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Diálogo entre teatro lírico e literatura no Segundo Reinado

Dialogue between lyric theater and literature in the Second Reign

O livro de Marcelo Diego, Ópera flutuante, define o texto operístico como objeto de estudo e, simultaneamente, expande-se para o âmbito da literatura e da vida social do século XIX no Rio de Janeiro. Tomado de empréstimo de um romance do norte-americano John Barth, publicado em 1956, o título sintetiza o processo de reflexão e análise de Marcelo Diego: se a ópera é o ponto central da investigação, essa, por ser “flutuante”, dialoga com circunstâncias históricas, articula linguagens artísticas, recupera biografias, preenche eventos lacunares, penetra no processo criativo de compositores e escritores e tece uma narrativa que, sem perder a acuidade crítica, revela a criatividade e a engenhosidade do pesquisador.

A singularidade do livro de Marcelo Diego manifesta-se também na designação das partes do livro e de suas seções, as quais passam da “Overture” aos “Atos”, cada um deles dividido em duas “Cenas”, até chegar ao “Encore”. As divisões ou unidades incorporam a nomenclatura operística e nelas expressa-se o olhar do espectador, voltado ora para o texto lírico, ora para o “teatro do mundo”, propiciando conhecimentos múltiplos e variados ao leitor.

A “Overture”, em sua função de abertura, contextualiza o objeto de estudo - a audição de acordes musicais que emergem da leitura de romances brasileiros publicados no Rio de Janeiro durante o século XIX -, justifica a relevância do gênero ópera e do recorte temporal da investigação, que se estende da década de 1840 à de 1880, quando se instala o sistema da manifestação lírica no Brasil e sua consolidação, esclarece o ângulo de apreciação do tema ao longo dos três atos e identifica obras de escritores nas quais analisa ressonâncias musicais.

O ATO I, engenhosamente intitulado “Cantores de arribação”, detém-se na década de 1840 e descreve a vinda das companhias italianas de canto, destacando, na “Cena 1”, a chegada, em dezembro de 1843, de uma companhia italiana, vinda de Gênova, que passou a ser símbolo do nível artístico dos palcos fluminenses. O subtítulo do Ato I, “Todos cantam a ‘Casta Diva’, é uma epidemia!”, ressalta a disseminação da opera Norma, de Vincenzo Bellini, cuja ária, “Casta Diva”, era cantada, assobiada, trauteada em todos os lugares, demonstrando a adesão do público aos espetáculos líricos. Dessa forma, “o repertório lírico [...] deslocou-se não apenas dos palcos europeus para os palcos brasileiros, mas destes para o circuito da imprensa, e daí para o ambiente doméstico” (Diego, 2022, p. 45DIEGO, Marcelo. Ópera Flutuante: teatro lírico, literatura e sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2022.), enquanto óperas migravam da esfera musical para textos verbais, dramáticos ou narrativos, neles introduzindo elementos composicionais, conotações simbólicas ou metareflexivas. Martins Pena, José de Alencar e Machado de Assis são autores mencionados como exemplo dessa interlocução semiótica, na década de 1840, que é marcada, também, pelas disputas dos diletantes pelas prime e seconde donne que “eram admiradas como figuras exemplares não apenas como artistas, mas também como mulheres” (Diego, 2022, p. 67DIEGO, Marcelo. Ópera Flutuante: teatro lírico, literatura e sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2022.). A “Cena 2” desse ATO, “Cantava em casa, ao piano: ‘Ernani, Ernani, Involami...”, situa eventos de 1846 e enfoca o sucesso de Ernani, de Giuseppe Verdi, e seu impacto em obras literárias de José de Alencar e de Machado de Assis.

O ATO II, “Cidade dos Pianos”, divide-se nas cenas “Podia dar-nos este pedaço de Bellini, Se quisesse” e “Temos teatro lírico? Não temos teatro lírico?”. Nessas, Diego menciona, inicialmente, a epidemia de febre amarela que se abateu sobre o Rio de Janeiro entre 1849 e 1850 e cuja dimensão exigiu a interrupção da temporada de espetáculos. Ele registra que, após o controle da epidemia, houve uma intensa remodelação da cena lírica, entre os anos de 1853 e 1858, o que favoreceu a instalação de “um sistema operístico completo e complexo, cujos frutos acabaram por servir de alimento a outro sistema, que paralelamente se formava - o literário” (Diego, 2022, p. 103DIEGO, Marcelo. Ópera Flutuante: teatro lírico, literatura e sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2022.). Nessa troca, Diego sublinha a importância de Vincenzo Bellini, de Gioachino Rossini e de Giuseppe Verdi e comenta a interação dos romances A Mão e a Luva, de Machado de Assis, de Cinco Minutos, de Lucíola, de A Pata da Gazela, e da peça teatral O Demônio Familiar, de José de Alencar, com peças líricas desses compositores. O autor menciona, ainda, a instalação pouco duradoura da Ópera Nacional e retoma as discussões relativas à constituição de um repertório lírico brasileiro, citando a ópera Noite de São João, de Elias Lobo, com libreto de José de Alencar, apresentada no Teatro São Pedro de Alcântara, em 14 de dezembro de 1860, como a primeira composição genuinamente brasileira. Diego refere, em 1854, o início da Guerra do Paraguai, fato que levou, segundo constata o pesquisador, à redução dos espetáculos líricos. Duas obras ficcionais são visualizadas por sua relação com o conflito bélico e com a cena musical: os romances Iaiá Garcia e Sonhos d’Ouro.

