Acessibilidade / Reportar erro

Folclore brasílico no segundo ato de na Festa De São Lourenço, de Anchieta (1587): questões crítico-interpretativas e historiográficas

Brazilic Folklore in the Second Act of na Festa De São Lourenço, by Anchieta (1587): Critical-Interpretive and Historiographical Issues

RESUMO:

O artigo tem como objetivo debater questões interpretativas de exegese sobre o texto do auto Na Festa de São Lourenço, de 1587, escrito pelo missionário e humanista S. José de Anchieta (1534-1597), no contexto da América portuguesa quinhentista. A obra foi encenada na comunidade indígena de São Lourenço em Niterói, ainda no século XVI, e é um dos principais registros da produção intelectual do período colonial. Modernamente, o texto do autor foi reeditado por Maria de Lourdes de Paula Martins, em um extenso volume com as Poesias de Anchieta (Anchieta, 1989 [1954]), e por Armando Cardoso, na edição dos Monumenta Anchietana (Anchieta, 1977). Nossa interpretação crítica terá como escopo retomar a análise desenvolvida por Câmara Cascudo, na obra Antologia do Folclore Brasileiro (2002 [1944]), em que cita os textos de Anchieta e de cronistas do século XVI como fonte para os estudos de folclore no Brasil. Buscamos problematizar como a interpretação folclórica aproxima-se ao método da exegese da disciplina de Crítica Textual. Por fim, em perspectiva interdisciplinar com a disciplina de Historiografia da Linguística, buscaremos evidenciar como o “pensamento linguístico” (linguistic thought) (Swiggers, 2013; 2019) de Anchieta estava vinculado ao estudo de tradições populares indígenas na América portuguesa quinhentista, o que conceituamos como um Folclore brasílico colonial.

PALAVRAS-CHAVE:
estudos Anchietanos; folclore brasílico; Auto de S. Lourenço

ABSTRACT:

The article aims to discuss interpretative exegesis questions about the text of the play Na Festa de São Lourenço, from 1587, written by the missionary and humanist S. José de Anchieta (1534-1597), in the context of sixteenth-century Portuguese America. The work was staged in the indigenous community of São Lourenço in Niterói, still in the 16th century, and is one of the main records of intellectual production in the colonial period. Modernly, the author's text has been republished by Maria de Lourdes de Paula Martins, in an extensive volume with Poesias de Anchieta (Anchieta, 1989 [1954]), and by Armando Cardoso, in the edition of Monumenta Anchietana (Anchieta, 1977). Our critical interpretation will have the scope of resuming the analysis developed by Câmara Cascudo, in the work Antologia do Folclore Brasileiro (2002 [1944]), in which the interpreter cites the texts of Anchieta and chroniclers of the 16th century as a source for folklore studies in Brazil. We seek to problematize how folkloric interpretation approaches the exegesis method of the Textual Criticism discipline. Finally, in an interdisciplinary perspective with the discipline of Historiography of Linguistics, we will seek to show how Anchieta’s “linguistic thought” (Swiggers, 2013; 2019) was linked to the study of indigenous popular traditions in sixteenth-century Portuguese America, which we conceptualize as a colonial Brazilian folkcore.

KEYWORDS:
anchietan Studies; Brazilian folklore; Auto de S. Lourenço

Introdução

Vincula-se o presente artigo ao contexto geral dos estudos anchietanos no século XXI, isto é, aos estudos interpretativos da obra de S. José de Anchieta (1534-1597) no cenário acadêmico atual, com questões pertinentes aos estudos contemporâneos sobre a obra do missionário. Esse contexto atual deriva de uma tradição interpretativa de longa data, tendo em vista que as obras de Anchieta foram tema de estudos contínuos desde o século XVI, época em que viveu o autor, até os dias de hoje (Viotti, 1980VIOTTI, Abranches Hélio. Anchieta - o apóstolo do Brasil. São Paulo: Loyola, 1980.; Anchieta, 1984ANCHIETA, José de. Cartas de Anchieta - correspondência ativa e passiva. São Paulo: Loyola, 1984.; Berardinelli, 2000BERARDINELLI, Cleonice. Anchieta, o Brasil e a função catequista do seu teatro. In: PINHO, Sebastião Tavares e FERREIRA, Luísa de Nazaré (org.) Anchieta em Coimbra. Colégio das Artes da Universidade (1548-1998). Actas do Congresso Internacional, Coimbra 1998. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2000. Vol. I, p. 351-364.). Os estudos anchietanos nos séculos XX e XXI dizem respeito também à recepção de suas obras nas reflexões atuais sobre a sociedade, e mesmo sobre a formação e a história do Brasil (Ribeiro, 2002RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.), principalmente quanto à interpretação de fontes documentais da América portuguesa quinhentista, a época em que o missionário e humanista atuou. Este é um tópico que pode ser abordado sob uma perspectiva cultural pós-colonial (Bhabha, 1998BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.; Vainfas, 1995VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.), como procuramos demonstrar.

Como tema específico do presente artigo, selecionamos a interpretação filológica de um excerto do segundo ato da obra literária Na Festa de São Lourenço, de 1587, escrita pelo missionário, no contexto da América portuguesa quinhentista (Anchieta, 1977ANCHIETA, José de. Teatro de Anchieta. Tradução de Armando Cardoso. São Paulo, Loyola, 1977.), constitui-se o texto de um auto de cunho religioso, com finalidade catequética1 1 De um modo geral, o tema do auto é o martírio de São Lourenço, santo tradicional nas práticas religiosas quinhentistas vinculadas à colonização, também conhecido como São Lourenço de Huesca, (c.225? d.C.-258 d.C.). S. Lourenço foi um santo de tradição católica martirizado à época do Império Romano, sob o principado de Décio. O auto de Anchieta descreveu, poeticamente, os momentos finais da vida de S. Lourenço, tendo enfatizado sua devoção à religião e a sua coragem frente às torturas impostas em seu martírio, pelos romanos pagãos. Os valores morais apresentados na peça são a obediência à fé cristã, o sacrifício e a vitória após a morte, moral que era transmitida às comunidades indígenas quinhentistas na catequese, sobretudo às crianças indígenas (Anchieta, 1977). . Em nosso debate, para comentar essa passagem, analisaremos duas edições críticas do século XX da obra, uma desenvolvida por Maria de Lourdes de Paula Martins (Anchieta, 1989ANCHIETA, José de. Poesias. Transcrições, traduções e notas de Maria de Lourdes de Paula de Lourdes Martins. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1989 [1954]. (Biblioteca básica de literatura brasileira, v. 3). [1954]) e outra por Armando Cardoso (Anchieta, 1977ANCHIETA, José de. Teatro de Anchieta. Tradução de Armando Cardoso. São Paulo, Loyola, 1977.), que estão entre as principais edições modernas dos textos dramáticos anchietanos, no contexto acadêmico do Brasil, além da recente edição de Eduardo Navarro (Anchieta, 2006ANCHIETA, José de. Teatro. Transcrição e tradução de Eduardo de Almeida Navarro. São Paulo: Editora da USP, 2006 [1999]. [1999]). Como método de análise, retomaremos a interpretação desenvolvida na obra Antologia do Folclore Brasileiro, pelo folclorista Câmara Cascudo (2002CAMARA CASCUDO, Luís da. Antologia do Folclore Brasileiro - volume 1. São Paulo: Global, 2002 [1944]. [1944]) sobre fontes quinhentistas, com a finalidade de conceituar, teoricamente, um Folclore brasílico, em que as obras de Anchieta se inserem, conforme nossa proposta investigativa.

