Com a tradução de “As doenças da Personalidade”, de Théodule Ribot (1839-1916), publicado pela Editoria UNIFESP, de São Paulo, em 2021, 208 p., Wilson Antonio Frezzati Jr. oferece à comunidade de língua portuguesa um livro de importância histórica extraordinária e que nos suscita, no contexto mais amplo da discussão levada a cabo ali, uma série de considerações que são de extrema importância não apenas do ponto de vista dos antecedentes da filosofia nietzschiana, mas também do ponto de vista de uma discussão contemporânea acerca do tema psicanalítico da identidade do eu no contexto da personalidade pulsional.
Frezzatti é, sem dúvida, um dos grandes nomes da pesquisa Nietzsche no Brasil e a presente obra aparece em um contexto mais amplo de sua própria pesquisa, de que resultam os livros Nietzsche contra Darwin, publicado pela Discurso Editorial em 2001 e que teve uma segunda edição em 2014, pela Loyola e A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/biologia, publicado pela Editora UNIJUÍ, em 2006. Há também um lançamento mais recente que se conecta diretamente com a presente tradução. Trata-se de “Nietzsche e a fisiopsicologia francesa do século XIX”, publicado pela Editora Humanitas em 2019, no qual Frezzatti faz uma aproximação entre Nietzsche e Ribot, considerado o fundador da psicologia científica francesa, tendo como pano de fundo uma historiografia do pensamento psicológico francês do século XIX. Nesse livro, Frezzatti revisita o interesse que o século XIX e especificamente o universo da filosofia materialista francesa mantém pela psicologia, principalmente pela psicologia empírica, e mais especificamente por aquela desenvolvida por Condillac e Maine de Biran, que abandonam o princípio metafísico presente na tradição filosófica de uma alma imortal e se dedicam ao estudo das sensações, portanto de uma psicologia empírica, deixando, por assim dizer, caírem as suas auréolas na lama dos bulevares (tal como aparece poeticamente em Baudelaire) e passando a se interessar por um psiquismo de fundo orgânico.
É nesse contexto de estudos de Nietzsche a partir de suas fontes que encontramos a presente tradução levada a cabo por Wilson Frezzatti Jr. O tradutor ressalta que nos textos filosóficos de Nietzsche, Ribot não é especificamente nomeado ou tratado, mas, por outro lado, existem duas cartas nas quais o filósofo alemão menciona a Revista Revue Philophique e seu fundador (p. 200). Nietzsche cita explicitamente o nome de Ribot em carta escrita a Paul Rée, do início de agosto de 1877, e em outra para Malwida von Meysenbug, de 4 de agosto do mesmo ano. Nelas, o filósofo alemão menciona ter conhecido o Prof. G. C. Robertson, editor da revista inglesa Mind, e escreve que comparável a ela apenas a “Revue philosophique de Th. Ribot” (cf. Nietzsche 1986, 266 e 268). Segundo Frezzatti, Haaz (2002, 109-110) afirma que o filósofo alemão teria lido “Les maladies de la mémoire” (1881), “Les maladies de la volonté” (1883) e “Les maladies de la personnalité” (1885) de Ribot, porém reconhece as dificuldades de estabelecer com certeza as leituras que Nietzsche tenha feito do psicólogo francês e de sua revista (Frezzatti, 2013, p. 270). Porém, é ponto pacífico que Nietzsche conhecia a revista de Ribot e seus autores, muitos dos quais escreveram livros que constavam da biblioteca pessoal do filósofo da Wille zur macht.
É interessante notar que Frezzatti, em texto associado à sua tradução, menciona que nesse mesmo periódico foram publicados diversos artigos e resenhas de livros sobre Nietzsche, uma delas escrita pelo próprio Ribot (p. 200). Há, portanto, um interesse pela leitura de Nietzsche, que vai aparecer e reverberar também no livro Essai sur les passions, de 1907, no qual Ribot aborda e discute, entre outros temas, a Wille zur Macht nietzschiana. É preciso recordar também, nesse contexto, o livro de Ribot chamado La Philosophie de Schopenhauer, publicado em 1874, no qual o filósofo nos fornece uma visão de conjunto da obra do autor, no entanto especialmente focada em Die Welt als Wille und Vorstellung (1819/ 1844), discutindo, entre outras coisas, o papel do eu na sua relação com a vontade, o caráter provisório e inconstante da consciência, bem como a noção de um mundo inconsciente ligado ao organismo e a simpatia do autor francês em relação à circunscrição da metafísica aos limites estritos da experiência defendida por Schopenhauer, e que, nesse sentido, estaria restrita à investigação do que está ao fundo da experiência. Nesse sentido, Ribot esclarece que em Schopenhauer é vedada a investigação dos fenômenos físicos e psíquicos a partir de conceitos transcendentes, tais como o de alma imortal. Segundo Lefranc, o interesse por Schopenhauer se dá no âmbito do interesse de suas hipóteses para uma psicologia experimental (Lefranc, 2005, p. 22). O interesse comum por Schopenhauer proporciona a Ribot e Nietzsche certa afinidade natural e mesmo um ar de família, ainda que cada um preserve em suas obras a especificidade de suas próprias preocupações e objetivos. Em Ribot, ressaltamos a especificidade de seu projeto de estabelecer no ambiente positivista francês uma psicologia empírica voltada à investigação científica dos fenômenos psíquicos, aumentando a distância entre a psicologia e a metafísica transcendente e a aproximando da filosofia imanente e da ciência, no que prepara terreno para Freud, especialmente pela admissão de um Eu fragmentário, em fluxo, cindido entre disposições fisiopsicológicas e ambientais, e pela discussão de um psiquismo inconsciente de fundo orgânico.
