos indígenas que atentam, na hora da caça, para as pistas que as vozes da floresta lhes apontam, os heã.

Desse modo, ainda que as diferenças específicas estabeleçam fronteiras no campo da linguagem, as relações de alteridade entre humanos e bichos se dão em termos dialógicos, nos quais as ações de uns estão intrinsecamente conectadas à emissão de sinais pelos outros. Por vezes, na busca de alimento, os caçadores indígenas colocam em prática o conhecimento das línguas dos bichos (Albert, 2023ALBERT, Bruce (2023). A floresta poliglota. In: ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. O espírito da floresta. São Paulo: Companhia das Letras. p. 119-136., p. 124-125). Nesses momentos, não se valoriza apenas a capacidade de reconhecer os sons dos animais, mas também o exercício de emular essas emissões acústicas no intuito de atrair eventuais caças.

Recorremos à técnica de chamariz animal dos Yanomami com o objetivo de aproximá-la de elaborações discursivas que procuram inserir outras coordenadas nas trocas efetuadas entre humanos e não humanos, especificamente no campo da criação estética, indo de encontro ao “colapso afetivo” (Krenak, 2023KRENAK, Ailton (2023). Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras., p. 22) que nosso modelo de humanidade vem elaborando. De modo nenhum procuramos nos apropriar dessas práticas indígenas, deslocando-as de seus contextos socioculturais. Pelo contrário, ao retomá-las, enxergamos os modos como as contribuições advindas desses saberes tradicionais podem auxiliar na lida com o texto poético e, por meio delas, ampliar nossas possibilidades de leitura.

Conforme Guida (2011GUIDA, Ângela Maria (2011). Literatura e estudos animais. Raído, Dourados, v. 5, n. 10, p. 287-296. Disponível em: https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/Raido/article/view/1342/988. Acesso em: 29 jun. 2023.
https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/Raido/...
, p. 293),

no que diz respeito à literatura enquanto produção artística, a presença do animal remonta a épocas distantes, mas enquanto estudos de literatura, ou seja, como questão teórica, as reflexões em torno do temário da animalidade ainda se revela[va]m [então] incipientes.

Se a condição de objeto de investigação não é estranha ao pensarmos nos animais, comumente vinculados às ciências da natureza, no campo dos estudos literários, eles têm mobilizado pesquisadores dedicados a diferentes linhas de investigação em um intervalo de tempo mais próximo do nosso.

Neste artigo, especificamente, elegemos como corpus o livro Anima Animalis: voz de bichos brasileiros (2008), da escritora paraense Olga Savary, composto de dez poemas (nove haicais e um texto longo). A hipótese de investigação a ser averiguada é a de que, ao focalizarmos a presença dos animais nessa obra literária, percebemos a confluência entre a mobilização de um conhecimento empírico sobre os seres representados e os aspectos culturais que os revestem, convergindo para os modos estético-composicionais de elaboração de subjetividades não humanas nos textos.

Tendo em vista esse horizonte de investigação, além desta seção introdutória, o artigo está organizado em mais quatro partes. Na seção seguinte, “Poéticas de aterrissagem”, empreendemos uma discussão teórica sobre as principais correntes críticas que estudam as alteridades não humanas na literatura, sendo elas a ecocrítica e os estudos animais. Em “Liames e limites conceituais”, elaboramos uma aproximação entre os estudos ecológicos e os literários mediante a interseção entre o conceito de nicho ecológico e a proposta análoga de um nicho simbólico vinculado aos bichos. Em seguida, analisamos a poética de “Olga Savary e suas máscaras de bicho” com base no referencial teórico utilizado, sem esquecer as vozes animais reconhecidas pelos saberes do povo Yanomami. Por fim, apresentamos algumas considerações a modo de conclusão deste trabalho, enfatizando a postura do leitor que se propõe a enveredar pelos meandros interespecíficos da poesia.

POÉTICAS DE ATERRISSAGEM

Sabe-se que o tempo geológico é medido em uma escala que pode mostrar-se completamente alheia aos limites de nosso entendimento humano. Afinal, a vida dos indivíduos de nossa espécie ultrapassa, ainda em frequência pouco comum, a margem de um século, enquanto os eventos que moldam a superfície e os diferentes domínios da Terra contam com unidades de tempo da ordem das épocas, dos períodos, das eras e dos éons. Apesar de não conseguirmos assistir, no tempo de nossa existência, às modificações pelas quais passam os elementos geológicos, a atuação humana sobre o mundo tem incrustado marcas indeléveis a ponto de caracterizar um novo período da história do planeta: o Antropoceno.

Originalmente, o termo Antropoceno foi utilizado pelo pesquisador das ciências climáticas Paul Crutzen, abarcando um período que teria como ponto inicial a Revolução Industrial, servindo, de modo complementar, como ponto final do Holoceno, cuja vigência remonta à última era glacial. Atualmente, ainda que algumas áreas relutem em considerar a validade científica desse termo, a exemplo dos geólogos que se voltam para a estrutura estratigráfica da litosfera, ele tem sido amplamente utilizado nas discussões da contemporaneidade acerca das questões ambientais e das mudanças climáticas, como afirma o antropólogo francês Bruno Latour (2020a)LATOUR, Bruno (2020a). Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Tradução de Maryalua Meyer. São Paulo: Ubu.. Desse modo, o Antropoceno reencena a presença humana na ordem do dia como agente de transformação das esferas planetárias, reconhecendo que as fronteiras entre natureza e cultura são tênues, estruturadas em uma rede de relações complexas.

Como resposta a esse contexto, e em decorrência do espraiamento de discursos negacionistas, Bruno Latour (2020b)LATOUR, Bruno (2020b). Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Tradução de Marcela Vieira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. propõe-nos uma pergunta no título de um de seus livros-ensaio: como aterrar? Para o autor, a modernidade caracteriza-se pelo deslocamento de modos de pensar locais em direção ao global. Na contemporaneidade, por sua vez, dois novos polos passaram a fazer parte do esquema proposto: o fora-deste-mundo e o Terrestre. Como forças atrativas descritas pela física, esses novos corpos podem redirecionar os discursos ora para um lado, ora para o outro, provocando a curvatura do eixo moderno local-global.

