Open-access Obra e processo na ficção de Carlos Sussekind

Work and process in Carlos Sussekind’s fiction

Obra y proceso en la ficción de Carlos Sussekind

Resumo

Este ensaio pretende explorar a interação entre repetição temática e diversificação construtiva na obra ficcional de Carlos Sussekind por meio da exploração das conexões entre os processos de composição e a estruturação interna de cada uma das narrativas longas do autor — Armadilha para Lamartine (1976), Ombros altos (1960, 1985, 1997, 2003), Que pensam vocês que ele fez (1994) e O autor mente muito (2001). Conectada com a recorrente afirmação do autor acerca de sua dificuldade de escrever, a análise faz emergir da obra de Sussekind uma ideia de escrita distante da imagem tipicamente moderna da literatura como ofício verbal ligado sobretudo à valorização do significante. Se, nesse sentido, tal ideia de escrita se aproxima das características da literatura de grande circulação, ela igualmente se apropria de procedimentos tipicamente neovanguardistas ligados à limitação do poder da autoria e à valorização da processualidade da obra em detrimento de seu acabamento.

Palavras-chave:
repetição; apropriação; processo

Abstract

This essay aims to explore the interaction between thematic repetition and constructive diversification in Carlos Sussekind’s fictional work by exploring the connections between the composition processes and the internal structuring of each of the author’s long narratives — Armadilha para Lamartine (1976), Ombros altos (1960, 1985, 1997, 2003), Que pensam vocês que ele fez (1994), O autor mente muito (2001). Connected with the author’s recurring statement about his difficulty in writing, such analyses shed light on Sussekind’s idea of writing, which distances itself from the typically modern image of literature as a verbal craft centered on the valorization of the signifier. If, in this sense, such an idea of writing approaches the characteristics of mass-circulation literature, it equally appropriates typically neo-avant-garde procedures linked to the limitation of authorial power and the valorization of the processual nature of the work at the expense of its completion.

Keywords:
repetition; appropriation; process

Resumen

Este ensayo tiene como objetivo explorar la interacción entre la repetición temática y la diversificación constructiva en la obra ficticia de Carlos Sussekind mediante el examen de las conexiones entre los procesos de composición y la estructuración interna de cada una de las narrativas largas del autor — Armadilha para Lamartine (1976), Ombros altos (1960, 1985, 1997, 2003), Que pensam vocês que ele fez (1994), O autor mente muito (2001). Vinculados a la afirmación recurrente del autor sobre su dificultad para escribir, tales análisis hacen emerger de la obra de Sussekind una idea de escritura distante de la imagen típicamente moderna de la literatura como oficio verbal principalmente ligado a la valorización del significante. Si, en este sentido, tal idea de escritura se acerca a las características de la literatura popular, igualmente se apropia de procedimientos típicamente neovanguardistas ligados a la limitación del poder autoral y la valorización del proceso creativo de la obra en detrimento de su acabamiento.

Palabras-clave:
repetición; apropiación; proceso

Este ensaio pretende explorar a interação entre repetição temática e diversificação construtiva na obra ficcional de Carlos Sussekind por meio da exploração das conexões entre os processos de composição e a estruturação interna de cada uma das narrativas longas do autor: Armadilha para Lamartine (1976), Ombros altos (1960, 1985, 1997, 2003), Que pensam vocês que ele fez (1994) e O autor mente muito (2001). Assim, tem menos o objetivo de analisar em profundidade cada uma dessas quatro narrativas do que o de propor um princípio de organização (e compreensão) para o conjunto da obra do autor, alternativo ao da problematização das relações entre ficção e realidade que tem marcado sua fortuna crítica (cf. Silva, 2020). Ou ainda, procura descobrir sobretudo o princípio pelo qual essa obra se diferencia internamente, vendo nisso um fator de caracterização tão importante quanto a identificação de possíveis regularidades (de tema, de tom, de estilo) no interior de cada obra acabada.

Apesar de não ser dividido em seções, o texto segue uma lógica bem simples e direta. Primeiramente, é proposta a tese de que a ficção de Carlos Sussekind pode ser compreendida como o produto da interação entre, por um lado, aspectos temáticos/diegéticos que se repetem em todas as suas obras e, por outro, práticas de escrita diversas que limitam de maneira variada as possibilidades de planejamento ou controle sobre seus próprios resultados. Em seguida, busca-se demonstrar como se dá essa interação em cada uma das narrativas de Sussekind, na seguinte ordem: Armadilha para Lamartine, Ombros altos, Que pensam vocês que ele fez e O autor mente muito. Na abordagem de cada uma delas, recorre-se à análise de certos aspectos de sua construção narrativa e a paratextos e entrevistas do autor que dão pistas dos processos de composição utilizados. O fim do texto busca realçar em que medida as particularidades das práticas de escrita de Sussekind se distanciam da imagem tipicamente moderna da escrita enquanto ofício verbal, estabelecendo pontos de contato com práticas da neovanguarda e certos aspectos da narrativa oral e dos produtos culturais de grande circulação. Sugere-se, por fim, a possibilidade de investigar mais a fundo alguns desses pontos de contato, bem como algumas séries de imagens, projetos e pequenas narrativas que constituem as obras do autor e que, em uma escala menor, parecem se organizar segundo uma dialética semelhante de repetição e diversificação.

O uso da repetição como artifício ficcional na obra de Sussekind já foi trabalhado pelo autor deste texto (quer dizer, por mim) em duas outras ocasiões: mais extensamente, na tese de doutorado “Entrando na máquina”: repetição e estratégias ficcionais na obra de Carlos Sussekind (Silva, 2018), orientada por Maria Ester Maciel, e, num sentido mais estrito, relacionado à cópia e ao reaproveitamento de material, no artigo “Repetição e automodelagem na ficção de Carlos Sussekind” (Silva, 2022). Foi publicado, ainda, um texto sobre a fortuna crítica de Armadilha para Lamartine (Silva, 2020) no qual a discussão desse artifício tem papel marginal. Este ensaio dá continuidade à reflexão desenvolvida nesses trabalhos, mas não está contido em nenhum deles. Isso não impediu que certas ideias e passagens específicas fossem reaproveitadas, situações em que os trabalhos de origem foram propriamente citados.