Nosso objetivo, dessa forma, é retomar a pesquisa filológica sobre o auto de Anchieta e desenvolver uma reflexão inicial para um novo método interpretativo da obra do missionário, tendo apoio em leituras anteriores, a partir dos principais críticos modernos que desenvolveram um trabalho filológico com o texto do auto. Nesse sentido, buscamos também considerar em nossa releitura trabalhos filológicos mais recentes na área, como o dicionário de tupi antigo de Eduardo Navarro (2015NAVARRO, Eduardo Almeida de. Dicionário tupi antigo: a língua indígena clássica do Brasil. São Paulo: Global, 2015.), em que interpretou textos como a sua tradução dos autos de Anchieta. Quanto à questão filológica de Crítica Textual das fontes, registramos que o auto só possui um único testemunho textual, derivado de uma fonte manuscrita única, o que torna o debate filológico mais voltado a questões interpretativas e de tradução do texto do que relativo às variantes textuais (Anchieta, 1977ANCHIETA, José de. Teatro de Anchieta. Tradução de Armando Cardoso. São Paulo, Loyola, 1977.). Assim, debateremos apenas brevemente o processo do estabelecimento de texto, detendo-nos mais detalhadamente na discussão sobre a sua tradução, em busca de compreender como os filólogos modernos empreenderam esse processo de interpretação dos textos do manuscrito, que foram escritos originalmente em quatro línguas. Veremos um excerto do auto, a fim de analisar esse processo de tradução e apresentamos, por fim, uma proposta nossa para a sua interpretação.

Podemos contextualizar o texto do auto Na Festa de São Lourenço pelos pressupostos da Crítica Textual, também pelos pressupostos da disciplina de Historiografia da Linguística. Para a perspectiva descritiva da Crítica Textual, a obra deriva de uma fonte manuscrita, um codex, sendo considerado um texto de autoria de Anchieta, é, portanto, um objeto de estudos derivado de uma fonte documental atestada, cuja reconstituição filológica levou às edições modernas. Sua fonte é um manuscrito único, catalogado sob o rótulo de ARSI - Opp. NN. 24, isto é, um manuscrito do Arquivo Romano da Companhia de Jesus (Archivum Romanum Societatis Iesu), da seção de Opúsculos poéticos dos jesuítas (Opuscula poetica nostrorum), catalogado sob o número 24 (Anchieta, 1977ANCHIETA, José de. Teatro de Anchieta. Tradução de Armando Cardoso. São Paulo, Loyola, 1977., p. 25), pertencente à Biblioteca do Vaticano. O manuscrito não contém somente o auto Na Festa de São Lourenço, mas inúmeras outras obras atribuídas a Anchieta, escritas em quatro línguas: latim, português, castelhano e tupi antigo. Alguns dos textos são registrados como escritos diretamente por Anchieta, outros são cópias apensadas, no que é considerado também um “caderno de poesias” (Anchieta, 1977ANCHIETA, José de. Teatro de Anchieta. Tradução de Armando Cardoso. São Paulo, Loyola, 1977.), que não está organizado em uma sequência perfeita de obras.

O auto Na Festa de São Lourenço foi editado por Maria de Lourdes de Paula Martins e por Armando Cardoso, no século XX, a partir de cópias fotográficas do manuscrito, em uma edição monumental, com a “reprodução diplomática e crítica” de todo o manuscrito, tendo a tradução dos textos:

Pelo ano de 1947, nossas cópias fotográficas, por intermédio do Pe. Serafim Leite e do Pe. Armando Cardoso, foram cedidos à insígne tupinóloga Dr.a Maria de Lourdes de Paula Martins, no intuito, principalmente, de uma tradução mais exata dos textos tupis. Depois de dois preciosos ensaios, boletins da sessão linguística do Museu Paulista, a mesma autora em 1954, por ocasião do IV centenário da fundação de São Paulo, presenteou o Brasil e o mundo com a publicação do livro inteiro de Anchieta, em reprodução diplomática e crítica. (Anchieta, 1977ANCHIETA, José de. Teatro de Anchieta. Tradução de Armando Cardoso. São Paulo, Loyola, 1977., p. 8)

A obra de Anchieta serviu de fonte para o trabalho de críticos diversos, no contexto brasileiro, como o folclorista e historiador Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) (Cascudo, 2002CAMARA CASCUDO, Luís da. Antologia do Folclore Brasileiro - volume 1. São Paulo: Global, 2002 [1944]. [1944]), sendo considerada um registro das tradições populares de base indígena na América portuguesa quinhentista, por seu método de análise. Podemos interpretar, pelas obras de Anchieta e de outros cronistas do século XVI, as tradições populares indígenas, conforme o método de Câmara Cascudo, logo essa interpretação do folclore se aproxima da visão teórica tradicional da Crítica Textual, no sentido de uma exegese específica dos documentos quinhentistas, como fontes de um pensamento social, um imaginário coletivo, que caracterizou determinado contexto histórico. Nesse sentido, pela disciplina de Crítica Textual, temos a aplicação do conceito de exegese (Bassetto, 2013BASSETTO, Bruno Fregni. Elementos de filologia românica. São Paulo: Editora da USP, 2013. ) como um método de interpretação crítica muito próxima do sentido desenvolvido pela leitura folclórica de Câmara Cascudo, quando o tema da interpretação são as tradições populares. A releitura de Câmara Cascudo das fontes primárias quinhentistas é, de certo modo, filológica, pois interpreta tradições populares tendo como fonte os textos escritos no contexto letrado da América portuguesa.

Bassetto descreve o que é compreendido na teoria filológica da Crítica Textual como exegese, que é considerada a antiga prática da hermenêutica, ou, em termos modernos, de uma ciência da interpretação, que ocorre, metodologicamente, após o estabelecimento da fonte textual e a sua transcrição:

Completando o trabalho filológico, procurar-se-á esclarecer os detalhes ou os pormenores, que o leitor provavelmente não consiga entender claramente, ou que mereçam um aprofundamento maior. Para isso aplicam-se os princípios da ‘hermenêutica’, a ciência da interpretação; à prática dessa ciência se dá o nome de ‘exegese’ (do grego exegesis, do verbo exegeómai, ‘eu conduzo, guio, explico e interpreto’) (Bassetto, 2013BASSETTO, Bruno Fregni. Elementos de filologia românica. São Paulo: Editora da USP, 2013. , p. 57).

Para desenvolver essas reflexões metodológicas e interpretativas de forma prática, selecionamos como nosso corpus, dentro desse repertório temático, e objeto de análises, um excerto do texto do segundo ato do auto Na Festa de São Lourenço, escrito em tupi antigo. O texto é um importante registro histórico sobre o emprego do teatro na educação jesuítica à época da colonização da América portuguesa. Assim, nosso objetivo específico, com o estudo, é desenvolver questões interpretativas sobre o texto do auto, uma obra historicamente singular, que registra, indiretamente, o “pensamento linguístico” (linguistic thouhgt) (Swiggers, 2013SWIGGERS, Pierre. A historiografia da linguística: objeto, objetivos, organização. Confluência, n. 44-45, p. 39-59, 2013.; 2019SWIGGERS, Pierre. Historiografia da Linguística: princípios, perspectivas e problemas. In: BATISTA, Ronaldo (org). Historiografia da Linguística. São Paulo: Contexto, 2019. p. 45-80.) da intelectualidade da América portuguesa quinhentista, e mais especificamente o pensamento de Anchieta2 2 Uma questão linguística notável na obra de Anchieta é o fato de empregar não só as línguas europeias como a língua portuguesa quinhentista, o castelhano ou o latim em suas obras, mas registrar uma língua indígena, o que marcou, desde seus primeiros intérpretes, uma das principais características de sua obra. A língua diz tupinambás e dos tupis, empregada em sua gramática e em suas poesias, respectivamente, é um dos fatos que nos motiva a diferenciar uma cultura brasílica da cultura brasileira moderna e contemporânea. Nota-se que essa questão linguística é um fato recorrente na interpretação das obras de Anchieta. , no registro de tradições populares indígenas, durante o conturbado período de colonização quinhentista e da conquista territorial.