Nesse cenário em que os detentores dos meios de produção estão mais preocupados em encontrar rotas de fuga que os distanciem cada vez mais do restante de viventes encurralados do outro lado do mundo — ou melhor, ao lado deste único e insubstituível mundo —, qual é o espaço que ainda resta à criação poética? Para os adeptos de uma visão purista da literatura, o aspecto transitivo dos textos é posto de lado com base em uma oposição insustentável entre o Estético, propositadamente escrito com inicial maiúscula, e o ideológico ou ético.

Essa é a leitura, por exemplo, expressa por Leyla Perrone-Moisés (1998)PERRONE-MOISÉS, Leyla (1998). Altas literaturas: escolha e valor da obra crítica de escritores modernos. São Paulo: Companhia das Letras. no muito citado, por anuência ou contraponto, Altas literaturas. Ao elaborar seus argumentos, que colocam em dúvida as fronteiras entre o campo literário moderno e o pretenso pós-moderno, a crítica paulistana elenca um feixe de traços que, em sua perspectiva, apontam para variações que se mostram mais de superfície que de fundo. Como parte de sua elaboração, a autora constrói um ideário de “alta cultura”, repercutindo o título da obra. Para ela, essa categoria é entendida como “a criação desinteressada, ou interessada em ampliar o conhecimento e a experiência humanos, em aguçar os meios de expressão, em despertar o senso crítico, em imaginar outra realidade, tudo isso está ameaçado de extinção” (Perrone-Moisés, 1998PERRONE-MOISÉS, Leyla (1998). Altas literaturas: escolha e valor da obra crítica de escritores modernos. São Paulo: Companhia das Letras., p. 206). Desse excerto, entendemos que existem diversas implicações de cunho social, histórico e econômico que ressoam um pensamento dicotômico que se expressa no uso de uma oposição como alto e baixo, aplicada à cultura e, por extensão, à literatura.

Contrapondo-se à clausura do texto, entre as possíveis relações entre literatura e mundo que se apresentam no horizonte de criação, o pensador Ailton Krenak (2020b)KRENAK, Ailton (2020b). Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras. confere à palavra poética a capacidade de nos oferecer “paraquedas coloridos”, tecidos por meio da fabulação, mesmo em uma atmosfera que embaça nossa vista de um mundo em devir. Para o líder indígena,

[a prática de] suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades — as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado
(Krenak, 2020bKRENAK, Ailton (2020b). Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras., p. 32)

No cenário contemporâneo, algumas linhas teóricas vêm elaborando um aparato de operadores de leitura que procuram reconhecer os interstícios entre o texto e o mundo, as culturas e as naturezas, os humanos e seus outros. Consequência do empuxo provocado pela intrusão dos estudos culturais no cabedal das teorias críticas da literatura, e sob o influxo intensificado das ciências ambientais, espécie de resposta ao estado-limite que se vislumbra no mundo, a área da ecocrítica desponta como face dos estudos literários que se volta para as múltiplas e complexas relações entre os humanos, os não humanos e as tentativas de se construir e pensar espaços comuns.

Traçando um breve percurso histórico das leituras ecológicas da literatura, Mendes (2020)MENDES, Maria do Carmo (2020). No princípio era a natureza: percursos da ecocrítica. Anthropocenica, Braga, v. 1, p. 91-104, 2020. https://doi.org/10.21814/anthropocenica.3100
https://doi.org/10.21814/anthropocenica....
aponta o fim do século XX como momento de fortalecimento e institucionalização da ecocrítica, principalmente no cenário acadêmico norte-americano:

A crise ambiental é mundialmente reconhecida como um dos mais prementes problemas contemporâneos; todavia, o exame do contributo dos Estudos Literários, através de uma área própria, para a reflexão sobre ela e, em última instância, sobre o papel que a Literatura pode cumprir, esteve ausente do meio acadêmico até ao início de 1990
(Mendes, 2020MENDES, Maria do Carmo (2020). No princípio era a natureza: percursos da ecocrítica. Anthropocenica, Braga, v. 1, p. 91-104, 2020. https://doi.org/10.21814/anthropocenica.3100
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, p. 93)

Desse ponto de formação até os debates atuais, a ecocrítica passou por algumas fases em consonância com o avançar das discussões empreendidas por diferentes disciplinas que têm como ponto de convergência as preocupações com o meio ambiente, seja pela ampliação do leque de corpora de análise, seja pela inclusão de outras perspectivas, a exemplo da interseção com os estudos pós-coloniais e à frente do trabalho ecofeminista (Garrard, 2004GARRARD, George (2004). Ecocriticism. Nova York: Routledge.; Mendes, 2020MENDES, Maria do Carmo (2020). No princípio era a natureza: percursos da ecocrítica. Anthropocenica, Braga, v. 1, p. 91-104, 2020. https://doi.org/10.21814/anthropocenica.3100
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). De encontro à visão higienizante da literatura, essa teoria crítica conjuga uma abordagem ética com as formulações de cunho estético, entendidas como componentes indissociáveis (Garrard, 2004GARRARD, George (2004). Ecocriticism. Nova York: Routledge., p. 4). A bem dizer, ao externar a dimensão política de seu empreendimento teórico, a ecocrítica não dissimula os valores que a norteiam e evidencia um traço constitutivo de toda e qualquer teoria crítica da literatura, ainda que algumas tentem velar o teor ideologicamente preenchido de suas proposições, como bem pontua Terry Eagleton (2006)EAGLETON, Terry (2006). Teoria da literatura: uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes.. Segundo o crítico inglês,

qualquer teoria relacionada com a significação, valor, linguagem, sentimento e experiência humanos, inevitavelmente envolverá crenças mais amplas e profundas sobre a natureza do ser e da sociedade humanos, problemas de poder e sexualidade, interpretações da história passada, versões do presente e esperanças para o futuro
(Eagleton, 2006EAGLETON, Terry (2006). Teoria da literatura: uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes., p. 294).