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A leitura das narrativas ficcionais longas de Carlos Sussekind pode causar a impressão de uma conjugação paradoxal entre a repetição ostensiva dos mesmos temas, caracteres e estruturas de relações entre eles e a variedade igualmente ostensiva de sua configuração em uma totalidade textual. Por um lado, há em todas essas narrativas duplicidades organizadas inicialmente como oposições, que acabam por se igualar de uma maneira ou de outra; personagens recorrentes que encarnam cada um desses polos, sem que isso implique necessariamente continuidade entre os universos ficcionais de cada um dos romances; a temática do roubo e da adulteração, que constitui tanto os textos quantos os sujeitos dessa ficção (cf. Silva, 2022); pequenas narrativas que, no interior das obras, parecem de algum modo miniaturizá-las e remetê-las umas às outras; esquemas metaficcionais complicados, que sempre incluem pelo menos dois autores supostos e alguma variante da ficção do manuscrito. Tudo isso se encontra de maneira muito clara em cada uma das obras que aqui nos interessam. Por outro lado, cada uma dessas narrativas parece ser o resultado de um esforço deliberado (ainda que não necessariamente dirigido) de diferenciação interna, que parece ser igualmente uma recusa da depuração de um estilo ou forma narrativa própria, o que por vezes parece se igualar a uma recusa da formalização tout court. Como afirma Heloísa Jahn (apud IMS, 2011) ao falar da produção visual de Sussekind: “O recurso a vários processos criativos mostra nuances de um movimento de abordagem da realidade — também presente na escrita ficcional. É isso, sobretudo, que o artista busca, sem preocupar-se em desenvolver uma linguagem ou uma formação artística”.

Com base nesses princípios, diríamos esquematicamente que, ao compararmos suas obras narrativas, temos a impressão de estar diante de um mesmo projeto que se diversificou pela sua submissão a variados processos de composição. Aceitando a polissemia da palavra projeto, que pode ir de mero esboço a plano bem arquitetado, ainda diríamos que, apesar de sua variedade, tais processos sempre questionam a possibilidade da concepção de um projeto de obra anterior à execução da obra ou reduzem a capacidade diretiva de qualquer projeto.

Comecemos por Armadilha para Lamartine (1976), seu romance mais importante, atribuído a Carlos & Carlos Sussekind. Talvez a maneira mais fácil de introduzi-lo seja citando sua nota de abertura:

Acham-se aqui reunidos, sob o título geral de “Armadilha para Lamartine”:
a) O “Diário da Varandola-Gabinete”. O Diário de Dr. Espártaco M., fragmentos referentes ao período de outubro e 1954 — agosto de 1955. Começa com o abandono da casa por seu filho Lamartine e termina com o retorno do “pródigo”, depois de uma permanência de dois meses no Sanatório Três Cruzes do Rio de Janeiro.
b) As “Duas Mensagens do Pavilhão dos Tranqüilos”. Escritas por Lamartine M., no Sanatório, fazendo-se passar por um outro doente (Ricardinho). Dr. Espártaco havia travado conhecimento com este último quando as visitas ao filho ainda lhe estavam proibidas; Ricardinho fizera-lhe então algumas revelações (veja-se às páginas 238-241 deste volume), merecendo de Dr. Espártaco o título de “informante extra-oficial”. Lamartine se entusiasmou com o imprevisto da ligação Espártaco-Ricardinho e imaginou alimentá-la com essas “mensagens”, de conteúdo em geral ultrajante para os médicos do Sanatório. Elas chegaram a ser escritas mas ficaram escondidas num lugar que só Lamartine sabia. Foram entregues a Dr. Espártaco (que, como de costume, as incorporou ao Diário) depois da volta à casa e à normalidade
(Sussekind, 1976, p. 17-18).

É típico da ficção do autor o fato de essa nota apresentar os textos na ordem inversa à de seu aparecimento no romance. Vale ressaltar, ainda, a diferença na extensão desses dois textos: na edição de 1976, as “Duas mensagens do Pavilhão dos Tranquilos” ocupam menos de 20 páginas, e o “Diário da Varandola-Gabinete” mais de 250. É a composição desse imenso diário romanesco que nos interessa mais de perto no momento.

O diário de Dr. Espártaco, que, como acaba de ser dito, constitui em termos quantitativos quase a totalidade do romance, foi composto de procedimentos de seleção, montagem e adulteração dos diários “verdadeiros” do pai de Carlos Sussekind, Carlos Sussekind de Mendonça (daí a atribuição de autoria a Carlos & Carlos Sussekind). Assim, nesse caso, Sussekind parece alinhar-se aos gênios não originais estudados por Marjorie Perloff (2013), para quem a criação poética do fim do século passado e de inícios deste século se caracteriza pela substituição da invenção pela “apropriação, a restrição elaborada, a composição visual e sonora e a dependência da intertextualidade” (Perloff, 2013, p. 41), ou aos escritores nossos contemporâneos que escrevem sem escrever, para usar a expressão de Leonardo Villa-Forte (2019), engajando-se em práticas de (não) escrita que deslocam a autoria em direção ao campo da curadoria ou da pós-produção: “O gesto de fazer de um conteúdo original uma outra coisa, mas não por meio de uma nova invenção, e sim pela reproposição ou reenquadramento pela seleção, edição e recontextualização” (Villa-Forte, 2019, p. 19).

Outra aproximação possível, já proposta por mim (Silva, 2018, p. 105-109), é com o bricoleur, como o caracteriza Claude Lévi-Strauss (2008), em oposição ao engenheiro. Conforme elaborei em outro momento (Silva, 2018), sempre me baseando na obra do antropólogo, “o trabalho do bricoleur se opõe ao trabalho do engenheiro por partir de um conjunto finito e contingente de ferramentas e materiais, estocado anteriormente e portanto não relacionado a qualquer projeto em particular” (Silva, 2018, p. 106), enquanto “as ferramentas e as matérias-primas do engenheiro […] seriam buscadas e concebidas tendo em vista a satisfação de um projeto específico” (Silva, 2018, p. 106). Ainda que essa oposição não seja absoluta, “visto que o conhecimento e os meios do engenheiro são, também, sempre histórica e culturalmente limitados” (Silva, 2018, p. 106), as limitações a que cada uma dessas figuras estaria sujeita são de natureza diversa: para o engenheiro, “essa limitação se dá pela negativa — o que não se tem, o que não se sabe, e que impede que se vá mais além —, enquanto o que limita o bricoleur é, ao contrário, a positividade de seu estoque material” (Silva, 2018, p. 106). Citando, agora, o próprio Lévi-Strauss (2008, p. 34): “Poderíamos ser tentados a dizer que ele [o engenheiro] interroga o universo, ao passo que o bricoleur se volta para uma coleção de resíduos de obras humanas, ou seja, para um subconjunto da cultura”.