As obras de Anchieta: Folclore Brasileiro ou Folclore Brasílico?

Uma questão teórica, que se torna pertinente nesse debate interdisciplinar sobre a leitura de Câmara Cascudo para as tradições folclóricas, derivadas das fontes quinhentistas, diz respeito ao conceito de folclore e à sua qualificação. Câmara Cascudo em Antologia do Folclore Brasileiro (2002CAMARA CASCUDO, Luís da. Antologia do Folclore Brasileiro - volume 1. São Paulo: Global, 2002 [1944]. [1944]) insere as fontes textuais quinhentistas no amplo conjunto de temas do Folclore Brasileiro, não tendo diferenciado ou debatido se as fontes do período colonial deveriam ter o mesmo tratamento das fontes documentais após a Independência, o que a seu ver não era uma questão teórica pertinente, tendo em vista que a tradição do Folclore Brasileiro teria se iniciado na colonização e era contínua no Brasil.

Essa tradição contínua, de quatro séculos, segundo o folclorista, foi a base para agrupar em sua antologia obras de autores como Anchieta (Câmara Cascudo, 2002CAMARA CASCUDO, Luís da. Antologia do Folclore Brasileiro - volume 1. São Paulo: Global, 2002 [1944]. [1944], p. 30). Nesse sentido, pode-se notar um continuum histórico entre as tradições do período colonial com as tradições vigentes na cultura brasileira moderna e contemporânea, conforme a percepção interpretativa do folclorista, que advoga por uma continuidade de tradições, ainda que com variantes:

Aplico ao Folclore esse raciocínio, reunindo no mesmo tomo as páginas expressivas de cronistas coloniais, de naturalistas estrangeiros, de estudiosos nacionais. [...] Tentei apresentar os aspectos mais vivos do Povo brasileiro através de quatro séculos. Para essa galeria, foram chamados os Mortos, os precursores, os curiosos, os veteranos do Folclore (Câmara Cascudo, 2002CAMARA CASCUDO, Luís da. Antologia do Folclore Brasileiro - volume 1. São Paulo: Global, 2002 [1944]. [1944], p. 17).

A obra de Anchieta é abordada como fonte pelo folclorista no seu registro epistolar de seres lendários como: “espectros noturnos e demônios selvagens” (Câmara Cascudo, 2002CAMARA CASCUDO, Luís da. Antologia do Folclore Brasileiro - volume 1. São Paulo: Global, 2002 [1944]. [1944]), que têm como exemplo outros personagens folclóricos indígenas como os “curupiras”, “igpupiara” e “boitatás”, narrados pelo missionário, em uma carta quinhentista. Antes de apresentar o relato do missionário, o folclorista descreve, brevemente, a biografia de Anchieta como um dos cronistas a quem dá o status de um protofolclorista, como cronista da América portuguesa. Essa referência sobre o período colonial é também metafórica, para Câmara Cascudo, pois Anchieta teve uma: “ação desmarcada na sociedade que amanhecia” (Câmara Cascudo, 2002CAMARA CASCUDO, Luís da. Antologia do Folclore Brasileiro - volume 1. São Paulo: Global, 2002 [1944]. [1944], p. 30), isto é, Anchieta foi um dos vultos intelectuais de uma sociedade ainda em formação, que derivou no Brasil moderno e contemporâneo.

Vejamos o breve relato, que traz dados biográficos resumidos do missionário, no contexto de uma história dos primeiros protofolcloristas, os pioneiros no registro etnográfico do Brasil, como cronistas, missionários e viajantes europeus na América portuguesa:

José de Anchieta nasceu em S. Cristóvão de Laguna, Tenerife, a 19 de março de 1534 e faleceu em Reritiba, hoje Anchieta, no Estado do Espírito Santo, a 9 de junho de 1597. Veio para o Brasil em julho de 1553 de onde nunca mais saiu. Impressionante figura de apóstolo, pregador, etnógrafo, cronista, gramático, teve ação desmarcada na sociedade que amanhecia. Com o seu irmão de hábito, Manuel da Nóbrega, prestou relevantíssimos serviços (Câmara Cascudo, 2002CAMARA CASCUDO, Luís da. Antologia do Folclore Brasileiro - volume 1. São Paulo: Global, 2002 [1944]. [1944], p. 30).

A posição de Câmara Cascudo sobre a inserção das obras de Anchieta no Folclore Brasileiro é pertinente ao seu modelo interpretativo, em que a continuidade de tradições é vista com conotação positiva. Todavia, no contexto dos Estudos Culturais atuais e dos estudos cuja temática é a pós-colonialidade, com o debate do conceito teórico da decolonialidade (Bhabha, 1998BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.), temos a necessidade de diferenciar o discurso colonial do pós-colonial, conforme assevera também Montserrat Galceran Huguet (2016GALCERAN HUGUET, Montserrat. La bárbara Europa. Una mirada desde elpostcolonialismo y la descolonialidad. Madrid: Traficantes de Sueños, 2016.), sobre uma epistemologia decolonial em desenvolvimento, que interprete o discurso de movimentos de descolonização em contraponto ao discurso da colonização: “Comprende los discursos contemporáneos de los movimientos de descolonización que culminaron en la emancipación de las antiguas colonias” (Galceran Huguet, 2016GALCERAN HUGUET, Montserrat. La bárbara Europa. Una mirada desde elpostcolonialismo y la descolonialidad. Madrid: Traficantes de Sueños, 2016., p. 29). Nesse sentido, as fontes quinhentistas precisam de um tratamento diferenciado das fontes pós-colonias, quanto à sua interpretação, em uma perspectiva decolonial.

Assim, propomos uma diferenciação interpretativa entre os documentos do período colonial, da América portuguesa, entre 1500 e 1822, para os documentos do período do Brasil moderno e contemporâneo, após a Independência em 1822, com o emprego de dois qualificadores diversos: o termo brasílico, referente aos documentos da época da América portuguesa e o termo brasileiro, para os documentos posteriores à Independência. Essa proposta será justificada a seguir, para nos auxiliar a uma exegese do auto Na Festa de São Lourenço, de Anchieta, que creditamos como um texto pertencente ao Folclore Brasílico, como as demais obras de missionários e cronistas do século XVI, em nosso método interpretativo.

Essa questão de natureza interpretativa faz-se necessária para se utilizar como fonte o registro do pensamento e de práticas populares na documentação colonial, que torna as obras de missionários e cronistas, de modo geral, uma fonte para folcloristas modernos. O conceito de Folclore, de um modo geral, para Câmara Cascudo permite a interpretação dessas fontes primárias coloniais, que trazem, porém, uma retórica colonialista, de conotações negativas atualmente. Assim, costumes e tradições que poderiam ter sido transmitidos de geração em geração devem receber uma devida leitura crítica para não reafirmar valores coloniais em perspectiva anacrônica. A transmissão contínua de tradições documentadas textualmente não pode ser vista como uma regra para a transmissão de saberes folclóricos, tendo em vista a transformação que a cultura popular sofre em cada atualização, devido à oralidade, o que não ocorre com fontes textuais, que não se atualizam, se não tiverem uma exegese atualizada. Por fim, esse debate se vincula também ao conceito geral de Folclore, como o defendeu Câmara Cascudo (1985CAMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Ediouro, 1985.), na relação entre transmissão e atualização de saberes populares.

