Acessibilidade / Reportar erro

Percepção auditiva e orientação e mobilidade em pessoas com deficiência visual usuárias de cão-guia

RESUMO

Objetivo

Investigar a percepção auditiva temporal, a orientação e a mobilidade de deficientes visuais.

Métodos

Estudo exploratório de intervenção, com amostra de conveniência composta por nove sujeitos cegos ou com baixa visão, com idades entre 23 e 64 anos, usuários de cão-guia e que realizaram os seguintes procedimentos: avaliação funcional de orientação e mobilidade, avaliação audiológica básica (audiometria tonal limiar, pesquisa do índice de reconhecimento de fala), avaliação do processamento auditivo temporal (teste de resolução temporal (random gap detection test - RGDT), teste de padrão de frequência (TPF), teste dicótico de dígitos (TDD), teste rápido de sentenças no ruído (TRIS).

Resultados

Todos os sujeitos apresentavam limiar audiométrico de grau normal, porém, um deles apresentava curva audiométrica do tipo neurossensorial e configuração descendente, sugerindo perda auditiva relacionada à idade. A avaliação das habilidades auditivas temporais mostrou valores dentro dos padrões de normalidade para todos os sujeitos, com exceção do teste RGDT, em que os sujeitos apresentaram valores menores (3,5 a 7,5 ms) do que os esperados para população de adultos com visão e audição normais. A avaliação da OM mostrou que todos os sujeitos necessitavam de adaptações técnicas, pois falhas foram observadas no percurso por eles executado.

Conclusão

A percepção auditiva temporal dos sujeitos deste estudo está adequada e a avaliação da OM mostra falhas que necessitam ser corrigidas.

Palavras-chave:
Audição; Percepção auditiva; Orientação e mobilidade; Orientação espacial; Limitação da mobilidade; Transtornos da visão; Cães; Cães-guia

ABSTRACT

Purpose

To investigate the temporal auditory perception, and OM of visually impaired people.

Methods

This is an exploratory intervention study including a convenience sample composed of nine blind or low vision subjects, aged between 23 and 64 years, guide dog users and who performed the following procedures: functional evaluation of OM, basic audiological evaluation (Pure tone audiometry, speech recognition index), temporal auditory processing assessment (random gap detection test (RGDT), frequency pattern test (FPT), dichotic digit Test (DDT), quick speech-in-noise test (QuickSIN).

Results

Although all subjects had normal-level audiometric thresholds, one subject had a sensorineural audiometric curve and descending configuration, suggesting an age-related hearing loss. Evaluation of the temporal auditory processing showed values within the normal for all subjects, except for the RGDT, in which test subjects had lower (3.5 to 7.5 ms.) than the expected values for the adult population with normal vision and hearing. Evaluation of OM showed that all subjects require technical adjustments as problems were observed in the route taken.

Conclusion

The temporal auditory processing of these subjects is appropriate and the evaluation of OM shows flaws that need to be corrected.

Keywords:
Hearing; Auditory perception; Orientation and mobility; Spatial orientation; Limitation of mobility; Vision disorders; Dogs; Guide dogs

INTRODUÇÃO

A compreensão sobre o papel da experiência na formação da percepção pode ser obtida ao estudar os efeitos da cegueira ou outras formas de privação sensorial nos sentidos intactos. Indivíduos cegos são, particularmente, dependentes da sua audição e há extensas evidências de que podem desenvolver habilidades auditivas superiores, quer como resultado de plasticidade do sistema auditivo, quer através do recrutamento de áreas corticais occipitais funcionalmente relevantes, que não recebem suas entradas visuais normais.

Embora os reforços das competências auditivas tenham sido relatados em muitos estudos, alguns aspectos da audição espacial estão prejudicados na ausência da visão. Neste caso, os efeitos da plasticidade das diversas modalidades sensoriais podem refletir um equilíbrio entre alterações adaptativas para compensar a cegueira e o papel que a visão normalmente desempenha, particularmente durante o desenvolvimento, em regular a representação do espaço auditivo no cérebro(11 King AJ. What happens to your hearing if you are born blind? Brain. 2014;137(Pt 1):6-8. http://dx.doi.org/10.1093/brain/awt346. PMid:24424914.
http://dx.doi.org/10.1093/brain/awt346...
).

Indivíduos cegos são, particularmente, dependentes de sua audição e há evidências de que eles podem desenvolver habilidades auditivas superiores, ou como resultado de plasticidade do sistema auditivo, ou através do recrutamento de áreas corticais occipitais funcionalmente relevantes, que não recebem suas entradas visuais normais. Visto que o processamento espacial normalmente baseia-se em interações entre visão e audição, grande parte da investigação nesta área tem se centrado sobre os efeitos da cegueira na localização auditiva.

