Resumo:
Entre os anos 2006 e 2016 foram publicados os oito volumes que integram a edição espanhola das Obras Completas e dos Fragmentos Póstumos de Nietzsche. Neste texto trata-se de sintetizar as razões da sua necessidade, as ideias que presidiram esta edição e os critérios nela adotados. O interesse tão generalizado que o pensamento e a obra de Nietzsche seguem suscitando tornava necessário que se dispusesse de uma edição fiável e íntegra dos seus escritos em castelhano, como a que já existia há muitos anos nas grandes línguas da cultura europeia. A situação a esse respeito pelos estudiosos de fala hispânica deixava muito a desejar, pois havia poucos textos bem traduzidos e muitos outros que careciam de rigor e fiabilidade. O propósito da nossa equipe foi cobrir esta lacuna, empreendendo uma edição íntegra e com rigor tanto do legado póstumo, como das obras publicadas por Nietzsche.
Palavras-chave:
Nietzsche; edição crítica; Obras Completas; interpretação; legado póstumo
Abstract:
Between 2006 and 2016, the eight volumes that make up the Spanish edition of Nietzsche's Complete Works and Posthumous Fragments have been published. This text tries to synthesize the reasons for the need for it, the ideas that have presided over this edition and the criteria adopted in it. The widespread interest that Nietzsche's thought and work continues to arouse made it necessary to have a reliable and complete edition of his writings in Spanish language, like the one that had already existed for years in the great languages of European culture. The situation in this regard for spanish-speaking scholars left much to be desired, since there were few well-translated texts and many others that lacked rigor and reliability. The purpose of our team has been to fill this gap by undertaking a comprehensive and rigorous edition of both the posthumous legacy and the works published by Nietzsche.
Keywords:
Nietzsche; critical edition; Complete Works; interpretation; posthumous legacy
I.
A edição em castelhano das Obras Completas e dos Fragmentos Póstumos de NietzscheNIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos Póstumos Vol. I (1869-1874). 2ª ed. Diego S. Meca (Ed.). Madrid: Editorial Tecnos, 2010., trabalho que tive a honra e a satisfação de dirigir e que durou dezesseis anos, se materializou em oito grandes volumes publicados entre 2006 e 2016 pela Editora Tecnos de Madri. Todo esse trabalho foi, obviamente, um trabalho de uma equipe de professores de distintas universidades espanholas, especialistas em Nietzsche, como Manuel Barrios Casares (Universidad de Sevilla), Luis Enrique de Santiago Guervós (Universidad de Málaga), Joan Bautista Llinares Chover (Universidad de Valencia), Juan Luis Vermal Beretta (Universidad de las Islas Baleares), Marco Parmeggiani Rueda (Universidad de Málaga) e Jaime Aspiunza Elguezábal (Universidad del País Vasco). Assim mesmo participaram nele, como colaboradores externos, um amplo número de professores, tanto espanhóis como estrangeiros, pessoal técnico especializado e vários bolsistas, o que seria muito prolixo nomear aqui. Portanto, a autoria e o mérito correspondem a todas essas pessoas que, como equipe, compartilharam durante todos esses anos um esforço firme e intenso, porém feito com satisfação e, sobretudo, com vocação intelectual1 1 No número 18 (2018) da revista Estudios Nietzsche, com título La nueva edicion de Nietzsche en castellano, foi publicado artigos relacionados a esta edição de Manuel Barrios Casares, José Emilio Esteban Enguita, María Cristina Fornari, José Ignacio Galparsoro, Scarlett Marton, Mariano Rodríguez González, Diego Sánchez Meca e Luis E. de Santiago Guervós. .
Um trabalho como este - prolongado durante dezesseis anos, que não aporta nem dinheiro, nem fama, nem poder -, a verdadeira motivação que, em realidade, se tem para fazê-lo não pode ser outra que a própria satisfação intelectual e filosófica, que produz o fato mesmo de o levar a cabo. Quer dizer, o que compensou aos membros da equipe de trabalho, do longo esforço implantado foi, mais que qualquer outra coisa, o cumprimento de nossa vocação de estudo e de aprofundamento no pensamento, que é, no fim das contas, o tipo de vida e de profissão escolhida pelos que se dedicam à filosofia, e com cuja ocupação e dedicação nos sentimos realizados.
Decidimos por estudar, traduzir e editar a obra de Nietzsche principalmente por duas razões. A primeira era o sentimento compartilhado por toda equipe acerca da indiscutível relevância, não só filosófica, senão também cultural, que o pensamento de Nietzsche teve ao longo do século XX. E isso era posto de manifesto no fato de que, aos que íamos tomar parte desta iniciativa, já havíamos publicado monografias e artigos sobre este autor, e o havíamos estudado a fundo com interesse. Porque acreditamos que Nietzsche foi um dos grandes configuradores e modeladores da cultura e da mentalidade contemporânea, e um poderoso incentivo para o debate de ideias em múltiplos âmbitos, desde a estética à política, passando pela moral, história das religiões, estudos de gênero, psicologia ou a teoria da ciência. O que demonstrava que Nietzsche não era só um crítico espirituoso ou mais ou menos outsider, senão que as ideias centrais de suas análises e de suas propostas já se converteram, para muita gente, em elementos significativos de sua própria autocompreensão.