A aproximação do processo de composição de Armadilha para Lamartine das práticas de não escrita e da imagem do bricoleur busca dar conta de particularidades da autoria da obra e das restrições que a constituem. Pode-se dizer que o projeto desse romance só pôde surgir da contingência dos meios disponíveis (quer dizer, o diário paterno), que foram ainda produzidos e pelo menos inicialmente estocados por outro sujeito, além de serem privados e, até certa medida, íntimos. Por um lado, há nisso um enfraquecimento da instância autoral, via distribuição (assimétrica) de responsabilidades. Isso é indicado na assinatura da obra — Carlos & Carlos Sussekind —, que condensa, em uma espécie de “ficção em miniatura” (Silva, 2018, p. 79), a história de sua composição e os problemas de atribuição e veridicção a ela relacionados. Por outro lado, o procedimento de bricolage adotado pelo autor também tem efeitos na estrutura interna da obra, na qual a existência de um enredo bem definido (as três saídas de Lamartine da casa paterna — para uma república, para uma viagem da marinha, para o sanatório — e seu retorno) é quase eclipsada pelos relatos/registros justapostos de Lamartine e Dr. Espártaco, de modo especial deste último, um texto diarístico que ocupa a quase totalidade da obra e que, apesar da dramaticidade de alguns fatos relacionados a Lamartine (principalmente a sua internação em um hospital psiquiátrico), versa sobretudo acerca de pequenos acontecimentos cotidianos e grandes fatos nacionais ou mundiais. Estrutura-se, assim, como uma série de variações na qual os aspectos repetitivos são bastante marcados. Muito mais do que a apresentação do enredo, é essa hipertrofia do cotidiano e a obsessão de Dr. Espártaco pela normalidade que emergem daí, não sem algum efeito de derrisão, possibilitada por uma espécie de inversão em que o mais banal se torna o mais importante (tanto para a vida de Dr. Espártaco quanto para a leitura do romance).

A essa prevalência, na leitura do diário de Dr. Espártaco, do que se acumula sobre o que se desenvolve, soma-se a questão da relação entre esse diário (o “Diário da Varandola-Gabinete”) e a primeira parte do romance (as “Duas Mensagens do Pavilhão dos Tranquilos”), escritas por Lamartine enquanto estava no sanatório e atribuídas a outro interno (Ricardinho). Como já procurei demonstrar (Silva, 2018, 2020), essas mensagens parecem constituir-se conforme um princípio de simetria inversa em relação ao texto de seu pai: Lamartine participa de um jornal, Dr. Espártaco escreve um diário; Lamartine finge estar louco para se livrar dos eletrochoques, Dr. Espártaco constrói um monumento de normalidade contra o que há de ilógico na vida; Lamartine usa a escrita para transformar-se em personagem, Dr. Espártaco para manter sua própria identidade; os acontecimentos inscritos por Lamartine são aventurosos e um tanto fantásticos, os inscritos por Dr. Espártaco são banais etc. Assim, como já notado por Hélio Pellegrino (1976, p. 9), a compreensão da estrutura do livro depende de uma leitura sincrônica das duas partes: “As “Duas Mensagens do Pavilhão dos Tranquilos”, escritas por Lamartine M., fazendo-se passar por um outro doente (Ricardinho), correspondem à verdade não escrita e, portanto, informulada, do “Diário da Varandola-Gabinete”, de Espártaco M.” (Pellegrino, 1976, p. 9). Isso quer dizer que mesmo as aventuras de Lamartine na primeira parte do romance — segundo Sussekind (1998a, p. 6; Pires, 2001, p. 8), fruto de pura invenção — interessam menos por seu próprio desenvolvimento do que por seu significado paradigmático, determinado pela contingência da bricolage que constitui o diário de Dr. Espártaco.

Como o próprio Sussekind (apud Scalzo, 1994, p. 1) já observou, Armadilha para Lamartine é um livro “arrumadinho”. Do nosso ponto de vista, isso significa que, nesse romance, o enfraquecimento da autoria e das possibilidades de planejamento oriundo da utilização de material alheio pré-produzido não redunda em sensação de inacabamento ou perda de organicidade nas relações entre partes e todo (ainda que essa organicidade derive sobretudo das repetições e variações que o constituem). Assim, o que há de repetitivo e excessivo nos diários vistos de perto acaba contribuindo para uma imagem de totalidade bem definida, como num mosaico que evoca perícia e exatidão: “Do ponto de vista de sua estrutura, o romance apresenta o rigor e a elegância formal de uma partida de xadrez, jogada por um mestre” (Pellegrino, 1976, p. 6); “a relação entre os dois textos estabelece um sistema simbólico preciso como um teorema” (Carneiro, 1976, p. 2). Tal rigor estrutural é perturbado apenas pelas incertezas relativas às relações entre (auto)biografia e ficção na obra, que significam uma abertura a ser ora explorada, ora suturada pela crítica (cf. Silva, 2020).

O mesmo não pode ser dito de Ombros altos e Que pensam vocês que ele fez, respectivamente a primeira e a terceira obra do autor, nas quais o inacabamento é incorporado, de modos diversos, em sua estrutura e composição. Se em Armadilha para Lamartine o que limitava a composição era o material pré-produzido tomado como ponto de partida para a construção da obra, em Ombros altos e Que pensam vocês que ele fez não é uma restrição inicial, mas a manutenção de uma abertura mais ou menos radical no momento de sua finalização ou no processo de sua escrita o que determina a provisoriedade ou a precariedade de seus resultados. Aproximamo-nos, aqui, da ideia de uma “provisoriedade do estético”, que, segundo Haroldo de Campos (1975, p. 15), é uma característica da arte contemporânea (seu livro é de 1969), cujas obras frequentemente incorporariam “o relativo e o transitório como dimensão mesma de seu ser”, colocando em questão a própria ideia de uma obra acabada ou bem acabada.