Diversos estudos têm descrito alterações estruturais e funcionais dentro do córtex occipital, com regiões que, normalmente, estariam envolvidas em funções visuais e passaram a responder ao som(22 Striem-Amit E, Dakwar O, Reich L, Amedi A. The large-scale organization of “visual” streams emerges without visual experience. Cereb Cortex. 2012;22(7):1698-709. http://dx.doi.org/10.1093/cercor/bhr253. PMid:21940707.
http://dx.doi.org/10.1093/cercor/bhr253...

3 Meyer D, Bhowmik J, Islam FMA, Deverell L. Profiling guide dog handlers to support guide dog matching decisions. Disabil Rehabil. 2020;42(1):137-46. PMid:30264598.
-44 Cunha SR, Bristot L, Quevedo LDS, Daroit L. Deficiência visual × habilidades auditivas: desempenho das habilidades do processamento auditivo central em deficientes visuais. Distúrb Comun. 2018;30(1):60-71. http://dx.doi.org/10.23925/2176-2724.2018v30i1p60-71.
http://dx.doi.org/10.23925/2176-2724.201...
). Várias linhas de pesquisa mostraram que existem evidências que sugerem que esta reorganização entre as modalidades sensoriais é relevante, do ponto de vista comportamental. Áreas corticais visuais funcionalmente adequadas são recrutadas após a cegueira, seguindo um princípio que sustenta o uso de dispositivos de substituição sensorial que convertem a informação visual em sinais auditivos(22 Striem-Amit E, Dakwar O, Reich L, Amedi A. The large-scale organization of “visual” streams emerges without visual experience. Cereb Cortex. 2012;22(7):1698-709. http://dx.doi.org/10.1093/cercor/bhr253. PMid:21940707.
http://dx.doi.org/10.1093/cercor/bhr253...
,33 Meyer D, Bhowmik J, Islam FMA, Deverell L. Profiling guide dog handlers to support guide dog matching decisions. Disabil Rehabil. 2020;42(1):137-46. PMid:30264598.).

Do ponto de vista auditivo, o processamento temporal é definido como a capacidade de processar eventos acústicos mínimos necessários à percepção da fala (discriminação dos traços de sonoridade e duração das consoantes), o que demonstra ser um componente importante na capacidade de processar a fala(55 Shinn-Cunningham BG. Por que a deficiência auditiva pode degradar a atenção seletiva. In: Dau T, Buchholz JM, Harte JM, Christiansen TU, organizadores. Processamento de sinais auditivos em ouvintes com deficiência auditiva. Dinamarca: Marienlyst; 2007. p. 29-31.,66 Pichora-Fuller MK. Envelhecimento cognitivo e processamento de informações auditivas. Int J Audiol. 2003;42(Supl. 2):S26-32. http://dx.doi.org/10.3109/14992020309074641.
http://dx.doi.org/10.3109/14992020309074...
). Neste sentido, tem papel relevante, também, na habilidade de localizar a fonte sonora no espaço, função esta primordial para o indivíduo que apresenta visão subnormal ou cegueira.

Nossa percepção do mundo é, muitas vezes, determinada pela maneira como interagem as diferentes modalidades sensoriais. No caso da audição, por exemplo, a capacidade de ouvintes humanos identificarem sons, tais como os da fala, particularmente em ambientes ruidosos, ou julgar sua localização, pode ser profundamente influenciada pela disponibilidade de pistas visuais simultâneas. Não é surpreendente que a perda de visão possa resultar em mudanças nas capacidades de percepção auditiva e na forma como os sons são processados dentro do cérebro. A natureza e a extensão dessas mudanças dependem, no entanto, de vários fatores, incluindo a idade de início, severidade duração da cegueira, o aspecto da percepção auditiva, que é medido e, quase certamente, o grau em que indivíduos com déficit visuais passaram a depender de sua audição em suas vidas cotidianas(44 Cunha SR, Bristot L, Quevedo LDS, Daroit L. Deficiência visual × habilidades auditivas: desempenho das habilidades do processamento auditivo central em deficientes visuais. Distúrb Comun. 2018;30(1):60-71. http://dx.doi.org/10.23925/2176-2724.2018v30i1p60-71.
http://dx.doi.org/10.23925/2176-2724.201...
,77 Craigon PJ, Hobson-West P, England GCW, Whelan C, Lethbridge E, Asher L. “She’s a dog at the end of the day”: guide dog owners’ perspectives on the behaviour of their guide dog. PLoS One. 2017;12(4):e0176018. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0176018. PMid:28423053.
http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0...
).