Para o folclorista, o Folclore é a passagem da cultura popular a uma tradição, o que não significa uma transmissão estática entre gerações, do conjunto de tradições que formam o Folclore como costumes, lendas, crenças populares, música danças e expressões artísticas. Assim, o Folclore organiza-se como um registro da expressão da cultura popular, enraizada nas experiências, valores e identidades de um determinado grupo de pessoas, um povo. Sua criação e recriação é contínua, conforme uma tradição sempre renovada, em certa medida, ou de uma cultura variável, que pode ser bem compreendida contemporaneamente pelo rótulo de uma tradição “líquida”, tomando de empréstimo o conceito de “modernidade líquida”, de Bauman (2001BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2001.). Vejamos a definição de Câmara Cascudo (1985CAMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Ediouro, 1985.) para Folclore, derivada do Dicionário do Folclore Brasileiro, que se refere a essa tradição “líquida”, pelos termos de mentalidade “móbil” e “plástica”, em que cita uma “quarta dimensão” interpretativa da tradição popular, que é “sensível a seu ambiente”:

Folclore. É a cultura do popular, tornada normativa pela tradição. Compreende técnicas e processos utilitários que se valorizam numa ampliação emocional, além do ângulo do funcionamento racional. A mentalidade, móbil e plástica, torna tradicional os dados recentes, integrando-os na mecânica assimiladora do fato coletivo, como a imóvel enseada dá a ilusão da permanência estática, embora renovada na dinâmica das águas vivas. O folclore inclui nos objetos e fórmulas populares uma quarta dimensão, sensível ao seu ambiente. Não apenas conserva, depende e mantém os padrões imperturbáveis do entendimento e ação, mas remodela, refaz ou abandona elementos que se esvaziaram de motivos ou finalidades indispensáveis a determinadas seqüências ou presença grupal (Câmara Cascudo, 1985CAMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Ediouro, 1985., p.400).

Essa percepção de uma tradição popular líquida, permite-nos propor uma diferenciação entre o Folclore Brasílico e o Folclore Brasileiro, o primeiro em uma matiz colonial, entre 1500 e 1822, e o segundo desenvolvido após a descolonização em 1822. O qualificador brasílico foi registrado na própria América portuguesa, Anchieta o utiliza em sua obra De Gestis Mendi de Saa, na expressão “regna brasillica” (reinos brasílicos), assim como emprega “brasis” para se referir aos indígenas (Kaltner, 2020KALTNER, Leonardo F. O pensamento linguístico de Anchieta e de Carl von Martius: estudos historiográficos. Ponta Grossa: Atenas, 2020.). Na gramática de Figueira, no século XVII, a expressão “língua brasílica” é registrada, assim como na obra de outros cronistas coevos. O antropólogo Darcy Ribeiro (2002RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.) rotulou como “brasilíndios” os primeiros indígenas catequizados e miscigenados com os europeus, que eram os principais agentes do mundo brasílico. Por outro lado, o qualificador brasileiro é um termo também de origem colonial, que predominou para a identidade cultural do povo que ocupa o território do Brasil. A oposição brasílico e brasileiro teria apenas a finalidade de diferenciar tradições populares coloniais das tradições populares pós-coloniais, em nossa proposta.

Nesse sentido, é, culturalmente, válido afirmarmos que o fundo documental das obras da América portuguesa faz parte do patrimônio nacional do Brasil, tendo em vista que a história de um contexto deriva na história do outro. Todavia, ao mesmo tempo, questões históricas e culturais como o colonialismo e o escravismo quinhentistas também afastam a América portuguesa do contexto do Brasil moderno e contemporâneo, principalmente do Brasil República democrático, em que nos situamos. Assim, o rótulo que propomos, para marcar essa diferenciação de contextos, o Folclore Brasílico marca a distinção entre a América portuguesa e o Brasil moderno.

Nesse sentido, podemos registrar nas obras de Anchieta um Folclore Brasílico, referente às interações diretas entre europeus e indígenas, já que não havia um contato direto entre Anchieta e as culturas africanas quinhentistas registradas na América portuguesa. Esse Folclore quinhentista, de base luso-afro-tupi, parece-nos mais bem representado pelo qualificador brasílico do que pelo qualificador brasileiro, a fim de evitar choques culturais com a interpretação do colonialismo e do escravismo, nas fontes documentais, que eram traços identitários da América portuguesa, e não do Brasil, pelo menos no período republicano. Assim, há uma dialética nessa relação paradoxal entre a América portuguesa e o Brasil moderno, em que um contexto era o outro, mas ao mesmo tempo não são os mesmos. Essa diferenciação é necessária, a fim de se comentar tópicos culturais atuais como o racismo e o sexismo, por exemplo, nas fontes documentais.

Assim, para que não se naturalize simplesmente o registro documental, perpetuando estruturalmente a visão colonialista e escravista, cumpre ao intérprete contemporâneo delimitar fronteiras epistêmicas entre os saberes populares coloniais e os saberes populares pós-coloniais, tendo em vista o impacto do colonialismo na visão de mundo indígena, por exemplo. Logo, empregamos o qualificador brasílico como uma nuance de distanciamento para a interpretação de documentos da América portuguesa quinhentista. Dessa forma, nós o empregaremos com esse significado específico, para uma exegese de um excerto do segundo capítulo do auto Na Festa de São Lourenço, texto tradicional da antiga colônia portuguesa, que apresenta um momento em que tradições do teatro europeu3 3 À época de Anchieta, as peças teatrais latinas do romano Terêncio, Publius Terentius Afer (Cartago, ca. 195 a.C.-185 a.C. - Lago Estínfalo, ca. 159 a.C.) eram muito conhecidas na educação humanística renascentista do contexto ocidental europeu. Cenas das peças de Terentius eram utilizadas pelos jesuítas em suas escolas e colégios humanísticos para ensinar questões morais, além da língua latina. Outro autor dramático, digno de relevo, no contexto intelectual em que Anchieta escreveu suas obras foi Gil Vicente (c. 1465 - c. 1536), um dos expoentes do teatro português quinhentista. Não é de se estranhar que os autos atribuídos a Anchieta tenham sofrido alguma influência do modelo de obras de ambos os autores, tendo em vista que Anchieta foi egresso do Colégio das Artes de Coimbra, tendo tido uma estadia em 1548 em Portugal, até sua chegada ao Brasil em 1553 (Karnal, 1998; Viotti, 1980; Miranda, 2000). , sobretudo o ibérico, se tornam tradições brasílicas, pela catequese quinhentista, em um processo de aculturação com os “curumins” indígenas (Karnal, 1998KARNAL, Leandro. Teatro da fé: representação religiosa no Brasil e no México do século XVI. São Paulo: Hucitec; Editora da USP, 1998.; Bosi, 1992BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.).

O auto Na Festa de São Lourenço: questões interpretativas de Crítica Textual e de Historiografia da Linguística

A transmissão do texto do auto de Anchieta veio por fonte manuscrita, coligida muito provavelmente entre os séculos XVI e XVII, em um codex com manuscritos autógrafos e apógrafos de Anchieta. As edições modernas do auto se iniciaram nos séculos XVIII e XIX, e há três edições contemporâneas, no século XX, e uma reedição no século XXI, desenvolvidas respectivamente por Maria de Lourdes de Paula Martins (Anchieta, 1989ANCHIETA, José de. Poesias. Transcrições, traduções e notas de Maria de Lourdes de Paula de Lourdes Martins. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1989 [1954]. (Biblioteca básica de literatura brasileira, v. 3). [1954]), Armando Cardoso (1977) e Eduardo Navarro (Anchieta, 2006ANCHIETA, José de. Teatro. Transcrição e tradução de Eduardo de Almeida Navarro. São Paulo: Editora da USP, 2006 [1999]. [1999]). Essas edições apresentam tradução das passagens em língua indígena do auto, apresentando nessas traduções algumas poucas divergências, como veremos em excerto selecionado. O tema mais interessante para nosso estudo, portanto, são as variações sobre a interpretação das passagens em língua indígena, de acordo com os intérpretes, o que debateremos em um excerto do segundo ato, na sua segunda estrofe.