Por este interesse tão generalizado que despertava, e que segue despertando, nos pareceu necessário que se pudesse dispor de uma edição confiável e íntegra de seus escritos em castelhano, como a que já existia há anos nas grandes línguas da cultura europeia: em francês, inglês, italiano, alemão, e inclusive em outras línguas, como o japonês. A situação que tínhamos no mundo de língua hispânica em relação às obras de NietzscheNIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos Póstumos Vol. II (1875-1882). Diego S. Meca (Ed.). Madrid: Editorial Tecnos , 2008. deixava muito a desejar. Havia poucos textos bem traduzidos e muitos outros que faltavam rigor e fiabilidade. O que nos propusemos, portanto, foi cobrir esta lacuna empreendendo uma edição íntegra e com rigor, tanto do legado póstumo como das obras publicadas por Nietzsche.
Isso em termo dos fatores externos que motivaram nossa decisão. Porém, também teve outra razão mais de fundo, uma razão propriamente filosófica, que nos moveu, possivelmente de uma maneira mais forte, a empreender esta ambiciosa tarefa de estudo e edição. Era a pergunta acerca de se o contexto cultural em que nos encontrávamos, já no começo do século XXI - pois formamos nossa equipe e nos colocamos a trabalhar justamente no ano 2000, ano em que se celebrou o primeiro centenário da morte do filósofo -, se este novo contexto cultural, digo, já tinha abandonado as situações históricas da Europa nas quais o pensamento de Nietzsche foi manipulado, distorcido e desfigurado. Ou dito em outras palavras: nos perguntávamos se podíamos concretizar, por fim, uma edição que, em vez de estar ligada a uma posição ideológica prévia, atendesse unicamente a apresentar imparcialmente a produtividade de ideias dos textos de Nietzsche, aberta às distintas interpretações que as possíveis novas leituras se poderiam fazer livremente deles.
Por que não ficou, o pensamento de Nietzsche, fortemente estigmatizado pela utilização que conduziram dele o nazismo e o fascismo? E o mesmo, embora em menor força, pela interpretação contrária a esta, ou seja, aquela que de Nietzsche fizeram os marxistas heterodoxos ou a leitura, para muitos caótica e extravagante, de alguns artistas e literatos de vanguarda? Seguia sendo realmente interessante o pensamento e a obra de Nietzsche depois de tudo isto, para merecer de estudá-lo a fundo, traduzi-lo e editá-lo totalmente em castelhano, no lugar de nos ocupar da obra de algum filósofo mais clássico, ou seja, menos discutido e mais consagrado e com uma autoridade mais consolidada? Quero dizer, pensadores tão sólidos, tão tranquilizadores e, sem dúvida, muito mais rentáveis e seguros em termos acadêmicos como, por exemplo, Kant, Descartes ou Husserl?
Entendíamos que valia a pena estudar e editar a Nietzsche, sim, porque nos parecia não só interessante, mas inclusive muito interessante, o suficiente para justificar tanto esforço. Porque acreditávamos que a verdadeira produtividade do seu pensamento, sua riqueza e potência, ao invés de se encontrarem refutadas e esgotadas, ainda estavam, em grande parte, por serem extraídos e desenvolvidos. Durante a primeira metade do século XX, a obra e o pensamento de Nietzsche NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos Póstumos Vol. III (1882-1885). Diego S. Meca (Ed.). Madrid: Editorial Tecnos , 2010.foi como uma espécie de campo de batalha, no qual interpretações opostas, desafiantes e em guerra entre si, mantiveram este pensamento preso e dominado por interesses ideológicos, condições e imperativos próprios do contexto histórico em que tiveram lugar. Na nossa atualidade de princípios de milênio, na nossa atual consciência filosófica e cultural, no que Hegel chama de “o espírito objetivo” do nosso presente, havia condições novas e forças distintas que nos animavam a somar o trabalho de muitos pesquisadores, dirigidos para que se pudessem ver outros sentidos e potencialidades das ideias de Nietzsche.
Nietzsche é um dos filósofos que melhor ensinam a pensar. Porque não é um filósofo doutrinário que mostra um corpo de teorias e de soluções como verdades em si que se tenha que acreditar, mas que nos convida continuamente a nos fazer perguntas, a estudar os problemas e as situações, a transformar as coisas com o pensamento e, finalmente, que você proponha uma interpretação, um sentido que você escolha, que você projeta e que você apresenta ao debate e ao diálogo com os demais. O pensamento de Nietzsche é, portanto, aberto, e as noções básicas da sua filosofia - a vontade de potência, o niilismo, o além-do-homem, o eterno retorno - não são mais que construções hermenêuticas formuladas para que o pensamento se apoie neles e voe através deles até as alturas. Não são receitas para categorizar, nem explicar dogmaticamente processos e nem situações. Por isso foram gravemente mal interpretadas nas leituras dogmáticas que, na primeira metade do século XX, fizeram de Nietzsche o nazismo e o fascismo, por um lado, e os movimentos libertários e os marxistas heterodoxos, por outro. Todos eles se esforçaram, de maneiras opostas, em monopolizar e em dar sentido doutrinário e ideológico ao pensamento de Nietzsche.
A interpretação nazista foi seguramente a mais impactante e carregou Nietzsche, e sua obra, a um grande desprezo e desprestígio depois do fim da guerra. Por isso, ainda hoje, quando um professor - e isso me ocorre com muita frequência - se põe diante de um auditório não especializado com a pretensão de falar sobre Nietzsche, ou que simplesmente o cite, não falta quem recorde a proximidade entre Nietzsche e Hitler. E isto não é só entre os que não sabem muita coisa de Nietzsche. No mundo acadêmico ainda são muitos - geralmente também ignorantes e que não leram, ou leram praticamente nada -, os que seguem reduzindo Nietzsche ao significado de precursor do nazismo, repetindo slogans e temas banais sustentados em posições ideológicas prévias e em preconceitos. Hoje já conhecemos muito bem os termos nos quais o uso do pensamento de Nietzsche foi gestado, que representava uma desfiguração bastante grosseira, forjada às pressas e que não tinha em conta muitos dos seus elementos explicitamente incompatíveis com o nazismo, como, por exemplo, o contínuo rechaço do nacionalismo, precisamente do nacionalismo alemão, sua implacável crítica ao mito da raça e ao antissemitismo, suas provocações a proposta wagneriana da religião como arte e tantas outras coisas.
