Resumo
Este artigo apresenta uma discussão sobre a prática do violino na música popular brasileira com ênfase no gênero choro a partir de um conjunto de composições de José Eduardo Gramani (1944-1998). Inicialmente são apresentados recursos do instrumento com ênfase no aspecto rítmico para sua inserção na linguagem do choro. Em seguida, será feito um levantamento dessas composições e arranjos de música popular brasileira para violino, rabecas e outros instrumentos. Finalmente, três exemplos dessas composições serão analisados através da teoria das tópicas na música brasileira proposta por Piedade (2013; 2017) e dos recursos técnicos mencionados. Para ilustrar esses trechos analisados, foram feitas gravações em vídeo.
Palavras-chave: Violino; Música Popular Brasileira; Choro; Gramani
Abstract
This article presents a discussion about the practice of the violin in Brazilian popular music with an emphasis on the choro genre based on a set of compositions by José Eduardo Gramani (1944-1998). Initially, tecnical resources of the instrument are presented with an emphasis on the rhythmic aspect for its insertion into the language of choro. Next, the set of compositions of Brazilian popular music for violin, brazilian rabecas and other instruments will be presented. Finally, three examples of these compositions will be analyzed through the theory of topics in Brazilian music proposed by Piedade (2013; 2017) and the technical resources mentioned. To illustrate these analyzed excerpts, video recordings will be referenced
Keywords: Violin; Brazilian Popular Music; Choro; Gramani
Este artigo é parte de minha pesquisa de mestrado que discute a prática do violino na música popular brasileira com ênfase no gênero choro. A partir da apresentação e análise de composições originais e arranjos do violinista e rabequeiro José Eduardo Gramani (1944-1998), serão trazidas possibilidades interpretativas para o violino nessas obras. A motivação para esta pesquisa surge do interesse no uso do instrumento na linguagem da música popular brasileira e da constatação de que, a despeito de haver uma sólida tradição de estilos musicais urbanos e rurais na música instrumental brasileira nos quais o violino ou a rabeca aparecem também como instrumentos protagonistas, do ponto de vista de materiais didáticos e formativos, esses instrumentos estão ausentes. A partir disso, com este estudo busco compreender outras maneiras de perceber e interpretar esses gêneros musicais através do violino.
Os arranjos e composições de choro referidos aqui me foram apresentados pelo meu orientador como um possível objeto de pesquisa: trata-se de um compilado de composições e arranjos de música popular (sambas, choros, xotes, baiões, lundus, valsas etc.), a maioria composta para duos de violinos, escritos ou arranjados por José Eduardo Gramani. Este material é inédito e ainda não foi publicado; sua divulgação restringe-se a cópias dos originais que circulam entre os aficionados, geralmente em fragmentos que mais interessaram aos tocadores. Seu estado de conservação é ótimo e a maioria das peças encontra-se digitalizada. Não temos acesso aos manuscritos e tampouco se sabe de quais composições há ou houve um manuscrito, pois supõem-se que muitas dessas composições/arranjos foram digitalizadas no momento da fixação pela escrita pelo próprio compositor.
Gramani foi um músico de múltiplas facetas tendo atuado em diversas frentes musicais: violinista de orquestra e concertino da Orquestra Sinfônica de Campinas, violinista solista e camerista, regente, compositor, professor de violino e de rítmica. Sua formação como violinista foi em grande parte autodidata e, ao longo de sua carreira manteve contato com uma ampla gama de estilos musicais, tanto da música de concerto quanto da música popular urbana e da tradição oral. Teve larga experiência na música de tradição europeia, música antiga, romântica e contemporânea, e também em vários gêneros da música popular brasileira: além do violino, era proficiente em vários outros instrumentos, como o bandolim e o violão. Nos seis últimos anos de sua vida descobriu a rabeca, instrumento para o qual dedicou um número significativo de composições em diversas formações instrumentais/vocais. A rabeca foi o foco de seus últimos trabalhos, o CD Mexericos da Rabeca, com composições suas para duo de rabeca(s) e cravo e o livro Rabeca, o som inesperado (Gramani, 2002), resultado de pesquisas de campo realizadas em Morretes (PR), Paranaguá (PR), Iguape (SP) e Marechal Deodoro (AL) que documentaram o processo de construção desses instrumentos por mestres rabequeiros destes locais.
Mas talvez o trabalho mais conhecido de Gramani não seja diretamente ligado às rabecas e tampouco ao violino. Como professor de rítmica, Gramani destacou-se por elaborar um método inovador de rítmica baseado em uma abordagem polirrítmica e de cunho performativo em consonância com uma epistemologia corpórea na linha dalcrozeana. Sua metodologia e visão da rítmica como uma expressão musical e não matemática - redução do ritmo ao metro - está bem consolidada nos seus dois livros publicados, Rítmica (1988) e Rítmica Viva (1996) que contribuíram de forma significativa para abordagens pedagógicas que valorizassem a prática da música popular brasileira na academia.
Este artigo apresenta, portanto, análises de parte dessas composições de Gramani em uma perspectiva que pretende cruzar dois eixos: o eixo da práxis, através de composições enquadradas no gênero choro e o eixo da theoria, entendendo a rítmica conforme proposta por Gramani como uma teoria polirrítmica embasada na sobreposição de constâncias e inconstâncias, ostinatos regulares e linhas assimétricas, as chamadas imparidades rítmicas que dialogam e tecem conexões com os conceitos de rítmica aditiva e as claves presentes na música afro-brasileira Como ferramenta analítica foi considerada a teoria das tópicas na música brasileira (Piedade, 2007, 2013), além de análise rítmica e motívica com os parâmetros da estrutura do choro como estrutura formal (Séve, 1999, 2015). A partir da observação de elementos musicais recorrentes, serão apontadas características estilísticas que rementem às duas tópicas do choro elaboradas por Piedade: tópica “Brejeiro” e “Época de Ouro”.