Assim, Ombros altos (1960, 1985, 1997, 2003) pode ser concebido como um “eterno work in progress”, como brinca o editor Jorge Viveiros de Castro (2003, p. vii) em uma nota à quarta edição da obra, que acabou sendo sua versão final. Sebastião Uchoa Leite (2003, p. xi-xii) propôs um breve resumo de seu enredo que não poderíamos fazer melhor:

A trama aparente é uma antiga armadilha: a paixão amorosa. A trama gira em torno de cinco personagens: o herói narrador, o amigo Galocha, a amiga Olga, o Barão Frankenstein, oponente do herói, e o “obscuro objeto do desejo”, Paula. O herói está enredado em seu mito, Paula, que o suposto rival, o “barão”, igualmente atraído, só contempla de longe. A trama é simples: o herói persegue o objeto-mito (telefonemas, brincadeiras, propostas, cartas e mais cartas) que se evade. A amiga Olga, coadjuvante do herói, acusa a falta de objetividade, a vagueza romântica, a não-coragem dele. Estranhamente, o herói vai morar com o “rival”, o barão, subtrama armada pela mãe do último para ter o filho, suspeito de desequilíbrio, acompanhado de perto. A trama é simples? De repente, no quase final, o excêntrico “barão” interfere para dar a sua versão: o herói, apelidado com ironia de Doutor, é apenas ingênuo e cultiva, complicadamente, o auto-engano.

Publicada pela primeira vez em 1960, em edição de autor (“quase clandestina”, conforme Pellegrino, 1976, p. 5), com o título Os ombros altos, essa narrativa foi reeditada com sucessivas modificações em 1985, 1997 e 2003. Há ainda uma edição de 2013, que subtraiu alguns paratextos da edição anterior, mas manteve o mesmo texto do “interior” da obra. Esquematicamente, as modificações foram as seguintes1: na edição de 1985, foi adicionada uma série de ilustrações do próprio autor e modificado o título para Ombros altos; em 1997, foram adicionadas ilustrações inéditas e o capítulo “Antes de passar ao próximo capítulo…”, que ficou sendo o oitavo (de dez); em 2003, o capítulo VII (“Sobre o pudor de Paula”, escrito pelo Barão) foi significativamente expandido. Houve ainda modificações menores de grafia dos nomes das personagens Barão (anteriormente barão) e Galocha (anteriormente Galocha) na edição de 1997 e inclusão de paratextos nas edições de 1997 e 2003, que frequentemente brincam com alguns dos temas recorrentes da ficção do autor.

Além dessas modificações publicadas, há ainda registros sobre as mudanças que o livro sofreu antes de sua primeira edição e sobre um plano do autor de intercalar todos os capítulos dessa obra em Armadilha para Lamartine. Embora tenha sido dissuadido dessa ideia pelos amigos Joaquim Pedro de Andrade e Mario Tourasse, Sussekind inseriu em seu segundo livro a possibilidade de Lamartine ser o autor de Ombros altos, como já notou Friedrich Frosch (2001). Um dos comentários de Dr. Espártaco sobre os dois capítulos de romance que Lamartine escreve no sanatório para provar a sua sanidade se refere literalmente à “linguagem dos vestidos” (Sussekind, 1976, p. 292), mesma expressão usada por Doutor em Ombros altos para caracterizar Paula (Sussekind, 2003, p. 30). Na mesma entrada de seu diário, Dr. Espártaco registra estarrecido a visita de um melancólico e desengonçado Galocha (personagem de Ombros altos) a seu filho. Há, igualmente, conforme explica Helosa Jahn (2011), uma série “secreta” de desenhos, não publicados, denominada Amorous sisters, que duplica eroticamente a série de ilustrações de Paula, sempre recatada nos desenhos que integram Ombros altos.

Essa plasticidade da obra (seja do texto que a constitui, seja das hipóteses relativas à sua autoria suposta) relaciona-se também com sua organização interna. A conexão entre os capítulos é bastante lacunar, e, apesar de ser possível identificar um enredo mínimo, tal enredo é apresentado de maneira muito fragmentada, formando uma imagem caleidoscópica da história de Doutor, Paula e Barão. Essa relativa descontinuidade entre os capítulos intensifica o caráter de montagem da obra, o que ao menos hipoteticamente facilitaria a adição de novos capítulos ou a pulverização dos existentes no meio de outra narrativa.

A cena da escrita que se depreende da obra também aponta para algo de processual, inacabado e improvisado na ficção de sua composição. Nesse sentido, é relevante a explicitação das diferentes ancoragens temporais da enunciação escrita: “Começando a escrever hoje a história de Paula e o Barão” (Sussekind, 2003, p. 28); “Recomeçando a narrativa um ano e tanto depois de ela ter ficado parada” (Sussekind, 2003, p. 55); “Tarde da noite no sábado passado, eu e Galocha (juntos outra vez) tínhamos ido para um bar ao ar livre na beira da praia” (Sussekind, 2003, p. 103), com até mesmo múltiplas autorias supostas, como o sétimo capítulo, o “comentário escrito pelo Barão” (Sussekind, 2003, p. 83) intitulado “Sobre o pudor de Paula”, e as cartas de Galocha a Doutor, incluídas a partir da edição de 1997. Se estas apontam para um colapso entre história editorial do livro e história ficcional da composição da narrativa — “resolvemos incorporar à presente edição algumas das cartas que o melancólico missivista escreveu quando esteve morando numa pensão em São Paulo, até hoje silenciadas por mero comodismo literário” (Sussekind, 2003, p. 89) —, o início do capítulo de autoria atribuída ao Barão — “Vou escrever aqui no fim das ‘memórias’ de Doutor umas observações que me parecem a propósito” (Sussekind, 2003, p. 83) — deixa evidente o aspecto de inacabamento da obra, na medida em que o fim das “memórias” do protagonista chegará somente dois (ou três, a partir da edição de 1997) capítulos depois.