O ATO III, intitulado “Teatro do Mundo”, “reconstitui o momento de apogeu da ópera no Rio de Janeiro, nas décadas de 1870 e 1880” (Diego, 2022, p. 25DIEGO, Marcelo. Ópera Flutuante: teatro lírico, literatura e sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2022.) e seu título remete à discussão relativa à existência de uma literatura brasileira e à transformação da ópera em dispositivo metalinguístico na ficção de Machado de Assis, procedimento demonstrado pelo título da “Cena 1”: “A vida é uma ópera e uma grande ópera”.

Nessa Cena, o pesquisador registra a instalação da companhia de Ernesto Rossi no Teatro Lírico Fluminense e a transferência da companhia italiana para o Teatro Dom Pedro II e procede à análise de Senhora, de Alencar, aí identificando o diálogo intertextual com Norma de Vincenzo Bellini. Ele esclarece a semelhança entre as protagonistas, Norma e Aurélia, para chegar à conclusão de que o soprano, como arquétipo da heroína lírica, servia de modelo a personagens de Alencar. Passando de Alencar a Machado, Diego realiza um confronto entre os romances Ressureição e Dom Casmurro, aquele visto como o “balão de ensaio” (Diego, 2022, p. 218DIEGO, Marcelo. Ópera Flutuante: teatro lírico, literatura e sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2022.) para o segundo e em que a metáfora da vida como uma ópera já fora mencionada. Ele conclui que o tópos do theatrum mundi, concretamente configurado na metáfora da vida como ópera, se desdobra na obra machadiana e permite relacioná-la à educação musical do escritor, que, “nos inícios de 1880 já era a de um entusiasta, dotado de sensibilidade para a arte e de uma escuta educada” (Diego, 2022, p. 232DIEGO, Marcelo. Ópera Flutuante: teatro lírico, literatura e sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2022.).

As referências literárias ou musicais de Dom Casmurro têm sua origem esclarecida por Diego, que se detém no diálogo intertextual dessa obra com as de Shakespeare, Otelo, Macbeth e Hamlet. Com efeito, o autor conduz o leitor de seu livro à conclusão de que o desdobramento das referências às peças de Shakespeare, em Dom Casmurro, é um procedimento que agrega sentidos à narrativa e ilumina aspectos da composição do romance.

A Cena 2, “Cairão de uma vez o burro e Verdi?”, tem por título um enunciado da crônica de Machado de Assis de 2 de outubro de 1892. Essa crônica e uma posterior, datada de 3 de setembro de 1893, são o ponto de partida para a análise que Diego realiza de Memorial de Aires, em que música e ópera ocupam um lugar central. Depois de retomar a opinião de diferentes críticos a respeito das ressonâncias de Richard Wagner no último romance de Machado, Diego conclui que o narrador ardiloso induz o leitor a crer que a lenda de Tristão e Isolda e o drama lírico de Beethoven, Fidélio, são o principal intertexto com que o Memorial dialoga. Contrariando essa linha de interpretação, o estudioso opta por privilegiar as óperas Tannhäuser e Lohengrin como textos que subjazem à composição do narrador e explicitam seu desejo de escrever.

O autor de Ópera Flutuante assinala, ainda, que o Memorial de Aires rompe com o paradigma da representação, visto que o diário não só discute o próprio ato de escrita, mas também questiona o poder dos signos de instituir uma referência externa à ficção, compreensão que o leva a adotar o conceito de Stimmung. Segundo esse conceito, a última obra de Machado sugeriria “uma leitura das sensações evocadas, do clima recriado” (Diego, 2022, p. 288DIEGO, Marcelo. Ópera Flutuante: teatro lírico, literatura e sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2022.), resultando, dessa atmosfera melancólica, seu principal vínculo com as óperas de Wagner.

Os expressivos dados históricos apresentados, a comprovação da convergência entre a expressão lírica e a literatura, a riqueza da interpretação dos textos literários, o grande número de considerações críticas trazidas à discussão, a natureza interdisciplinar da produção permitem afirmar que Ópera Flutuante é uma das mais inovadoras obras de crítica da cultura brasileira contemporânea e leitura obrigatória para quem se interessa por uma visão abrangente e plural da sociedade do Rio de Janeiro do Segundo Reinado. Se essa visão leva a conceber uma imagem renovada do período em foco, o modo de organização do texto permite apreender o processo de pesquisa que o constituiu, o qual serve de modelo a investigações científicas da área das ciências humanas e sociais.

Referência

  • DIEGO, Marcelo. Ópera Flutuante: teatro lírico, literatura e sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2022.
  • Resenha de:

    DIEGO, Marcelo. Ópera Flutuante: teatro lírico, literatura e sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2022. 323 p.

Editado por

Editor-chefe dos Estudos Literários: Silvio Renato Jorge

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2023
  • Aceito
    19 Jul 2023
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