Até o presente momento, não temos conhecimento das datas de composição destas obras, mas supomos que grande parte foi escrita depois de 1995 e que pela sua conformação instrumental representam uma prática pedagógica comum na formação tradicional violinística através de duetos e trios. Dessa forma, acredita-se que o tratamento idiomático do choro trazido por Gramani como recursos compositivos e didáticos pode enriquecer a performance de violinistas na música popular brasileira.
1. A inserção do violino na linguagem do choro: aspectos rítmicos
A partir deste ponto serão apresentadas características formais e rítmicas na tradição do choro. Sève (2015, p. 115) afirma que a forma rondó, conhecida como uma das principais características do choro, foi uma herança das danças europeias. De acordo com Severiano (2013), até a década de 1910 “os choros em sua maioria eram chamados de polca. Pode-se assim dizer que os nossos choros primitivos eram polcas tocadas à moda brasileira, ou seja, modas que incorporaram a síncope do batuque” (Severiano, 2013, p. 34). Aos poucos essa música foi se emancipando e criando sua própria linguagem. O que permaneceu por muito tempo foi a forma rondó da polca, presente em grande parte do repertório. Hoje já não existe tanta rigidez nesse aspecto composicional:
O Choro como gênero tem normalmente três partes (mais modernamente duas) e se caracteriza por ser necessariamente modulante. Mais recentemente, o Choro voltou a significar uma maneira de frasear, aplicável a vários tipos de música, brasileira ou não. A obediência à forma rondó (em que sempre retorna à primeira parte) aos poucos tem sido flexibilizada (Cazes, 2021, p. 19).
Cazes (2021, p. 19) afirma que foi a partir de 1910 [com a contribuição da obra de Pixinguinha, especialmente] que o choro passou a ser uma forma musical definida. Em termos gerais, o choro é constituído por três partes tematicamente independentes que se sucedem seguindo o modelo ABACA. Convencionalmente, cada parte possui dezesseis compassos organizados como um período (Moreira e Návia, 2019, p. 165).
A partir de Schoenberg, a teoria do choro interpreta o período de dezesseis compassos como um múltiplo do período de oito compassos, sendo composto por quatro frases de quatro compassos: enunciado principal (ou antecedente), contraste, repetição (ou consequente) e desfecho cadencial (Alamada, 2006, p. 16 apud Moreira e Návia, 2019, p. 165).
Cançado (2000) aponta a distinção da figura rítmica síncopa como um elemento central da música afro-americana e de como ela é interpretada na música popular brasileira de uma maneira distinta da leitura europeia, mais livre e com subdivisões irregulares. Assim, entende-se que as raízes africanas são essenciais para caracterizar as rítmicas dos diversos gêneros populares brasileiros.
Em concordância, para Sève o choro pode ser interpretado com bastante liberdade rítmica. Associando com a leitura “swingada” do jazz, o autor demonstra que a síncopa pode ser interpretada entre a semicolcheia + colcheia + semicolcheia - e uma figura tercinada. Além disso, na maioria das vezes o acento do 2/4 está situado no segundo tempo. (sève, 1999, p. 11).
O conceito de “síncopa” conforme exposto por Cançado e Sève será problematizado e contraposto mais adiante com o conceito de “clave”, a partir dos aportes teóricos de Carlos Sandroni desenvolvidos em Feitiço Decente (2001) e pela literatura etnomusicológica africanista dos anos 80 e 90. Sandroni questiona o termo “síncopa brasileira” - cunhado por Mário de Andrade - porque essa célula rítmica tem por definição ser uma irregularidade a quebrar a normalidade métrica estabelecida pela cultura musical clássica europeia. Assim, o autor apresenta o paradoxo de que na nossa música essa irregularidade - marcada, sobretudo, pela síncopa - é na verdade a regra, não a exceção.
O autor propõe observar as rítmicas brasileiras através da concepção de tresillo (3+3+2 sobre um ciclo de 8 pulsações) que, ao invés de considerar o agrupamento do compasso tradicional (semicolcheia+colcheia+semicolcheia | colcheia+colcheia) faz uma leitura assimétrica, agrupando (semicolcheia+colcheia | semicolcheia+colcheia | colcheia) - grupos ternários divididos em 1+2 ou seu espelho: (colcheia+semicolcheia | colcheia+semicolcheia | colcheia). Concordando, portanto, com a concepção de rítmica aditiva que será exposta a seguir. No caso do choro, onde tradicionalmente está escrita uma síncopa, é possível interpretar de forma assimétrica.
O tresillo também aparece na música escrita no Brasil desde pelo menos 1856, quando figura na introdução do lundu “Beijos de frade”, de Henrique Alves de Mesquita. Depois disso, aparece como padrão rítmico de acompanhamento em enorme quantidade de peças populares impressas, como as de Ernesto Nazareth e seus contemporâneos menos conhecidos, mas também em muitas peças de compositores eruditos das gerações ditas “nacionalistas”. (Sandroni, 2001, p. 23)
Conforme visto anteriormente, ainda podem ser feitas inversões das figuras:
Se fizermos a experiência oposta, ou seja, se subdividirmos os mesmos grupos ternários em 2+1, o resultado é uma figura rítmica que também aparece muito na música popular brasileira (por exemplo, em padrões de acompanhamento de cavaquinho em choros do início do século XX) e que por ser constituída de cinco articulações recebeu de musicólogos cubanos (porque também é frequente por lá) o nome de cinquillo. (Sandroni, 2001, p. 29)
O que foi visto até aqui, portanto, por um lado exprime a diferença entre a concepção da rítmica divisiva, baseada na ideia de compasso - onde é feita a divisão de uma duração em valores iguais representada na notação de partitura convencional, e, por outro, a rítmica aditiva, com divisões assimétricas - também chamadas de imparidades rítmicas - que somam as pulsações elementares (num compasso 2/4 as semicolcheias) em agrupamentos binários e ternários, estes, por sua vez, reagrupados em [1 + 2] ou [2 + 1].