Acreditamos que o método de abordagem da fonte primária e os objetivos de edição do texto de Anchieta, pelos dois críticos, Maria de Lourdes de Paula Martins (Anchieta, 1989ANCHIETA, José de. Poesias. Transcrições, traduções e notas de Maria de Lourdes de Paula de Lourdes Martins. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1989 [1954]. (Biblioteca básica de literatura brasileira, v. 3). [1954]) e Armando Cardoso (Anchieta, 1977ANCHIETA, José de. Teatro de Anchieta. Tradução de Armando Cardoso. São Paulo, Loyola, 1977.) influíram nos comentários interpretativos da obra, assim como na tradução do texto original. Já Eduardo Navarro, em tradição posterior, teria desenvolvido uma releitura do trabalho de ambos os tupinólogos, valendo-se de critérios linguísticos para a sua interpretação (Anchieta, 2006ANCHIETA, José de. Teatro. Transcrição e tradução de Eduardo de Almeida Navarro. São Paulo: Editora da USP, 2006 [1999]. [1999]). Nesse sentido, a reflexão sobre as edições busca demonstrar os caminhos de interpretação e de exegese da obra dramática de Anchieta, que variam conforme a perspectiva do intérprete, o que pode nos levar a caminhos interpretativos diversos, também de acordo com a intencionalidade do crítico.

Justifica-se, dessa forma, uma retomada do tema da interpretação das obras de Anchieta, em uma nova perspectiva que leve em conta os Estudos Culturais, por exemplo, tendo em vista também a relevância histórica que há na Crítica Textual brasileira sobre o estudo da obra de Anchieta, editada por Armando Cardoso sob o rótulo geral de Monumenta Anchietana, em diversos volumes. O trabalho de Crítica Textual sobre a obra do missionário e humanista tem se desenvolvido, continuamente no Brasil, em uma longa tradição interpretativa. Consta, desde a tradição dos seus primeiros biógrafos, ainda no próprio século XVI na América portuguesa, que já se iniciava o processo de coligir e interpretar os escritos de Anchieta (Viotti, 1980VIOTTI, Abranches Hélio. Anchieta - o apóstolo do Brasil. São Paulo: Loyola, 1980.), tarefa que não se exauriu, tendo em vista a diversidade linguística e temática de sua obra quinhentista, comparável no Brasil à importância da obra de Camões, para Portugal.

O trabalho de Crítica Textual com o manuscrito de poesias de Anchieta foi desenvolvido em uma edição crítica que se pode considerar, de certa forma, definitiva para a transcrição semidiplomática das poesias de Anchieta, por Maria de Lourdes de Paula Martins, organizada no contexto histórico do IV Centenário da Fundação de São Paulo, comemorado em 1954. A edição a que tivemos acesso, em 1989, é uma reedição da obra publicada pela filóloga, no ano da efeméride comemorada algumas décadas antes. O trabalho filológico é monumental, apresentando a reprodução semidiplomática e crítica do manuscrito, com a tradução dos textos escritos em quatro línguas. Há também uma reconstituição da sequência dos poemas. Armando Cardoso valeu-se do texto estabelecido para a sua tradução e Eduardo Navarro apenas atualizou a grafia de termos da língua tupi, com uma nova tradução, tendo sido o texto de Maria de Lourdes a base para ambos os trabalhos.

O título completo do auto: Na Festa de São Lourenço está presente no manuscrito de forma abreviada, e é referido pela filóloga na parte de poesias polilíngues da sua coletânea (Anchieta, 1989ANCHIETA, José de. Poesias. Transcrições, traduções e notas de Maria de Lourdes de Paula de Lourdes Martins. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1989 [1954]. (Biblioteca básica de literatura brasileira, v. 3). [1954], p. 684-749). Esse fator é de suma importância para uma análise interpretativa pelos pressupostos da Historiografia da Linguística sobre a obra do autor. O fato de ser um texto polilíngue, ou plurilíngue, escrito em português, castelhano e tupi quinhentistas é uma marca do “ideário linguístico” (Swiggers, 2013SWIGGERS, Pierre. A historiografia da linguística: objeto, objetivos, organização. Confluência, n. 44-45, p. 39-59, 2013.; 2019SWIGGERS, Pierre. Historiografia da Linguística: princípios, perspectivas e problemas. In: BATISTA, Ronaldo (org). Historiografia da Linguística. São Paulo: Contexto, 2019. p. 45-80.) de Anchieta, e a obra registra as virtudes linguísticas dos missionários e humanistas da América portuguesa, que se educavam linguisticamente pelas gramáticas missionárias ou aprendiam as línguas naturais pelo contato linguístico. A competência linguística para o emprego de línguas na produção poética era uma das principais demonstrações de conhecimento linguístico no século XVI, logo Anchieta ao escrever o auto buscava demonstrar também suas habilidades com as três línguas, como componente da educação humanística oferecida nas instituições da América portuguesa. Assim, a obra registra, indiretamente, o pensamento linguístico de seu contexto e clima intelectual, ou clima de opinião (climate of opinion) (Koerner, 1996KOERNER, Konrad. Questões que persistem em Historiografia da Linguística. Tradução de Cristina Altman. Revista da Anpoll, n. 2, p. 45-70, 1996.).

Uma análise interna da obra: exegese e hermenêutica de um excerto do segundo ato do auto Na Festa de São Lourenço

O segundo ato do auto Na Festa de São Lourenço é totalmente escrito em tupi antigo e apresenta um grande desafio interpretativo, seja pela tradução do texto na língua indígena quinhentista, seja pela interpretação de seu sentido poético, a fim de desenvolvermos a interpretação do que teorizamos como Folclore Brasílico, proposto em nosso estudo. Na própria fonte manuscrita, o tema do segundo ato é descrito como a entrada de “três diabos” em cena que querem destruir a aldeia indígena de São Lourenço, em Niterói, então uma comunidade quinhentista convertida ao cristianismo e aliada aos portugueses (Anchieta, 1977ANCHIETA, José de. Teatro de Anchieta. Tradução de Armando Cardoso. São Paulo, Loyola, 1977.). Na narrativa, os santos católicos, que também se supõe como uma nova devoção popular indígena, São Lourenço e São Sebastião, auxiliados por um Anjo da Guarda, confrontam fantasmas de antigos chefes indígenas que morreram em combate pelo território: Guaixará4 4 Consta que Guaixará era um chefe indígena tamoio da região de Cabo Frio, que era contrário aos portugueses e aliado aos franceses, no século XVI. Morreu em combate no episódio da fundação do Rio de Janeiro (Anchieta, 1977). , “rei dos diabos”, Aimberê e Saraiva, “seus criados” (Anchieta, 1977ANCHIETA, José de. Teatro de Anchieta. Tradução de Armando Cardoso. São Paulo, Loyola, 1977.; 1989ANCHIETA, José de. Poesias. Transcrições, traduções e notas de Maria de Lourdes de Paula de Lourdes Martins. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1989 [1954]. (Biblioteca básica de literatura brasileira, v. 3).; 2006ANCHIETA, José de. Teatro. Transcrição e tradução de Eduardo de Almeida Navarro. São Paulo: Editora da USP, 2006 [1999]. [1999]).

Em síntese, é uma narrativa alegórica do combate do bem contra o mal, ao gosto medieval, que opõe antigos costumes e a conversão ao cristianismo. Dessa forma a obra tem uma finalidade catequética e moralizante, que é arquetípica do Folclore Brasílico, que pode ser registrada em outros textos da América portuguesa quinhentista. A luta do bem contra o mal, representada pela expansão do cristianismo reflete uma temática europeia medieval das cruzadas e mesmo ibérica da Reconquista, de que Portugal se originou. Ao invés dos mouros que representam o mal, nesse caso são os indígenas inimigos, muitas vezes genericamente referidos como tamoios, que confrontaram os indígenas convertidos, como os temiminós. No texto do auto, essa tradição ibérica é retomada e recriada, na narrativa de Anchieta, quando o missionário buscou demonstrar para a comunidade indígena quinhentista como a conversão protegia a integridade da aldeia, contra a dispersão provocada pelos antigos costumes.