A visão, claramente, desempenha um papel importante no desenvolvimento do mapa auditivo. A privação visual precoce degrada a organização topográfica dos campos receptivos auditivos dos neurônios do colículo superior, em diferentes graus. A visão é necessária para a construção de um mapa do espaço auditivo no cérebro. Em vez disso, a disponibilidade de pistas visuais simultâneas e, geralmente, mais exatas das direções espaciais, provavelmente ajuda a superar a incerteza e a variabilidade nas relações entre valores de sinalização de localização auditiva e direções no espaço. Como resultado, o desenvolvimento do mapa auditivo coincide com a representação do campo visual no colículo superior, facilitando a integração dos sinais fornecidos pelos olhos e os ouvidos sobre uma fonte comum de estímulo.

Uma variedade de funções sensoriais, entre elas, a auditiva, pode ser alterada como resultado da cegueira, mas devido à importância particular da visão e da audição para a percepção espacial e locomoção, este estudo focou, principalmente, o impacto da cegueira nas habilidades de localização do som e seus substratos neurais subjacentes.

Em vista da importância que a audição tem na vida de um sujeito cego ou com baixa visão, este estudo teve por objetivo investigar o processamento auditivo temporal, a orientação e a mobilidade de um grupo de indivíduos cegos ou com baixa visão.

MÉTODOS

Participaram desta pesquisa nove sujeitos com deficiência visual (cegos e com baixa visão), sendo oito com perda de visão adquirida e um com deficiência visual congênita, dois do gênero feminino e oito do gênero masculino, com idade entre 28 e 64 anos, usuários de cão-guia há mais de um ano.

Os sujeitos foram selecionados pessoalmente pelo pesquisador, a partir do seguinte critério de seleção: faixa etária mínima de 18 anos, pois os cães-guia são entregues a seus usuários mediante assinatura em contrato de comodato, entre a instituição treinadora do animal e a pessoa com deficiência visual, maior de idade.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, seguindo as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos do Conselho Nacional de Saúde, Resolução 466/12, sob o nº 89680517.8.0000.5482. Todos os sujeitos envolvidos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Procedimentos de coleta

Seleção dos sujeitos

Inicialmente, foram contatados, por telefone, 14 sujeitos e convidados a participar da pesquisa, recebendo as devidas explicações. Dos 14 sujeitos, 11 aceitaram participar e, posteriormente, dois desistiram, restando nove sujeitos.

A partir de então, os participantes receberam, através de e-mail, o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), para que tomassem ciência de seu conteúdo, por meio de programa de computador ou aplicativo de celular que reproduzem em áudio o texto escrito, ou então, leitura feita por um acompanhante.

A seguir, em data previamente agendada, foram realizados encontros individuais e presenciais com os sujeitos, nos quais o pesquisador leu novamente o documento TCLE, na presença de uma testemunha, para que pudessem assiná-lo.

Caracterização da amostra

Na mesma ocasião de assinatura do TCLE, o pesquisador aplicou um questionário para caracterização dos sujeitos, denominado Questionário dos Sujeitos (QS). Este questionário foi elaborado pelo próprio pesquisador, visto que não se dispõe, atualmente, de instrumentos validados e que abranjam os aspectos saúde geral, visão, audição, audição/mobilidade e informações complementares – formação, atividades profissionais e educacionais, tempo de utilização de bengala e meios de locomoção utilizados.

Avaliação funcional de orientação e mobilidade

O instrumento de Avaliação Funcional de Orientação e Mobilidade (AFOM) também foi elaborado pelo próprio pesquisador, pois não existem, atualmente, instrumentos validados que mensuram a orientação e mobilidade de usuários de cão-guia.

Para a aplicação da AFOM, um percurso foi previamente planejado e padronizado pelo pesquisador, para que a dupla usuário e cão-guia, utilizando logradouros e transporte públicos, pudesse ser avaliada individualmente.

Cada dupla foi acompanhada por um assistente de pesquisa, que também era treinador e instrutor de cães-guia, e que permaneceu próximo para eventuais necessidades ou orientações. O pesquisador permaneceu a mais ou menos dois metros de distância, registrando o percurso através de filmagem e cronometrando o percurso, para análise posterior através da AFOM.

