Resumo
O estudo tem como foco a relação entre os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras drogas (CAPS AD) e à Atenção Básica por meio do Apoio Matricial. O objetivo do estudo foi identificar dificuldades e facilitadores do apoio matricial, com base na perspectiva dos profissionais matriciados e matriciadores, e analisar a dinâmica de trabalho destes profissionais pelo viés do Apoio Matricial. Optamos pela pesquisa de abordagem qualitativa. A coleta de dados se deu por meio da realização de dois grupos focais, um com os oito profissionais matriciadores dos CAPS AD e outro com os sete profissionais matriciados das UBS, participantes da pesquisa. Os dados foram analisados com base na técnica de análise temática que permitiu a identificação das categorias de análise: Dificuldades e facilitadores do processo de apoio matricial e Especificidades que permeiam as estratégias de cuidado com pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas. Os resultados apontam que os profissionais reconhecem que a metodologia do Apoio Matricial apresenta potencialidades ainda não alcançadas, mas em constante construção. Faz-se necessária uma ética de trabalho acolhedora, não estigmatizante e resolutiva, superando a lógica da especialização e da fragmentação das ações de saúde mental.
Palavras-chave:
Saúde Mental; Atenção Primária à Saúde; Usuários de Drogas
Abstract
The study focuses on the relationship between the Centers for Psychosocial Care Alcohol and other drugs (CAPS AD) and Basic Care through the Matrix Support. The objective of the study was to identify difficulties and facilitators of the matrix support, based on the perspective of the professionals who receive the matrix support and the professionals who offer the matrix support and analyze the work dynamics of these professionals through the Matrix Support bias. We opted for qualitative research. Data collection took place through two focus groups. One group had eight CAPS AD professionals who offer the matrix support and the other had seven UBS (basic healthcare units) professionals who receive the matrix support. The data were analyzed using the thematic analysis technique that allowed the identification of the analysis categories: Difficulties and facilitators of the matrix support and Specificities that permeate care strategies of alcohol and drug problematic users. The results indicate that the professionals recognize that the Matrix Support methodology presents potential not yet achieved but in constant construction. A warm, non-stigmatizing, and resolutive work ethic is necessary, overcoming the logic of specialization and the fragmentation of mental health actions.
Keywords:
Mental Health; Primary Health Care; Drug Users
1 Introdução
Concomitantemente ao processo de efetivação do SUS como política, no Brasil, estruturou-se a Política Nacional de Saúde Mental, que teve sua discussão iniciada com o movimento da Reforma Psiquiátrica no fim da década de 1970 e na década de 1980. A Política Nacional de Saúde Mental se concretizou por meio de um conjunto de saberes e práticas, Programas, Leis e Portarias, mas, especificamente, pela implantação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) em todo território nacional. Esta, por sua vez, busca consolidar um modelo de atenção aberto, territorial e de base comunitária (Brasil, 2013Brasil. (2013). Saúde mental. Brasília: Ministério da Saúde. Recuperado em 1 de maio de 2015, dehttp://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cadernos_atencao_basica_34_saude_menta l.pdf
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) em detrimento do tratamento asilar.
A RAPS foi instituída, em 23 de dezembro de 2011, por meio das Portarias nº 3088/GM/MS e 3089/GM/MS, com o objetivo de estruturar a rede de atenção às pessoas com sofrimento psíquico e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (Brasil, 2011aBrasil. (2011a). Rede de Atenção Psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde. Recuperado em 8 de agosto de 2014, de http://www.saude.pr.gov.br/arquivos/File/RAPS.pdf
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).
Historicamente, o tema do uso de álcool e de outras drogas é culturalmente associado à criminalidade e periculosidade, resultando em tratamentos inspirados em modelos de exclusão e isolamento dos usuários do convívio social. Até a década de 1990, não havia uma política de amplo acesso aos usuários de álcool e drogas, de alcance nacional, no âmbito da saúde pública.
