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A gestação de O nascimento da tragédia * * Primeira versão apresentada no Simpósio Nacional 150 anos de publicação de O nascimento da tragédia, de Nietzsche, organizado por Tereza C Calomeni e realizado entre os dias 15 e 19 de agosto de 2022 na Universidade Federal Fluminense. Parte dele também desenvolve questões apresentadas no meu posfácio à tradução de O nascimento da tragédia (Tradução: Paulo César Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2020)

The gestation of The birth of tragedy

Resumo:

A história da produção de O nascimento da tragédia pode ser acompanhada, em seus diversos estádios, a partir dos seus textos preparatórios. Meu objetivo é realizar uma descrição panorâmica desse processo, como homenagem ao trabalho realizado por Márcio Lima, em As máscaras de Dioniso . Nesse livro, ele analisou os ecos do primeiro livro de Nietzsche no conjunto de sua obra (publicada e póstuma).

Palavras-chave:
tragédia, música, dionisíaco

Abstract:

The history of production of The Birth of Tragedy can be followed, in its diverse stages, by means of its preparatory texts. My goal is to carry out a general description of this process. By doing so, I hope to honor Lima’s The Masks of Dionysus . In this book, he analyzed the echoes of Nietzsche’s first work in the totality of his Oeuvre (the published and the posthumous one).

Keywords:
tragedy, music, Dionysian

Em O nascimento da tragédia , duas características se destacam. Em primeiro lugar, a miríade de temas que, apesar de sua disparidade, conseguem ser articulados de forma criativa e engenhosa por seu jovem autor: o estudo filológico da Grécia antiga, as tradições classicista e romântica alemãs, a filosofia de Schopenhauer e o projeto artístico de Richard Wagner. Em segundo lugar, o fato de que esse livro condensa uma série de ideias e intuições que estarão presentes no conjunto da filosofia de Nietzsche, atravessando as diversas fases e reformulações pelas quais seu pensamento passará. Não é à toa que Nietzsche chegará a sua obra de maturidade revisitando os temas de seu primeiro livro. Isso aparecerá não apenas em anotações dos anos mil oitocentos e oitenta, mas também no seu prefácio de 1886 a O nascimento da tragédia , nos seus comentários ao livro em Ecce homo , em várias cartas e anotações póstumas. Sua filosofia da maturidade, como que coroando suas obsessões, será denominada “filosofia dionisíaca”. Ao fazer essa interpretação posterior e retroativa, Nietzsche explicita que sua última filosofia pode ser compreendida à luz dos temas desenvolvidos no seu primeiro livro. O que não é de estranhar, pois algo que permanece em toda a obra de Nietzsche é justamente uma concepção estética do mundo, segundo a qual uma atividade criadora e plástica é marca distintiva de toda a realidade. Nesse sentido, toda a filosofia de Nietzsche pode ser entendida como uma tentativa de explicação do trágico no mundo e uma explicitação daquilo que ele chama dionisíaco.

Essas duas características do primeiro livro de Nietzsche foram analisadas com maestria e propriedade por Márcio Lima em As máscaras de Dioniso. Filosofia e tragédia em Nietzsche. Atravessando o conjunto da obra de Nietzsche à luz de sua relação, nem sempre amistosa, com O nascimento da tragédia , Márcio Lima já revelava em seu livro de estreia algumas características que permaneceriam em seu trabalho de intérprete de Nietzsche: vasta cultura – não apenas filosófica – e grande independência intelectual. Depois de discutir diversos momentos em que Nietzsche revisita, nos anos mil oitocentos e oitenta, o livro sobre a tragédia, Márcio Lima resume, na conclusão, o resultado de seu trabalho: “Percebe-se, portanto, que Nietzsche faz suas concepções emergirem de suas teses sobre a tragédia, associando-as com os principais problemas, conceitos e doutrinas de sua última filosofia”. 1 1 LIMA, 2006 , p. 196.

Não menos importante, Márcio Lima não se limita ao texto de O nascimento da tragédia . Além dele, ele interpreta, de forma bastante precisa e pontual, anotações póstumas importantes para compreender não só as teses que aparecem explicitamente no livro publicado, mas também algumas menos evidentes ou mesmo obscurecidas. É nessa segunda senda que pretendo adentrar aqui, apresentando, de uma forma um tanto panorâmica, o que podemos chamar da gestação de O nascimento da tragédia , isto é, o conjunto dos textos preparatórios ao livro, através dos quais vão se somando as teses que enfim serão nele reunidas. O ponto de vista de sobrevoo que adoto se justifica pelo fato de que meu objetivo é indicar o movimento que esses textos revelam, em direção à forma final da obra.