A outra interpretação oposta, a dos marxistas heterodoxos, também foi outra utilização interessada e manipuladora do pensamento de Nietzsche, embora é claro muito menos brutal, portanto, menos impactante. Foi feita, geralmente, a partir de posições que se fixaram no poder subversivo que é próprio da obra nietzschiana. Nesta interpretação misturou-se Nietzsche com a luta de classes, com a alienação que produz a divisão do trabalho e com a violência das relações sociais que trouxe o capitalismo e a industrialização. A crítica que Nietzsche dirigiu à cultura burguesa foi interpretada como o precedente para a realização revolucionária do projeto marxista, embora essa realização ainda fosse entendida em termos de utopia.
Acredito que, em vista disso, tínhamos boas razões para nos animar em pôr à disposição do público os textos de Nietzsche tal como ele os escreveu, sem manipulações, más interpretações nem deturpações. Para isto, tivemos que elaborar um aparato crítico adequado que ajudasse sua leitura desde um ponto de vista puramente técnico. Quer dizer, apontando as correspondências de uns textos com outros, ou mostrar alguns resultados da pesquisa filológica e filosófica já realizada e disponível hoje sobre tais textos e temas.
Nossos objetivos foram, portanto, em primeiro lugar, oferecer uma tradução fiel da totalidade dos escritos de NietzscheNIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos Póstumos Vol. IV (1885-1889). 2ª ed. Diego S. Meca (Ed.). Madrid: Editorial Tecnos , 2008., de modo que tivéssemos em castelhano uma edição confiável e completa como a que já era disponível há muitos anos em outros idiomas além do alemão. O segundo objetivo era elaborar um determinado aparato crítico atualizado e em consonância com as exigências do material que estava sendo traduzido. Pareceu-nos muito necessária esta informação relativa ao caráter dos textos, dados relativos a nomes próprios ou lugares geográficos, referências bibliográficas, aspectos e observações para ter em consideração na contextualização do material tratado, para ajudar o leitor e o pesquisador a se orientar nos textos complicados e difíceis de Nietzsche. E o terceiro objetivo era contribuir com as introduções necessárias para traçar o contexto em que os escritos ou as obras se situam, tanto desde o ponto de vista filosófico, como histórico e filológico, a fim de permitir ao leitor também seguir a evolução em que cada uma das obras e escritos de Nietzsche foram gestados e inseridos. Finalmente, essa informação é completada com os índices e comentários mais amplos, tanto sobre os problemas filológico-textuais, como de recepção e interpretação das obras de Nietzsche, coletados no último volume da seção de Complementos à edição.
Aproveitamos, naturalmente, para este trabalho a já muito nutrida pesquisa que as diversas equipes de pesquisa internacionais contribuíram, ao longo dos últimos sessenta anos, em relação aos textos de NietzscheNIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe [KSA]. Giorgio Colli e Mazzino Montinari (Org.). Berlim: Walter de Gruyter, 1999, 15 v.. Neste sentido, destacamos os Nachberichte, que formam parte da Kritische Gesamtausgabe, que é a edição alemã realizada pelos italianos Giorgio Colli e Mazzino Montinari, e que serviu de base para a nossa edição castelhana. O conjunto dessa edição original alemã já está disponível hoje em formato digital aberto na rede habilitada pelo grupo de pesquisa internacional Hypernietzsche, dirigido pelo professor Paolo D’Iorio, www.nietzschesource.org. Essa edição digital já incorpora em seus textos as correções filológicas disseminadas nos diversos volumes complementares do aparato crítico e que só haviam sido incorporadas em parte pela edição impressa.
II.
Gostaria de insistir um pouco mais na importância, no principal interesse e no significado que, a meu ver, de finalmente ter à disposição, em castelhano, a totalidade dos textos de um autor tão controverso, polêmico e discutido, mas também tão influente e decisivo para o pensamento contemporâneo, como Nietzsche. Na minha opinião deveria representar, antes de tudo, o que agora é obviamente possível alcançar, para os falantes de língua hispânica, uma ideia coerente da trajetória e do desenvolvimento do pensamento de um autor tão incompreendido e mal interpretado, tanto por entusiastas como por detratores. Portanto, conseguir esta ideia coerente e difundi-la deveria contribuir a transformar e corrigir, na medida do possível, as muitas ideias aberrantes e premeditadamente escandalosas favorecidas, em parte, pela disposição limitada e enviesada dos textos de Nietzsche que tínhamos até agora.
Por exemplo, nós não começamos o volume I de nossa edição das Obras Completas com O Nascimento da Tragédia como começa a Kritische Studienausgabe alemã, a edição mais utilizada pelos estudiosos e que contribuiu bastante para distorcer as ideias sobre a origem e os começos do pensamento de Nietzsche. Nossa edição começa com uma seleção de escritos do Nietzsche adolescente e do Nietzsche estudante em Bonn e Leipzig, que contém reflexões decisivas e que trazem luz sobre alguns pontos de partida que não são, nem um pouco, substituídos pelas obras e escritos do período “wagneriano” e “romântico”. Tendo em vista o todo dos escritos nietzschianos da juventude, o período wagneriano, que durou somente oito anos, se mostra como uma espécie erupção cutânea, uma doença temporária da qual Nietzsche consegue livrar-se já por volta de 1879, com a saída da universidade. Certamente as obras mais conhecidas deste primeiro período são O Nascimento da Tragédia, ou as Considerações Extemporâneas. Mas com estes textos também há muitos outros destinados a novas publicações que não se realizam, assim como outros relatados para uso privado ou como conferências, como foi o caso de Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, que mostram outro Nietzsche mais em consonância com as linhas mestras de seu pensamento da maturidade.