Fica exposto, portanto, o interesse abrangente dessa tradução de Frezzatti que é enaltecida aqui, dada a importância e fecundidade da obra de Ribot. Nela, o francês se dedica especificamente à elucidação do papel da consciência no conjunto do psiquismo ligado ao corpo e às sensações, ao obscuro senso íntimo, aos aspectos inconscientes dessa relação entre o eu e o organismo, a partir dos fenômenos considerados mórbidos. Esses elementos que interessam também sobremaneira a Nietzsche, ainda que persistam, naturalmente, apesar disso, diferenças específicas entre os autores.
Escrito originalmente em língua francesa, e publicado em 1885, “Les Malladies de la personnalité”, aparece no contexto da assimilação do materialismo francês (especialmente Maine de Biran), do positivismo de Comte e da crítica de seus contemporâneos e antecessores à metafísica tradicional, em especial ao conceito de alma indivisível. Com a difusão e o fortalecimento do positivismo como pensamento e como ciência surge uma corrente positivista específica e dissidente de seu ramo principal que buscou uma psicologia de base fisiológica e que recebeu influências do associacionismo inglês (sua premissa básica é a de que os fenômenos propriamente psíquicos se originam de associações de ideias), da fisiologia alemã e do evolucionismo de Herbert Spencer (Criador da expressão “sobrevivência do mais apto”, que, mais tarde, foi utilizada por Darwin em “A origem das espécies”). Entre os integrantes dessa vertente do positivismo está Ribot, o que elucida em grande medida o conjunto das preocupações do autor e sua forte utilização de princípios do associacionismo na obra traduzida por Frezzatti. Segundo a introdução à obra escrita pelo tradutor, “o projeto de Ribot é produzir uma psicologia científica, experimental e fisiológica, contraposta a uma psicologia filosófica e metafísica.” (p. 19) Para isso, Ribot aborda primeiramente o problema da natureza da consciência, que para ele pode ser melhor abordado partindo das referências às desordens ligadas à personalidade. A partir disso, no primeiro capítulo, trata das desordens orgânicas; no segundo, das desordens afetivas; no terceiro, das desordens intelectuais; e, no quarto capítulo, da dissolução da personalidade, concluindo que o Eu é uma coordenação entre diferentes condições fisiopsicológicas.
Essa compreensão das bases fisiológicas do psiquismo levada a cabo por Ribot e ressaltada por Frezzatti conduz à já mencionada recusa da metafísica tradicional e à defesa de uma psicologia investigativa, experimental. Nesse sentido, o eu como suposta unidade não é uma simples e invariável essência do humano, mas sim, pelo contrário, aparece meramente como um complexo variável e coordenado de tendências, instintos, desejos e memórias, e, como tal, pode estar mais bem integrado ou, no extremo oposto, pior integrado ou até mesmo desintegrado. Nesse sentido são compreendidas as doenças da personalidade e, visto de modo mais abrangente, é também a forma de compreensão da psicologia humana como qualquer coisa inteiramente dependente da estrutura física do organismo e de seu funcionamento. Ressalte-se aqui a importância metodológica da forma como a obra está estruturada, a saber, a intenção de Ribot de explicar o funcionamento habitual do psiquismo a partir daquilo que se entende como patologias psíquicas, expondo que ali existem diferenças de grau em relação às condições consideradas normais e não diferenças de natureza. Além disso, essas condições mórbidas mostram que o Eu humano se sustenta precariamente a partir do instável foco da consciência, denunciando sua origem orgânica e sua funcionalidade influenciada pelas condições internas do organismo e pelas condições sociais e ambientais em geral, o que contrasta completamente com a ideia de uma alma simples e indivisível. O que Ribot nos demonstra é que as condições básicas de nossa personalidade são mais bem descritas a partir de nossa capacidade de rememorar, pelas nossas relações com o ambiente e pelas nossas tendências afetivas originárias e adquiridas.