Um mesmo ciclo rítmico - dentro de um compasso 2/4 (em notação clássica) -, na “rítmica divisiva” pode ser preenchido por uma mínima (ou duas semínimas, ou quatro colcheias, ou oito semicolcheias etc.), enquanto que na “rítmica aditiva” completa-se pela da soma de dois grupos (menores) de três semicolcheias e um grupo de duas semicolcheias” (Sève, 2015, p. 47)
Também é importante que se compreenda a organização rítmica por “time-lines”, linhas-guia ou claves. A partir dos estudos de Nketia (1965, p. 93) que investigam a música para dança de diversos países africanos percebe-se que existem esses padrões rítmicos dentro de um período cíclico, definidos e marcados através de palmas ou instrumentos percussivos agudos como a clave e o agogô/gã. Esses, por terem a sonoridade metálica, definem a linha-guia como Bell-pattern, em inglês. Sandroni (2001) relaciona o time-line com a função de marcação do ritmo e identidade da clave/toque exercida pelo agogô, tamborim e também pelo cavaquinho na música brasileira. Na terminologia nativa do samba, o time-line é chamado de “padrão do tamborim”. De acordo com Nketia ao tratar da música da África Ocidental, essas linhas-guia podem ser representadas de forma divisiva ou aditiva irregular. Além disso, ao considerar a rítmica aditiva, o autor afirma que as figuras rítmicas podem sobrepor a barra de compasso (Nketia, 1965).
Dessa maneira, entende-se que no pensamento aditivo as time-lines são consideradas como frases, e não como organizações hierárquicas dentro do compasso. Isto é válido também para todas as claves de matriz africana que estruturam grande parte da rítmica das músicas afro-brasileiras, e por consequência, os choros e os sambas. Nessa perspectiva importa mais o uso do arco, como veremos adiante, como um elemento estruturante da clave, um marcador da frase rítmica demarcada pela time-line, do que um propulsor de melodias magnificamente sincopadas a desviar de um imaginário tactus indicado pela fórmula métrica abstrata do compasso. Note que, quando Gramani indica em suas instruções contidas no livro Rítmica (1988, p. 16-17) como executar as Séries (aditivas e ímpares), sobrepostas a ostinatos regulares, enfatiza com veemência a independência das vozes rítmicas (séries irregulares, ímpares x ostinatos regulares) através de acentos, de modo a não subjugar uma voz à outra, como seria esperado se a noção de compasso fosse mantida. Portanto, nas concepções rítmicas de Gramani também não há espaço para proliferação de síncopas e, por isso, o que ele chama de “sensibilização rítmica” é extremamente útil para sentir o ritmo a partir das claves.
2. Uso do arco
Em relação às técnicas de arco para interpretar as rítmicas brasileiras no violino, na análise de Isidoro, Rohr e Borém sobre as gravações de Nicolas Krassik e do violoncelista Jaques Morelenbaum, os autores apontam a ênfase dada ao ritmo e articulações pelos artistas. Na interpretação de Krassik da peça Fafá em Hollywood, são identificados três golpes de arco: legato, détaché (simples e acentuado) e martelé. Assim, as duas variações de detaché são utilizadas para evidenciar a figura da síncopa. Além disso, o violinista usa o détaché acentuado e o martelé para simular os sons das percussões. (Isidoro, Rohr e Borém, 2014, p. 4). Já na interpretação do violoncelista, é observado o uso do spiccatto e outras articulações acentuadas para destacar as sílabas tônicas pronunciadas na letra da música. A partir dessa análise, pode-se relacionar esse estilo de tocar canções brasileiras com Fafá Lemos, que também utilizava recursos de arco para remeter à prosódia normalmente vinculada à canção.
Para Silva (2005), Fafá Lemos é uma valiosa referência da música popular no violino, um dos mais importantes instrumentistas e criador de uma identidade brasileira para o instrumento. Sua análise técnica das gravações de Fafá contribui para a compreensão dessa linguagem, onde é reforçado novamente o trabalho do arco em articulações de ritmos característicos. “A utilização da síncopa é muito valorizada quando o repertório é nacional (...) Nos LPs analisados, praticamente todas as faixas com músicas brasileiras apresentam exemplos de um vocabulário violinístico baseado em células rítmicas normalmente utilizadas por instrumentos acompanhadores” (Silva, 2005, p. 13).
Fillat (2018) também faz considerações em relação ao arco analisando a interpretação e pedagogia de Ricardo Herz e Nicolas Krassik. “Destacam-se inicialmente três tipos de golpes que Ricardo Herz denomina como o “som na corda”, “o acento” e o “sem som” que correspondem respectivamente ao détaché, ao détaché acentuado e às “notas fantasmas”. A autora afirma que esses recursos são a base para a aprendizagem da música popular brasileira no violino e que a partir daí os dois violinistas trabalham com diferentes acentuações de acordo com o repertório. Outro ponto discutido nesse trabalho foi a qualidade do ataque de cada nota. Herz classifica o détaché como som na corda “sem morder” ou “mordendo cada nota". Essa sutileza ainda não diz respeito à acentuação, mas sim ao som de consoante ou vogal do início de cada nota (Fillat, 2018, p. 78).
Ainda sobre o uso do arco na música popular, a violinista Wanessa Dourado (2020) abordou em um de seus vídeos didáticos1 (Dourado, 2020) uma maneira de executar a arcada na figura sincopada já mencionada anteriormente. De acordo com ela, essa célula rítmica que também é chamada de “garfinho” 2 é muito recorrente no repertório do choro, maxixe, forró, frevo, entre outros ritmos. Assim, é importante compreender e executar primeiro a subdivisão com as quatro semicolcheias desligadas para compreender o gesto e em seguida tocar a síncopa com a ligadura. Essa maneira facilita a compreensão para uma execução mais natural da figura rítmica.
