Open-access Uso de telessaúde por alunos de graduação em Fonoaudiologia: possibilidades e perspectivas em tempos de pandemia por COVID-19

A pandemia do COVID-19 trouxe desafios e necessidade de adaptação em diversas frentes. A atualização das formas de trabalho é necessária e promover ensino e atendimento no setor saúde condizentes com o século XXI é fundamental. Não estamos apenas tratando da formação de graduandos na área de Fonoaudiologia, mas do atendimento clínico a uma parcela significativa da população que depende dos serviços de clínicas-escola vinculadas às universidades e centros de formação em nossa profissão.

Neste texto traremos algumas reflexões sobre a relevância do uso das tecnologias de telessaúde para a formação de fonoaudiólogos, considerando a articulação entre as diretrizes curriculares nacionais, a formação profissional e aspectos éticos.

O artigo 8 das DCN de Fonoaudiologia, aprovadas em 2018 pelo Conselho Nacional de Saúde(1), prevê que os estágios incluam atividades práticas integradas na rede de atenção, com supervisão docente. Estes pressupõem atividades usando recursos de telessaúde, visto que há uma política nacional de saúde digital e telessaúde, instituída pelo Ministério da Saúde(2). No âmbito do SUS, os objetivos descritos são: transpor barreiras socioeconômicas, culturais e geográficas, para que os serviços e as informações em saúde cheguem a toda população.

As normas e diretrizes para o credenciamento de cursos de graduação de Fonoaudiologia envolvem parâmetros de qualidade, carga horária e conteúdo que garantem a formação profissional de qualidade e não reconhecem cursos inteiramente realizados em formato de ensino a distância (EaD). O desenvolvimento de prática supervisionada em telessaúde não subverte nenhum dos parâmetros de qualidade para a formação profissional, apenas amplia o desenvolvimento de competências.

A necessidade de afastamento social e de cuidados extremos para diminuir a velocidade de contágio pelo COVID-19 antecipou mudanças que já estavam sendo possíveis e necessárias em relação à aplicação de telessaúde para a atuação fonoaudiológica. Alguns programas e disciplinas de graduação, baseados em experiência prévia e na literatura internacional, já estavam se organizando para envolver os estudantes de graduação em atividades que permitam ampliar o uso de recursos de telessaúde na busca de um paradigma de oferta de serviços mais justa.

As propostas de ensino mais consistentes e atualizadas envolvem o desenvolvimento de competências profissionais baseadas em evidências científicas. Existe a possibilidade de que o uso das tecnologias de telessaúde farão parte da realidade profissional no futuro próximo, tanto para responder às necessidades impostas pela pandemia quanto pela possibilidade de ampliação da disponibilização de serviços de fonoaudiologia. Assim, pode-se considerar que o ambiente acadêmico, em que a telessaúde pode ser desenvolvida como prática supervisionada, respeitando todos os preceitos éticos próprios da atividade clínica, com organização e apoio de supervisor experiente, é um cenário promissor para o desenvolvimento dessas competências. A alternativa é a formação profissional insuficiente, em que o profissional terá que buscar o desenvolvimento das habilidades específicas após a graduação. Questões éticas, técnicas e de segurança também são complexas, importantes e desiguais nos estágios presenciais. Obviamente o teleatendimento não exclui nenhum desses aspectos.

Esse tema tem sido abordado há vários anos em países com diferentes níveis de desenvolvimento(3). Uma revisão sistemática de literatura indicou que havia mais de uma centena de publicações sobre o tema(4). O teleatendimento pode oferecer o acesso a serviços de saúde para comunidades localizadas em zonas geograficamente isoladas, ou com diversidade e desigualdade de oferta de serviços(5,6). Em dezembro de 2019, a associação americana de Fonoaudiologia (ASHA) publicou um fascículo inteiro da revista The ASHA Leader a respeito da necessidade de aperfeiçoar as habilidades de uso dos recursos de informática na formação profissional. Volkers(7:44) afirmou que “[...] membros das famílias vão desenvolver atividades que antes eram realizadas pelos terapeutas”. Discutindo especificamente a formação profissional, Foster et al.(8:59) mencionaram a importância da construção de competências para o trabalho em telessaúde. As autoras enfatizam que “nós podemos oferecer aos estudantes a chance de praticar essas habilidades no ambiente controlado de ensino, para que eles estejam prontos para o trabalho”.