O percurso realizado pela dupla teve extensão média de quatro quilômetros e trezentos metros e duração média de duas horas. O trajeto realizado foi: Av. Paulista, 1313 – Rua Pamplona – Al. Santos – Praça Gusmão – Al. Casa Branca – Av. Paulista, Parque Trianon – Metrô Estação Consolação até Estação Vila Prudente.

No metrô, a dupla passou por escadas, catracas e plataformas de embarque/desembarque. O cão recebeu as orientações do usuário para entrar no trem, buscar assento disponível, posicionar-se sentado embaixo do banco. Para desembarque do trem, o cão foi solicitado, pelo usuário, a levantar-se, posicionar-se em frente à porta de desembarque, sair do trem, conduzir o usuário para o meio da plataforma, buscar a escada de subida, catracas e porta de saída da estação.

Avaliações audiológicas

As avaliações audiológicas foram realizadas por fonoaudióloga em cabina acústica, com fones supra-aurais, com o equipamento Madsen Itera II. Os procedimentos realizados foram: audiometria tonal limiar, teste de resolução temporal (random gap detection test - RGDT), teste de padrão de frequência (TPF), versão Auditec, teste dicótico de dígitos (TDD), analisado segundo os critérios estabelecidos por um estudo(88 Braga BHC, Pereira LD, Dias KZ. Critérios de normalidade dos testes de resolução temporal: random gap detection test e gaps-in-noise. Rev CEFAC. 2015;17(3):836-46. http://dx.doi.org/10.1590/1982-021620158114.
http://dx.doi.org/10.1590/1982-021620158...
), e teste rápido de sentenças no ruído (TRIS)(99 Novelli CL, Carvalho NG, Colella-Santos MF. Teste de Reconhecimento de Fala no Ruído, HINT-Brasil, em crianças normo-ouvintes. Rev Bras Otorrinolaringol (Engl Ed). 2018;84(3):360-7. http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2017.04.006.
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2017.0...
).

Análise e interpretação dos resultados

Os resultados da Avaliação Funcional de Orientação e Mobilidade e das avaliações audiológicas foram descritos para a amostra e analisados comparativamente.

RESULTADOS

A apresentação dos resultados segue a seguinte estrutura:

  1. a

    caracterização da amostra, através do QS;

  2. b

    avaliação de resultado no teste de AFOM;

  3. c

    testes de processamento auditivo temporal.

Os sujeitos foram identificados como S1, S2, S3, S4, S5, S6, S7, S8 e S9; orientação e mobilidade como OM.

Caracterização da amostra

Houve prevalência de indivíduos do gênero masculino, cegos, portadores de deficiência visual adquirida. A média de idade foi de 40 anos e 11 meses e o tempo de utilização de cão-guia, em largo espectro, entre 2 anos e 6 meses e 44 anos (Quadro 1).

Quadro 1
Caracterização da amostra

Descrição do desempenho dos sujeitos cegos e de baixa visão na Avaliação Funcional de Orientação e Mobilidade

Na avaliação da OM, os itens avaliados abordaram os seguintes eixos: ambientes fechados e elevadores; procedimentos no metrô; procedimentos para entrar/encontrar lugar e desembarcar de ônibus/metrô/trem; procedimentos em esquinas – orientação da calçada, rua (com e sem semáforo); procedimentos para atravessar uma via em esquinas e no meio do quarteirão; adequação da técnica de OM; adequação dos sentidos remanescentes; comandos verbais e adequação de volume.

O pesquisador utilizou o conceito “adequado”, quando a dupla usuário e cão-guia atenderam às expectativas estipuladas previamente e “inadequado”, quando não. Caso necessário, o pesquisador também realizou apontamentos e observações na AFOM (Quadro 2).

Quadro 2
Descrição do desempenho dos sujeitos cegos e de baixa visão na Avaliação Funcional de Orientação e Mobilidade

Os sujeitos, em sua maioria, foram avaliados como “adequados” em todos os quesitos, com algumas ressalvas. S5 e S9 foram avaliados como “inadequados” no item “procedimento ao chegar a uma esquina sem semáforo (atravessando a via)”. No item “procedimento ao atravessar uma via no meio do quarteirão”, S9 também foi avaliado como “inadequado”.

A Tabela 1 apresenta o desempenho dos indivíduos com baixa visão e cegueira nos testes de percepção auditiva temporal (TPF e TGDT), teste rápido de sentenças em presença de ruído (TRIS) e teste dicótico de dígitos (TDD).