Essa técnica também é aplicada em outras células rítmicas e abordada por Herz e Krassik com os termos sem som ou nota fantasma. As arcadas silenciosas são influência dos métodos de jazz e os violinistas também ensinam contemplando as figuras rítmicas brasileiras nas melodias e acompanhamentos (Fillat, 2018, p. 84).
Esse movimento perpétuo facilita a percepção rítmica, permite não se perder no tempo, nem ralentar ou acelerar. Essas notas são tocadas quase sem pressão e sem som para manter a rítmica e valorizar as síncopas dos diferentes ritmos com acentos. Esse elemento aproxima a prática do violino à dos instrumentos percussivos ou de cordas dedilhadas. (Fillat, 2018, p. 84)
Outro exercício importante para o desenvolvimento da noção rítmica recomendado por Wanessa Dourado consiste na prática escalas no violino utilizando uma base rítmica de percussão de samba ou choro através do recurso de gravações play along. Ao escolher uma das claves tocada por algum dos instrumentos da base, a escala é executada dentro desse ritmo. Assim, é possível desenvolver o ouvido e ritmo internos e pode ser uma espécie de preparação para tocar os acompanhamentos e improvisar intercalando entre claves de diversos instrumentos. Este recurso das gravações para estudo de temas e improvisos é bastante comum para instrumentistas de sopro, principalmente no estudo do jazz.
3. Levantamento das obras
A seguir será apresentado um levantamento das composições de obras originais e arranjos de música popular brasileira escritos por José Eduardo Gramani a partir de 1996, além de transcrições para violino com cifras. Foi realizada uma organização do conteúdo de acordo com compositor(a), obra e ano, e a formação para a qual esses arranjos foram escritos. Ao todo foram coletadas 12 composições (fig 4.) e 15 arranjos (fig. 5) de José Eduardo Gramani e uma composição de Daniela Gramani arranjada por J.E. Gramani.
4. Considerações sobre o conteúdo das obras
As edições das partituras elaboradas por Gramani são escritas em formato de grade. Ou seja, as vozes de cada instrumento aparecem sobrepostas. Percebe-se também que a partitura não apresenta muitos detalhes interpretativos para além das notas, como indicações de dinâmica, articulação ou agógica, por exemplo. Nesse sentido, podemos considerá-las como uma notação mais descritiva do que prescritiva, com ingerências tanto na análise quanto na performance. O musicólogo norte-americano Charles Seeger (1886-1979) teoriza sobre esses conceitos fundamentais para escrita musical no artigo seminal Prescriptive and Descriptive Music-Writing (1958). Segundo Seeger, a notação descritiva é um tipo de roteiro de como a obra deve ser executada, uma espécie de relatório da performance, diferentemente da notação prescritiva , que tem como objetivo prescrever de forma detalhada como a obra deve soar, uma espécie de diagrama de alturas e metros, ou seja, a partitura. Ao falar sobre os três perigos inerentes à notação musical - limitação gráfica/visual da bi-dimensionalidade da partitura; a sobreposição do discurso musical em detrimento da arte da fala (music-writing x speech writing) - Segeer detém-se sobre o terceiro aspecto, a notação descritiva e prescritiva, nos seguintes termos:
O terceiro [perigo] reside no fato de não termos conseguido fazer uma distinção entre os usos prescritivos e descritivos da notação musical, ou seja, entre um diagrama [uma prescrição] de como uma peça específica de música deveria soar e um relatório [uma descrição] de como uma performance específica realmente soou (Segeer, 1958).
Laurent Cugny, em Analyser le jazz (2009), que escreve na perspectiva dos estudos culturais e da improvisação no jazz, acrescenta mais uma camada de interpretação e faz uma distinção entre as tradições de notação na música de concerto e no âmbito do jazz:
Como o nome indica, a notação descritiva tem por fim descrever a realidade de uma música que foi tocada. É uma escrita aberta, na qual os sinais gráficos convencionados dependem diretamente da experiência do músico que os interpreta. Funciona como um roteiro, e não tem a intenção de estabelecer uma interpretação como reflexo de verdade. A notação prescritiva, ao contrário, determina formas mais ou menos fixas de interpretação, como num texto literário, e seus significantes apontam para significados unívocos. A partitura da tradição culta é essencialmente prescritiva: é o texto da Obra a que o intérprete deve se referir em sua execução (Cugny apud Seeger, 1958 - grifos nossos).
Por sua vez, a etnomusicóloga brasileira Nina Graeff (2014), trazendo a questão para o âmbito da música afro-brasileira que em nosso caso de análise e performance de repertório profundamente conectado com a tradição do Choro se apresenta como de entendimento fundamental, resume em poucas palavras a distinção epistemológica entre a rítmica europeia e africana:
...a notação musical ocidental mostra-se limitada, tendo sido criada para prescrever, e não descrever, a maneira uma música deve ser executada (Seeger, 1958). A escrita musical clássica dispõe de poucos recursos para indicar como a música soa e como seus sons são produzidos. Ela concentra-se primordialmente na representação de alturas precisas de notas, de sua dinâmica (acentos, forte, piano), e da organização temporal divisível dos sons (Graeff, 2014, p. 68).
Em consonância com as perspectivas apontadas por Graeff, Alcofra (2020, p. 730-735) afirma que as partituras de música popular - especificando a música de origem urbana instrumental e vocal - têm como característica ser um roteiro de campo mais aberto em contraponto com a escrita da música de concerto europeia, que carrega consigo uma tradição de interpretação a ser seguida quase à risca. Esse mesmo pensamento foi também confirmado por Séve (2015) em sua afirmação:
Assim como o estilo barroco, o jazz, o choro e outros gêneros populares têm suas músicas notadas apenas com indicações essenciais - ritmos melódicos, formas, alturas, tonalidades e sugestões de andamento (fornecidas, muitas vezes, por indicações de gênero nas peças). Detalhes de articulação, de dinâmicas e agógicas (dentre as poucas exceções, está a 58 obra pianística de Ernesto Nazareth) raramente são prescritos. Muitos procedimentos interpretativos dos choros encontram-se revelados em um sistema de códigos compartilhados pela tradição oral ou por gravações - sobretudo, aquelas realizadas a partir dos anos 1930, após o surgimento do rádio e do sistema elétrico de registro fonográfico (Séve, 2015, p. 57-58).