Essa circunstância enunciativa (mais ou menos semelhante, aliás, à de um diário), por sua vez, aumenta a margem para desmentidos, contradições e necessidades de contextualização que animam o “labirinto de hipóteses” (Leite, 2003, p. xii) que constitui a história de Doutor, Paula e Barão. Ao mesmo tempo, e talvez paradoxalmente, alguns dos desenvolvimentos mais significativos da trama ocorrem nas transições bruscas entre os capítulos, como que por saltos. É esse o caso da mudança de Barão para a casa de Doutor e da descoberta de que Paula escolhera um terceiro pretendente, que até então não tinha aparecido na história.

Já em seu terceiro livro, Que pensam vocês que ele fez (1994), o inacabamento aparece de outras formas, tributárias não da recusa do fechamento, mas da persistência de um estado de suspensão durante o processo de sua escrita. Conforme já observei anteriormente (Silva, 2018), esse romance constrói-se por meio de uma ficção editorial bastante complicada. Ficcionalmente, o texto que o compõe é o resultado de uma edição do diário de Dr. Espártaco encomendada a Lamartine pela Samuel Pepys Foundation (fundação fictícia cujo nome faz referência ao famoso diarista britânico do século XVII), no entanto Lamartine prepara uma edição totalmente heterodoxa, constituída sobretudo de uma série de variações sobre sua relação com o diário paterno. Essa série de variações, impossível de ser resumida em um enredo único ou coeso, envolve também as relações de Lamartine com sua (ex-)esposa e filhos. Diante dessa proliferação de narrativas em torno do diário, a fundação que encomendara a edição contrata um gramático, chamado Professor Guaraná, para colocar ordem no material e cortar os excessos do pretenso editor. O texto do romance é composto, então, das narrativas de Lamartine sobre sua relação com o diário, os escritos do Professor Guaraná que resumem, comentam e complementam os textos de Lamartine e, finalmente, alguns trechos do diário de Dr. Espártaco. Temos notícia, ainda, de capítulos extraviados e de trechos não publicados em razão de querelas judiciais.

Essa organização interna do livro, ou o que há nele, segundo o próprio autor, de absurdo (apud Scalzo, 1994, p. 1) e bagunçado, tem sua contraparte “externa” em seu processo de composição, ao qual Sussekind se referiu em uma conversa com Moacyr Scliar (2000): “Meu recurso há muitos anos […] tem sido prolongar […] a narrativa sempre, […] porque […] não me vêm as ideias que eu tinha, as ideias deflagradoras da história”. Essa estratégia de prolongamento se conecta a uma ausência radical de planejamento — “Eu não tinha a menor ideia do que vinha pela frente, realmente” (Scliar; Sussekind, 2000) — e é associada por Sussekind a uma estrutura baseada em variações que funcionaria como uma espécie de casa de espelhos: “Minha tendência por exemplo seria hoje pra tentar vários contos, mas […] um se refletindo nos outros, quer dizer, nesse sentido seria romance, não conto, porque ele não se defende sozinho” (Scliar; Sussekind, 2000) — ou caixa de ressonância:

Pra mim o momento de escrever eu adio muito, uma preguiça, não sei o que é, e como se trata de romance, longas narrativas, eu… aquilo fica na cabeça criando uns harmônicos, umas ressonâncias e tal, por isso é que eu digo, […] a coisa é avançar, avançar, esperando que esses harmônicos todos vão voltar com o tempo
(Scliar; Sussekind, 2000).

É digno de nota o contraste entre a linearidade contida na ideia de “avançar, avançar” (presente também no título da primeira parte do romance, “Trem sem maquinista”) e a recursividade da imagem dos espelhos ou dos harmônicos e ressonâncias2. A relação de implicação entre elas, quer dizer, a necessidade de avançar para que aquilo que fica ressoando na cabeça seja recuperado em sua totalidade (em outras partes da conversa, Sussekind refere-se à sua preferência por não anotar ideias isoladas, para não separá-las do contexto ao qual elas pertencem), parece traduzir de maneira especialmente clara uma das tensões recorrentes da ficção do autor, a da relação entre um conjunto descontínuo de partes e uma totalidade textual contínua — que já poderíamos vislumbrar, por exemplo, nos “saltos” entre os capítulos de Ombros altos. Para voltarmos brevemente ao “interior” de Que pensam vocês que ele fez, tal tensão pode ser identificada também no papel exercido pelo narrador-personagem-editor-ficcional Professor Guaraná, que contextualiza, comenta e, sobretudo, resume partes do texto de Lamartine que foram perdidas ou, simplesmente, consideradas excessivamente prolixas por ele. Diz Carlos Sussekind:

O professor Guaraná é um ajudante fantástico que eu arranjei. Cada vez que a coisa vai muito absurda, o Guaraná chega e diz “Isso não tem sentido”. Pronto, fico liberado de ir mais longe naquela maluquice. Ele foi um excelente pontuador da narração. Até um momento eu ia bem, depois pensava que ia dar em besteira. Então entra o Guaraná e diz: “Chega”. Quando volto à narrativa, já estou em outro assunto
(apud Scalzo, 1994, p. 1).

Além de indicar uma resolução insólita para a referida tensão — a coesão da obra é dependente de uma série de interrupções bruscas —, a mistura entre o processo de escrita “real” da obra e o processo ficcional de edição do Diário de Dr. Espártaco reforça, ainda que em tom de brincadeira, o relativo descontrole a que está submetida a escrita na composição desse romance. Faz lembrar, igualmente, o procedimento de dupla autoria já levado a cabo por Sussekind em Armadilha para Lamartine e que será reconfigurado em seu quarto e último livro, O autor mente muito.