Em perspectiva histórica, os “três diabos” nada mais eram do que os “fantasmas” de antigos chefes indígenas tupinambás que combateram os indígenas temiminós na disputa territorial entre os reinos absolutistas de Portugal e França, pela posse da Baía de Guanabara, no episódio conhecido como França Antártica, que culminou na fundação do Rio de Janeiro, em 1565 (Anchieta, 1977ANCHIETA, José de. Teatro de Anchieta. Tradução de Armando Cardoso. São Paulo, Loyola, 1977.; Viotti, 1980VIOTTI, Abranches Hélio. Anchieta - o apóstolo do Brasil. São Paulo: Loyola, 1980.; Knauss, 1991KNAUSS, Paulo. O Rio de Janeiro da pacificação - franceses e portugueses na disputa colonial. Rio de Janeiro: Coleção biblioteca carioca, 1991.). Os temiminós foram liderados por Arariboia, chefe indígena muito próximo a Anchieta, que possivelmente esteve presente à encenação do auto. O auxílio dos santos católicos, São Lourenço e São Sebastião, que representavam as comunidades coloniais de Niterói e do Rio de Janeiro respectivamente, estava simbolicamente relacionado ao apoio português nas batalhas que tiveram lugar pela hegemonia sobre o território. No plano histórico, como contendores, houve de um lado uma aliança luso-tupi e, de outro, uma aliança franco-tamoio, no século XVI. Venceu a batalha quinhentista a aliança luso-tupi, o que garantiu o controle do território ao reino de Portugal. A peça teatral é escrita cerca de vinte anos após esses ocorridos, já no contexto social e político da União Ibérica.

O texto estabelecido em tupi do caderno, fonte única manuscrita, não apresenta variantes, tendo sido o mesmo empregado por Maria de Lourdes de Paula Martins e por Armando Cardoso, divergindo apenas a tradução, em poucas nuances. A versão de Eduardo Navarro apresenta inovações linguísticas na ortografia do texto. Vejamos a primeira estrofe, no original, em suas três versões: semidiplomática e com a ortografia atualizada, por Maria de Lourdes de Paula Martins, e, na sequência, a versão com a atualização linguística de Eduardo Navarro. As traduções propostas pelos autores foram inseridas após os textos estabelecidos.

A versão semidiplomática de Maria de Lourdes de Paula Martins da fala de Guaixará, no fólio 60 do caderno, que registra a primeira estrofe do segundo ato do auto. Note-se que não há indicação de ser o segundo ato, tendo sido esta numeração posterior (Anchieta, 1989ANCHIETA, José de. Poesias. Transcrições, traduções e notas de Maria de Lourdes de Paula de Lourdes Martins. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1989 [1954]. (Biblioteca básica de literatura brasileira, v. 3). [1954]):

Xe moaju marãgatu
xemorõetecatuabo
aipo tecopisasú.
aba çerã ogoeru
xe retama momoxiabo (Anchieta, 1989ANCHIETA, José de. Poesias. Transcrições, traduções e notas de Maria de Lourdes de Paula de Lourdes Martins. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1989 [1954]. (Biblioteca básica de literatura brasileira, v. 3). [1954], p. 137).

Segue a leitura crítica e interpretativa de Maria de Lourdes de Paula Martins, que foi seguida por Armando Cardoso:

Xe moajú marangatú,
Xe moyrõetekatuábo
Aipó tekó pysasú
Abá serã oguerú
Xe retáma momoxyábo? (Anchieta, 1989ANCHIETA, José de. Poesias. Transcrições, traduções e notas de Maria de Lourdes de Paula de Lourdes Martins. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1989 [1954]. (Biblioteca básica de literatura brasileira, v. 3). [1954], p. 689).

Na tradução de Maria de Lourdes de Paula Martins:

Molestam-me os virtuosos
Irritando-me muitíssimo
Os seus novos hábitos
Quem os terá trazido,
Para prejudicar a minha terra? (Anchieta, 1989ANCHIETA, José de. Poesias. Transcrições, traduções e notas de Maria de Lourdes de Paula de Lourdes Martins. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1989 [1954]. (Biblioteca básica de literatura brasileira, v. 3). [1954], p. 689).

Na tradução de Armando Cardoso:

Molesta-me a boa gente,
Fazendo-me crua guerra;
O povo está diferente
Quem o mudou de repente,
Para danar a minha terra? (Anchieta, 1977ANCHIETA, José de. Teatro de Anchieta. Tradução de Armando Cardoso. São Paulo, Loyola, 1977., p. 145)

Por fim, uma terceira versão, que é a leitura com atualização linguística, desenvolvida por Eduardo Navarro, que marcou os morfemas da língua:

Xe moaîu-marangatu
Xe moyrõ-eté-katû-abo,
Aîpó t-ekó-pysasu.
Abá será ogû-eru,
Xe r-etama momox^y-abo (Anchieta, 2006ANCHIETA, José de. Teatro. Transcrição e tradução de Eduardo de Almeida Navarro. São Paulo: Editora da USP, 2006 [1999]. [1999], p.6, vv 21-25)

Na tradução de Eduardo Navarro5 5 Em seu curso de tupi antigo, Lemor Barbosa (1956, p. 419) apresenta também uma transcrição do texto de Anchieta, tendo seguido Maria de Lourdes de Paula Martins, com algumas variantes ortográficas. :

Importuna-me bem
Irritando-me muitíssimo,
Aquela lei nova
Quem será que a trouxe,
Estragando minha terra?

Quanto à interpretação e o processo tradutório dos três críticos, vemos uma ligeira variação na ressignificação de termos. No primeiro verso, o verbo Xe moajú é traduzido de forma similar pelos intérpretes, para Maria de Lourdes: “molestam-me”, para Cardoso: “molesta-me”, para Navarro: “Importuna-me” (Navarro, 2015NAVARRO, Eduardo Almeida de. Dicionário tupi antigo: a língua indígena clássica do Brasil. São Paulo: Global, 2015.). Não há dúvidas que o sentido do termo é o fantasma de Guaixará revelando o seu sentimento íntimo aos espectadores, é um espírito que ronda a aldeia espalhando a sua irritação, constrangido. O verbo exige um sujeito, Maria de Lourdes e Cardoso o encontram na substantivação de marangatú, traduzido por “os virtuosos” e “boa gente”, respectivamente. Nessa passagem, Navarro diverge e apresenta como sujeito um termo mais à frente, no terceiro verso, Aipó tekó pysasú, “aquela nova lei”, tendo traduzido marangatú pelo advérbio de modo “bem”.

O termo marangatú pode significar “bem” como forma substantivada também, que é a nossa proposta interpretativa: “Irrita-me o bem”. Nesse sentido, o termo marangatú aproxima-se do sentido latino de virtus e do sentido grego de areté, de virtude, de perfeição, ou de bem, no sentido moral cristão. Uma tradução alternativa, com esse viés filosófico, poderia ser: “Zango-me com a virtude”, que representa uma represália do antigo chefe indígena com a mudança de costumes derivada da colonização europeia, que possuía conotação positiva para os indígenas aliados dos portugueses, os brasis, a que se opunham os tamoios, considerados inimigos da colonização. A fala representa um antigo espírito que se levanta contra mudanças, também a ironia indígena com o “bem” trazido pela colonização.