Ampliando a discussão, deve-se observar que, mesmo dentro da tradição da chamada música de concerto europeia, nem sempre a notação foi prescritiva para o intérprete. Tomando como exemplo o histórico da prática do violino na Europa, a partir de que compositores fiorentinos passaram a escrever partituras com uma certa independência instrumental no início do século XVII, violinistas tinham como hábito desenvolver a habilidade da ornamentação improvisada. Para isso, foram escritos inúmeros tratados com normas e padrões para as diminuições a serem executadas nas melodias (Fiaminghi, 2008). “O virtuosismo instrumental, que eclodiu em decorrência da nova linguagem musical barroca, tirou do anonimato os instrumentos que na Renascença atuavam preponderantemente em conjunto” (Fiaminghi, 2008, p. 109).
Em analogia à música do período barroco, poderíamos conceituar o vocabulário de códigos utilizado pelos chorões como um conjunto de regras com finalidade de dar suporte à notação musical. Embora estas supostas regras sejam (desejavelmente, muitas vezes) passíveis de serem subvertidas (para toda regra há exceções), o fato de conhecê-las pode ser útil na revelação do pensamento dos intérpretes e compositores nas práticas musicais do gênero. Procedimentos recorrentes no choro são capazes de apresentar-se nas relações com a forma e a fraseologia (rondó, motivos iniciais e finais, etc.) ou com o fraseado (flexibilidades rítmico-melódicas, acentuações, ornamentações, articulações etc.) (Séve, 2015, p. 60)
Segundo Harnoncourt, J. S. Bach (1685-1750)
foi o único compositor de seu tempo que repetidamente rompia as barreiras entre a “obra” e “execução”, as quais definiam de maneira fundamental a música do período barroco. Ele indicava aos intérpretes todos os detalhes então conhecidos acerca da interpretação de suas obras, sobretudo no que se referia à articulação e ornamentação (...) Ao adotar este procedimento, Bach rompeu com o velho princípio da autonomia criativa do intérprete. (...) Os compositores das gerações seguintes acompanharam e aprofundaram esta prática, assim subtraindo aos intérpretes qualquer participação na obra. (Harnoncourt, 1993, p. 45).
Percebe-se, então, que no passar do tempo a escrita para violino foi se tornando cada vez mais prescritiva, à medida em que compositores acrescentavam cada vez mais elaborações técnicas e detalhes expressivos para o intérprete em suas obras. Observando pela perspectiva da música antiga mencionada anteriormente, é possível encontrar semelhanças entre as músicas escritas sob as tradições retóricas dos sécs. XVII e XVIII e a escrita da música popular brasileira instrumental.
A aproximação entre o popular e erudito é outro aspecto relevante na obra de Gramani, um mote que alavancou a estética modernista, mas que em Gramani assume conotações diferenciadas: sua posição dá voz efetiva aos agentes da cultura popular, tratando o hibridismo e autonomização desses elementos de forma prática. Tendo formação eminentemente erudita, caminhou para fora desse núcleo, tendo as rabecas desempenhado um papel decisivo nesse movimento. Não foi, entretanto, um afastamento permanente, mas, sobretudo, um pulsar constante entre ambas as esferas, permitindo o entrelace de linguagens sem o ofuscamento de uma sobre a outra, mas um real tecer (...) (Fiaminghi, 2008, p. 229).
Dessa maneira, as obras em questão se apresentam sem detalhes de articulação, diferentemente de grande parte das edições para violino encontradas hoje. Séve (1999) em Vocabulário do Choro - apresenta variações de ligadura nas sequências de semicolcheia como exercícios a serem executados. Apesar de serem articulações recomendadas para instrumentos de sopro especialmente, elas funcionam no violino para desenvolver as articulações de arco.
5. Tópicas musicais: observando figuras recorrentes
Se tratando dos estudos de linguagem, na filosofia Aristotélica foi desenvolvido o conceito de tópica, que pode ser entendido como as fontes que estão na base de um raciocínio, os lugares-comuns (Piedade, 2013, p. 7). Levando isso em conta, as tópicas musicais tratadas por Leonard Ratner (1980), Kofi Agawu (1991) e Robert Hatten (2004), por exemplo, são uma perspectiva possível para se analisar determinado repertório musical, como figurações que adquiriram sentido musical e semântico pelo histórico de seu uso em uma determinada comunidade de ouvintes. Ratner conceitua as tópicas como figuras associadas a variados sentimentos e afetos, ou que possuem características singulares. Assim, essas figuras específicas podem ser agrupadas em um léxico estilístico do repertório dos compositores do classicismo, área de estudo do autor. Dessa maneira, as tópicas poderiam aparecer em maior escala em peças inteiras (types) - como exemplo, danças e marchas. Ou ainda, tópicas como figuras e progressões dentro de uma peça - figuras de música de caça, estilo lírico, brilhante, fantasia, entre outros (Ratner, 1980, p. 9-25).
Para análise, o reconhecimento dessas qualidades expressivas, explícitas ou implícitas, é esclarecedor, muitas vezes fornecendo uma pista para um aspecto marcante da estrutura; para a performance, tal reconhecimento é essencial, pois aponta para as implicações poéticas da música (Ratner, 1980, p. 30, tradução nossa)
Os autores citados acima abriram esse campo de estudo especificamente para a música do classicismo. Em outro contexto, Piedade (2013; 2017) amplia essa abordagem para abranger a música popular urbana brasileira. Piedade entende as tópicas como constituintes de uma musicalidade, “no sentido de um conjunto de elementos musicais e simbólicos, profundamente interligados, que constituem uma espécie de sistema sociomusical que orienta um mundo musical particular, mundo que é produzido, reproduzido e compartilhado por uma determinada comunidade (2017, p. 274)”. Musicalidade, identidade e as próprias tópicas são elementos contrastivos, ou seja, se definem em contraposição a um Outro, que, neste caso, podem ser tanto a música estrangeira quanto a música rural do Brasil profundo.
