Open-access Validação conteúdo Vivendo com Disartria

RESUMO

Objetivo  apresentar a validação de conteúdo do questionário Vivendo com Disartria) para o português brasileiro.

Métodos  estudo metodológico para validade de conteúdo de instrumento de autoavaliação da fala em indivíduos disártricos, de acordo com as recomendações do Standards for Educational and Psychological Testing. Essa fase contou com um painel de cinco juízes especialistas que avaliaram relevância e pertinência teórica e textual de cada item que compunha o questionário. A validade do protocolo foi verificada pelo Índice de Validade de Conteúdo e Coeficiente de Validação de Conteúdo.

Resultados  ao calcular o Índice de Validade de Conteúdo na relevância do item, seis itens sobre problemas de comunicação relacionados à linguagem e socialização tiveram pontuação abaixo de 0,59, sendo considerados ruins e excluídos do questionário. Ainda, 17 itens foram excluídos, pois, devido à pertinência teórica e textual, obtiveram Coeficiente de Validação de Conteúdo final abaixo de 0,80.

Conclusão  o questionário Vivendo com Disartria apresenta evidências de validade adequadas com base no conteúdo do teste. A versão final do instrumento conta com 33 itens, avaliados com chave de respostas em escala Likert de 6 pontos. Enfatiza-se a importância de avançar com as etapas sequenciais para obtenção das demais evidências de validade.

Palavras-chave:  Estudos de validação; Inquéritos e questionários; Autoavalição; Disartria; Qualidade de vida

ABSTRACT

Purpose  to present the content validation of the Living with Dysarthria (LwD) questionnaire for Brazilian Portuguese.

Methods  Methodological study for content validity of a speech self-assessment instrument in dysarthric individuals, in accordance with the recommendations of the Standards for Educational and Psychological Testing (SEPT). This phase included a panel of five expert judges who assessed the relevance and theoretical and textual relevance of each item that made up the LwD. The validity of the protocol was verified by the Content Validity Index (CVI) and Content Validation Coefficient (CVC).

Results  When calculating the CVI on item relevance, six items on communication problems related to language and socialization scored below 0.59, being considered poor and excluded from the questionnaire. Still 17 items were excluded due to theoretical and textual relevance, they obtained a final CVC below 0.80.

Conclusion  The LwD presents adequate validity evidence based on the test content. The final version of the instrument has 33 items, evaluated with an answer key on a six-point Likert scale. The importance of moving forward with sequential steps to obtain other evidence of validity is emphasized.

Keywords:  Validation studies; Surveys and questionnaires; Self-assessment; Dysarthria; Quality of life

INTRODUÇÃO

Alterações no Sistema Nervoso Central (SNC) podem resultar em diversos tipos de distúrbios de linguagem e/ou fala, com repercussões distintas, a depender da localidade e extensão da lesão. A disartria está integrada no grupo de perturbações neurológicas da fala e corresponde à incapacidade no controle das estruturas envolvidas na produção da fonoarticulação(1). É descrita como um grupo de distúrbios neurogênicos da fala, caracterizados por anormalidades na força, velocidade, extensão, estabilidade ou precisão dos movimentos necessários para a respiração, aspectos fonatórios, ressonantes, articulatórios ou prosódicos da produção da fala e pode afetar adversamente a inteligibilidade e/ou a naturalidade da fala(2).

As principais manifestações das disartrias relacionadas à voz são: tremor vocal, esforço e rugosidade, articulação irregular, prolongamento e distorção de sons, prosódia com acentuação excessiva ou reduzida, entre outros(3).

A avaliação da disartria é baseada em características qualitativas por meio da identificação de aspectos que apontem para a presença desses transtornos da fala e que ajudem a distingui-los entre si. O uso de protocolos validados para autoavaliação é um recurso relevante para a compreensão do impacto da alteração sob a perspectiva do sujeito que a vivencia, além do monitoramento de evolução da intervenção fonoaudiológica(4).

Dois questionários para autoavaliação da qualidade de vida relacionados à disartria são disponíveis, nenhum validado. O primeiro é o Quality of Life in the Dysarthric Speaker (QoLDys)(5), para avaliar as dificuldades percebidas na fala e o impacto no dia a dia. O segundo é o protocolo Vivendo com Disartria (VcD), traduzido para o português brasileiro e adaptado culturalmente(6).

É necessário utilizar diretrizes para seguir todas as etapas de validação de testes. Pode-se elencar os princípios do Standards for Educational and Psychological Testing (SEPT)(7), diretriz proposta por três organizações norte-americanas que compila as mais sólidas e utilizadas recomendações e definições relacionadas aos aspectos psicométricos envolvidos, desde a elaboração até a interpretação dos testes. Uma vez que o VcD foi traduzido e adaptado culturalmente, este estudo trouxe a etapa subsequente, a validação de conteúdo.