O fortalecimento persistente do discurso e da concepção de que as drogas são o grande mal da atualidade produz a concentração de esforços na sua eliminação e no seu combate, resultando em abismos entre as necessidades dos usuários e as ofertas de cuidado. A dicotomia entre o discurso da guerra às drogas em oposição ao discurso de quem é favorável a elas proporciona um entendimento limitado do tema, excluindo fatores determinantes para esta discussão, como a pobreza, o desemprego, a violência, a falta de acesso às ações de prevenção, o racismo, entre outros (Souza, 2013Souza, T. P. (2013). A norma da abstinência e o dispositivo “drogas” Direitos Universais em territórios marginais de produção de saúde (perspectivas da redução de danos) (Tese de doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.).
Em contrapartida, políticas municipais, estaduais e federais que adotaram a estratégia de Redução de Danos como política de cuidado para a atenção às pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas vão ao encontro das evidências científicas, apresentando resultados mais eficazes e eficientes em saúde. Como exemplo, podemos citar o Programa “De Braços Abertos”, criado no início de 2014, pelo então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT) e coletivo, inspirado em experiências de sucesso nos Estados Unidos e Canadá. O Programa nasce na região da Luz, também conhecida como cracolândia, no centro da cidade de São Paulo, tendo como proposta o cuidado no território, possibilitando às pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas moradia, alimentação, trabalho e cuidado em saúde (São Paulo, 2016São Paulo. (2016). O Programa de Braços Abertos. São Paulo: Secretaria Municipal de Saúde. Recuperado em 3 de janeiro de 2017, dehttps://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/DBAAGO2015.pdf
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).
O Programa é reconhecido como referência no Congresso Mundial sobre Drogas nas Nações Unidas, sendo uma das políticas de redução de danos com melhores resultados, contudo, foi interrompido pela gestão subsequente, com a eleição de João Dória (PSDB). O novo e atual programa adotado, denominado “Recomeço”, é baseado na promoção da abstinência da droga e pensado pelo Governo Estadual de Geraldo Alckmin. O programa propõe a internação de pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, direcionando o cuidado a esta população, em contramão aos preceitos propostos pela Reforma Psiquiátrica (São Paulo, 2016São Paulo. (2016). O Programa de Braços Abertos. São Paulo: Secretaria Municipal de Saúde. Recuperado em 3 de janeiro de 2017, dehttps://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/DBAAGO2015.pdf
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).
Importante ressaltar que o momento político que vivenciamos, em que o Governo Federal também direciona-se para modelos absenteístas, com o fortalecimento de três forças principais: a psiquiatrização biomédica por meio das internações, a judicialização do cuidado por meio das forças de segurança e a moralização dos tratamentos por meio do fortalecimento das Comunidades Terapêuticas (em sua maior parte de cunho religioso) (Gomes-Medeiros et al., 2019Gomes-Medeiros, D., Faria, P. H., Campos, G. W. S., & Tófoli, L. F. (2019). Política de drogas e saúde coletiva: diálogos necessários. Cadernos de Saúde Pública, 35(7), e00242618. Recuperado em 2 de novembro de 2019, de http://www.scielo.br/pdf/csp/v35n7/1678-4464-csp-35-07-e00242618.pdf
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).
Alguns dos efeitos gerais desse processo é, do ponto de vista sanitário, o afastamento dos usuários da Atenção Básica e dos serviços especializados e a ineficácia das práticas clínicas, além disso, para além das fronteiras sanitárias, encontramos efeitos deste processo, como a superlotação das penitenciárias e a criação de novos presídios, resultando em uma crise de um sistema prisional nunca visto antes no Brasil. O contexto nos presídios é um dos resultados da guerra às drogas. É urgente aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário a proposta de novos conceitos e novas práticas à crise posta (São Paulo, 2016São Paulo. (2016). O Programa de Braços Abertos. São Paulo: Secretaria Municipal de Saúde. Recuperado em 3 de janeiro de 2017, dehttps://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/DBAAGO2015.pdf
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).
Nossas inquietações surgiram no bojo desta temática, mas, especificamente, voltadas para a prática do Apoio Matricial na rede de atenção e cuidado às pessoas com necessidades decorrentes do uso problemático de álcool e outras drogas. As perguntas de pesquisa que orientaram este estudo foram:
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De que forma o Apoio Matricial tem sido realizado na rede de atenção às pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas? Qual a percepção dos profissionais que compõem a Atenção Básica à Saúde e os CAPS AD sobre o Apoio Matricial? Quais as singularidades da metodologia do Apoio Matricial neste contexto?