Decidimos incluir também, como Apêndice neste primeiro volume das Obras CompletasNIETZSCHE, Friedrich. Obras Completas. Vol. I. Escritos de Juventud. Diego S. Meca (Ed.). Madrid: Editorial Tecnos , 2011.os escritos que formam parte da famosa “polêmica” suscitada pela publicação de O Nascimento da Tragédia, e cujos autores foram, além de Ulric von Wilamovitz-Mölledorf, Richard Wagner, Erwin Rohde e outros. O escrito acusador e panfletário de Willamovitz revela claramente uma grave falta de conhecimento do que tratava de representar essa “nova filologia construtiva” que Nietzsche levanta em seu primeiro livro, e correu paralelamente a certa inflexão da crítica romântica da modernidade. Faltou uma distância histórica para que se pudesse apreciar seu valor filológico e filosófico. Por isso, o volume II de nossa edição reúne os escritos filológicos, extremamente importantes para refletir a concepção inovadora de Nietzsche acerca da cultura grega e que serão, em realidade, o instrumento hermenêutico e a mola mais poderosa que ele utilizará ao longo da trajetória como contraponto crítico à decadência do mundo contemporâneo.
Mas, afinal, que ideia presidiu a nossa edição? Que sentido quisemos dar a ela em relação ao que pensamos terem tido as grandes edições das obras de Nietzsche realizadas até agora? Acredito que faz bem realizar essa pergunta tendo em vista o que ocorreu, desde o ponto de vista da recepção de Nietzsche, sobretudo com as edições maiores realizadas na Alemanha ao longo do século XX, e que condicionaram, determinantemente, a imagem e a interpretação do pensamento deste autor, como indiquei antes.
O primeiro projeto de edição das Obras Completas de Nietzsche foi realizado por sua irmã, Elisabeth Föster-Nietzsche, no marco da criação do Archiv como depósito de todos seus manuscritos, e cujos volumes foram publicados pela Editora Kröner nos primeiros anos do século XX. Então, alguns anos depois, se reeditou o texto de mesma edição em outras reimpressões, como a muito utilizada e famosa Musarion Ausgabe. Após o colapso mental de Nietzsche, Elisabeth teve muito claro o propósito de converter seu irmão em um pensador a serviço de uma causa: a de construção da grande Alemanha. E isso tanto durante a época do Kaiser Wilhelm como durante os anos de formação e triunfo do nazismo. Para isso, Nietzsche tinha de ser apresentado sob certas características que o identificassem nesse sentido. Concretamente, como defensor dos valores mais genuinamente alemães do espírito cavalheiresco-aristocrático próprio das sagas dos heróis germânicos, um espírito que é contra as inovações democráticas e ilustradas promovidas desde a Revolução Francesa. Era necessário também apresentá-lo como crítico da decadência produzida pela perda de valor desses valores específicos da tradição germânica, que haviam sido enfraquecidos devido à expansão na Alemanha da cultura latino-semita, ou seja, do cristianismo, que é ao mesmo tempo, judeu e romano. Tinha de ser apresentado, em suma, como o discípulo de Schopenhauer e de Wagner, e seu grande colaborador na tarefa de reatualizar a sensibilidade do povo alemão mediante a exaltação estética deste espírito no drama musical wagneriano.
Mas para que Nietzsche pudesse ser categorizado e fixado nestes parâmetros, era necessária uma operação importante que deveria ser realizada na edição de suas Obras Completas. Portanto, a edição de sua irmã, ou seja, tanto a Kröner como também a Musarion, estão presididas por essa intenção, a de dar essa imagem. E um dos aspectos decisivos para isso foi oferecer um sentido de conjunto de toda a trajetória intelectual completa do pensamento de Nietzsche. Para Elisabeth, essa trajetória se compõe de três etapas: a) A primeira estaria constituída por O Nascimento da Tragédia, sua grande obra wagneriana e romântica, e os escritos que se produzem em torno dela. Digamos que esta seria a obra “fundacional” do pensamento de Nietzsche, e aquela que marca a direção e o sentido de todo seu pensamento subsequente. b) Então haveria um segundo período que já nesta primeira edição começa a ser chamado “intermediário” e “ilustrado”, em tom quase depreciativo, como para apontar que as obras desta etapa não são tão relevantes como as das outras duas e que devem ser tomadas como acessórias em relação à mensagem do conjunto de sua filosofia. c) Em terceiro lugar, estaria o período de maturidade constituído substancialmente por duas obras, o Zaratustra e A Vontade de Potência, nas quais aparecem os grandes temas da filosofia de Nietzsche, como o além-do-homem, a moral dos senhores, a doutrina da hierarquia e da seleção, a vontade de potência, etc.