Vários caminhos de investigação de textos literários se mostram abertos com base no viés ecológico, entre os quais está aquele cujo foco de leitura se detém nos diversos viventes animais. Assim como os humanos, esses seres são catalogados, do ponto de vista taxonômico, como membros de um mesmo reino, o enigmático Metazoa, a despeito dos inúmeros traços eleitos como delimitador de fronteira entre nós e os outros, a exemplo da linguagem, da alma, da razão e da subjetividade — aquilo que Jacques Derrida (2002)DERRIDA, Jacques (2002). O animal que logo sou (A seguir). Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Editora Unesp. chamou de os “próprios do homem” em O animal que logo sou (a seguir), referência incontornável para elaborar as discussões contemporâneas sobre o convívio entre os viventes.

Ao abarcar diferentes dimensões do mundo vivo no escopo de suas leituras, a ecocrítica aproxima-se de uma área congênere e da qual, no entanto, ela mantém certo distanciamento. Trata-se do campo dos estudos animais. Diferentemente da primeira vertente, os estudos animais não têm como foco primeiro a abordagem do texto literário, uma vez que sua gênese se localiza nos movimentos em torno dos direitos dos animais e da liberdade animal.

Todavia, o espraiamento da questão animal como problemática para áreas tão diversas entre si, como as ciências da natureza e as diversas humanidades, encontrou nos estudos literários um filão de análise em potencial que responde ao anseio interdisciplinar requerido quando vemos os animais e somos vistos por eles. Como afirma Maria Esther Maciel (2011)MACIEL, Maria Esther (2011). Prólogo. In: MACIEL, Maria Esther (org.). Pensar / escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica. Florianópolis: Editora da UFSC. p. 7-9., uma das principais referências da pesquisa brasileira dedicada a pensar as formas de escritura da animalidade, esse campo de estudos

evidencia a emergência do tema como um fenômeno transversal, que corta obliquamente diferentes campos de conhecimento e propicia novas maneiras de reconfigurar, fora dos domínios do antropocentrismo e do especismo, o próprio conceito de humano
(Maciel, 2011MACIEL, Maria Esther (2011). Prólogo. In: MACIEL, Maria Esther (org.). Pensar / escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica. Florianópolis: Editora da UFSC. p. 7-9., p. 7).

Apesar das diferentes características que permitem distinguir a ótica da ecocrítica e a dos estudos animais, em nossa perspectiva, essas duas abordagens podem estabelecer zonas de convergência e, assim, fornecer operadores de leitura com o objetivo de aprimorar os movimentos de fricção com o texto poético, ferramentas que funcionam, em nosso cenário de “erosão da vida” (Krenak, 2020aKRENAK, Ailton (2020a). A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras., p. 95), como tentativas de elaborar os já citados “paraquedas coloridos”.

Como primeira etapa de análise, no entanto, evidencia-se que nada substitui a leitura atenta do texto. Apenas após esse primeiro contato, o pesquisador deve perceber qual é a melhor abordagem crítica que pode auxiliá-lo a fundamentar a interpretação, mobilizando, para isso, conceitos dessas duas vertentes, ou ainda categorias desenvolvidas por outros campos do saber. Tendo essa última lente como vetor, na seção seguinte, sob um enfoque interdisciplinar, propomos um exercício de conjugação entre literatura e ciências da natureza ao redor do conceito de nicho ecológico, modalizando-o na compreensão da forja de animais literários.

LIAMES E LIMITES CONCEITUAIS

Ao pensar o percurso de desenvolvimento de uma ginocrítica, Elaine Showalter (1994)SHOWALTER, Elaine (1994). A crítica feminista no território selvagem. Tradução de Deise Amaral. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco. p. 23-57. apresenta uma proposição que transborda as fronteiras das discussões específicas da produção literária escrita por mulheres e concebe que a crítica ocupa, por excelência, um espaço a ser desbravado, aquilo que a teórica norte-americana chama de um “território selvagem” (Showalter, 1994SHOWALTER, Elaine (1994). A crítica feminista no território selvagem. Tradução de Deise Amaral. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco. p. 23-57., p. 48). Tomamos essa leitura imagética do exercício da crítica como força de empuxo para o estudo das alteridades não humanas literariamente, visto que a procura pelo animal na tessitura poética se configura como incursão por entre o cipoal dessa região “selvagem”, em ampla acepção.

Entendemos que esse trajeto corresponde a uma procura por outro fugidio, proteiforme, que escapa ao encapsulamento da linguagem — “o animal, que palavra!”, como exclamou Derrida (2002)DERRIDA, Jacques (2002). O animal que logo sou (A seguir). Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Editora Unesp.. É pela fresta representada pelo signo linguístico que o filósofo franco-argelino constrói sua reflexão. Para isso, ele elabora, em oposição à visão homogeneizante e redutora que pode ser veiculada ao uso corriqueiro do singular genérico “animal”, a mot-valiseanimot”. Se da mancha gráfica no papel se depreende a unidade semântica da palavra — sem o marcador flexional —, na cadeia sonora, expressa-se um bando de animais pela homofonia entre a palavra criada e a forma plural “animaux”: “No lugar do ‘Animal’ ou da ‘Vida-Animal’, há, de antemão, uma multiplicidade heterogênea de viventes, mais precisamente (pois dizer ‘viventes’ é já dizer muito ou quase nada) uma multiplicidade de organizações das relações entre o vivente e a morte” (Derrida, 2002DERRIDA, Jacques (2002). O animal que logo sou (A seguir). Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Editora Unesp., p. 60).