Com o propósito de responder a tais questões, este estudo teve como objetivo identificar o que dificulta e o que facilita o desenvolvimento do apoio matricial, com base na perspectiva dos profissionais matriciados e matriciadores, na rede de atenção às pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Além disso, buscamos analisar a dinâmica de trabalho que se estabelece entre estes profissionais no Apoio Matricial.
2 Reconfiguração da Política de Álcool e outras Drogas e RAPS
A mais recente ampliação da rede de atenção aos usuários de álcool e outras drogas ocorreu dentro do contexto da “epidemia do crack”, em 2012. A mídia reforçava a ideia que o advento “crack” deveria ser tratado como uma epidemia, distorcendo a questão real para abordagens que fortaleciam o entendimento do fenômeno em questão, como algo patológico, que se alastrava descontroladamente. Já antes disto, em 2001, na III Conferência Nacional de Saúde Mental, a Redução de Danos já era apontada como umas das diretrizes a serem consolidadas pelas políticas de Saúde Mental, inaugurando o caminho da transversalização à integração das ações de Saúde Mental e DST/AIDS. Assim, os Programas de Redução de Danos migraram do campo exclusivo da DST/AIDS e passaram a compor a assistência em Saúde Mental, articulando a Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas (Brasil, 2003Brasil. (2003). A Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: Ministério da Saúde. Recuperado em 1 de julho de 2015, de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pns_alcool_drogas.pdf
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; Souza, 2007Souza, T.P. (2007). Redução de danos no Brasil: a clínica e a política em movimento (Dissertação de mestrado). Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro.).
A articulação das ações de Redução de Danos nos territórios com a Política de Álcool e Drogas, no Brasil, teve pioneirismo na cidade de Santos, entre 1989 e 1994. No ano de 1989, o médico sanitarista Fábio Mesquita (coordenador do Programa de DST/AIDS), junto com David Capistrano Filho (secretário de saúde de Santos e um dos principais militantes da Reforma Sanitária Brasileira), foram responsáveis por essas primeiras ações de Redução de Danos no Brasil (Souza, 2007Souza, T.P. (2007). Redução de danos no Brasil: a clínica e a política em movimento (Dissertação de mestrado). Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro.).
Em Campinas, Gastão Wagner de Souza Campos, então secretário da saúde, oficializou, em 2001, a Redução de Danos como uma política do município, abrindo caminho para ampliação do projeto, sendo criado, em 2002, o Programa de Redução de Danos. A Portaria nº 1.028, de julho de 2005, regularizou, no território nacional, as ações de Redução de Danos, ampliando o cuidado direcionado às pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas para além das propostas que se pautassem exclusivamente no paradigma proibicionista. Ainda, em julho de 2005, por meio da Portaria nº 1.059/GM, destinou-se incentivo financeiro para o fomento de ações de redução de danos nos CAPS AD. Em 2002, por meio da Portaria nº 816/GM, institui-se, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada a Usuários de Álcool e Outras Drogas, desenvolvido de forma articulada pelo Ministério de Saúde e pelas Secretarias de Saúde dos Estados, Distrito Federal e municípios. O Programa organiza as ações de promoção, prevenção, proteção à saúde e educação das pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas (Brasil, 2005Brasil. (2005). Reforma Psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. Brasília: Ministério da Saúde. Recuperado em 25 de junho de 2014, de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Relatorio15_anos_Caracas.pdf
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).
Assim, no mesmo ano, a Portaria nº 336, ao caracterizar as diferentes modalidades de Centros de Atenção Psicossocial, inclui os CAPS AD como um dos serviços centrais na organização da nova rede substitutiva de cuidado aos usuários de álcool e outras drogas. Destaca-se aqui iniciativas do Governo Federal relacionadas ao cuidado ofertado às pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, como o Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas no Sistema Único de Saúde–SUS (PEAD), instituído pela Portaria nº 1190, de 04 de junho de 2009; e o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas (PIEC), instituído pelo Decreto Presidencial nº 7179, de 20 de maio de 2010. Por meio dessas iniciativas, o Ministério da Saúde passou a financiar, por meio do SUS, Projetos de Consultórios na Rua, Casas de Acolhimento Transitório (CAT) e Escolas de Redutores de Danos. Tal fato potencializou, para além dos CAPS AD, o surgimento de experiências de diversificação e expansão de dispositivos assistenciais (Brasil, 2009Brasil. (2009). Plano emergencial de ampliação do acesso ao tratamento e prevenção em álcool e outras drogas no sistema único de saúde - SUS (PEAD 2009-2010), instituído pela portaria nº 1190, de 04 de junho de 2009. Brasília: Ministério da Saúde. Recuperado em 16 de junho de 2017, de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt1190_04_06_2009.html.