As tópicas portam significados que são reconhecidos na sua época, se ligando também ao mundo literário, calcados em fortes aspectos sócio-culturais. Elas derivam de gestos convencionais e de gêneros familiares da comunidade que se situa na base da ação afetiva das tópicas, cobrindo a expressão de um mundo complexo de comunicação, fantasia e mito. (Piedade, 2013, p. 8)
Bastos (2008, p. 35 e 38) referenciando os estudos de Piedade (2007) sobre tópicas brasileiras, menciona em seu trabalho duas tópicas que contemplam o repertório de choro. Primeiramente a tópica Época de Ouro, que evoca uma musicalidade remota, nostálgica. A autora menciona a utilização de ornamentos como uma característica importante para essa classificação, incluindo os movimentos cromáticos - comuns das “baixarias” de violões de choro, sendo estes escritos ou improvisados. (Bastos, 2008, p. 38).
Em seus estudos sobre a música de Villa-Lobos, Piedade utiliza a teoria das tópicas como uma ferramenta multifária para desvendar processos criativos e estruturas profundas desta música reconhecida por sua diversidade. Interessa para nós, sobretudo, o que Piedade classificou como “Tópicas na música nacionalista brasileira”, tomando como exemplo as Bachianas Brasileiras n. 2, especialmente o Canto do Capadócio. Neste movimento, Piedade caracteriza com as necessárias nuanças, as duas tópicas mais recorrentes no choro, conforme já mencionado acima, brejeiro e época de ouro, trazendo à baila, entretanto, outras que transitam neste universo como as tópicas caipira, nordestina, afro-brasileira, e especialmente no caso de Villa-Lobos, indígena e sons da floresta. Na Bachiana n. 2 os próprios quatro movimentos são denominados com termos que remetem às tópicas que os constituem, como se seu batismo fizesse parte do processo de invenção, a inventio como primeira etapa da estruturação retórica do discurso, em busca de argumentação e através dos loci topici, os lugares-comuns. Vejamos: 1. Prelúdio: Canto do Capadócio (Capadócio é sinônimo de trapaceiro, malandro: tópica brejeiro); 2. Aria: Canta da Nossa Terra (tópica: época de ouro); 3. Dança: Lembranças do Sertão (tópica: nordestina); 4. Toccata: Trenzinho do Caipira (tópica: caipira).
Talvez por sua evidência cristalina e presente no nome de toda coleção, Piedade não menciona uma tópica muito importante no contexto de Villa-Lobos e do choro como estilo e de Gramani em particular: a tópica bachiana/contraponto. Por ora, ficaremos com suas definições das tópicas brejeiro e época de ouro, que serão de grande auxílio para revelar camadas de entendimento dos choros de Gramani:
A tópica brejeiro provém da evocação de um estilo, tem uma natureza técnica e está relacionada a certas transformações específicas na estrutura musical. Com espírito de jogo, destreza e engano, o brejeiro subverte alguns parâmetros, em geral tendo repercussão na dimensão rítmica. Deslocamentos rítmicos, deslizes melódicos, tudo em favor de um gesto de malícia e provocação. Trata-se de um estilo, um modo de tocar, que pretende flagrar certo jeito brasileiro de contornar e esquivar, coerente com a figura do malandro e com a dança da capoeira (Piedade, 2017, p. 277).
A tópica época de ouro é constituída por figurações musicais que evocam o Brasil antigo, de antes do século XX, envolvendo, portanto, um páthos nostálgico. Em geral, trata-se de elementos como curvas melódicas cheias de ornamentações, apojaturas, grupetos, saltos expressivos ao estilo lírico, diminuendos e suspensões, características de melodias em gêneros como choro, modinha, seresta e valsa. Todos esses elementos se mesclam no texto musical para recriar um Brasil profundo do passado, principalmente o Brasil urbano, que parece esconder uma musicalidade ‘mítica’ que se perdeu no tempo antigo, mas que sempre retorna à tona com essa tópica (Piedade, 2017, p. 278).
Seguindo nessa linha de pensamento, pode-se buscar na origem do termo choro uma afirmação da tópica época de ouro. O compositor Jacob do Bandolim alegou que choro vem a partir da interpretação mais lenta e melodiosa da polca europeia. “(...) todas eram polcas, mas como emocionavam quem as tocava ou ouvia, eram denominadas músicas de choro, de fazer chorar (...)” (Jacob Do Bandolim, 1997, fita 2, lado B, min. 3:00 aprox. apud Rezende, 2020, p. 37). Essa declaração apresenta uma questão sociocultural importante quando observamos que essa música era interpretada principalmente por músicos negros que eram descendentes de escravizados, tendo como figura representativa o flautista Antônio da Silva Callado (1848-1880), compositor de “Flor Amorosa”, estimado por ser um exímio musicista ao interpretar as polcas (Fig. 6) de maneira chorosa e considerado o primeiro compositor de choro.
Uma questão importante que emerge em relação às tópicas e que devemos problematizar é o gesto musical/instrumental, a corporalidade que remete a um certo “jeito de tocar”, a práxis que envolve determinado gênero musical, considerando aí também as diversas camadas que envolvem sua recepção. Por exemplo, vimos que a tópica brejeiro pode estar intimamente relacionada às práticas recorrentes no choro através dos desafios e brincadeiras propostas pelos músicos, em um ambiente de alto grau de informalidade, como geralmente são as rodas de choro.