Tabela 1
Desempenho dos indivíduos com baixa visão e cegueira nos testes que avaliaram o processamento auditivo central

DISCUSSÃO

Desde os primórdios da humanidade, algumas pessoas com deficiência visual passaram a usar, espontaneamente, algum tipo de ‘bengala’ para se locomover, como cajado, bastão, vara de bambu ou galho de árvore. No século passado, foi institucionalizada a ‘bengala branca’ como um símbolo da cegueira, porém, a primeira forma sistematizada e eficaz para locomoção das pessoas cegas foi o cão-guia(55 Shinn-Cunningham BG. Por que a deficiência auditiva pode degradar a atenção seletiva. In: Dau T, Buchholz JM, Harte JM, Christiansen TU, organizadores. Processamento de sinais auditivos em ouvintes com deficiência auditiva. Dinamarca: Marienlyst; 2007. p. 29-31.,1010 Hall SS, MacMichael J, Turner A, Mills DS. A survey of the iimpact of owning a servisse dog on quality of life for individuals with physical and Hearing disability: a pilot study. Health Qual Life Outcomes. 2017;15(1):59. PMid:28356121.).

Observa-se a utilização de cães não somente no contexto terapêutico, mas também como auxiliares na minimização dos efeitos de diversos tipos de deficiência. Neste caso, os cães são treinados para acompanhar indivíduos com deficiência visual, auditiva ou motora, melhorando a qualidade de vida de seus usuários e atuando como animais de ajuda social(66 Pichora-Fuller MK. Envelhecimento cognitivo e processamento de informações auditivas. Int J Audiol. 2003;42(Supl. 2):S26-32. http://dx.doi.org/10.3109/14992020309074641.
http://dx.doi.org/10.3109/14992020309074...
). Possuir um cão de assistência traz benefícios significativos e aumento da qualidade de vida para pessoas com deficiência física ou auditiva(1111 Felippe JAM, Felippe VLLR. Orientação e mobilidade. São Paulo: Laramara - Associação Brasileira de Assistência à Pessoa com Deficiência Visual; 1997.).

Alguns aspectos importantes na deficiência visual se referem aos conceitos de orientação e mobilidade. Segundo indicativo do Ministério da Educação e Cultura (MEC), na combinação destes dois conceitos, a expressão significa mover-se de forma orientada, com sentido, direção e utilizando-se de várias referências, como pontos cardeais, lojas comerciais, guias para consulta de mapas, informações com pessoas, leitura de informações de placas com símbolos ou escrita para chegar ao local desejado(1212 Lima M. A influência positiva dos animais de ajuda social. Interações. 2004;(6):156-74.).

Em relação à OM, observou-se, no presente estudo, que a maioria dos sujeitos realizou o curso de OM entre dois e 34 anos antes das avaliações. Porém, o que foi possível constatar, ao analisar o desempenho destes indivíduos no percurso-teste, foi a não aplicação correta das técnicas de orientação e mobilidade, necessárias para a diminuição do risco de acidente com a dupla. Neste sentido, é importante que avaliações periódicas sejam realizadas por profissionais que dominem essas técnicas e conheçam profundamente o uso do cão-guia, pois, quando as técnicas de OM são aplicadas adequadamente, proporcionam ao indivíduo maior segurança e são fundamentais para a conquista de sua autonomia(1010 Hall SS, MacMichael J, Turner A, Mills DS. A survey of the iimpact of owning a servisse dog on quality of life for individuals with physical and Hearing disability: a pilot study. Health Qual Life Outcomes. 2017;15(1):59. PMid:28356121.).

Nesse contexto, para a pessoa que perdeu a função da visão, tomar consciência do seu esquema corporal e aprender a utilizar adequadamente os sentidos remanescentes, como audição, tato, olfato, paladar e sinestesia corporal, ou sensações sensoriais (sensação de quente/frio, áspero/liso, assim como perceber o sentido do vento ou dos deslocamentos de ar) para se orientar em qualquer espaço, é de fundamental importância para aplicar as técnicas de OM.

Enquanto as pessoas que enxergam formam e comprovam muitos conceitos informalmente, as pessoas com deficiência visual necessitam de uma apresentação estruturada desses conceitos para assegurar um desenvolvimento adequado dos fundamentos a eles relacionados(1313 Giacomini L, Sartoretto ML, Bersch RCR. A educação especial na perspectiva da inclusão escolar: orientação e mobilidade, adequação postural e acessibilidade espacial. Brasília: MEC/SEESP; 2010. vol. 7.).