O objetivo da validação de conteúdo é observar a concordância entre juízes experts na área, para analisar a relevância e a pertinência teórica e textual dos itens e verificar se o conteúdo está pertinente e adequado ao que se pretende investigar e o público alvo. Essa etapa pode envolver as análises específicas Índice de Validação de Conteúdo (IVC) e Coeficiente de Validação de Conteúdo (CVC), a partir da relevância teórica, pertinência prática e clareza de linguagem da versão do VcD para a língua portuguesa do Brasil(8).

Diante disso, o objetivo deste estudo foi apresentar a validação de conteúdo do questionário Vivendo com Disartria (VcD).

MÉTODO

Estudo metodológico, que envolveu uma das fases de validação de um instrumento fonoaudiológico de autoavaliação da fala em indivíduos com disartria. Cumpriu os termos da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde e foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos (CEP) da instituição de ensino superior em que foi desenvolvido (nº 5.946.887).

O estudo seguiu as recomendações do SEPT. A validação de conteúdo constou de avaliação de experts na temática abordada, para analisar a correspondência dos itens de teste aos seus alvos pretendidos, o grau em que os itens representavam o conteúdo pretendido e as especificações cognitivas, além de classificar o grau de relevância para o domínio testado.

Participaram cinco juízas, que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), todas fonoaudiólogas, especialistas em voz, motricidade orofacial e/ou gerontologia, com mais de dez anos de experiência em casos neurológicos. A análise foi feita de modo individual e independente; cada juíza recebeu a versão traduzida e adaptada para português brasileiro do VcD6, com 50 questões, divididas em dez seções, que abordaram desde dificuldades específicas na produção da fala e voz até a interferência de questões comportamentais, sociais e ambientais. Cada uma das afirmativas continha uma chave de resposta em escala Likert de 6 pontos, a saber: “discordo totalmente” (1), “discordo bastante” (2), “discordo um pouco” (3), “concordo um pouco” (4), “concordo bastante” (5) e “concordo totalmente” (6). O escore total do questionário foi calculado por meio do somatório simples de cada item, com mínimo de 50 pontos e máximo de 300.

As juízas julgaram a relevância do item em 4 pontos, para avaliar a qualidade de vida de um indivíduo disártrico, classificando a pertinência teórica, analisando se o conteúdo do item era representativo da fala do indivíduo, e o conteúdo textual, indicando a adequação semântica e interpretativa do significado das palavras (vocabulário e gramática). Para a relevância do item, foi atribuída pontuação entre 1 e 4: (1) não relevante, (2) necessita de grande revisão para ser representativo, (3) relevante, mas necessita pequenas alterações e (4) absolutamente relevante. Itens pontuados como 1 e 2 deveriam ser ajustados.

A validade do protocolo foi verificada pelo Índice de Validade de Conteúdo (IVC) e Coeficiente de Validação de Conteúdo (CVC). O IVC foi verificado na relevância do item, com o somatório do número de juízas que atribuíram pontuações 3 e 4, dividido pelo número total de respostas obtidas para o item. Valores acima ou igual a 0,78 foram considerados excelentes, entre 0,77 e 0,60, bons e abaixo de 0,59, ruins(9).

O CVC foi realizado para as respostas das juízas quanto à pertinência teórica e textual de cada item, com um cálculo em cinco etapas: médias das notas das juízas; divisão das médias pelo valor máximo que a questão poderia receber; cálculo do erro; divisão do valor pelo número de juízas avaliadoras, elevado pelo mesmo número de avaliadoras; subtração da média do cálculo obtido pela média do erro. Itens com valores acima de 0,80 foram considerados aceitáveis(10).

RESULTADOS

Quanto ao IVC na relevância do item, seis deles - 6,9,10,15,37 e 38 - tiveram pontuação abaixo de 0,59, considerados ruins e excluídos do questionário (Tabela 1). Os itens 7,8,12,27 e 32 obtiveram pontuação entre 0,77 e 0,60, considerados bons; os demais foram considerados excelentes.

Tabela 1
Valores de concordância dos itens pela análise do Índice de Validade de Conteúdo e média do Coeficiente de Validação de Conteúdo de cada um dos itens do questionário

Em relação à pertinência teórica e textual, 17 itens tiveram CVC abaixo de 0,80 e foram excluídos. Foram eles: 3,4,6,7,8,9,10,12,15,18,24,27,30,32,37,38 e 45 (Tabela 1). Os itens 1,5,16, e 44 receberam sugestões de ajustes das juízas e modificações textuais foram realizadas pelos pesquisadores do instrumento. O protocolo VcD obteve uma versão final com 33 itens (Quadro 1).