Seguindo a perspectiva derridiana, é incontornável reconhecer a miríade de formas de vida existentes sob a rubrica “animal”. Se o discurso científico positivista e cartesiano lança seu olhar analítico sobre esses seres na tentativa de compreendê-los de maneira objetiva, como corpos a serem dissecados pelo instrumental disciplinar, por via da elaboração fabular, ficcionistas e poetas alcançam formas alheias de habitar o mundo, enquanto os leitores podem acessar esses pontos de vista no momento de fricção com o texto, alçado à experiência de encontro interespecífico.

Sob essa lente prismática, e por isso múltipla, pela qual apresentamos uma interpretação do animal escrito, é preciso reconhecer as peculiaridades do sujeito não humano que se faz ouvir entre as linhas do texto. Por isso, torna-se necessário distanciar-se da visão essencialista do animal como constituinte simplesmente alegórico do texto poético, marcado pela indiferença com relação à opção entre uma espécie e outra, e, portanto, compreender as implicações que envolvem a eleição de uma espécie singular para ser figurativizada nos textos. Nesse sentido, verificar traços que definem a espécie representada é ponto fulcral em uma leitura que preza pelos meandros entre texto literário e mundo.

Como caminho teórico-analítico, recorremos a um conceito proveniente de um campo dos saberes institucionalmente distante dos estudos literários: as ciências ecológicas. No cabedal terminológico de disciplinas como a biologia, a ecologia e a zoologia, diversos conceitos são desenvolvidos ao procurar investigar a Terra e as manifestações da vida. Entre eles, está a ideia de nicho ecológico. Em linhas gerais, ele corresponde ao conjunto de traços comportamentais que as espécies, com suas particularidades, expressam e desempenham quando situadas em certo ecossistema.

Conforme Eugene Odum (2001ODUM, Eugene Pleasants (2001). Fundamentos de ecologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 375), quando comparada a outro conceito científico afim — a saber, o conceito de hábitat —, mais amplamente difundido e utilizado em outros espaços discursivos, a ideia de nicho ecológico é considerada menos difundida, ainda que o escopo abrangido por esse conceito seja mais amplo. Seria exaustivo enumerar os traços contemplados por tal noção, visto que o número de elementos utilizados na descrição e na delimitação de uma espécie pode ser ampliado exponencialmente. De acordo com Odum (2001)ODUM, Eugene Pleasants (2001). Fundamentos de ecologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian., o termo nicho ecológico foi utilizado pela primeira vez na década de 1920, sendo, na sequência, reinterpretado, de modo a abarcar progressivamente outros aspectos que apontam, com detalhe, para a espécie focalizada.

Assim como os bichos podem ser descritos com base nos diferentes aspectos que caracterizam seu modo de estar na Terra, por analogia, torna-se viável reconhecer uma série de pontos que, considerados isoladamente ou em conjunto, indicam as coordenadas que identificam a posição em que o animal se encontra no imaginário coletivo de determinada comunidade cultural. As formas como esses seres são internalizados em nossa imaginação, no entanto, podem variar. Símbolos, mitos de origem, lendas, canções, provérbios e crenças difundidos no cotidiano são alguns dos caminhos pelos quais os bichos se fazem escutar nos mecanismos humanos de construir sentidos para o mundo que os cerca.

Com especial atenção para as tentativas de elaborar e atribuir vozes e pontos de vista diversos, Randy Malamud (2003)MALAMUD, Randy (2003). Poetic animals and animal souls. Nova York: Palgrave MacMillan. destaca a capacidade da literatura de nos proporcionar outro entendimento sobre os animais e, consequentemente, outras formas de conhecimento provenientes desses sujeitos que fogem aos limites de nossa compreensão humana. Como força motriz disparadora dessa sondagem, o crítico literário admite o desejo de conhecer essas formas de alteridade radical, primeira etapa desse processo de aproximação.

Desse modo, a escrita dos animais e a leitura das pegadas deixadas por eles nos textos se desenvolvem como exercícios de apreensão e de aprendizagem com esses “outro[s] mais outro[s] que [quaisquer] outro[s]” (Maciel, 2020MACIEL, Maria Esther (2020). Zoopoéticas contemporâneas. Lisboa: OCA., p. 55), pelos quais acessamos ângulos transversos a nosso entendimento da vida e do mundo. Isso se enquadra naquela que é considerada por Dominique Lestel (2001)LESTEL, Dominique (2001). L’origine animal de la culture. Paris: Champs Essais. como a quarta fissura de nosso narcisismo antropocêntrico. Segundo o etólogo francês, “a etologia mostra que nós vivemos em um mundo no qual coexiste uma pluralidade de sujeitos, mesmo se esses sujeitos animais não são sobrepostos aos sujeitos humanos1 1 “l’éthologie montre que nous vivons dans un monde dans lequel coexiste une pluralité de sujets, même si les sujets animaux ne sont pas superposables aux sujets humains”. ” (Lestel, 2001LESTEL, Dominique (2001). L’origine animal de la culture. Paris: Champs Essais., p. 330-331, tradução livre).

Assim, após a quebra da visão geocêntrica com as observações de Nicolau Copérnico, a proposta evolucionista de Charles Darwin e o reconhecimento do inconsciente pela psicanálise freudiana, os avanços nos estudos de comportamento animal têm demonstrado que nossa espécie não é a única a se agenciar como sujeito, convergindo para uma compreensão partilhada por diversos saberes e cosmovisões indígenas.

Tendo em vista os mecanismos à disposição dos escritores que são mobilizados para efetivar a decantação dessa pluralidade de sujeitos terrestres em nossas produções artísticas, na seção seguinte investigamos a (bio)diversidade poética representada nas vozes dos enunciadores animais elaborados pela poeta paraense Olga Savary, uma vez que concebemos que “cabe à literatura explorar a intensa complexidade de cada um [desses seres]” (Maciel, 2020MACIEL, Maria Esther (2020). Zoopoéticas contemporâneas. Lisboa: OCA., p. 25). Com isso, examinamos, por meio da análise de um caso concreto, alguns caminhos trilhados pela criação literária para fazer ouvir os sons animalescos nos interstícios da linguagem humana.