Conceitos básicos, relacionados à orientação e mobilidade, são necessários para a pessoa com deficiência visual movimentar-se com segurança e eficiência, assim como o conhecimento corporal, por exemplo, é fundamental, devendo-se dar especial atenção ao esquema corporal, conceito corporal, imagem corporal, planos do corpo e suas partes, lateralidade e direcionalidade. Estes conceitos devem ser enriquecidos com outros da mesma importância, como: posição e relação com o espaço, forma, medidas e ações, ambiente, topografia, textura e temperatura, que, assim como os conceitos corporais formam a base dos conceitos espaciais e direcionais; fatores centrais no processo de orientação e de mobilidade. A imagem corporal equivale ao conceito corporal e, portanto, três componentes devem ser levados em consideração: planos do corpo: habilidade de identificar frente, costas, topo e base do corpo, em relação a superfícies externas e objetos em relação aos planos do corpo; partes do corpo: identificar; movimento do corpo: movimentos toscos em relação aos planos do corpo e aos movimentos dos membros e lateralidade(1414 Felippe JAM. Caminhando juntos: manual das habilidades básicas de orientação e mobilidade. São Paulo: Laramara - Associação Brasileira de Assistência à Pessoa com Deficiência Visual; 2011.).

Os sujeitos do presente estudo afirmaram que uma das situações mais críticas é atravessar cruzamentos de vias, principalmente em locais onde não há semáforo. Outro fator relevante, que ficou evidente por meio da observação direta e na análise dos vídeos das avaliações técnicas de OM, foi que aspectos da personalidade dos sujeitos, estado emocional e nível de ansiedade são fatores que influenciam diretamente o processo de OM. Tais condições se refletem, inclusive, no comportamento do cão e vice-versa, ou seja, o temperamento, estado emocional e nível de ansiedade do cão influenciam o processo de OM dos condutores. Tais afirmações foram exemplificadas pelo alto nível de ansiedade apresentado por S1 e S4, pela insegurança em algumas situações de mobilidade de S2 e S5, pelo estado de tensão apresentado por S8 e correspondente nível de dispersão por seu cão-guia.

A propósito, estudo australiano concluiu que os sujeitos cegos usuários de cão-guia têm estilos diferentes nos procedimentos de OM, o que confirma a importância desse aspecto para o treinamento do cão(1515 Wellsh RL. Blasch, Foundations of orientation and mobility. New York: American Foundation for the Blind, 1980.). Outro estudo chamou a atenção para o fato de que as características comportamentais do cão influenciam o processo de OM do usuário, especificamente reduzindo tensões e favorecendo o sentido de localização e as tomadas de decisão do usuário(1616 Machado EV. Orientação e mobilidade: conhecimentos básicos para a inclusão do deficiente visual. Brasília: MEC, SEESP; 2003.).

Salienta-se a importância da adequada avaliação prévia para a formação da dupla usuário e cão-guia, bem como sua avaliação periódica. Tais avaliações vão além de paridades técnicas, uma vez que a dupla conviverá e trabalhará em conjunto durante anos. Outra questão a ser discutida diz respeito à importância da audição, tanto periférica, quanto central para a OM da pessoa cega. Quando há prejuízo visual, a audição destaca-se por possuir a capacidade de realizar a análise espacial do ambiente, que se assemelha com a visão em muitos aspectos e, naturalmente, assume tal função.

A prática das habilidades auditivas centrais ocorre de maneira distinta da comumente esperada, em indivíduos com incidência da privação sensorial visual, pois a falta de estímulos visuais não inativa os córtices visuais, mas, sim, possibilita que habilidades sensoriais remanescentes, como a audição, recrutem tais regiões. Assim, a capacidade cerebral da plasticidade viabiliza que determinadas regiões corticais possam ser designadas para outros fins(33 Meyer D, Bhowmik J, Islam FMA, Deverell L. Profiling guide dog handlers to support guide dog matching decisions. Disabil Rehabil. 2020;42(1):137-46. PMid:30264598.).

Comparando os resultados obtidos (respostas do questionário de caracterização dos sujeitos, resultados da avaliação técnica de OM e avaliações audiológicas) observou-se que apenas um dos sujeitos apresentava problemas auditivos e também não utilizava adequadamente algumas técnicas de OM, por excesso de confiança. Sendo assim, as dificuldades de orientação e mobilidade da grande maioria não podem ser diretamente associadas às alterações na audição. Contudo, levanta-se a hipótese de que, em situações como plataformas de metrô e trem (que apresentam fluxo de mão dupla) a intensidade e variedade de ruídos, agravadas pela reverberação dos sons (ou dispersão deles) nas paredes e outros agentes que podem causar interrupção ou desvio do fluxo sonoro, ressonância e eco podem levar os sujeitos a apresentarem dificuldades ou se equivocarem ao tentar identificar determinados sons, como por exemplo, identificação do sentido da composição quando está chegando ao ponto de embarque, por meio do som característico de sua chegada, fato que ocorreu com dois dos sujeitos e foi citado por todos como um dificultador na tentativa de identificação do fluxo das composições, através da identificação sonora.