Em O autor mente muito (2001), escrito em parceria com o psicanalista Francisco Daudt, chamam a atenção não só o retorno do procedimento de dupla autoria e as novas articulações entre partes e todo que se conectam a esse retorno, mas também o reaparecimento, de forma renovada, mas um pouco dúbia, de estratégias para “escrever sem escrever”. A parceria com Francisco Daudt já se iniciara, de certa maneira, no procedimento de escrita de Que pensam vocês que ele fez, quando Carlos Sussekind pediu ao psicanalista para ajudá-lo a “encontrar ressonâncias” entre as histórias que tinha em mente (Scliar; Sussekind, 2000), porém em seu último romance o colaborador passa a coautor.

Em relação a Armadilha para Lamartine, também atribuído a dois autores (ainda que na forma de um jogo com a instância e o lugar da atribuição autoral), temos aqui uma experiência diferente, mais simétrica, de autoria dupla, já que a cocriação se dá entre dois autores que compõem ou planejam seus textos, e não por um que compõe seus textos e manipula um texto alheio, à revelia de seu autor. A natureza e a distribuição de funções dessa coautoria, no entanto, não deixam de ser labirínticas. Carlos Sussekind afirmou em algumas ocasiões que ele tinha as ideias e Daudt as concretizava, ou seja, as escrevia3: “A idéia original era minha, mas a mis-en-scène é do Chico, ele concretizou tudo. Ele criou personagens inteiros como a dona Abigail, a partir de uns recortes de jornal” (apud Pires, 2001, p. 8). Ao menos uma vez, coloca-se também como editor ou corretor:

Ultimamente a dificuldade de escrever ficou tão grande que o jeito foi pegar meu psicanalista, com quem já me tratava há oito anos e tinha uma relação de amizade, e pedir para ele escrever os enredos aparentemente desconexos que eu contava nas sessões. Isso virou uma prática e toda segunda à noite a gente passou a se encontrar. Ele escrevia o que eu dizia, eu relia, sugeria algumas coisas e assim foi. Dessa forma, escrevemos em conjunto O autor mente muito. Depois disso, tive alta
(apud Chiodetto, 2002, p. 113).

Ao mesmo tempo, sabemos que um dos capítulos de O autor mente muito, “A mulher bifocal”, já tinha sido publicado quase idêntico, com o título “Provas de amor”, no primeiro número da revista Ficções, em que se anunciava a conexão com o futuro romance: “Capítulo ‘História de Carlotinho’, inédito, do romance O autor mente muito, em gestação” (Sussekind, 1998b, p. 103).

Os problemas de atribuição e divisão de funções na escrita em dupla são aproveitados também ludicamente, na ficção da composição do livro que se desenvolve no interior da narrativa. O romance narra a tentativa do famoso escritor Carlos Sussekind e do psicanalista Francisco Daudt (narradores-personagens) “de descobrirem se as histórias de Carlinhos Manivela, contadas diariamente por Teodoro Farpa no Sanatório Qorpo-Santo (no qual estava internado havia quase 40 anos), eram, na verdade, histórias de Carlos Sussekind” (Silva, 2018, p. 110). Narra igualmente a tentativa dos escritores-narradores-personagens de descobrirem a verdadeira identidade de Teodoro Farpa. Narra, por fim, “a própria escrita do livro, motivada pelo medo dos autores-personagens de que Paulo Coelho escrevesse, antes deles, a história de Teodoro Farpa e as histórias de Carlinhos contadas por ele” (Silva, 2018, p. 110).

Como já propus em trabalho anterior (Silva, 2018, p. 110-111), o livro estrutura-se como “uma série de roubos e tentativas de roubo: Teodoro rouba as histórias de Carlinhos (que descobrimos, enfim, ser o próprio Carlos Sussekind) por intermédio de um antigo psicanalista deste; Sussekind e Daudt buscam, por sua vez roubá-las […] antes que Paulo Coelho o faça”. No entanto, no interior da encenação da escrita do romance, Sussekind e Daudt adotam posições opostas em relação a essa empreitada. Sussekind é partidário do “vôo livre da imaginação” (Leite, 2002, p. 7) e com frequência sabota os esforços de Daudt em encontrar “o nexo narrativo e a verdade oculta da história […], seja escrevendo apenas rascunhos das histórias contadas por Teodoro Farpa, seja modificando essas histórias, seja desinteressando-se da própria escrita do romance e da busca pelo segredo que envolve Teodoro” (Silva, 2018, p. 111).

Como já apontei (Silva, 2018), a dúvida acerca do nexo entre texto e autores do romance se insere também nessa série de conflitos e desconfianças:

Carlos Sussekind é esquisito. Você imagina um escritor cuja principal atividade é alterar textos alheios? Imagina um livro escrito por dois autores? Quando ficar pronto ninguém saberá o que foi escrito por mim e o que foi escrito por ele. Este mesmo, que supostamente é meu em primeira pessoa, pode bem, na edição final, ter sido alterado por ele
(Sussekind; Daudt, 2001, p. 47).

Já indiquei também que esse tipo de dúvida é ostensivamente colocado em primeiro plano pelas vozes narrativas (Silva, 2018), seja tematizando-o, seja apresentando-o na forma de interpolações, rasuras, correções:

A essas alturas havia outra variável a considerar: Carlos Sussekind. O fato era que Francisco Daudt o considerava, assim como todos, um escrito cult. Seu romance Armadilha para Lamartine era visto como um marco um caso à parte na literatura. [O Carlos começou a riscar o texto, e acabei concordando em pular uma passagem, depois que ele protestou: “Francisco, você se esquece que eu também assino o livro. Mesmo como brincadeira, é cabotinismo demais!” — FD]
(Sussekind; Daudt, 2001, p. 14).

Tendo em vista que os autores-narradores-personagens haviam antes afirmado que os capítulos em primeira pessoa seriam escritos separadamente por cada um deles, sem que um mostrasse seus textos ao outro, “para evitar perda de tempo e aumentar as liberdade literárias” (Sussekind; Daudt, 2001, p. 21), e que os capítulos em terceira pessoa seriam escritos por ambos, a proliferação de rasuras, textos entre colchetes, insinuações de interferências mútuas etc. demonstra que o “procedimento de escrita do romance apresentado pelos autores-personagens […] não garante a regulação interna do texto” (Silva, 2018, p. 112).