Se, por um lado, os capítulos de O nascimento da tragédia acompanham, bastante linearmente, a progressão dos principais temas tratados no livro, esses temas podem, por sua vez, ser acompanhados pelos textos preparatórios e várias versões que o texto foi conhecendo . Explorar esses textos conduz não só a uma compreensão do próprio livro, mas do surgimento de ideias que, como Márcio Lima ressaltou, serão marcantes para toda a obra de Nietzsche. Essa documentação permite ver o caminho da formação dos temas que levarão a esse livro ao mesmo tempo tão complexo, problemático e instigante: a música como elemento essencial da tragédia, sua origem nos cultos dionisíacos, seu declínio pela introdução do otimismo racionalista de Sócrates e, enfim, o aceno ao ressurgimento do espírito trágico através da obra de arte total de Wagner.

Os primeiros textos que tratam dos temas presentes no livro aparecem em 1870, em duas conferências que ele realiza na Universidade de Basileia nos dias 18 de janeiro de 1870 e 1º de fevereiro de 1870: O drama musical grego e Sócrates e a tragédia . Entre julho e agosto de 1870, ele escreve A visão dionisíaca do mundo . Esse texto, depois de sofrer pequenas alterações, recebe o título de O nascimento do trágico e é dado de presente a Cosima Wagner. A primeira versão mais extensa da obra surgiu em 1871, como Origem e objetivo da tragédia , num manuscrito de 122 páginas. A segunda versão, com o título Música e tragédia , foi enviada à casa editorial Engelmann, de Leipzig, e por ela recusada. Ansioso em divulgar suas ideias sobre a tragédia, Nietzsche imprimiu, às suas próprias expensas, Sócrates e a tragédia grega e o enviou a amigos. Depois, submeteu um artigo sobre O dionisíaco e o apolíneo a uma revista acadêmica (a Preussische Jahrbüche r), embora duvidando que fosse aceito. A obra acabou vindo a lume, finalmente, como O nascimento da tragédia a partir do espírito da música , pelo editor W. Fritzsch, que publicava os escritos de Wagner, apenas em 2 de janeiro de 1872. Na segunda edição, de 1886, o título perdeu parte de seu caráter wagneriano (“espírito da música”), ganhando o subtítulo Helenismo e pessimismo , mais de acordo com sua visão retrospectiva da obra, além do prefácio, intitulado “ensaio de autocrítica”.

O drama musical grego consiste sobretudo na explicação do que significava a tragédia ática a partir da contraposição desta com os padrões adotados pela dramaturgia moderna. Nietzsche descreve como a concepção do teatro, de encenação e apresentação, na tragédia grega, eram distintas da concepção moderna do teatro, que se baseia na ação e numa concepção burguesa da fruição artística. Ao descrever os figurinos, o espaço do palco e os tipos de representação presentes na Grécia antiga, Nietzsche imagina o estranhamento que um contemporâneo seu teria se viajasse no tempo e visse as competições antigas de teatro. Em plena luz do dia, no contexto de uma celebração religioso-dionisíaca pela chegada da primavera, a tragédia era parte orgânica da vida naquela sociedade, e a experiência teatral dos autores, atores e plateia era completamente distinta daquela dos tempos modernos. Além disso, ao conhecermos os autores apenas pelos textos remanescentes, diz Nietzsche, não compreendemos a centralidade da música e do papel do coro na tragédia antiga, o destaque do p á thos (sentimento) em relação ao drama (ação). Segundo ele, personagem e coro formavam uma unidade, de tal sorte que o espectador sofria uma espécie de experiência mística; o autor, por sua vez, não era apenas um escritor, mas também, utilizando termos atuais, compositor, coreógrafo, diretor e mesmo ator.