O brejeiro está profundamente relacionado a alguns gêneros, como o choro, ali transparecendo originariamente no papel do flautista dos grupos formados no final do século XIX, que usualmente desafiava seus acompanhantes com frases irregulares e rápidas, exibindo algum virtuosismo instrumental. (Piedade, 2013, p. 12)
O uso das citações e paródias também é um exemplo da tópica brejeiro, também mostrando um virtuosismo dos compositores ou intérpretes ao referenciar outras melodias. (Bastos, 2008, p. 35).
Interessa notar, como vemos no anúncio da nova polka de Callado (fig. 7) Linguagem do coração, que, mesmo em uma melodia que privilegiava os afetos da paixão - o que a enquadraria ao lado das tópicas época de ouro - é sublinhado na nova composição o “gênio folgazão e galhofeiro” de Callado, o seu lado brejeiro. Neste exemplo, vemos que para os cronistas daquela época, o novo gênero de música instrumental que florescia na metrópole já carregava em seus primórdios as tópicas principais que o caracterizariam no futuro.
Em concordância, Rezende (2020) ao apresentar características do choro ressalta que esse tema bem-humorado faz parte do recorrente encontro dos músicos que liam partitura, geralmente os solistas da melodia, com o acompanhamento que era feito “de ouvido”:
O desafio colocado pelo solista para os acompanhantes na harmonia - a saber, prever as progressões harmônicas corretas para o acompanhamento de uma melodia, em geral, composta de muitos arpejos e executada de forma virtuosística -, foi pretexto para criar o título de diversas composições, e esse fato recheará a história primordial do choro com o aspecto “malicioso” e “brincalhão/ desinteressado” da cultura popular (Rezende, 2020, p. 26).
Levando isso em consideração, o repertório a ser investigado neste trabalho - especificamente as composições de obras originais e arranjos de choro escritas por Gramani - pode ser observado também através do viés das tópicas musicais. Dessa maneira, alguns exemplos serão analisados e, ao se reconhecer essas figuras musicais recorrentes, será possível agrupá-las em tópicas como as mencionadas acima.
6. Análise interpretativas de composições originais de José Eduardo Gramani
A seguir serão feitas observações de trechos de três composições para dois violinos de José Gramani. Partindo das características comuns encontradas nas tópicas mencionadas anteriormente, serão analisados aspectos interpretativos para violinistas. Quando pertinente, serão utilizadas gravações em vídeo dos exemplos das partituras para trazer maior clareza às possibilidades interpretativas mencionadas aqui.
JUBA
Como característica do tema da obra, observa-se uma quebra rítmica do compasso 2/4 a partir dos agrupamentos de três semicolcheias em arpejos ascendentes. Da mesma maneira existem esses agrupamentos no compasso 9, dessa vez com arpejos descendentes3 (Melo, 2023). Ao ser executada em andamento lento, na obra há bastante espaço para ornamentações improvisadas na interpretação.
A figura de acompanhamento do segundo violino cumpre a função das baixarias de um violão de 7 cordas, por exemplo, ao executar algumas escalas descendentes e arpejos afirmando a harmonia. A parte B do primeiro violino foi escrita com células rítmicas de síncopa e ligaduras entre a semicolcheia final e inicial de cada compasso, causando uma sensação de irregularidade. O que também remete à tópica Brejeiro é o caráter de brincadeira, jogo entre os dois violinos que intercalam entre tocar nos tempos e contratempos. Essa peça também tem características da tópica Época de Ouro com uma musicalidade de gêneros antigos como as modinhas, por exemplo. As aproximações cromáticas e baixarias também são recorrências dessa tópica em Juba.
VIVA RAIMUNDO
Esse choro possui duas partes e não há modulação. Há uma semelhança com Doce de Coco, choro de Jacob do Bandolim em relação à forma das frases e ao desenho melódico do tema. O acompanhamento escrito para o violino 2 intercala entre a clave rítmica (colcheia pontuada+semicolcheia) e melodias contrapontísticas escritas em semicolcheia. Essa clave é similar com a função do bumbo no samba, por isso também se percebe o registro grave. Nesse sentido, é possível que o intérprete considere algum contraste de articulação para deixar clara essa diferença de função do acompanhamento4 (Melo, 2023).
As tópicas brasileiras se manifestam aqui ao observar a presença de aproximações cromáticas na melodia5 (Melo, 2023). Assim como um caráter nostálgico provocado pela sonoridade dos arpejos descendentes em A remetem características de Época de Ouro. Por outro lado, as figuras rítmicas nos contratempos no segundo violino de B fazem menção à brincadeira e desafio típicos em Brejeiro6 (Melo, 2023).
CHORO DE 78
Essa é a composição mais longa em número de compassos da coleção, tem uma forma rondó tradicional de choro, com a parte C modulando para o quarto grau (dó maior). Sua estrutura rítmica e melódica pode ser sobreposta à clave de samba (2+2+3+2+2+2+3), ou seja, a clave do tamborim conforme exposta por Sandroni (2001). Como exemplo dessa clave rítmica, podemos comparar com a estrutura de Aquarela do Brasil do compositor Ary Barroso. A segunda voz intercala entre função harmônica e contraponto, enquanto o ritmo é afirmado pela clave do primeiro violino. No caso do Choro de 78 ocorre uma rotação na clave, um procedimento comum se considerarmos que o caráter cíclico das claves está sempre presente, ou seja, qualquer ponto pode ser tomado como seu início. Deste modo, a clave do Choro de 78 poderia ser melhor representada pela seguinte estrutura aditiva:
2 + 2 + [1 + 2] + 2 + 2 + [1 + 2 ] + 2
Pode-se representar essa estrutura também através do sistema TUBS, Time Unity Box System, desenvolvido por Philip Harland. Nesse caso, o X representa a acentuação da clave e os pontos os pulsos vazios, conforme Graeff (2015).