Vê-se, portanto, que a dupla autoria fornece boa parte do material lúdico do texto. Ainda que não seja possível afirmar definitivamente o que pertence a quem, ou qual foi o processo exato da composição do livro, talvez seja interessante considerá-lo como uma solução diferente para os mesmos problemas apresentados a respeito de Que pensam vocês que ele fez, a saber, o da conexão entre as partes e a totalidade da obra e o da transformação da ideia em texto. Se no romance anterior a estratégia foi a da prorrogação, em O autor mente muito talvez possamos falar de divertimento (no sentido musical, como sugere Leite, 2002) ou gambiarra, seja pela falta de seriedade, seja pela possibilidade do improviso que o constitui. Baseado no mesmo princípio de abertura quanto ao desenvolvimento da obra — “Eu não sabia onde o livro ia dar”; “Uma coisa é o livro na cabeça, outra no papel. É só comparar a sinopse, que está no livro, com o resultado final” (apud Pires, 2001, p. 8) —, o último romance parece buscar a totalidade pelo desenvolvimento folhetinesco do enredo que envolve a escrita do livro e a solução do enigma de Teodoro Farpa, costurando, assim, o que considero ser o verdadeiro núcleo inventivo do livro, formado pelas histórias contadas por Teodoro Farpa acerca da vida extramuros de Carlinhos Manivela (que descobrimos ser Carlos Sussekind, no fim do romance).

Essa diversidade de processos de que falei até aqui — respectivamente, a bricolage, o work in progress, o prolongamento e o divertimento/gambiarra — parece apontar para a configuração de uma ideia de escrita que se desenvolve pelo (ou apesar do) enfraquecimento da ideia de autoria (via utilização de texto alheio, aconselhamento, coautoria) e da função do projeto (via submissão do projeto ao material já disponível, persistência do inacabamento, prorrogação da composição, utilização do acaso e mobilização do improviso). Por esse caminho, conecta-se com as afirmações recorrentes do autor acerca de sua dificuldade de escrever (Sussekind, 1998a; Scliar; Sussekind, 2000; Chiodetto, 2002), na medida em que o libera da definição da escrita literária como ofício verbal típica de certa concepção moderna de literatura — “Gosto cada vez mais de imaginar e menos de escrever. Há ficcionistas que trabalham estimulados pelo embate das palavras. Eu fico mais ligado nos enredos” (Sussekind apud Chiodetto, 2002, p. 113). Tal liberação, no entanto, parece se dar em uma direção bastante particular, já que conecta sua obra com práticas escriturais de conjunção improvável, ligadas à narrativa oral e à literatura de grande circulação, por um lado, e a práticas neovanguardistas, por outro.

A valorização do enredo, bem como a concepção de certos temas e tipos recorrentes que se atualizam diversificadamente em uma série de obras, parece acompanhar, na ficção de Sussekind, um diálogo com a narrativa oral e a literatura de grande circulação enquanto discursos particularmente proteiformes. Em tons de seriedade variada, dentro e fora de seus livros, Sussekind frequentemente se refere à narrativa oral como forma privilegiada de literatura, seja valorizando o prazer de contar em detrimento da “admiração meio fetichista por um livro escrito” (apud Coelho, 1992, p. 158), seja referindo-se à escrita, agora em um contexto ficcional e jocoso, como uma maneira de “engessar o pensamento numa forma final, abdicar da fluidez do raciocínio, a beleza da fugacidade que a literatura contada possuía” (Sussekind; Daudt, 2001, p. 19-20). Já o diálogo com a produção cultural de grande circulação, mais multifacetado e indireto, precisaria de um trabalho específico e de um esforço mais detido de análise para ser apresentado com propriedade. Poderíamos tomar aqui os diversos roteiros de histórias em quadrinho redigidos por Lamartine em Armadilha para Lamartine e Que pensam vocês que eles fez como exemplos paradigmáticos desse diálogo. Para além da temática bem típica da indústria cultural norte-americana, principalmente nos roteiros de histórias em quadrinho de Armadilha para Lamartine, em que cowboys lutam contra indígenas e o protagonista adquire poderes especiais, tais roteiros parecem apontar para o aspecto camaleônico que Nuno Medeiros (2019, p. 30) identifica, com base na leitura de Jacques Migozzi, no centro mesmo das literaturas ditas “populares” ou de grande circulação:

Ao contrário de outro tipo de literatura, cujo desígnio é frequentemente a fixação da forma derradeira [...], a literatura produzida para um consumo de grande divulgação [...] teria a sua razão de ser na perenização das suas faculdades de entretenimento, potenciadas pela assunção de avatares multiplicados e exteriores à forma inicial
(Medeiros, 2019, p. 30)

Os roteiros de histórias em quadrinho se conectam a esse pendor pela multiplicação, seja por se constituírem como uma série de refigurações da vida da mesma personagem (o próprio Lamartine), sem que isso implique continuidade diegética entre as diferentes histórias dos quais é protagonista, seja pelo fato de Lamartine produzir sempre, e apenas, os roteiros das histórias em quadrinho, passíveis, portanto, de atualizações diversificadas, seja ainda por serem esses roteiros um elo importante numa circulação incessante de reformulações intergenéricas na ficção de Sussekind (em que o diário é reformulado em romance, entrechos de romance são transformados em roteiros de histórias em quadrinho, histórias em quadrinho remetem a relatos de sonhos, que por sua vez podem ser reelaborados em entradas de diário, e assim por diante). Apontariam, portanto, para uma espécie de internalização desse processo de multiplicação de avatares de que fala Medeiros (2019), que teria sua contraparte externa na construção de uma obra que se organiza como uma série de variações sobre alguns elementos recorrentes.

Em contrapartida, contudo, a par dessa aproximação com o pop e o popular, da qual a valorização do enredo sobre o significante narrativo seria um aspecto importante, há, na variação de procedimentos compositivos empregados por Carlos Sussekind, na negação de uma busca por uma forma própria e, em muitos casos, na negação do acabamento narrativo em geral, uma deriva bastante experimental que conecta a obra de Sussekind com as experiências da neovanguarda suas e nossas contemporâneas, de modo especial as que operam na intercessão entre a repetição, o enfraquecimento da autoria e a reformulação da ideia de representação — na pop art e na arte de apropriação, como as estudadas, por exemplo, por Hal Foster (2017) e Leonardo Villa-Forte (2019) —, ou entre a repetição e a valorização do aspecto processual da obra em detrimento da ideia de produto acabado — no minimalismo e em certa música experimental, conforme indicado por Wim Mertens (1983) —, ou na admissão do acaso como fator constitutivo da construção da obra, parte de uma estética que incorpora o provisório, o precário e o inacabado, conforme propõe Haroldo de Campos (1975) para parte da arte da segunda metade do século XX.