OLGA SAVARY E SUAS MÁSCARAS DE BICHOS

O nome de Olga Savary ocupa lugar de destaque nos círculos literários brasileiros, tanto por seu ofício de poeta como também por seu trabalho como tradutora, sendo reconhecido pelo papel de importância para que obras como as dos autores Pablo Neruda e Octavio Paz chegassem ao público de língua portuguesa. Em 2020, aos 86 anos, a autora foi uma das vítimas da pandemia de COVID-19. No campo da criação literária, a tônica erótica é um traço recorrente ao enumerar as características do timbre poético de Savary.

Nesse sentido, pode-se evidenciar a aproximação entre a poesia da autora e o pensamento ensaístico daquele que ela traduziu, Octavio Paz, que, em considerações sobre o erotismo, entende essa dimensão fundacional da humanidade como nosso desejo pelo outro, afastando-se do teor biologizante da reprodução, reforçando a relação íntima entre poesia e erotismo e considerando que o poético é um desdobrar da linguagem de sua função utilitária (Paz, 2012PAZ, Octavio (2012). O arco e a lira. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify.). Assim, nos dois campos, a ordem de prioridades é subvertida, e a linguagem passa a ter como função primária a capacidade de nos transportar para a margem oposta de uma alteridade que, paradoxalmente, nos constitui, ainda que à surdina, silenciada sob os diversos véus que insistem em nos apartar do mundo. Nesse sentido, a poesia torna-se aquilo que “nos joga para fora e, ao mesmo tempo, nos empurra para dentro de nós” (Paz, 2012PAZ, Octavio (2012). O arco e a lira. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify., p. 129); ou, ainda, para dizer como a poeta, a escrita é um percurso pelo qual se buscam “palavras que interroguem essa alquimia / do poema, que vire a noite em fogo vário / e a lua em pegada escondida atrás do muro” (Savary, 2021SAVARY, Olga (2021). Coração subterrâneo: poemas escolhidos. São Paulo: Todavia., p. 12).

Nas ligações alquímicas do verso, mesmo aqueles com os quais não compartilhamos nem mesmo um modelo de linguagem, é permitida a capacidade de falar e, assim, preencher a lacuna dêitica do eu discursivo. Vejamos, portanto, o que falam e como ousam dizer os exemplares da fauna endógena de Savary que percorre as páginas do livro de poemas Anima Animalis: voz de bichos brasileiros, lançado em 2008, no qual são dispostos nove haicais e um poema mais longo, dedicados, cada um deles, a um animal do Brasil. Em análise do livro, Maciel (2023MACIEL, Maria Esther (2023). Animalidades: zoopoética e os limites do humano. São Paulo: Instante., p. 134) destaca: “O ponto de vista animal atravessa todo o conjunto [...], ora com fins metafóricos, ora para afirmar os saberes e atributos dos viventes não humanos”, mesmo se “muitos dos seres não humanos (animais e vegetais) que atravessam [...] a poesia de Savary encontram-se em extremo perigo” (Maciel, 2023MACIEL, Maria Esther (2023). Animalidades: zoopoética e os limites do humano. São Paulo: Instante., p. 135), sendo até parte da lastimável lista de espécies ameaçadas de extinção no Brasil.

Seguindo a ordem do desfile, o primeiro animal a se apresentar é o beija-flor. Ave de pequena dimensão que contribui para a polinização das plantas em razão da dieta baseada em néctar, esse animal tem como uma de suas principais características a capacidade singular de manter-se estável no ar ao mesmo tempo que voa, podendo ser avistado em suspensão ao redor das flores enquanto suga as substâncias com sua língua finíssima. Por uma convergência icônica, o tamanho diminuto da ave pode ser observado na curta extensão do haicai de Savary (2008SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., p. 19):

De repente homens usam
minhas asas de metáfora:
polinizo liberdade.

Ainda na entrada do pequeno poema, a velocidade do bater de asas da ave é evocada, “De repente”, aludindo ao rápido e efêmero ritmo que pode ser visualizado nos movimentos do animal. Além disso, o haicai orienta-se por um vetor metalinguístico que se faz ver na estruturação do texto, pois o próprio eu lírico zoológico anuncia a consciência de ser considerado um símbolo, “metáfora”, no imaginário humano. Nesse sentido, percebe-se que os planos referencial e simbólico se entrelaçam no poema ao considerar que as práticas de sobrevivência do beija-flor passam a ser semantizadas com base em um desejo de liberdade. Em vez de simplesmente contribuir para a reprodução dos vegetais, fazendo as trocas entre as flores ao buscar alimento, a ave realiza o trânsito de vontade de sentir-se livre, contaminando todos os que são tocados pelo lampejo de suas asas com o desejo de alçar voos.

Na sequência, o bode, animal comum nas criações pecuárias do Brasil, especialmente na Região Nordeste, é vislumbrado no livro. Para o sertanejo, por exemplo, esse bicho assume diversas funções no dia a dia, utilizando a carne e o leite para a alimentação, o couro para a vestimenta e o artesanato, além da imagem difundida entre as crenças populares, imagem de bicho místico do céu ou do inferno. No haicai, contudo, evoca-se o bode como constituinte de um ser fantástico, o fauno, híbrido pagão guiado pela volúpia:

Meu outro nome? Fauno.
Não ofendo, homenageio
donzelas na mata.
(Savary, 2008SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., p. 27).

Lemos no poema o processo de metamorfose do animal, que passa a ocupar uma identidade em trânsito. Esse aspecto é realçado pela presença do ponto de interrogação ainda no primeiro verso, que funciona de modo a situar o animal entre o referente empírico e a tradição mítica. No verbete referente a bode no dicionário de símbolos de Chevalier e Gheerbrant (2001CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain (2001). Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio., p. 134), podem-se encontrar diversas acepções que recobrem a figura do caprino. Entre elas, e dialogando com o poema, a vitalidade, a fertilidade e a pungência sexual são aspectos atrelados a esse bicho. Na mitologia greco-latina, os faunos são criaturas cuja composição é dada pela soma entre humano (corpo e cabeça) e caprino (chifres e cascos fendidos). Eles são encontrados nos campos abertos, em companhia de ninfas e dríades, as quais são, por vezes, vítimas da insaciabilidade sexual desses seres.