Existem duas grandes manipulações cometidas aqui: primeiro, se minimiza, e quase se exclui, quase toda a produção de Nietzsche anterior a O Nascimento da Tragédia, assim como seus escritos filológicos, para ressaltar e fazer com que os conteúdos desta obra ocupem a totalidade deste primeiro período. Segundo, boa parte do seu pensamento maduro é desqualificado como irrelevante, justamente aquele que contém o melhor de sua crítica à cultura ocidental e, particularmente, à cultura alemã. O Nietzsche que aparece aqui, progressista, ilustrado, crítico da Alemanha e do espírito alemão, deve ser relativizado pelo que é mostrado dele nos outros dois, especialmente no último. Não acredito que seja necessário recordar que o livro fundamental deste último período de Nietzsche, o intitulado A Vontade de Potência, não é uma obra de Nietzsche, mas uma collage da irmã que, cortando e colando fragmentos daqui e dali, o fez dizer o que ela queria que dissesse. Enfim, o propósito da edição da irmã era, como digo, mostrar Nietzsche como um filósofo conservador, nacionalista, romântico-idealista e, em última análise, nazista. E é incrível constatar que até que ponto essa deformação se enraizou, mesmo contra a evidência dos textos de Nietzsche, pelo êxito da propaganda contínua orquestrada pelo Nietzsche-Archiv para fixá-la, todos esses preconceitos ainda perdurando em muitos autores até hoje.
Pois bem, após a II Guerra Mundial, muitos pensadores viram a necessidade de desnazificar Nietzsche urgentemente e desfazer essa manipulação. E este foi o espírito e a intenção que também animou tanto a edição de Karl Schlechta, como a nova grande edição das Obras Completas de Nietzsche realizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, que começou a ser publicada a partir de 1965. Neste caso, trataram-se de outras edições presididas, dessa vez, por outra ideia e outra intenção, a de liberar Nietzsche de sua hipoteca nazista e, se possível, recuperá-lo para o projeto emancipador da esquerda. Não se deve esquecer que tanto Colli como Montinari foram militantes do Partido Comunista italiano e significativos resistentes ao regime e à ideologia fascista. A nova edição realizada por eles contribui, não obstante, algo muito importante e valioso, porque desfazia tudo o que a irmã fez, especialmente a antologia apresentada como a grande obra de Nietzsche e intitulada A Vontade de Poência (algo que Schlechta já tinha começado a fazer), e apresentava os escritos de Nietzsche em rigorosa ordem cronológica realizando um excelente estabelecimento dos textos originais.
Partimos deste texto, e nosso primeiro propósito foi fazer uma edição que não estivesse condicionada por pressupostos ideológicos anteriores, nem por intenções premeditadas. Em realidade, se alguma intenção presidiu nossa edição foi a de não seguir alimentando a criação de mais mitos-Nietzsche: o mito nazista, o mito revolucionário, o mito do Nietzsche renazificado, como querem realizar alguns autores agora. Por isso, o primeiro que fizemos foi apresentar a trajetória dos escritos e obras de Nietzsche com a continuidade e coerência que lhes são próprias. E é curioso que, quando está clara essa continuidade, muda de maneira notável o sentido do pensamento de Nietzsche com que se vinha atribuindo. Porque, eliminada a falsificação de A Vontade de Potência, nessa continuidade, tanto O Nascimento da Tragédia como Assim falava Zaratustra aparecem como duas ilhas, como duas exceções circunstanciais de um projeto coerente de compreensão crítica da história da cultura ocidental, em torno de cujo tronco comum se liga a crítica ao cristianismo, a inversão dos valores, a genealogia da moral, a psicologia do espírito livre, e tantos outros temas de enorme produtividade teórico-crítica.
Outra novidade da nossa edição são os Complementos à edição como os que se finaliza o volume IV das Obras Completas. Se inclui neles, primeiro uma seção referente aos Instrumentos de trabalho para a pesquisa, que foram recompilados e expostos por Inmaculada Hoyos, e reúne as edições em alemão, a biblioteca pessoal de Nietzsche, os mais importantes dicionários, comentários, repertórios bibliográficos, e guias de estudo que se pode consultar. A seguir vem um estudo de Kilian Lavernia sobre A recepção da obra de Nietzsche na história de suas edições, do qual devo dizer que fornece documentação suficiente para se ter uma ideia adequada da história das manipulações realizadas pela irmã de Nietzsche durante os anos que presidiu o Archiv que guardava seus manuscritos. Acredito ser importante saber disso para entender a natureza e a força dos preconceitos que durante anos distorceram e continuam distorcendo a verdadeira natureza do pensamento do filósofo. Por último, estão incluídos os índices de nomes e temas dos oito volumes, que ainda não haviam sido feitos, e que são extremamente úteis e necessários dada a natureza não sistemática, fragmentária e muitas vezes caótica dos textos de Nietzsche.
III.
Sobre os escritos filológicos de Nietzsche, e os cursos que deixou escritos para suas aulas na Universidade da Basileia entre 1869 e 1879, que reunimos no volume II NIETZSCHE, Friedrich. Obras Completas. Vol. II. Escritos Filológicos. Diego S. Meca (Ed.). Madrid: Editorial Tecnos , 2013.da nossa edição, mostram, em síntese, essas três coisas. A primeira é que há uma continuidade na trajetória de Nietzsche do início ao fim. Não há uma ruptura entre o período romântico, o período ilustrado e o período de madurez. Isso já demonstrava os Escritos de juventude (volume INIETZSCHE, Friedrich. Obras Completas. Vol. I. Escritos de Juventud. Diego S. Meca (Ed.). Madrid: Editorial Tecnos , 2011.), que incluíam uma importantíssima crítica a Schopenhauer, um escrito sobre Kant e um livro sobre Demócrito contraposto a Platão. Daí decorre que o interesse filosófico de Nietzsche desde o início da sua obra é a questão da relação vida-cultura e a importância do contexto histórico-vital no qual um pensamento é gestado para entender seu significado. Seus escritos filológicos são, quase todos eles, exemplificação dessa ideia. O estudo sobre Sófocles, o livro sobre Platão, a obra sobre os filósofos pré-platônicos, os cursos de História da literatura grega ou sobre a religião helênica. Neles todos, Nietzsche propõe uma renovação da filologia clássica acadêmica porque a vida dos gregos foi deixada de fora, com seu prurido erudito e fetichista de ciência positivista.