Sendo assim, para a adequada orientação nesses espaços, as habilidades auditivas são essenciais, sendo referidas por alguns sujeitos nas respostas ao questionário de identificação. Porém, a avaliação mais precisa desse aspecto demandaria a aplicação de outros procedimentos técnicos conjugados de OM, como, por exemplo, identificação de deslocamento de ar causado pela chegada das composições.

Ainda quanto às relações entre audição e OM, os sujeitos citaram, de forma recorrente, o recurso essencial à audição em esquinas e cruzamentos de via, na tentativa de identificar, por exemplo, a aproximação de veículos e outros meios de locomoção urbana (como bicicletas), para se localizarem e/ou identificarem o sentido do fluxo de trânsito, para que pudessem atravessar a via com segurança. Vale salientar que bicicletas, assim como veículos que emitem pouco ruído, são complicadores para que os sujeitos possam se referenciar nessas ocasiões.

Muitos autores(1717 King AJ. What happens to your hearing if you are born blind? Brain. 2014;137(Pt 1):6-8. http://dx.doi.org/10.1093/brain/awt346. PMid:24424914.
http://dx.doi.org/10.1093/brain/awt346...
,1818 Lazzouni L, Lepore F. Compensatory plasticity: time matters. Front Hum Neurosci. 2014;8:340. http://dx.doi.org/10.3389/fnhum.2014.00340. PMid:24971056.
http://dx.doi.org/10.3389/fnhum.2014.003...
) mencionaram a dificuldade que as pessoas cegas têm para se orientar em situações com sons competitivos, como as que ocorrem quando precisam se locomover em locais ruidosos. Nos testes de fala em presença de ruído aplicados no grupo de sujeitos deste estudo, constatou-se que dois dos nove indivíduos apresentaram desempenho inferior a 80% e que três dos nove estavam entre 80 e 90%. Estes valores mostram que os indivíduos em questão não se encontravam em excelentes condições para atuar em situações de ruído competitivo. Em geral, o ouvinte que enxerga se apoia na pista visual para resolver os desafios que a dificuldade de ouvir em presença de ruído lhe traz. Como resolver essa dificuldade quando a visão não está presente?

Em estudos anteriores, nos quais o desempenho da localização auditiva em indivíduos cegos era tão bom ou melhor do que o padrão normal, os indivíduos foram solicitados a se voltarem para a localização percebida da fonte sonora, entre uma série de alto-falantes, ou para indicar se dois sons consecutivos vieram do mesmo local que o primeiro som, ou se vieram de locais diferentes.

Ao avaliar a resolução temporal para estímulos sonoros consecutivos pelo RGDT, foi possível observar que, no grupo de pessoas cegas deste estudo, o valor do limiar variou de 3,5 a 7,5 ms. É interessante constatar que estes valores são menores do que os comumente encontrados na população de adultos. Valores de mediana de 25 ms e mínimo de 14 ms foram apresentados por pesquisas que estudaram a resolução temporal em indivíduos adultos sem queixa auditiva e com visão adequada. Isso mostra que, apesar da audição da pessoa cega estar mais treinada do que a de uma pessoa que ouve e vê, é possível afirmar que muitas das confusões que se observam, ao analisar a orientação e mobilidade, sejam decorrentes da incerteza que ela tem sobre o que escuta.

CONCLUSÃO

Os resultados obtidos quanto a dificuldades de orientação e mobilidade dos sujeitos deste estudo não podem ser diretamente associados a alterações auditivas. Contudo, salienta-se que os valores de resolução temporal para estímulos sonoros consecutivos, obtidos pelo RGDT, foram menores que os encontrados em adultos ouvintes.

  • Trabalho realizado no Programa de Estudos Pós-graduados em Fonoaudiologia, Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP – São Paulo (SP), Brasil.
  • Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), código do financiamento: 88887.151894-00.