O teor metapoético faz-se presente no poema “Cavalo”, único dos textos com dedicatória, sendo esta direcionada ao poeta gaúcho Mário Quintana. Em seus três versos, o sujeito poético equino alude à sua majestosidade, “dos animais o mais belo”. Por causa do tamanho e da força do cavalo, sendo usado pelos seres humanos como montaria e força motriz, a imagem do animal é tão intensa a ponto de eclipsar qualquer figura que a orbite, seja bicho, seja homem, mesmo quando este é poeta.

No conjunto da obra, apenas um texto não se enquadra na forma poética codificada do haicai. Trata-se do poema “Jacaré”, composto de 24 versos. A seu modo, a disposição da mancha gráfica da tinta emula a extensão do corpo réptil na linha-d’água, tornando-se elemento flagrante para quem se habilita a observar a paisagem fluvial e, de maneira análoga, a adentrar nas páginas do livro pelo contraste com aquilo que o cerca — a tinta escura sobre o papel branco:

Jacaré do rio,
do rio Amazonas
e seus afluentes
ao Paracatuba
do belo Pará,
faço tremer o chão
sob os vários pés
(Savary, 2008SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., p. 43-44).

Ainda no campo das diferenças, esse é o único dos poemas em que o nome do animal não está apenas no título. Tal aspecto dialoga com a vinculação dos textos aos gêneros poéticos, pois, no processo de aclimatação do haicai japonês à literatura brasileira, um dos elementos adicionados foi o título como forma de mitigar a atmosfera “enigmática” dos textos (Franchetti, 2008FRANCHETTI, Paulo (2008). O haicai no Brasil. Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 256-269. https://doi.org/10.1590/S1517-106X2008000200007
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, p. 261). Portanto, a obra de Savary (2008)SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem. recupera esse elo com uma tradição literária que se constituiu em nosso país. No não haicai “Jacaré”, por seu turno, o nome do bicho ocupa o corpo do texto logo no primeiro verso, inicialmente com certo efeito de distanciamento obtido pela menção referencial em terceira pessoa e, em seguida, pela enunciação em primeira pessoa do bicho (“faço”).

Diversos espaços geográficos são entremeados ao discurso do animal, por vezes formalizados pelas reiteradas menções aos diversos rios e continentes nos quais se podem encontrar os vários jacarés. Em leitura do poema, Maciel (2023)MACIEL, Maria Esther (2023). Animalidades: zoopoética e os limites do humano. São Paulo: Instante. enfatiza a extensão geográfica ocupada pelo animal, que ganha forma em uma dicção singular, “conferindo-lhe voz própria, ainda que seus dizeres sejam o que a poeta pressupõe que ele falaria se dominasse a linguagem verbal” (Maciel, 2023MACIEL, Maria Esther (2023). Animalidades: zoopoética e os limites do humano. São Paulo: Instante., p. 135). A placidez que se depreende da superfície aquosa em que o bicho está é tensionada no momento em que ele a abandona em direção à terra, num andar aparentemente desengonçado que, todavia, ecoa os passos de uma família de seres, os crocodilianos, que já pisavam a Terra eras antes de nossos ancestrais primatas. No poema, a comparação é um procedimento utilizado para colocar em relação o jacaré e outros animais, nomeadamente o leão e o touro, bichos conhecidos pela força física, no entanto nenhum deles se compara à potência do réptil: “Desafio à luta / tudo quanto é macho” (Savary, 2008SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., p. 43).

A leitura do poema requer um cuidado especial com o ritmo. Diferentemente dos haicais, que se articulam na forma fixa organizada em versos com, respectivamente, cinco, sete e cinco sílabas poéticas (Franchetti, 2008FRANCHETTI, Paulo (2008). O haicai no Brasil. Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 256-269. https://doi.org/10.1590/S1517-106X2008000200007
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), o discurso do jacaré possui versos que orbitam a redondilha menor, apresentando algumas variações no correr do texto. Outro aspecto a ser considerado corresponde, no nível da construção, às quebras e às ligações efetuadas. Ao mencionar a localização pluricontinental do animal, cujas coordenadas se assemelham às de um quebra-cabeça com peças dispostas em diferentes pontos, a estrutura do texto fragmenta-se para compor o puzzle cartográfico: “No sul da América / do Norte, no norte / da América do Sul” (Savary, 2008SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., p. 43). Nessa passagem, a efetivação dos enjambements é requisito para dar finalização ao espaço geográfico referenciado. Assim, mesclam-se norte e sul, invertem-se bússolas e relógios, tudo sob efeito da influência desse animal, que é resquício de um período quando o mundo se apresentava menos dividido na forma de um supercontinente, Pangeia, cujos rastros são inscritos nas irregularidades da superfície terrestre, assim como nas placas ósseas do corpo do réptil, elevado, portanto, à metáfora do próprio tempo.

Ainda no campo lexical cronológico, o próximo poema busca sondar a expectativa gerada pelo instante da caça em um sujeito peculiar: o lobo-guará. Espécie endêmica do cerrado sul-americano, esse animal é um mamífero carnívoro de grande porte dotado de membros ágeis e longilíneos. No poema de Savary (2008)SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., recupera-se um procedimento singular desse bicho na obtenção de alimentos. Geralmente, e como consequência do hábitat em que ele se encontra, o lobo-guará costuma efetuar saltos precisos sobre a presa avistada:

Do meu alvo esperto
de longe nem chego perto
desconfiado e alerta
(Savary, 2008SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., p. 57).