A segunda coisa importantíssima que nos mostra a leitura deste volume II das Obras CompletasNIETZSCHE, Friedrich. Obras Completas. Vol. II. Escritos Filológicos. Diego S. Meca (Ed.). Madrid: Editorial Tecnos , 2013.é o sentido inovador que Nietzsche oferece à cultura grega. Isso também considero importante para compreender o sentido unitário da trajetória do pensamento nietzschiano. Quer dizer, não a visão unilateralmente apolínea do neo-humanismo alemão (Goethe, Schiller, Wincklelmann, Lessing), que via só nos gregos os aspectos luminosos racionalistas e diurnos. Para Nietzsche, essa parcialidade está determinada por uma intenção, consciente ou inconsciente, de querer justificar e enaltecer um presente racionalista e autossatisfeito como é o da Europa do século XVIII. Um presente, portanto, que segue sem perceber a realidade do niilismo e do processo de decadência. Diante dessa visão, ele chama a atenção sobre a dimensão dionisíaca e noturna da cultura grega, ou seja, sobre o substrato do qual surge o impulso de sua vitalidade renovadora, de sua juventude, de sua saúde e de sua exemplar criatividade. É a outra face que completa a Grécia apolínea, e que juntas podem oferecer um ideal regulador que sirva de contra imagem crítica ao presente moderno-europeu.
Por último, a terceira coisa que se capta quando se lê este volume dos Escritos filológicos é o sentido da discrepância de Nietzsche com o pensamento do seu tempo, quer dizer, sua extemporaneidade. É a característica singular da sua obra, já desde os primórdios, como crítica da atualidade e, portanto, a favor de um tempo ainda por vir. Característica que ele mais tarde conceitualizou e expôs em suas quatro Considerações Extemporâneas, e que depois continuou como constante em toda sua trajetória da maturidade. Quanto ao período denominado “intermediário” ou “ilustrado” abrange as obras Humano, demasiado humano, Aurora e A gaia Ciência, que estão reunidas no volume III NIETZSCHE, Friedrich. Obras Completas. Vol. III. Obras de Madurez I. Diego S. Meca (Ed.). Madrid: Editorial Tecnos , 2014.da nossa edição. O primeiro que se pode dizer que tem em comum estas três obras é que Nietzsche já elabora nelas, de forma bastante precisa e firme, seu conceito próprio de uma filosofia crítica, que ele dá como objetivo prioritário e inicial libertar o pensamento dos erros morais. Ou seja, aqui Nietzsche encontra e delimita o campo da moral como o âmbito privilegiado que ele elege para desenvolver, nele e a partir dele, sua crítica à cultura contemporânea. Ele considera que a moral dogmática, ainda muito vigente em seu tempo, condiciona o pensamento e o falsifica, porque não o deixa ser exercido com liberdade de preconceitos, condição necessária para a análise e compreensão adequada das questões propriamente filosóficas. Por isso, considera necessário um trabalho sério de desmascaramento da moral tal como existe e tal como foi estruturada e fundamentada de maneira absoluta pelos filósofos morais, especialmente os modernos e entre eles, mais do que qualquer outro, Kant.
No entanto, esta exposição crítica não tem por finalidade abolir a moral e defender a amoralidade ou a imoralidade, como tantos preconceituosos, pretensamente estudiosos de Nietzsche, afirmam que teria sido sua intenção. A crítica de Nietzsche tem como finalidade projetar e dar lugar a uma nova moral. Só que essa nova moral não há de se conceber como universal nem aspira ser absoluta, mas tem que estabelecer a diferença entre bem e mal em relação à sua circunstância histórica. Porque a moral não é outra coisa que uma parte da cultura, como é o direito, a política, a ciência, a técnica ou a arte. É fato que não houve uma única moral eterna e universal, mas tantas outras morais como culturas e como etapas na evolução de diferentes culturas. E essa é a razão de que os conceitos de bem e mal não foram os mesmos em todas as épocas e lugares.
A principal condição, portanto, da nova filosofia que Nietzsche configura nessas três obras é a de um exercício da crítica a partir de um espírito de liberdade. O filósofo deve ser, sobretudo e antes de tudo, um espírito livre, ou o que é o mesmo, alguém que compreende a moral já sobre a base de sua historicidade. Alguém que se livrou da necessidade de postular sua atemporalidade e seu caráter absoluto; alguém, definitivamente, possuído pela paixão do conhecimento, em vez de pela necessidade da fé. E esclarecido isso, Nietzsche conecta essa tarefa de criticar a moral com sua inicial preocupação pela vida, uma vez que a moral dogmática é superada pela compreensão do papel que os “erros” morais desempenham na evolução de cada cultura. Ou seja, a verdadeira natureza das prescrições morais só é compreendida quando são entendidas como condições de existência e exigências do progresso humano. Sem esses “erros”, o ser humano não poderia ter superado, em termos gerais, o nível da animalidade.
Por outro lado, o grande interesse que Nietzsche mostra, nessas três obras, pelas abordagens e resultados das ciências, em geral, se deve a que, por sua disciplina e sobriedade anti-metafísicas, as ciências são instrumentos muito mais úteis que as doutrinas filosóficas do passado na tarefa de desconstrução das ilusões e dos enganos sobre os quais se fundamentou a moralidade dogmática. De Humano, demasiado humano até A gaia Ciência, Nietzsche emprega, assim, a ciência como instrumento da crítica à moral e à cultura em geral. E isso implica, e inclui, também uma interpretação crítica da ciência mesma, posto que a ciência, como a moral, é uma parte da cultura e deixa-se condicionar, por sua vez, pela influência da moral. Se o conhecimento é uma tarefa de busca para alcançar a libertação do peso da tradição, especialmente da moral e seus valores superiores (o que Nietzsche chamará posteriormente de “o espírito do peso”), a ciência é uma arma, nesses livros, para conquistar a leveza e fazer do conhecimento algo fröhlich, gaia ciência, ciência jovial e alegre.