Já há também conhecimento científico referente ao uso de recursos da telessaúde na realidade nacional há alguns anos. O uso de tecnologias digitais para o desenvolvimento de habilidades de estudantes de fonoaudiologia foi considerado efetivo em estudo controlado(9).

Barbosa e Fernandes(10) relataram uma proposta de intervenção com o monitoramento remoto - por alunos de graduação, com supervisão sistemática - de atividades propostas para serem conduzidas em casa pelos pais de crianças com transtornos do espectro do autismo (TEA). Os resultados indicam que houve progressos em todas as medidas verificadas antes e após o período de monitoramento remoto. Em outro estudo(11), as mesmas autoras identificaram que apenas 40% dos pais de crianças com TEA conseguiram conduzir todas as atividades propostas e relataram dificuldades com a rotina doméstica e com o comportamento das crianças. Esses estudos foram fundamentais para a implementação de outras versões dessa mesma proposta.

Em estudo(12) sobre uma proposta de orientação aos pais para a realização, em casa, de atividades de estimulação de funções executivas para crianças com TEA, o acompanhamento remoto foi realizado pelo fonoaudiólogo. Esse programa foi conduzido pelos pais por 10 semanas, nas quais houve contato sistemático entre pais e terapeutas (por telefone, mensagem de texto ou videochamada) para que fossem relatados os progressos e os problemas e discutir pequenas mudanças nas atividades propostas.

O relato de implementação da telessaúde na terapia fonoaudiológica durante a pandemia do COVID-19 para pacientes que foram previamente atendidos ambulatorialmente em um serviço de atenção primária à saúde foi publicado recentemente(13). A proposta foi garantir, durante o período de distanciamento social, a manutenção do serviço de atendimento a pacientes que poderiam sofrer piora ou comorbidades. As consultas foram realizadas por videochamadas por participantes do projeto, graduandos de fonoaudiologia, e fonoaudiólogos, com supervisão síncrona. O uso de recursos de telessaúde demonstrou ser eficiente para o atendimento de pacientes com demandas fonoaudiológicas, possibilitando atendimento remoto com a mesma qualidade que o atendimento presencial.

Após as mudanças impostas pela pandemia, diversas associações internacionais como o CAPCSD (Council of Academic Programs on Communication Sciences and Disorders)(14), a ASHA (American Speech-Language and Hearing Association)(15), IALP (International Association of Logopaedics and Phoniatrics)(16) e o CPLOL (Comitée Permanent de Liaison des Orthophonistes et Logopédes)(17) passaram a oferecer orientações e material para o desenvolvimento de atividades em teleatendimento/telessaúde, inclusive na formação básica em fonoaudiologia.

Por fim, cabe uma palavra a respeito de ética. Uma proporção significativa dos estágios supervisionados disponibilizados a alunos de graduação em Fonoaudiologia envolve a oferta de serviços em clínicas-escola ou ambulatórios didáticos. Esses serviços atendem ao tripé ensino-assistência-pesquisa. Por outro lado, a contribuição de clientes e pacientes para a formação do futuro profissional é fundamental. As atividades de prática supervisionada possibilitam o atendimento de qualidade a uma demanda reprimida a que o sistema de saúde/educação não consegue atender. Por outro lado, sem a participação dessas pessoas, a prática supervisionada seria inviabilizada. A necessidade de continuidade do atendimento a essa população, através da busca de alternativas viáveis, é um compromisso ético ao qual os serviços acadêmicos têm que responder. Interromper atendimentos por tempo indeterminado não pode ser a única alternativa.