Nesse sentido, pode ser relevante lembrar o trabalho de Sussekind como artista visual4, que, segundo Jahn (2011), também se estrutura sobre séries de variações desenvolvidas por meio de processos diversos (ainda que com temas mais bem delimitados em cada uma delas): “Os desenhos de Carlos Sussekind — a lápis, a nanquim, muitos coloridos a guache — foram realizados simultaneamente à escrita de seus livros, quase como narrativas paralelas, e formam séries bem distintas entre si, tanto pelos temas como pelo procedimento” (Jahn, 2011, p. 114). Assim, vão de “desenhos a carvão, delicados, de linhas limpas” (Jahn, 2011, p. 114), na dupla série já mencionada de Paula (de Ombros altos) e das amorous sisters, a experimentos com o acaso, como os desenhos realizados com o uso transgressor e repetitivo da máquina de escrever, “batendo as letras umas por cima das outras” (Jahn, 2011, p. 117), ou as “Manchas” produzidas aleatoriamente pelo “depósito em papel poroso de uma mistura de tinta nanquim com água deixada num pequeno recipiente até secar” (Jahn, 2011, p. 117), passando por séries em que “o desenho é sinuoso, carregado de detalhes, a cena parece mover-se em ondulações, e o efeito é de tensão, reforçada por um registro quase humorístico” (IMS, 2011), tensão esta relativa seja à violência médica, na série “dos psicólogos”, seja ao tédio e à violência da rotina burocrática na série “Escritório” — na qual parece ressoar também a resistência à escrita enquanto trabalho metódico.

Essa abertura para a diversidade de processos de criação que incluem a dubiedade, o inacabamento, o erro, o acaso e o improviso se miniaturiza, por sua vez, em diversas “pequenas idéias brilhantes e inúteis” (Trigo, 2002, p. 3) que se espalham por sua ficção, inventadas ou descobertas por suas personagens: o Teatro de Efeito Eletrostático, um “palco” de metal coberto com acetato no qual pedacinhos de papel dançam e interagem movidos pela eletricidade estática (Sussekind, 1994, p. 226-234); a Spinoza, ou TV-surpresa, aparelho de televisão que apresenta um filme interminável guiado por mudanças casuais de perspectiva (Sussekind, 1994, p. 234-248); o jogo dos provérbios-dominós, no qual o objetivo dos participantes é “encaixar” um provérbio no outro pela repetição de uma de suas palavras (Sussekind, 1994, p. 184-194); as matrizes do universo, procedimento de geração de imagens ao acaso com água e tinta (Sussekind; Daudt, 2001, p. 196-200), versão ficcional da já mencionada série de desenhos “Manchas”; o potencialmente interminável Dicionário de Provas de Amor (Sussekind; Daudt, 2001, p. 35-38), que pode ser entendido como uma espécie de avesso ficcional e não burocrático de seus trabalhos de tradução e organização de dicionários; e, talvez, mais amargamente, a máquina do psicólogo que aparece no fim de Ombros altos e na segunda das mensagens escritas por Lamartine em Armadilha para Lamartine, que coloca os protagonistas em “vôo frenético pela sala” (Sussekind, 1976, p. 30; Sussekind, 2003, p. 105), prolongando para o registro verbal a série de desenhos “dos psicólogos”, na qual “há sempre um personagem central […] sendo submetido a diferentes procedimentos caricaturalmente científicos por um grupo de médicos de fisionomia satisfeita” (Jahn, 2011, p. 115).

Esses pequenos projetos ou invenções são ainda exemplos das variações que estruturam a ficção de Sussekind, mas que se desenvolvem em outra escala. São, de certa maneira, o inverso complementar da relação entre temática repetitiva e processo diversificado de que falamos até aqui: transformam em tema a variação de processos (enquanto conjuntos de condições ou regras que determinam um desenvolvimento relativamente aberto e não previsível do jogo, criação ou espetáculo), enquanto são configurados mediante um mesmo processo de apresentação verbal, próximo ao resumo ou à paráfrase. Indicam, assim, a necessidade de um estudo em outra escala da obra de Sussekind, focado não na diversificação do processo de composição das obras como um todo, mas na maneira como as pequenas digressões, projetos e narrativas que constituem cada uma de suas obras ressoam entre si, se diversificam e se conectam com a totalidade (por vezes precária) de que fazem parte.

Notas

  • 1
    A maioria das informações que se seguem foram dadas por Jorge Viveiros de Castro (2003, p. vii-viii) e pelo próprio Carlos Sussekind (2003, p. xiii-xvi).
  • 2
    As metáforas auditivas utilizadas por Sussekind fazem ressoar, ainda, algumas experiências musicais da segunda metade do século XX e do início do século XXI, ligadas principalmente ao minimalismo, que, conforme defende Wim Mertens (1983, p. 87-92), mobilizam as formas repetitivas como uma maneira de valorizar o caráter processual da obra em detrimento da sua contemplação enquanto totalidade ou produto acabado.
  • 3
    Vai na mesma direção uma afirmação de Daudt na mesma entrevista: “Eu propus: vamos escrever em parceria. Eu farei papel de Ben-Hur, remador das galés, e você será o imperador!” (apud Pires, 2001, p. 8).
  • 4
    Alguns dos desenhos de Sussekind (para além dos que ilustram as capas e o interior de seus livros em diferentes edições) estão publicados no número 8 da revista Serrote, em que também aparece o ensaio de Heloisa Jahn. É também de Sussekind a imagem da capa do livro de poemas Números anônimos, de Armando Freitas Filho, produzida com uma máquina de escrever.

Referências

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  • Editores:
    Paulo César Thomaz e Luciene Azevedo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2024
  • Aceito
    26 Nov 2024
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Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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