Maria de Lourdes e Navarro apresentam a mesma tradução para o segundo verso Xe moyrõetekatuábo: “Irritando-me muitíssimo”, enquanto Cardoso apresenta uma tradução interpretativa mais subjetiva: “Fazendo-me crua guerra”. O verso apresenta uma construção bem simples, e a tradução de Maria de Lourdes, que Navarro segue, está mais próxima do sentido original. O verbo seguido do advérbio de intensidade no superlativo representa o sentimento exacerbado, uma hýbris, ou superbia, do espírito do antigo chefe indígena. Optamos pela tradução: “Me irritando demais”, a fim de seguir a colocação pronominal do original e uma quantidade de sílabas menor, o que aproxima o texto da oralidade, como era o registro original da obra de Anchieta. É interessante que Cardoso interpreta a “irritação” como “fazer uma crua guerra”, o que seria a consequência do estado de espírito de Guaixará, no auto de Anchieta.

Já o terceiro verso Aipó tekó pysasú foi traduzido por Maria de Lourdes como: “Os seus novos hábitos”, em tradução literal, enquanto Cardoso optou por uma interpretação mais livre: “O povo está diferente”, sem uma equivalência de construção sintática com o original, já Navarro otpou por manter a estrutura com o pronome demonstrativo: “Aquela lei nova”, tendo interpretado os novos “hábitos e costumes” como a nova “lei”, isto é, as novas práticas e costumes coloniais, com a origem na teologia moral dos missionários. Por se tratar de uma obra literária, acreditamos que Anchieta empregou o termo em um sentido mais geral, aproximado à leitura de Maria de Lourdes, a interpretação de Navarro é válida, pelo fato de que na continuidade do texto literário há a inumeração das novas proibições impostas aos indígenas pelos missionários.

Todavia, acreditamos que o sentido possa ser apreendido por uma solução tradutória mais simples: “Essas novidades”, ou “Essas coisas novas”. O espírito de Guaixará é aquele que se irrita com qualquer novidade, é a rejeição a mudanças e inovações que torna em ira a aceitação de transformações no mundo. Podemos notar que o texto é propagandístico da ideologia colonial, pois não foi escrito no sentido de criticar ou julgar o que ocorria de fato na colonização. Faz parte da documentação da América portuguesa seguir esse padrão retórico e ideológico, afinal, o texto apresentava aos indígenas aliados uma versão da colonização positiva a seus interesses práticos.

No quarto verso, temos a lição: “Abá serã oguerú”, traduzido por Maria de Lourdes como “Quem os terá trazido”, por Cardoso como “Quem o mudou de repente” e por Eduardo Navarro como “Quem será que a trouxe”, com interpretações muito próximas. Resolvemos apresentar uma variação, tendo em vista que o termo Abá, também possui o significado de homem, ser humano. Nesse sentido, apresentamos a seguinte versão: “Uns homens, talvez, a trouxeram”. A substituição do pronome interrogativo quem por homens vem no sentido de resgatar o sentido original do termo, mantendo o sentido geral encontrado pelos três intérpretes.

Por fim, o quinto verso: “Xe retáma momoxyábo?” foi traduzido por Maria de Lourdes como “Para prejudicar a minha terra?”, tradução muito próxima a de Cardoso, “Para danar a minha terra?,” e a de Navarro também: “estragando minha terra?”, que optou pelo gerúndio, para expressar o sentido de finalidade, empregado pelos dois outros tradutores. Optamos por uma tradução aproximada, apenas com uma variação no verbo da oração final por um sinônimo, a fim de diferenciar das traduções anteriores: “Para arruinar minha terra?”. O sentido que podemos interpretar deste verso é o efeito da presença dos missionários para o espírito do guerreiro indígena, que significa a ruína de sua terra natal, sua retáma.

Anchieta ao descrever essa passagem, próximo ao ano de 1587, já estava há décadas vivendo na América portuguesa. Seu conhecimento da cultura indígena derivava de um convívio de longa data e podemos encontrar eco nesses versos a episódios históricos anteriores como o armistício de Iperoig e o tempo como refém na Confederação dos Tamoios, em Ubatuba, em que negociou a paz com as comunidades indígenas tupinambás. Nesse sentido, como nossa interpretação crítica, a nossa proposta de tradução para essa primeira estrofe é a que se segue:

Guaixará:
Me deixa zangado a “bondade”
Me irritam demais
Essas novidades
Uns homens, talvez, a trouxeram
Para arruinar minha terra?

O questionamento do fantasma do chefe indígena Guaixará representava algo do Folclore Brasílico, isto é, das tradições populares em comunidades indígenas na recepção do colonizador europeu, visto como um invasor. A dúvida levantada sobre a presença dos missionários e o questionamento sobre o “bem” que teriam trazido não é um tema apenas ficcional, mas teria sido um questionamento pertinente à época de Anchieta, um missionário que conviveu mais de quatro décadas com essas comunidades indígenas, a ponto de escrever literariamente um auto dramática para ser encenado pelos indígenas.

O tema levantado pelo personagem Guaixará era pertinente no contexto da obra, era um questionamento indígena ao novo poder colonial instituído pela força no território antes ocupado pelos povos originários. A sequência do auto é a busca pela resposta a essa questão inicial, como uma especulação geral feita pelos povos indígenas que se aliaram aos portugueses, como os temiminós. Sua identidade cultural não se vinculava mais aos tradicionais costumes indígenas, mas também não viviam em um transplante de povos europeus, eram “brasis”, viviam em uma cultura brasílica, que ainda não era a cultura brasileira moderna e contemporânea. Nesse sentido, já no início do auto, Anchieta levanta a principal questão que parecia circular nas comunidades indígenas aliadas à América portuguesa no final do século XVI: afinal quem somos nós, tupis ou brasis?

Conclusão

Os estudos anchietanos no século XXI dão continuidade a uma tradição interpretativa sobre a obra de Anchieta que se iniciou desde o final do século XVI, quando a obra de Anchieta começou a ser transmitida à posteridade, tendo sido comentada incialmente por missionários de sua própria ordem religiosa e pela Igreja até o século XVIII. Com a construção da identidade nacional no século XIX, sua obra serviu de inspiração para a intelectualidade nativista no Brasil Império e no Brasil República, posteriormente, o que o tornou um autor de relevo no estudo da intelectualidade do Brasil ao longo de todo o século XX, quando as primeiras edições críticas de sua obra, com aparato crítico surgiram.

Da edição de Maria de Lourdes e de Cardoso até os dias de hoje, diversos intérpretes buscaram interpretar e compreender o legado das obras de Anchieta no contexto acadêmico do Brasil, em uma tradição interpretativa contínua até o século XXI. No século XXI, novas questões de crítica se levantam, sobretudo aquelas relacionadas à defesa dos direitos das minorias indígenas e de sua presença na história do Brasil. Anchieta no século XVI foi um missionário que esteve junto às comunidades indígenas durante um dos períodos mais conturbados de sua história, o período colonial, período em que o Brasil se originou.

Anchieta ouviu os povos originários e registrou os seus pensamentos e costumes. O missionário colocou-se como intermediador cultural entre seus interesses e os interesses dos colonizadores europeus, em uma difícil tarefa de buscar o equilíbrio em um contexto de expansão colonial e de conquista territorial. Sem a intermediação dos missionários, como Anchieta, certamente a violência da colonização teria sido maior e mais ampla. Ainda que o missionário estivesse a serviço da coroa portuguesa, e influenciado pela política cultural de D. João III (1502-1557, que reinou de 1521 até a sua morte) (Viotti, 1980VIOTTI, Abranches Hélio. Anchieta - o apóstolo do Brasil. São Paulo: Loyola, 1980.), buscou conciliar interesses diversos, e muitas vezes inconciliáveis, o que formou uma sociedade híbrida, ou brasílica, que era a América portuguesa quinhentista, uma sociedade não mais indígena e tão pouco um simples transplante europeu aos trópicos. Nesse sentido, o Folclore Brasílico apresentado nas obras de Anchieta marca essa comunidade colonial anterior ao Brasil moderno e contemporâneo, mas que foi a sua origem.