De acordo com isso, importa conhecer as relações entre psiquismo e cérebro, as condições orgânicas da personalidade, a causalidade psíquica e o problema da identidade pessoal e da natureza do “eu” humano. Para Ribot, no livro traduzido por Frezzatti, o eu expressa o encontro entre tendências inatas e adquiridas e seu funcionamento oscilante (p. 115), causado pela necessidade de coordenação e consenso orgânico que se reflete no funcionamento psíquico. Para Ribot, estados interiores ou influências exteriores reforçam tendências e modificam o epifenômeno que é descrito como Eu e que, portanto, está sujeito a toda sorte de vicissitudes e é uma “totalidade de coalizão” (p. 55). A psicologia da consciência, nesse sentido, não estuda o Eu como uma entidade, mas como um conjunto de estados, cada um deles um fenômeno particular, uma causalidade específica ligada e concomitante a certas condições de atividade do cérebro que podem ou não existir, modificando o todo desse complexo e, desse modo, alterando também o fluxo da consciência e a identidade ligada pura e simplesmente à atividade do sistema nervoso do qual depende e que, em grande medida são desconhecidas por nós (p. 182). Há, por exemplo, um conflito de forças de caráter muito desigual que se dá não no âmbito da própria consciência, mas entre “os elementos nervosos que os suportam e os engendram” (p. 182). O objeto do estudo de Ribot é, portanto, as associações e antagonismos de forças íntimas e em grande medida inconscientes que resultam em determinados estados instáveis, fátuos e evanescentes dentro de um fluxo incessante com comunidade de origem. As modificações mórbidas dessas relações espontâneas que integram o Eu, no livro de Ribot, expõem mais ainda a forma pela qual a integração do Eu se dá em condições habituais a partir de um núcleo orgânico e espontâneo, a marca pessoal que nos fornece uma identidade básica na sua conexão com o corpo. Nesses termos, a consciência é uma pequena parte do psíquico, que permanece ativo além dela, o que nos conduz ao pensamento acerca de suas raízes profundas e obscuras originadas no cérebro e no todo do organismo. Os fatos patológicos confirmam essa conclusão e assim se explica o interesse do estudo que resulta no próprio livro traduzido por Frezzatti e que se insere no contexto das pesquisas deste tradutor.
Se em seu livro sobre a fisiologia francesa do século XIX o tradutor faz um complexo mapeamento do modo como a ideia de fisiologia se configura num terreno comum a Ribot e Nietzsche e também destaca o modo como o último assimila temas e conceitos do ambiente científico no qual vive e faz questão de conhecer, esclarecendo a partir de ângulos inusitados a noção de fisiologia em Nietzsche, no entanto, ao assumir essa ideia como pressuposto para explicar a relação de Nietzsche com suas leituras tomou a iniciativa de traduzir “As doenças da personalidade”. Com o estudo das fontes de Nietzsche, Frezzatti preenche uma importante lacuna de nossa historiografia das relações entre filosofia e ciência, especialmente no que concerne a uma fisiopsicologia. É por isso que a leitura da tradução levada a cabo por Frezzatti nos ensina a ler melhor também o próprio Nietzsche.
Frezzatti ressalta que as considerações nietzschianas sobre a multiplicidade da alma e do sujeito seguem de perto alguns elementos da psicofisiologia do século XIX. Essa influência é sugerida, segundo o autor e tradutor, ao final do parágrafo 12 de “Além de bem e mal”, no qual o filósofo alemão propõe um novo psicólogo, livre da superstição da alma [Seele]. No entanto, esse psicólogo é também livre para inventar novas possibilidades para a definição e aplicação desse conceito, tal como o fazem Nietzsche, Freud e Ribot. É nesse contexto que Frezzatti identifica uma característica comum tanto a Ribot quanto a Nietzsche: a imensa quantidade de autores utilizados em seus textos, o que torna difícil a investigação dessas múltiplas fontes de pesquisa. Na certa, um dos caminhos é o da exegese das obras presentes no contexto dessa comunidade de interesses entre os dois autores, no que Frezzatti contribui imensamente ao verter para o português “As doenças da personalidade”.
Referências
- FREZZATTI JR., W. Nietzsche e a fisiopsicologia francesa do século XIX São Paulo: Humanitas, 2019. (Nietzsche em perspectiva, 5).
- _____. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/biologia Ijuí: UNIJUÍ, 2006.
- _____. Nietzsche contra Darwin São paulo: Discurso Editorial, 2001.
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_____. “Nietzsche e Ribot: Multiplicidade e filosofia da subjetividade”. Philósophos, Goiânia, v. 18, nº 2, p. 263-291, jul./ dez. 2013. Disponível em https://revistas.ufg.br/philosophos/article/view/25073 Acesso em 20 de fev. de 2022.
» https://revistas.ufg.br/philosophos/article/view/25073 - HAAZ, I. Les conceptions du corps chez Ribot et Nietzsche à partir des Fragments posthumes de Revue philosophique de la France et de l´ étranger et de la Recherche-Nietzsche Paris: L´ Harmattan, 2002.
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- _____. As doenças da Personalidade São Paulo: UNIFESP, 2021.
- SCHOPENHAUER, A. Die Welt als Wille und Vorstellung, - 1819 (1 a. Ed.), 1844 (2a. ed.). In: Sämtliche Werke, ed.Wolfgang Frhr. von Löhneysen, Frankfurt, 1986, 5 vol[vol. 1]s.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
01 Abr 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2022
Histórico
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Recebido
01 Nov 2021 -
Aceito
12 Dez 2021