IV.
Já nos últimos parágrafos do último livro de A gaia Ciência, Nietzsche adianta as chaves de por onde irão suas obras da maturidade tardia. Quer dizer, anuncia que a morte de Deus é a premissa necessária para a criação da nova moral e de seus novos valores. Portanto, são sem dúvida, e definitivamente, as obras e escritos póstumos da maturidade de Nietzsche que vão desenvolver a filosofia dos grandes temas, não só o da morte de Deus, mas unidos e vinculados intimamente a ele: a vontade de potência, o eterno retorno, o niilismo, a transvaloração e o além-do-homem. Todos esses temas são apresentados, algumas vezes em linguagem poético-alegórica - como acontece em Zaratustra ou em Ditirambos de Dioniso -, e outras em forma mais ou menos argumentada conceitualmente, como faz em suas grandes obras: Para além de bem e mal, Genealogia da Moral, Crepúsculo dos Ídolos e O Anticristo.
O significado de Assim falava Zaratustra é, em todo o volume IV das Obras CompletasNIETZSCHE, Friedrich. Obras Completas. Vol. IV. Obras de Madurez II y Complementos a la edición. Diego S. Meca (Ed.). Madrid: Editorial Tecnos , 2016da nossa edição, importantíssima. O próprio Nietzsche a qualifica assim na epígrafe que a ela dedica em Ecce Homo. É que Assim falava Zaratustra é a obra em que Nietzsche apresenta seus grandes temas entrelaçados, os quais, devidamente relacionados, formam a estrutura propriamente dita do seu pensamento. Contribuem, cada um desde uma perspectiva, para o desenvolvimento metafórico-conceitual dessa sabedoria trágica e dionisíaca da vida que constitui o núcleo mais íntimo e determinante de todo seu pensamento.
Assim, se tivéssemos que apontar a ideia que dá unidade ao período de maturidade, poderíamos dizer que toda a filosofia nietzschiana, neste período final da sua trajetória, está centrada no programa de uma transvaloração de todos os valores. Contudo, o que isso implica é nem mais, nem menos, que toda uma nova maneira de conceber o valor da filosofia e, de maneira mais concreta, a figura e a missão do filósofo. Nietzsche tem a convicção de que é possível partir da crítica moderna a cultura ocidental para provocar uma mutação radical, no terreno prático, da civilização ocidental. Ou seja, Nietzsche atribui em último termo a seu pensamento, de um modo mais explícito do que em obras anteriores, uma intencionalidade prática, uma pretensão de servir como promotor de uma transformação da era moderna no sentido de uma superação do seu niilismo. Daí o título do último capítulo de Ecce homo, “Por que sou um destino”, que revela até que ponto Nietzsche adquiriu uma nova ideia de qual deveria ser sua missão.
Por isso, nestas últimas obras, Nietzsche pensa no filósofo como um legislador, quer dizer, um criador de valores com os quais fundar uma nova época e uma nova história. Isto explica o tom extremo e radical de O Anticristo. Pois nesta obra, Nietzsche está enfrentando o mundo das ideias e as instituições que mais configuram universalmente a história europeia, ou seja, o cristianismo, a ideologia mais diretamente responsável pelo niilismo.
Embora o niilismo seja entendido como nossa situação contemporânea de esquecimento ou perda do valor dos antigos valores supremos que sustentavam a cosmovisão cristã do mundo, ele não deve ter apenas essa vertente passiva para nós. O niilismo deve ser entendido também como o processo ativo em virtude do qual ocorreu a morte de Deus. Portanto, o que é decisivo com relação a esta abordagem é que a morte de Deus não consistiu em nenhuma prática voluntarista do ateísmo militante que difundiu a descrença e a apostasia. Porém, por outra parte, o niilismo ativo também não é o tipo de exercício destrutivo que se faz com a mera crítica teórica, assim como o próprio Nietzsche desenvolvera até agora. O niilismo é o trabalho prático de desmascaramento-lembrança, dos valores supremos e de Deus como seu fundamento, que a história realizou, para deslegitimá-los na forma de um processo de autoaperfeiçoamento, no qual se reconstrói a lógica niilista dos próprios conceitos metafísico-morais de verdade e de bem.
Daí o próprio princípio básico das obras nietzschianas dos últimos anos, em particular Para além de bem e mal e Genealogia da Moral, a saber: a compreensão de que as intenções ocultas e esquecidas da prática de cultura e domesticação que tem predominado como eixo do processo civilizatório no Ocidente, mostra finalmente seu pano de fundo de pura ideologia a serviço de umas determinadas condições de existência e de uma determinada forma de exercício do poder. Neste sentido, estas obras de Nietzsche têm uma espinha dorsal que é necessário mostrar. É muito importante apresentar os vínculos que as articulam e que lhes dá a consistência que justifica a importância da sua capacidade heurística para nosso presente, assim como de sua influência na configuração de muitas correntes filosóficas do século XX.