REFERÊNCIAS

  • 1
    King AJ. What happens to your hearing if you are born blind? Brain. 2014;137(Pt 1):6-8. http://dx.doi.org/10.1093/brain/awt346 PMid:24424914.
    » http://dx.doi.org/10.1093/brain/awt346
  • 2
    Striem-Amit E, Dakwar O, Reich L, Amedi A. The large-scale organization of “visual” streams emerges without visual experience. Cereb Cortex. 2012;22(7):1698-709. http://dx.doi.org/10.1093/cercor/bhr253 PMid:21940707.
    » http://dx.doi.org/10.1093/cercor/bhr253
  • 3
    Meyer D, Bhowmik J, Islam FMA, Deverell L. Profiling guide dog handlers to support guide dog matching decisions. Disabil Rehabil. 2020;42(1):137-46. PMid:30264598.
  • 4
    Cunha SR, Bristot L, Quevedo LDS, Daroit L. Deficiência visual × habilidades auditivas: desempenho das habilidades do processamento auditivo central em deficientes visuais. Distúrb Comun. 2018;30(1):60-71. http://dx.doi.org/10.23925/2176-2724.2018v30i1p60-71
    » http://dx.doi.org/10.23925/2176-2724.2018v30i1p60-71
  • 5
    Shinn-Cunningham BG. Por que a deficiência auditiva pode degradar a atenção seletiva. In: Dau T, Buchholz JM, Harte JM, Christiansen TU, organizadores. Processamento de sinais auditivos em ouvintes com deficiência auditiva. Dinamarca: Marienlyst; 2007. p. 29-31.
  • 6
    Pichora-Fuller MK. Envelhecimento cognitivo e processamento de informações auditivas. Int J Audiol. 2003;42(Supl. 2):S26-32. http://dx.doi.org/10.3109/14992020309074641
    » http://dx.doi.org/10.3109/14992020309074641
  • 7
    Craigon PJ, Hobson-West P, England GCW, Whelan C, Lethbridge E, Asher L. “She’s a dog at the end of the day”: guide dog owners’ perspectives on the behaviour of their guide dog. PLoS One. 2017;12(4):e0176018. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0176018 PMid:28423053.
    » http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0176018
  • 8
    Braga BHC, Pereira LD, Dias KZ. Critérios de normalidade dos testes de resolução temporal: random gap detection test e gaps-in-noise. Rev CEFAC. 2015;17(3):836-46. http://dx.doi.org/10.1590/1982-021620158114
    » http://dx.doi.org/10.1590/1982-021620158114
  • 9
    Novelli CL, Carvalho NG, Colella-Santos MF. Teste de Reconhecimento de Fala no Ruído, HINT-Brasil, em crianças normo-ouvintes. Rev Bras Otorrinolaringol (Engl Ed). 2018;84(3):360-7. http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2017.04.006
    » http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2017.04.006
  • 10
    Hall SS, MacMichael J, Turner A, Mills DS. A survey of the iimpact of owning a servisse dog on quality of life for individuals with physical and Hearing disability: a pilot study. Health Qual Life Outcomes. 2017;15(1):59. PMid:28356121.
  • 11
    Felippe JAM, Felippe VLLR. Orientação e mobilidade. São Paulo: Laramara - Associação Brasileira de Assistência à Pessoa com Deficiência Visual; 1997.
  • 12
    Lima M. A influência positiva dos animais de ajuda social. Interações. 2004;(6):156-74.
  • 13
    Giacomini L, Sartoretto ML, Bersch RCR. A educação especial na perspectiva da inclusão escolar: orientação e mobilidade, adequação postural e acessibilidade espacial. Brasília: MEC/SEESP; 2010. vol. 7.
  • 14
    Felippe JAM. Caminhando juntos: manual das habilidades básicas de orientação e mobilidade. São Paulo: Laramara - Associação Brasileira de Assistência à Pessoa com Deficiência Visual; 2011.
  • 15
    Wellsh RL. Blasch, Foundations of orientation and mobility. New York: American Foundation for the Blind, 1980.
  • 16
    Machado EV. Orientação e mobilidade: conhecimentos básicos para a inclusão do deficiente visual. Brasília: MEC, SEESP; 2003.
  • 17
    King AJ. What happens to your hearing if you are born blind? Brain. 2014;137(Pt 1):6-8. http://dx.doi.org/10.1093/brain/awt346 PMid:24424914.
    » http://dx.doi.org/10.1093/brain/awt346
  • 18
    Lazzouni L, Lepore F. Compensatory plasticity: time matters. Front Hum Neurosci. 2014;8:340. http://dx.doi.org/10.3389/fnhum.2014.00340 PMid:24971056.
    » http://dx.doi.org/10.3389/fnhum.2014.00340

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2019
  • Aceito
    31 Jan 2020
Academia Brasileira de Audiologia Rua Itapeva, 202, conjunto 61, CEP 01332-000, Tel.: (11) 3253-8711 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@audiologiabrasil.org.br