Notar que os agrupamentos ternários que provocam as imparidades rítmicas (Sandroni, 2001), por sua vez, estão agrupados em células rítmicas de [1 + 2] como no ritmo da Habanera derivado do tresillo, conforme descrito em nota de rodapé anteriormente. Ao perceber essa clave como a base rítmica da música, constatamos que seu contorno melódico é, de fato, uma afirmação da clave, o que nos permite dizer que, cognitivamente falando, a informação principal é a clave, a melodia reafirma a clave, e como tal, é o fator mneumônico principal. Para interpretá-la como uma verdadeira clave, é necessário ressaltar as acentuações de arco, enfatizando seu caráter assimétrico. A partir da prática das claves e suas rotações com o arco, é possível imaginar as melodias dentro dos gestos, vinculando então as arcadas aos gestos7 (Melo, 2023).
Além disso, na parte B há uma referência ao fragmento motívico do primeiro tema de Um a Zero - Pixinguinha e Benedito Lacerda. As figuras arpejadas a seguir também parecem ser uma referência à composição, com a reafirmação da clave do tamborim através das notas agudas do arpejo8 (Melo, 2023).
Breves considerações
José Eduardo Gramani colaborou de forma decisiva com a prática da música popular brasileira através da sua experiência, inclusive sendo um violinista que utilizava o instrumento de forma plural. Além da prática com música europeia, também escreveu música popular para tocar no violino. As rabecas foram os instrumentos que lhe instigaram à experimentação e consequente trabalho na composição musical.
No meio acadêmico percebe-se ainda uma resistência em relação ao violino como um instrumento versátil, porque a maior parte dos cursos ainda reproduz uma tradição de métodos e repertórios do romantismo e do pré-romantismo europeu, trazendo um caráter metodológico exclusivista para esse contexto. Essa é uma realidade que está aos poucos sendo transformada e nossa pesquisa buscou, portanto, trazer outros pontos de vista e possibilidades para violinistas que se interessam em estudar novas formas de expressão musical.
Um dos pilares desse estudo foi a abordagem do arco como mecanismo rítmico, algo que diverge da tradição violinística pós-conservatório de Paris, que considera o violino um instrumento sobretudo reprodutor de melodias. Dessa forma, foi relevante apresentar o conceito de clave como uma maneira de organizar o discurso musical, onde o arco pode ser relacionado a uma baqueta de instrumento percussivo fazendo a marcação rítmica. Além disso, o conceito de rítmica aditiva apresentado por Carlos Sandroni (2001) foi essencial para compreender a estrutura da chamada “síncopa”, célula que é tão presente no choro e em outros gêneros populares. Com o entendimento de rítmica aditiva pode-se também interpretar a escrita de Gramani de uma forma favorável à interpretação ao compreender a polirritmia envolvida na maioria dos duetos - assim como em seus estudos de rítmica.
É importante ressaltar que as possibilidades interpretativas exemplificadas aqui são sugestões, mas jamais serão verdades absolutas. A prática da música popular brasileira e do choro envolve tradição, mas não se limita a isso. É algo evidenciado nas partituras apresentadas: elas podem ser vistas como um mapa para onde devemos ir, mas deixa vários caminhos em aberto - principalmente o da experimentação. Portanto, a escrita de Gramani como um habilidoso conhecedor do instrumento pode ser considerada uma oportunidade valiosa para aprender através de melodias e acompanhamentos como tocar o repertório popular brasileiro.
Em relação às tópicas na música brasileira propostas por Piedade (2013), essas foram uma ferramenta analítica essencial para se compreender, inclusive, o que caracteriza um gênero musical. Através das duas tópicas presentes no choro: brejeiro e época de ouro encontramos esses dois caráteres contrastantes através das figuras recorrentes nas partituras. Foi reconhecido que, apesar de haver evidências e características que identificam as tópicas na música, sempre estará presente a subjetividade de quem interpreta as obras - talvez isso seja o mais precioso ao se tratar da análise em música.
Finalmente, consideramos que trazer à luz essas obras de Gramani a partir de uma análise interpretativa foi um dos maiores ganhos dessa pesquisa. O acesso e estudo mais amplos desse material certamente podem estimular a construção de novos repertórios e performances.
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Jornais
Vídeos
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MELO, Carolina Momm de. Viva Raimundo - Gramani / c. 1-16. Disponível em: <https://vimeo.com/875793083?share=copy>. Acesso em: 19 out. 2023.
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MELO, Carolina Momm de. Viva Raimundo - Gramani / c. 21-36. Disponível em: <https://vimeo.com/875791162?share=copy>. Acesso em: 19 out. 2023.
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MELO, Carolina Momm de. Choro de 78 - Gramani / c. 17-20. Disponível em: <https://vimeo.com/875784370?share=copy>. Acesso em: 19 out. 2023.
» https://vimeo.com/875784370?share=copy
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https://www.instagram.com/violinotoca_choro/
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Essa concepção de “garfinho” é tributária do conceito de rítmica divisiva discutido anteriormente. Ou seja, o agrupamento de 4 semicolcheias em um compasso 2/4. A famosa “síncopa característica” de Mário de Andrade, conforme discutida em Sandroni (2001). Na concepção aditiva, que estrutura o conceito de tresillo, conforme nos explica Sandroni (2001), um dos pés do garfinho é quebrado, pois faz parte do outro agrupamento ternário. Assim o ritmo da Habanera, por exemplo, que é o mesmo do maxixe, seguiria a acentuação de sua clave, ou seja, [1+2] + [1 + 2] + [2] (lembrar da emblemática melodia da Carmem de Bizet, que usou a tópica caribenha/cubana da Habanera para vestir sensualmente sua Carmem, como símbolo da mulher fatal) e não como no “garfinho” [1 + 2 + 1] + [2 + 2]. Esse outro ponto de vista exprime, portanto, que há pelo menos duas maneiras diferentes de entender essa estrutura rítmica tão basilar da nossa música.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Dez 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
14 Nov 2023 -
Aceito
23 Abr 2024 -
Publicado
18 Jun 2024 -
Corrigido
07 Nov 2024