Referências

  • ANCHIETA, José de. Cartas de Anchieta - correspondência ativa e passiva São Paulo: Loyola, 1984.
  • ANCHIETA, José de. Poesias Transcrições, traduções e notas de Maria de Lourdes de Paula de Lourdes Martins. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1989 [1954]. (Biblioteca básica de literatura brasileira, v. 3).
  • ANCHIETA, José de. Teatro Transcrição e tradução de Eduardo de Almeida Navarro. São Paulo: Editora da USP, 2006 [1999].
  • ANCHIETA, José de. Teatro de Anchieta Tradução de Armando Cardoso. São Paulo, Loyola, 1977.
  • BARBOSA, Antônio Lemos. Curso de tupi antigo: gramática, exercícios e textos. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1956.
  • BASSETTO, Bruno Fregni. Elementos de filologia românica São Paulo: Editora da USP, 2013.
  • BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2001.
  • BERARDINELLI, Cleonice. Anchieta, o Brasil e a função catequista do seu teatro. In: PINHO, Sebastião Tavares e FERREIRA, Luísa de Nazaré (org.) Anchieta em Coimbra Colégio das Artes da Universidade (1548-1998). Actas do Congresso Internacional, Coimbra 1998. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2000. Vol. I, p. 351-364.
  • BHABHA, Homi K. O local da cultura Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.
  • BOSI, Alfredo. Dialética da colonização São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
  • CAMARA CASCUDO, Luís da. Antologia do Folclore Brasileiro - volume 1 São Paulo: Global, 2002 [1944].
  • CAMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário do Folclore Brasileiro São Paulo: Ediouro, 1985.
  • GALCERAN HUGUET, Montserrat. La bárbara Europa Una mirada desde elpostcolonialismo y la descolonialidad. Madrid: Traficantes de Sueños, 2016.
  • KALTNER, Leonardo F. O pensamento linguístico de Anchieta e de Carl von Martius: estudos historiográficos. Ponta Grossa: Atenas, 2020.
  • KARNAL, Leandro. Teatro da fé: representação religiosa no Brasil e no México do século XVI São Paulo: Hucitec; Editora da USP, 1998.
  • KNAUSS, Paulo. O Rio de Janeiro da pacificação - franceses e portugueses na disputa colonial Rio de Janeiro: Coleção biblioteca carioca, 1991.
  • KOERNER, Konrad. Questões que persistem em Historiografia da Linguística. Tradução de Cristina Altman. Revista da Anpoll, n. 2, p. 45-70, 1996.
  • MIRANDA, Maria Margarida. Teatro jesuítico e teatro de Anchieta: nas origens. In: PINHO, Sebastião Tavares de e FERREIRA, Luísa de Nazaré (org,) Anchieta em Coimbra Colégio das Artes da Universidade (1548-1998). Actas do Congresso Internacional, Coimbra 1998. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2000. Vol. III, p. 951-962.
  • NAVARRO, Eduardo Almeida de. Dicionário tupi antigo: a língua indígena clássica do Brasil. São Paulo: Global, 2015.
  • RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
  • SWIGGERS, Pierre. A historiografia da linguística: objeto, objetivos, organização. Confluência, n. 44-45, p. 39-59, 2013.
  • SWIGGERS, Pierre. Historiografia da Linguística: princípios, perspectivas e problemas. In: BATISTA, Ronaldo (org). Historiografia da Linguística São Paulo: Contexto, 2019. p. 45-80.
  • VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  • VIOTTI, Abranches Hélio. Anchieta - o apóstolo do Brasil São Paulo: Loyola, 1980.
  • 1
    De um modo geral, o tema do auto é o martírio de São Lourenço, santo tradicional nas práticas religiosas quinhentistas vinculadas à colonização, também conhecido como São Lourenço de Huesca, (c.225? d.C.-258 d.C.). S. Lourenço foi um santo de tradição católica martirizado à época do Império Romano, sob o principado de Décio. O auto de Anchieta descreveu, poeticamente, os momentos finais da vida de S. Lourenço, tendo enfatizado sua devoção à religião e a sua coragem frente às torturas impostas em seu martírio, pelos romanos pagãos. Os valores morais apresentados na peça são a obediência à fé cristã, o sacrifício e a vitória após a morte, moral que era transmitida às comunidades indígenas quinhentistas na catequese, sobretudo às crianças indígenas (Anchieta, 1977ANCHIETA, José de. Teatro de Anchieta. Tradução de Armando Cardoso. São Paulo, Loyola, 1977.).
  • 2
    Uma questão linguística notável na obra de Anchieta é o fato de empregar não só as línguas europeias como a língua portuguesa quinhentista, o castelhano ou o latim em suas obras, mas registrar uma língua indígena, o que marcou, desde seus primeiros intérpretes, uma das principais características de sua obra. A língua diz tupinambás e dos tupis, empregada em sua gramática e em suas poesias, respectivamente, é um dos fatos que nos motiva a diferenciar uma cultura brasílica da cultura brasileira moderna e contemporânea. Nota-se que essa questão linguística é um fato recorrente na interpretação das obras de Anchieta.
  • 3
    À época de Anchieta, as peças teatrais latinas do romano Terêncio, Publius Terentius Afer (Cartago, ca. 195 a.C.-185 a.C. - Lago Estínfalo, ca. 159 a.C.) eram muito conhecidas na educação humanística renascentista do contexto ocidental europeu. Cenas das peças de Terentius eram utilizadas pelos jesuítas em suas escolas e colégios humanísticos para ensinar questões morais, além da língua latina. Outro autor dramático, digno de relevo, no contexto intelectual em que Anchieta escreveu suas obras foi Gil Vicente (c. 1465 - c. 1536), um dos expoentes do teatro português quinhentista. Não é de se estranhar que os autos atribuídos a Anchieta tenham sofrido alguma influência do modelo de obras de ambos os autores, tendo em vista que Anchieta foi egresso do Colégio das Artes de Coimbra, tendo tido uma estadia em 1548 em Portugal, até sua chegada ao Brasil em 1553 (Karnal, 1998KARNAL, Leandro. Teatro da fé: representação religiosa no Brasil e no México do século XVI. São Paulo: Hucitec; Editora da USP, 1998.; Viotti, 1980VIOTTI, Abranches Hélio. Anchieta - o apóstolo do Brasil. São Paulo: Loyola, 1980.; Miranda, 2000MIRANDA, Maria Margarida. Teatro jesuítico e teatro de Anchieta: nas origens. In: PINHO, Sebastião Tavares de e FERREIRA, Luísa de Nazaré (org,) Anchieta em Coimbra. Colégio das Artes da Universidade (1548-1998). Actas do Congresso Internacional, Coimbra 1998. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2000. Vol. III, p. 951-962.).
  • 4
    Consta que Guaixará era um chefe indígena tamoio da região de Cabo Frio, que era contrário aos portugueses e aliado aos franceses, no século XVI. Morreu em combate no episódio da fundação do Rio de Janeiro (Anchieta, 1977ANCHIETA, José de. Teatro de Anchieta. Tradução de Armando Cardoso. São Paulo, Loyola, 1977.).
  • 5
    Em seu curso de tupi antigo, Lemor Barbosa (1956BARBOSA, Antônio Lemos. Curso de tupi antigo: gramática, exercícios e textos. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1956. , p. 419) apresenta também uma transcrição do texto de Anchieta, tendo seguido Maria de Lourdes de Paula Martins, com algumas variantes ortográficas.

Editado por

Editor-chefe dos Estudos de Literatura

Silvio Renato Jorge

Editores convidados

Manoel Mourivaldo Santiago
Ceila Maria Ferreira Batista

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    19 Jun 2023
  • Aceito
    29 Fev 2024
Programas de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF) Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n, Bloco C - sala 518, CEP 24210-201 - Niterói, Rio de Janeiro, Brasil., Telefone +55 21 2629-2600 - Niterói - RJ - Brazil
E-mail: gragoata.egl@id.uff.br