Para ressaltar como a tragédia ática era mal compreendida em sua época, por conta de preconceitos oriundos de padrões estéticos classicistas, Nietzsche comenta a visão moderna da escultura grega:

Até recentemente valia como um axioma artístico incondicional a ideia de que toda arte plástica ideal teria de ser descolorida, de que a escultura antiga não permitiria a utilização de cor. Só muito lentamente, e com forte resistência daqueles hiper-helenistas, a visão policromática das artes plásticas antigas se impôs, segundo a qual elas não devem mais ser pensadas como nuas, mas cobertas com um revestimento colorido (GMD/GM, KSA 1.518).

Segundo Nietzsche, assim como a compreensão moderna das artes plásticas antigas estava equivocada quando considerava como modelo de beleza estética os mármores sem cor, nos enganamos completamente ao conceber a tragédia antiga, sendo inclusive resistentes a assumir uma Grécia que foge da ideia winckelmanniana da arte clássica. Do mesmo modo, isso revela o preconceito moderno de compartimentalizar a arte, como se a união de diversas artes numa obra manchasse sua pureza estética.

Como se não bastasse tudo isso, diferentemente da compreensão moderna da liberdade e originalidade artística, a tragédia antiga era caracterizada pelas convenções rígidas e pelos temas recorrentes. Não se procurava com inovação e surpresa, mas sim com a realização, através da música, da experiência da conversão do sofrimento ( Erleiden ) do herói em compaixão ( Mitleid ) da audiência (GMD/DM, KSA 1. 528). É nesse sentido que a obra total de Wagner, para Nietzsche, representaria a redescoberta, em termos modernos, dessa experiência originária:

Convenção e contudo beleza, multiplicidade e contudo unidade, muitas artes em ação e contudo uma obra de arte − isso é o drama musical antigo. Mas quem, ao perceber isso, se lembra do ideal do reformador artístico atual, terá de dizer ao mesmo tempo que aquela obra de arte do futuro não é, por isso, algo como uma miragem fulgurante e enganosa: o que esperamos do futuro é algo que já́ foi uma vez realidade − há mais de dois mil anos (GMD/DM, KSA1.531-2).

Apesar de parecer ainda dependente da leitura aristotélica da tragédia, o Drama musical grego delineia o pano de fundo histórico e a concepção estética que norteiam O nascimento da tragédia: uma leitura não classicista da civilização e da cultura gregas, o empenho filológico de captar o espírito daquela manifestação artística e enfim a defesa do projeto wagneriano. Nesse texto já aparece, aliás, uma das teses centrais de O nascimento da tragédia: a ideia de que o elemento fulcral da tragédia ática era a música entoada pelo coro. Nele também fica explícito o propósito de Nietzsche de questionar os cânones filológicos de uma Grécia idealizada.

Já na segunda conferência, Sócrates e a tragédia , Nietzsche reservou, para certo escândalo da plateia, outra de suas teses mais originais e polêmicas de O nascimento da tragédia: a do papel central de Sócrates no processo de declínio da tragédia e sua posterior substituição pela nova comédia. Nietzsche recorre explicitamente à comédia As rãs , de Aristófanes, e ao anedotário antigo, para justificar historicamente como se deu essa influência, ao lembrar o rumor de que Sócrates auxiliava Eurípedes na criação de suas tragédias, as únicas às quais, aliás, Sócrates se permitia assistir. Com isso, Nietzsche pretende fornecer elementos documentais para sua tese, mesmo que de forma indireta e episódica. Nesse texto Nietzsche também descreve, com algum detalhe, como, através da introdução de mais personagens em cena, e, com isso, a introdução de diálogos, infiltrou-se um aspecto dialético na tragédia. Com os personagens apresentando verbalmente justificativas e razões, a música perdeu espaço central que possuía e a tragédia foi paulatinamente se tornando mais realista, processo que atinge seu apogeu em Eurípedes. O responsável por essa naturalização e racionalização foi Sócrates, com sua “clareza apolínea” e seu espírito lógico-dialético. Essas questões, sabemos, serão longamente discutidas em O nascimento da tragédia , mas essa conferência, em particular, traz uma formulação importante sobre o socratismo, ausente no livro publicado: “O socratismo é mais antigo que Sócrates, sua influência dissolvente da arte se faz notar muito antes. O elemento da dialética mais próprio já se insinuava no drama musical muito antes de Sócrates, provocando efeitos devastadores no seu belo corpo. Essa corrupção teve seu ponto de partida no diálogo” (ST/ST, KSA 1.545).