Quadro 1
Questionário Vivendo com Disartria, versão final após validação de conteúdo

A escala de respostas em 6 pontos foi avaliada e não sofreu nenhuma modificação.

DISCUSSÃO

Os protocolos de autoavaliação oferecem informação sobre quem vive com certa condição e permitem a percepção e compreensão no que diz respeito aos impactos na qualidade de vida. O VcD foca em pessoas que apresentam alteração motora da fala ou fonoarticulatória, como a disartria e sua implicação no cotidiano. O estudo permitiu apresentar a validação de conteúdo desse instrumento, tendo como resultado uma versão menor e de aplicação mais rápida, após acordo com o painel de especialistas, sob as diretrizes específicas e contemporâneas do SEPT.

Após o processo de tradução e adaptação transcultural, a literatura(7) definiu cinco etapas usadas ao evidenciar a validade de um teste: (a) evidência com base no conteúdo; (b) evidência com base no processo de resposta; (c) evidência com base na estrutura interna; (d) evidência com base na relação com variáveis externas; (e) evidências baseadas nas consequências do teste (responsividade), além da confiabilidade e acurácia, para maior robustez do instrumento(7).

A etapa de validação de conteúdo foi imprescindível e, a partir dos cálculos do IVC e CVC, foi possível ajustar semântica, sintática e questões contextuais da versão do instrumento. Houve exclusão de itens menos abrangentes, com impacto no produto, que ficou mais sucinto e robusto.

Os itens que apresentaram pontuação baixa e, portanto, excluídos foram: “minha fala é lenta”, “minha fala é arrastada”, “tenho dificuldade em achar as palavras para falar”, “minha fala é simples”, “tenho que pensar no que estou falando e como estou dizendo enquanto eu falo”, “demoro para compreender uma informação nova”, “nem sempre compreendo o que as pessoas dizem”, “eu evito discussões ou conversas profundas ou complicadas”, “não consigo me concentrar o suficiente para acompanhar o que as pessoas dizem”, “minhas dificuldades de fala afetam negativamente minha autoimagem”, “é difícil me comunicar com as pessoas que eu conheço, no trabalho, ou no comércio, ou em lojas, padarias, restaurantes, farmácias..”, “é difícil falar quando os amigos me visitam”, “é difícil falar sobre questões emocionais”, “exercitar meu papel como membro da família como eu gostaria”, “dificuldades com a linguagem (compreender e expressar ideias e sentimentos)”, “dificuldade de pensar lembrar e em concentrar”, “eu me comunico como eu gostaria, mas não o quanto eu gostaria”. Esses itens apresentavam características como redundância no conteúdo, presença de elementos quase idênticos ou que verificavam a mesma informação, tornando-se repetitivos para o respondente. Ademais, alguns itens consistiam em perguntas longas e de difícil compreensão e interpretação.

A versão produzida no presente estudo, com itens mais representativos, permite uma aplicação mais rápida e direta. Destaca-se que não havia protocolos que envolvessem o construto de qualidade de vida em pacientes com disartria validados para português brasileiro. Os motivos listados ampliam a relevância científica do estudo em questão.

De forma geral, os itens que foram mantidos no VcD trazem perguntas pertinentes e que conseguem representar o impacto da disartria na qualidade de vida do indivíduo em esferas relacionadas à fala, comunicação, linguagem, emoções e socialização.

Pesquisas futuras serão realizadas com a finalidade de seguir as demais etapas de validade, confiabilidade e acurácia para obter um instrumento mais preciso, sensível e específico para essa população. Seguir todas as etapas irá garantir o rigor metodológico e interpretação dos resultados, o que poderá confirmar como um teste válido e confiável.

CONCLUSÃO

O VcD apresenta evidências de validade adequadas, com base no conteúdo do teste. A versão atual do instrumento é composta por 33 itens com o objetivo de avaliar a percepção de qualidade de vida impactada pela dificuldade de fala dos indivíduos com disartria, com manutenção da chave de respostas em escala Likert de 6 pontos.

Enfatiza-se a importância de avançar com as etapas sequenciais para obtenção de evidências de validade baseadas na consistência interna, nos processos de resposta, relação com outras variáveis, confiabilidade, equidade, acurácia e consequência do teste para obtenção da versão final do questionário.

  • Trabalho realizado na Universidade Federal da Paraíba – UFPB – João Pessoa (PB), Brasil.
  • Financiamento:
    Este estudo faz parte de um projeto maior financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processo No. 303503/2016-5.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Maio 2024
  • Aceito
    04 Jul 2024
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