Lendo estas obras pode-se chegar a fazer uma experiência de pensamento interessante muito conectada com a atualidade. Por exemplo, pode-se ver nelas motivos de reflexão diretamente relacionados às linhas de força que estão por trás das tensões e problemas mais atuais, e que eu gostaria de apontar ainda que seja muito brevemente. Há uns 25 ou 30 anos, alguns pensadores pós-modernos começaram a dizer duas coisas curiosas sobre o pensamento de Nietzsche. A primeira era que as ideias deste pensador se correlacionavam muito bem com o fracasso do socialismo comunista e o colapso da ideologia marxista-stalinista (que se revelaria imediatamente com a queda do muro de Berlim) sobre a qual a União Soviética havia sido levantada e mantida. E a outra era que se podia encontrar claramente em Nietzsche uma defesa do individualismo e outros apoios importantes para a ideologia neoliberal que então começava a surgir e se consolidar. Deduziram isso da defesa de Nietzsche de um tipo de cosmopolitismo e universalidade entendida, não como uma unidade totalizante, mas sim como um processo de pluralidade individualizada que não reduz nem subordina sistematicamente o singular, ou o individual, ao geral. Portanto, segundo esses autores, Nietzsche se oporia de maneira muito clara a esse Estado total-totalitário e generalizante característico do comunismo soviético, mas também, ainda que em menor medida, ao Estado defendido pelos partidos social-democráticos europeus que defendem um Estado forte, intervencionista e protetor.
A proposta política de Nietzsche seria, portanto, a de um modo de organização política dos centros de força, ou seja, dos indivíduos, simplesmente entendido como um acordo de atribuições e benefícios mútuos guiados por puro interesse pragmático. Porque o que importava defender era a livre iniciativa dos indivíduos e as diferenças de valor entre eles, ou seja, em último termo, as desigualdades.
Quando as obras do último Nietzsche são relidas, o que elas aportam são elementos muito ricos para uma reflexão atualizada sobre esses temas. É verdade que Nietzsche propõe pensar a vida e a sociedade como conjunto de vontades de potência confrontadas umas com as outras e, portanto, como luta entre seres desiguais que buscam sua conservação e a intensificação do seu sentimento de potência. Porém, esse pensamento básico da vontade de potência está sempre unido a uma ideia original da justiça como equilíbrio dessas forças. Portanto, que a vida e a sociedade sejam uma luta pela conservação e pelo poder, não deve levar a admitir ou justificar como naturais a exploração, a injustiça, a violência e os sistemas sociais baseados na opressão e na desigualdade. É falso que Nietzsche defende o naturalismo de sofistas, como Cálicles, que defendiam a desigualdade e a exploração. Nos termos nos quais Nietzsche pensa, a vontade de potência e as condições para seu exercício proporcionam suficientes argumentos para justificar a necessidade de um equilíbrio, tanto nas relações dos indivíduos entre si como nas relações entre povos e entre as nações.
Sua ideia mais importante nesse sentido me parece ser a seguinte: as sociedades sempre puseram a justiça e o direito em funcionamento como instrumentos valiosos para se preservarem, como coletividade, do poder que representam os excessos e arbitrariedades de determinados indivíduos que só buscam excessivamente seu benefício e autoexaltação. A justiça não é uma virtude cuja essência está no mundo suprassensível, nem é um ideal sublime de neutralidade desinteressada ou de moralidade absoluta. A justiça é algo que os homens criaram e que, fundamentalmente, funciona para defender a coletividade dos abusos e excessos de determinados indivíduos que supõem uma ameaça para a paz e a prosperidade de todos. É, portanto, uma estratégia inteligente de regulação e de harmonização para preservar a comunidade. E é nesse sentido em que Nietzsche a considera como importante condição para que a livre iniciativa individual e o reconhecimento da singularidade de cada um se dê nos seus justos termos.
Referências
- NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe [KSA]. Giorgio Colli e Mazzino Montinari (Org.). Berlim: Walter de Gruyter, 1999, 15 v.
- NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos Póstumos Vol. I (1869-1874). 2ª ed. Diego S. Meca (Ed.). Madrid: Editorial Tecnos, 2010.
- NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos Póstumos Vol. II (1875-1882). Diego S. Meca (Ed.). Madrid: Editorial Tecnos , 2008.
- NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos Póstumos Vol. III (1882-1885). Diego S. Meca (Ed.). Madrid: Editorial Tecnos , 2010.
- NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos Póstumos Vol. IV (1885-1889). 2ª ed. Diego S. Meca (Ed.). Madrid: Editorial Tecnos , 2008.
- NIETZSCHE, Friedrich. Obras Completas. Vol. I. Escritos de Juventud. Diego S. Meca (Ed.). Madrid: Editorial Tecnos , 2011.
- NIETZSCHE, Friedrich. Obras Completas. Vol. II. Escritos Filológicos. Diego S. Meca (Ed.). Madrid: Editorial Tecnos , 2013.
- NIETZSCHE, Friedrich. Obras Completas. Vol. III. Obras de Madurez I. Diego S. Meca (Ed.). Madrid: Editorial Tecnos , 2014.
- NIETZSCHE, Friedrich. Obras Completas. Vol. IV. Obras de Madurez II y Complementos a la edición. Diego S. Meca (Ed.). Madrid: Editorial Tecnos , 2016
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Tradução de Paula Cristina Padilha Gondim
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Pareceristas:
João Evangelista Tude de Melo Neto, Oclécio Lacerda
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No número 18 (2018) da revista Estudios Nietzsche, com título La nueva edicion de Nietzsche en castellano, foi publicado artigos relacionados a esta edição de Manuel Barrios Casares, José Emilio Esteban Enguita, María Cristina Fornari, José Ignacio Galparsoro, Scarlett Marton, Mariano Rodríguez González, Diego Sánchez Meca e Luis E. de Santiago Guervós.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Jul 2024 -
Data do Fascículo
May-Aug 2024
Histórico
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Recebido
18 Jan 2024 -
Aceito
28 Fev 2024