Como se vê, uma característica marcante nesses textos são formulações de algumas teses históricas que não foram inteiramente destrinchadas no livro. Nessa passagem citada, por exemplo, Nietzsche esclarece como o declínio e a posterior morte da tragédia foram acompanhados por um processo de naturalização da representação teatral, que pode ser observada por diversos indícios. Além do desenvolvimento de diálogos, ocorre a substituição de personagens divinos e míticos pelos personagens ordinários do cotidiano, que passam a protagonizar a comédia nova. Com isso, surge uma nova dramaturgia, voltada não para o êxtase da plateia, mas para a compreensão do espectador.

Em Sócrates e a tragédia , Nietzsche dá um novo passo em direção a O nascimento da tragédia , ao desenvolver uma concepção de Sócrates que permanecerá em sua obra: como um opositor dos instintos. Em sua busca pelo saber, Sócrates encontrou entre os atenienses, homens de instinto, uma deficiência na justificativa de suas convicções. Por isso, ele se rebelou contra os instintos, procurando, a todo custo, justificar suas crenças por meio de razões. Sua crença racionalista básica era a de que o conhecimento é o caminho para alcançar o bem e o belo. Esse otimismo racionalista esbarrava no pessimismo da tragédia, uma arte patética e instintiva, que se expressa por meio dos sentimentos suscitados pela música, e não pelo raciocínio e pela palavra. Eurípides nada mais fez que seguir, segundo Nietzsche, os passos de seu mestre na negação da sabedoria trágica: “A decadência da tragédia, como Eurípides acreditava ver, era uma fantasmagoria: já que ninguém conseguia transpor suficientemente em palavras a sabedoria de técnica artística antiga, Sócrates negava essa sabedoria, assim como o Eurípides por ele seduzido” (ST/ST, KSA 1.542).

Se Drama musical grego apresenta o esboço geral de uma teoria sobre a tragédia antiga, em Sócrates e a tragédia encontramos a teoria sobre o declínio da tragédia a partir do espírito do socratismo. Em A visão dionisíaca do mundo , por sua vez, surge a mais célebre ideia presente em O nascimento da tragédia , que é a oposição entre Apolo e Dioniso, sua correspondência com os estados de sonho e embriaguez, assim como a concepção de que a tragédia surge da união entre esses dois princípios estéticos: Apolo como o Deus da bela aparência, e portanto das artes figurativas, e Dioniso como o Deus da menos figurativa das artes, a música, compreendida como som e melodia. Está presente também nesse texto a relação entre o conhecimento trágico da existência, condensada na sentença de Sileno, assim como a arte vista como uma espécie de consolo, estimulante e remédio para o sofrimento humano: “O grego conhecia os horrores e temores da existência, mas ele os cobria, para poder viver (...). Esse mesmo impulso que clama a arte para a vida, como complemento e perfeição da existência que seduzem a continuar vivendo, fez surgir também o mundo olímpico, um mundo de beleza, de paz, de prazer” (DW/VD, KSA 1.560-1. Cf. GT/NT 3, KSA 1.35).

Nas três primeiras seções de A visão dionisíaca do mundo começam a aparecer de forma mais explícita, ainda que discretamente, temas schopenhauerianos, como a dissolução do princípio de individuação como um ato da vontade realizado pelo êxtase dionisíaco. Esses temas aparecerão de forma ainda mais clara na quarta seção. Caracterizando esse texto, talvez de uma forma temerária, poderíamos dizer que ele é o elo entre as conferências, de algum modo mais ponderadas e historicamente balizadas, e o voo especulativo e arrojado de O nascimento da tragédia . Para corroborar isso, podemos lembrar que, ao presentear Cosima com uma versão desse texto, agora intitulado O nascimento do pensamento trágico , Nietzsche exclui a quarta seção, na qual ele cita explicitamente Schopenhauer e desenvolve sua própria teoria da linguagem simbólica, que repousa sobre a relação entre palavras, gesto e som, para fundamentar a teoria schopenhaueriana da prevalência da música em relação às artes figurativas na expressão do vontade. Esses são temas que aparecem em O nascimento da tragédia , mas que são abordados de forma mais detalhada em A visão dionisíaca do mundo e em póstumos da época, entre eles o célebre 21[1], da primavera de 1871, conhecido por muitos como Sobre música e palavra . No final de A visão dionisíaca do mundo , a tese sobre o ditirambo, que desempenhará papel importante em O nascimento da tragédia , já estava claramente antecipada: “Mas no ditirambo dionisíaco, o delirante dionisíaco é incitado ao máximo aumento de sua faculdade simbólica: algo nunca sentido força sua exteriorização, o aniquilamento do indivíduo, a unidade no gênio da espécie, sobretudo da natureza” (DW/VD, KSA 1.577).