A reflexão a respeito de como nos tornamos os fonoaudiólogos que somos, o que devemos aos pacientes que atendemos durante a nossa formação e o que queremos para a nossa ciência no futuro é uma questão para todos nós.

  • Trabalho realizado na Universidade de São Paulo - USP, Universidade Federal da São Paulo - UNIFESP, Universidade Presbiteriana Mackenzie – UM, Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, Universidade Federal de Pernambuco – UFP, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP e Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS nas cidades de São Paulo (SP), Bauru (SP), Porto Alegre (RS), Santa Maria (RS) e Recife (PE), Brasil.
  • Fonte de financiamento: nada a declarar.

REFERÊNCIAS

  • 1 Brasil. Resolução nº 610, de 13 de dezembro de 2018. Diretrizes curriculares nacionais para o curso de Fonoaudiologia [Internet]. Diário Oficial da União; Brasília; 16 abr 2019 [citado em 2015 Jul 5]. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2018/Reso610_Publicada.pdf
    » https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2018/Reso610_Publicada.pdf
  • 2 Brasil. Ministério da Saúde. Decreto nº 9795, de 17 maio de 2019. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Ministério da Saúde, remaneja cargos em comissão e funções de confiança, transforma funções de confiança e substitui cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS por Funções Comissionadas do Poder Executivo - FCPE [Internet]. Diário Oficial da União; Brasília; 20 maio 2019 [citado em 2015 Jul 5]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9795.htm
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  • 3 Pillay M, Kathard H. Decolonizing health professional’s education. African Journal of Rhetoric [Internet]. 2015 [citado em 2015 Jul ];7(1):193-227. Disponível em: https://journals.co.za/content/aar_rhetoric/7/1/EJC1728074
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  • 4 Molini-Avejonas DR, Rondon-Melo S, Amato CAH, Samelli AG. A systematic review of the use of telehealth in Speech, Language and Hearing Science. J Telemed Telecare. 2015;21(7):367-76. http://dx.doi.org/10.1177/1357633X15583215 PMid:26026181.
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  • 5 Rech RS, Hugo FN, Schmidt JG, Goulart BNG, Hilgert JB. Speech-language therapy offer and primary health care in Brazil: an analysis based on socioeconomic development. CoDAS. 2019;31(1):e20180083. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182018083 PMid:30758397.
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  • 13 Dimer NA, Canto-Soares N, Santos-Teixeira L, Goulart BNG. The Covid-19 pandemic and the implementation of telehealth in speech-language and hearing therapy for patients at home: an experience report. SciELO preprints. https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.610
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  • 14 CAPCSD: Council of Academic Programs on Communication Sciences and Disorders. CAPCSD COVID-19 recommended education resources [Internet]. Aurora, CO: CAPCSD; 2020 [citado em 2020 Jun 12]. Disponível em: https://www.capcsd.org/covid-19/
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  • 15 ASHA: American Speech-Language and Hearing Association. Coronavirus/COVID-19 updates [Internet]. Washington: ASHA; 2020 [citado em 2020 Jun 12]. Disponível em: https://www.asha.org/About/Coronavirus-Updates/
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  • 16 IALP: International Association of Logopaedics and Phoniatrics [Internet]. 2020 [citado em 2020 Jun 12]. Disponível em: https://ialpasoc.info/
    » https://ialpasoc.info/
  • 17 CPLOL: Comitée Permanent de Liaison des Orthophonistes et Logopédes. RBHS diversity, equity and inclusion statement [Internet]. New Jersey: CPLOL; 2020 [citado em 2020 Jun 10]. Disponível em: https://facultyaffairs.rbhs.rutgers.edu/diversity-inclusion/rbhs-diversity-equity-and-inclusion-statement/
    » https://facultyaffairs.rbhs.rutgers.edu/diversity-inclusion/rbhs-diversity-equity-and-inclusion-statement/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2020
  • Aceito
    18 Jun 2020
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