Em um jogo espacial que se dá pela relação entre proximidade e distância, Savary (2008)SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem. incorpora à linguagem do canídeo a cautela que este demonstra ao planejar os botes sobre suas presas, calmo e comedido, à pas de loup, como disse Derrida (2002)DERRIDA, Jacques (2002). O animal que logo sou (A seguir). Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Editora Unesp. em assertiva da qual o loup enunciado é imagem e vazio que se retroalimentam. No haicai, salta aos olhos (tal qual o lobo do título) a dinâmica entre sujeito e objeto, uma vez que o animal deixa de ser observado e passa a ocupar a posição de observador, que dispara sua mira em outro ser. Isso é refletido na ambiguidade sintática dos termos que compõem o poema. No primeiro verso, “esperto” pode ser tanto um atributo da presa, que se mantém precavida quanto às investidas de possíveis predadores, quanto o verbo “espertar”, flexionado na primeira pessoa, demonstração do “eu” lupino presente no discurso, cujo significado aponta para o ato de manter-se atento, com olhar preciso.

Do mesmo modo, os adjetivos do último verso podem ser aplicados tanto à caça quanto ao caçador, ou ainda a ambos, efetuando, no corpo do poema, o embate entre os seres. Por sua vez, do ponto de vista sonoro, diferentemente dos outros haicais vistos até então, esse poema explora a construção de rimas externas sonantes, classificadas como pobres sob o viés estilístico, mas que, de maneira significativa, contribuem para a soma dos vetores de força que se digladiam na teia trófica para a manutenção da vida (“esperto” e “perto”).

Se, em um sentido amplo, a construção de animais escritos pode ser entendida como uma experiência de hibridização (Maciel, 2023MACIEL, Maria Esther (2023). Animalidades: zoopoética e os limites do humano. São Paulo: Instante.), alguns poemas de Savary (2008)SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem. exploram a possibilidade de imiscuir fronteiras como base da composição. Em “Lobo-guará”, presa e caçador misturam-se no jogo pela sobrevivência. Já no poema seguinte, “Peixe”, o animal e o ecossistema no qual ele se encontra são fundidos, como lemos no texto:

Vi o rio nascer
da minha guelra e nela
armadilho o mar
(Savary, 2008SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., p. 65).

Para o bicho, o rio em que ele nada e vive é consequência de sua existência. Não é mais o limite do rio que condiciona a circulação do peixe. Pelo contrário, de seu corpo é que surge o curso d’água. Um aspecto peculiar do poema em foco é a generalidade que recobre a identificação do sujeito lírico. Afinal, peixe não é uma espécie singular. No filo taxonômico dos vertebrados, esse grupo recobre uma série de animais que compartilham características, algumas delas enunciadas no haicai: o corpo recoberto por escamas, o hábitat líquido — seja água doce, seja salgada — e a presença de guelras, órgão responsável pela respiração submersa.

Outra inversão que se efetiva no texto põe em evidência a relação entre o humano e o não humano. No poema, em vez de se ver preso pelos diversos instrumentos de pesca, o peixe redireciona as técnicas para aprisionar, não mais ser aprisionado. O rio já poderia ser visto como abundante, mas o animal não se contenta com a água entre as duas margens, ele avança em direção à imensidão do mar. Nesse movimento, ele se torna sujeito: “armadilho o mar” (Savary, 2008SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., p. 65).

Da lista de animais presentes em Anima Animalis, um poema focaliza, com mais precisão, o repertório imaginário que cerca os bichos, especificamente o sapo:

Do girino a encantado,
onde está meu vero ego,
beijo príncipe me fará
(Savary, 2008SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., p. 73).

Em seu percurso de vida, os sapos passam por diferentes transformações corporais. Ao nascer, parecem mais peixes do que anfíbios, na forma de girinos, seres pequenos que utilizam a cauda agitada para nadar em poças, lagos e outros locais de água doce. Com o passar do tempo, os corpos deles vão se modificando, sendo marcados principalmente pela aparição dos membros, tornando-se, enfim, sapos. Ao seguir essa linha do tempo, percebe-se que a metamorfose faz parte da vida desses animais em uma perspectiva referencial, adentrando, também, no plano imaginário, como os vários contos de fadas que os trazem como personagens. Um exemplo explicitamente retomado no haicai de Olga Savary (2008)SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem. é A princesa e o sapo, conto no qual, depois de um feitiço, apenas um beijo de amor verdadeiro pode restituir a forma humana a um anfíbio-príncipe.

Voltando à terra, outras pegadas presentes na obra são deixadas pelas patas afiadas do tamanduá, mamífero sem dentes típico das Américas. Esse animal possui um longo focinho dotado de uma língua igualmente longa, sendo esta coberta por uma substância pegajosa que permite ao animal, uma vez inserida dentro do formigueiro, capturar um número grande de formigas — principal fonte de energia nutricional para a espécie. Esse aspecto do modo de vida do bicho é flagrado no poema de Savary (2008)SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., contudo, em diálogo com a vertente erótica pulsante na obra da autora, a língua do animal é revestida de outros significados e, de simples parte morfofisiológica de seu corpo, passa a ser um instrumento de gozo, cujo objetivo é captar os instantes de prazer, tão pequenos quanto os insetos dos quais se alimenta, como se lê nos versos a seguir:

Cada dia a língua
do desejo reinventa
cupins e formigas
(Savary, 2008SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., p. 81).

Como penúltimo animal do cortejo, aparece a figura do touro. Em um primeiro momento se poderia criar a expectativa de que ele encontraria o espaço do texto por meio da colocação em primeiro plano da força física que impõe com sua presença, no entanto a placidez e a possibilidade de reflexão sobre o tempo são dois vetores que convergem para a imagem do touro:

De sonhar alfombra
coalho na sombra a ter tempo
de ruminar pensamento
(Savary, 2008SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., p. 89).

No poema, é interessante pensar a escolha do elemento lexical utilizado para intitular o texto. Diferentemente de palavras que poderiam ser utilizadas como sinônimos, a exemplo de boi e vaca, “touro” contribui para a intensificação do viés fortificante da imagem do bicho. Sob a sombra acolhedora e reconfortante de uma árvore frondosa, sobre um pasto, “alfombra”, são dadas as condições propícias para a contemplação, nesse caso efetuada por uma subjetividade animal. Para dar forma a esse percurso do pensamento plasmado a um ser não humano, adequando a linguagem a seu enunciador, a poeta elege o verbo “ruminar”, incorporando um traço característico dos bovinos, que, por possuírem vários estômagos, mastigam e remastigam os alimentos.