Todos os temas que aparecem em certa medida separados nos textos preparatórios, ou seja, a questão do significado da tragédia (no Drama musical grego ), o papel de Sócrates no declínio da tragédia (em Sócrates e a tragédia ) e a oposição entre o apolíneo e o dionisíaco (em A visão dionisíaca do mundo ) se encontram em grande coesão no texto Sócrates e a tragédia grega , que pode ser considerado a primeira versão de O nascimento da tragédia , contendo inclusive passagens inteiras que depois seriam utilizadas no livro publicado.

Sócrates e a tragédia grega inicia-se com o anúncio do processo de declínio da tragédia e o surgimento da comédia nova, descrevendo o papel de Eurípides nesse processo, para então apontar a importância do coro na tragédia ática e da junção do apolíneo e do dionisíaco como a “origem e essência da tragédia”. Em linguagem abertamente schopenhaueriana, considera os “fenômenos ( Erscheinungen ) apolíneos” como formas de objetivação do dionisíaco. Nesse mesmo texto ele rememora ainda o fato de que o declínio da tragédia ocorreu pelo abandono do dionisíaco e por uma crescente racionalização da experiência. Com Eurípides, a tragédia passa a ter pretensões realísticas e perde o poder de expressar o dionisíaco. É importante observar que Nietzsche aqui já tem sedimentada a ideia de que o declínio da tragédia não significou o triunfo do apolíneo perante o dionisíaco. O que aconteceu, ao contrário, foi que, sendo dois princípios complementares, a perda de um significou o declínio do outro, e sua substituição pela dialética socrática. Nesse texto, aliás, se encontra uma formulação que sintetiza essa ideia, depois presente em O nascimento da tragédia: Dioniso já fora expulso do palco trágico, por um poder demoníaco que falava através de Eurípides. Também Eurípides era, em certo sentido, apenas uma máscara: a divindade que através dele falava não era Dioniso, tampouco Apolo, mas um demon inteiramente novo chamado Sócrates . Eis a nova oposição: o dionisíaco e o socrático , e a obra de arte que era a tragédia grega pereceu devido a ela (KSA 1.621. Cf. GT/NT 12, KSA 1.83).

Com o “socratismo estético”, diz Nietzsche, a linguagem ganha um novo estatuto, pois ela passa, de um meio superficial de atingir uma realidade mais profunda, para o único meio através do qual uma verdade regida pela lógica pode ser comunicada. A partir daí, exige-se da tragédia um ensinamento moral, a existência e a arte passam a ser submetidas ao bem e à verdade: “Basta imaginar as consequências das máximas socráticas: ‘virtude é saber; só se peca por ignorância; o virtuoso é o mais feliz’; nessas três fórmulas básicas jaz a morte da tragédia. Pois agora o herói virtuoso tem de ser dialético; agora tem de haver, entre virtude e saber, crença e moral, uma ligação obrigatoriamente visível (...)” (ST, KSA 1.633/NT 14, KSA 1.94).

A versão prévia mais completa de O nascimento da tragédia é o texto Origem e objetivo da tragédia , composto pelo texto de A visão dionisíaca do mundo , dividido agora em sete partes, seguido de outros doze capítulos. Barbara Reibnitz atenta para o fato de que essa versão é importante não só naquilo que foi aproveitado para O nascimento da tragédia , mas também naquilo que foi descartado, particularmente a parte que trata da relação entre arte e política na Grécia antiga. Reibnitz 2 2 REIBNITZ, 1992 , p. 44. resume os temas dos capítulos dessa versão da seguinte maneira:

  • §§

    1 – 7: Texto de A visão dionisíaca do mundo , com outra divisão

  • §§

    8-14: Relação entre Arte e Estado

  • §

    15: Versão modificada de Sócrates e a tragédia

  • §

    16: A questão do diálogo na tragédia e o Édipo de Sófocles

  • §

    17: Sobre o Prometeu de Ésquilo

  • §

    18: O caráter dionisíaco da tragédia e a relação de Eurípides com Dioniso

  • §§

    19-21: Eurípides e a comédia ática

  • §

    22: O papel destrutivo de Sócrates e Platão sobre a tragédia

  • §§

    23 e 24: Ciência e Arte

O que salta aos olhos nessas versões preliminares de O nascimento da tragédia , com exceção do texto sobre o drama musical grego, é a ausência da apologia wagneriana e germânica presentes nos capítulos finais da obra. Sabe-se que Nietzsche enviou para a editora um manuscrito ainda inacabado, e provavelmente foi entre esse primeiro envio e a publicação do livro que Nietzsche finalizou aquela que é a parte mais militante de O nascimento da tragédia . É o que atesta Michael Kohlenbach:

Os capítulos seguintes 16 a 25 do Nascimento não mostram, na prova de impressão, relações tão complicadas [quanto as dos capítulos anteriores]; uma vez que se pode, claramente, apontar menos trabalho dedicado a esses capítulos, pode-se concluir que Nietzsche, que se ocupava, neles, com o “fenômeno da atualidade”, que a propaganda para Wagner foi para o papel de forma mais e rápida e menos escrupulosa. Não obstante, Nietzsche ocupou-se do Nascimento até os últimos dias, assim que começou a fase de impressão, sob o aumento do trabalho de impressão e com muita pressa. 3 3 KOHLENBACH, 1994 , p. 373.

Este panorama apresentado aqui, portanto, descrevendo o processo de criação de O nascimento da tragédia , pode lançar luz sobre os motivos que levaram Nietzsche a excluir partes do manuscrito e revela muito o que era mais central para Nietzsche em sua reflexão sobre a tragédia, com questões que permaneceriam até seus últimos dias de produção filosófica, tema que conheceu um tratamento exemplar no livro As máscaras de Dioniso , de Márcio Lima.

Referências

  • KOHLENBACH, M. Die “immer neuen Geburten”. Beobachtungen am Text und zur Genese von Nietzsches Erstlingswerk “Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik”. In: BORSCHE, T.; GERRATNA, F.; VENTURELLI, A. Centauren-Geburten. De Gruyter, 1994.
  • LIMA, M. J. S. As máscaras de Dioniso. Filosofia e tragédia em Nietzsche. São Paulo/Ijuí: Discurso/Unijuí, 2006.
  • NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988.
  • NIETZSCHE, F A visão dionisíaca do mundo. Tradução Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Maria Cristina dos Santos de Souza. Revisão da tradução: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2019.
  • NIETZSCHE, F O nascimento da tragédia. Tradução Paulo César Souza. São Paulo: Companhia da Letras, 2020.
  • REIBNITZ, B. von. Ein Kommentar zu Friedrich Nietzsche “Die Geburt der. Tragödie aus dem Geiste der Musik”. Stuttgart: Metzler, 1992.
  • 1
    LIMA, 2006LIMA, M. J. S. As máscaras de Dioniso. Filosofia e tragédia em Nietzsche. São Paulo/Ijuí: Discurso/Unijuí, 2006. , p. 196.
  • 2
    REIBNITZ, 1992REIBNITZ, B. von. Ein Kommentar zu Friedrich Nietzsche “Die Geburt der. Tragödie aus dem Geiste der Musik”. Stuttgart: Metzler, 1992. , p. 44.
  • 3
    KOHLENBACH, 1994KOHLENBACH, M. Die “immer neuen Geburten”. Beobachtungen am Text und zur Genese von Nietzsches Erstlingswerk “Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik”. In: BORSCHE, T.; GERRATNA, F.; VENTURELLI, A. Centauren-Geburten. De Gruyter, 1994. , p. 373.
  • *
    Primeira versão apresentada no Simpósio Nacional 150 anos de publicação de O nascimento da tragédia, de Nietzsche, organizado por Tereza C Calomeni e realizado entre os dias 15 e 19 de agosto de 2022 na Universidade Federal Fluminense. Parte dele também desenvolve questões apresentadas no meu posfácio à tradução de O nascimento da tragédia (Tradução: Paulo César Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2020)
  • Para Márcio Lima

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2023
  • Aceito
    12 Nov 2023
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