O arremate do livro de Olga Savary (2008)SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem. possui como ponto de finalização a figura do urubu, ave de rapina que se nutre principalmente das carcaças dos outros seres, recobrindo-a de um tom fúnebre em consonância com o luto associado à túnica de penas pretas que veste o animal:

Carniça é morte e vida
que alimenta o meu voar
do chão até a nuvem
(Savary, 2008SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., p. 97).

No haicai em análise, a imagem do urubu é alçada a símbolo da tensão, visto que paradoxalmente a perpetuação da vida da ave se baseia na morte dos outros seres, pois é dela que o animal obtém a fonte de alimentação: “do chão até a nuvem” (Savary, 2008SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., p. 97). Por metonímia, o sublime do voo do urubu, que chama a atenção pela dimensão de sua envergadura, busca sua fonte no escatológico, naquilo que culturalmente é rejeitado.

PEGADAS À GUISA DE CONCLUSÃO

O rastro de animais na produção literária não é um fenômeno recente, visto que diversos autores recorreram e recorrem a essas formas da alteridade para compor suas poéticas e ficções. Em gêneros como a fábula, os animais não são apenas um requinte composicional, eles servem como parâmetro definidor desses textos, diferenciando-os de outras formas narrativas, por exemplo. Nesse sentido, resvalando na hipérbole, consideramos que tão diversos quanto os viventes encontrados no mundo são os procedimentos engendrados pela fabulação literária para transpor esses seres de carne para um novo hábitat: a folha de papel.

No caso do livro de Olga Savary (2008)SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., ainda nos elementos paratextuais, já são apresentados índices interpretativos de seu conteúdo: Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Desse enunciado, é possível esperar que surja dos versos presentes nos textos a expressão de sujeitos poéticos que fogem à expectativa antropocêntrica. Um detalhe a ser destacado é a localização geográfica da qual provêm esses seres: o Brasil, país reconhecido pela biodiversidade encontrada nos vários ecossistemas distribuídos na geografia continental de seu território. Infelizmente, todo esse colorido disposto em florestas tropicais, savanas, manguezais e outros domínios morfoclimáticos é, de maneira reiterada, vilipendiado e atacado, assim como os moradores humanos e não humanos que habitam esses locais e aqueles que assumem como propósito de vida a defesa desses espaços e seres.

Apesar das diversas fraturas ecológicas e especistas que orientam o paradigma difundido no e pelo pensamento ocidental, a presença animal coloca em tensão saberes e certezas sobre os outros que coabitam nosso planeta. Os bichos têm a capacidade de acionar diferentes sentidos, permitindo que a linguagem exerça sua opacidade ao demandar, no momento de leitura, outras formas de relação com o tempo e com a outridade. Dessa forma, a literatura passa a ser composta de um arcabouço de lugares e de valores relacionados também às diversas espécies animais. Desse modo, torna-se justificável pensar um conceito equivalente à ideia de nicho ecológico aplicada ao campo imaginário, uma espécie de nicho simbólico ocupado pelos animais. Isso funciona como marcador da passagem do animal de carne para o animal de palavra, que se opera em um tipo de metamorfose pela qual um topos na vida — isto é, o bicho materialmente localizado na realidade do mundo, ocupante de um nicho — adquira os contornos de um tropos na linguagem, uma imagem poética de significados.

Percorrendo as páginas do pequeno bestiário de Olga Savary (2008)SAVARY, Olga (2008). Anima Animalis: voz de bichos brasileiros. Caraguatatuba: LetraSelvagem., percebe-se o desenvolvimento de procedimentos na tentativa de trazer para o corpo do texto certos aspectos, pegadas, pistas, que servem como índice para cada animal referenciado. Com exceção do texto “Jacaré”, os demais poemas se valem do nome do animal apenas no título. Pela obliteração desse signo nos corpos dos textos, são mobilizadas estratégias que, uma vez aplicadas, conseguem recuperar a figura zoológica que se apropria dos versos, territorializando o poema como um local de dizer. Na obra da autora, isso se dá ora pela recuperação de diálogos intertextuais com um imaginário acerca do bicho (“Bode” e “Sapo”), ora pela utilização de dados característicos do modo de vida da espécie (“Lobo-guará” e “Tamanduá”), ora ainda pela diluição das barreiras tidas como intransponíveis entre natureza e cultura, criando uma zona de interferência mútua entre esses domínios (“Beija-flor” e “Urubu”).

Ao adotar uma abordagem interdisciplinar no trato do texto literário, percebemos que contribuições de diferentes campos do saber podem ser mobilizadas na compreensão dos procedimentos pelos quais os animais não humanos ganham forma, peso e matéria na linguagem humana. Isso, no entanto, não significa apagar o que caracteriza cada uma dessas disciplinas, muito menos abrir mão do componente estético formalizante, condição de relevo ao lidar com o texto literário. A isso, soma-se ainda o cenário de emergência climática e ambiental em que nos encontramos. Neste artigo, demonstramos uma possibilidade de leitura que caminha entre natureza e cultura, entre humanos e bichos, entre poesia e mundo. Esses vetores requerem, portanto, que se reconheça um componente ético compósito do poético e manifestado ao confrontarmos a alteridade, nomeadamente, quando esta se expressa nos rastros animais escritos pelos e nos poemas.

  • Financiamento

    Trabalho produzido com bolsa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Notas

  • 1
    l’éthologie montre que nous vivons dans un monde dans lequel coexiste une pluralité de sujets, même si les sujets animaux ne sont pas superposables aux sujets humains”.

Referências

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Editores:

Paulo César Thomaz e Rejane Pivetta

Editor de seção

Leila Lehnen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2023
  • Aceito
    30 Jul 2024
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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