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).
Neste cenário de incentivo de projetos direcionados às pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, o Ministério da Saúde institui a Portaria nº 3.088, em 2011, que estabelece a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde, fortalecendo a Lei nº 10.216 ao atualizar a proposta de uma rede substitutiva de cuidados em saúde mental (Brasil, 2011bBrasil. (2011b). Sistema Único de Saúde: Conselho Nacional de Secretários de Saúde. (Coleção para entender a Gestão do SUS 2011). Brasília: CONASS. Recuperado em 5 de julho de 2014, dehttp://www.conass.org.br/colecao2011/livro_1.pdf
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).
Neste contexto, as práticas de saúde mental na Atenção Básica passam a ser formalmente fortalecidas, incluindo o cuidado às pessoas em uso problemático de álcool e outras drogas.
Considerada uma demanda importante na atenção básica, as ações em saúde mental são essenciais, se ponderarmos os agravos relacionados a este fenômeno que atingem grandes grupos populacionais ainda insuficientemente acolhidos pelas políticas públicas em geral. O cuidado em saúde mental, de acordo com Bertagnoni et al. (2012)Bertagnoni, L., Marques, A. L., Muramoto, M., & Mângia, E (2012). Núcleo de Apoio à Saúde da Família e Saúde Mental: itinerários terapêuticos de usuários acompanhados em duas Unidades Básicas de Saúde. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 23(2), 153-162. Recuperado em 1 de maio de 2014, de <file:///C:/Users/professor/Downloads/4907959959-1-SM.pdf, deve ocorrer em rede e contemplar a participação dos usuários e familiares como protagonistas na construção dos projetos terapêuticos singulares e, para a efetivação dessa rede, a articulação do cuidado especializado e da atenção primária é centralmente determinante.
Neste processo, com a implantação das ações de apoio matricial e a consolidação dos Núcleos de apoio à Saúde da Família (NASFs), pretendeu-se ampliar a rede de cuidados, melhorar o funcionamento dos atuais equipamentos e capacitar os profissionais de ambos os níveis de atenção, objetivando a resolutividade e universalidade do acesso aos serviços e aos cuidados em saúde mental. A articulação entre a saúde mental e a atenção básica apresenta-se como imprescindível e inadiável, implicando transformações profundas nas práticas de saúde institucionalizadas (Brasil, 2010Brasil.(2010). Política Nacional de Humanização: Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde. Recuperado em 3 de junho de 2014, de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cadernos_humanizasus_atencao_basica.pdf
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).
O modelo de Apoio Matricial surgiu como metodologia de gestão do trabalho em saúde proposta por Campos (1999)Campos, G. W. (1999). Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Ciência e Saúde Coletiva, 4(2), 393-403. Recuperado em 1 de maio de 2014, de http://www.scielo.br/pdf/csc/v4n2/7121.pdf
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, que objetiva garantir uma retaguarda especializada, capaz de oferecer tanto suporte técnico-pedagógico quanto assistencial. As ações em saúde mental na atenção básica, por meio dessa metodologia, buscam promover respostas adequadas às necessidades dos usuários, de modo a combater as formas de violência e estigma, ampliando a eficácia clínica, bem como as possibilidades interventivas (Brasil, 2003Brasil. (2003). A Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: Ministério da Saúde. Recuperado em 1 de julho de 2015, de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pns_alcool_drogas.pdf
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; Campos, 1999Campos, G. W. (1999). Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Ciência e Saúde Coletiva, 4(2), 393-403. Recuperado em 1 de maio de 2014, de http://www.scielo.br/pdf/csc/v4n2/7121.pdf
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).
A pesquisa que originou este artigo desenvolveu-se no município de Campinas–SP, que, desde a década 1990, desenvolve ações comprometidas política e socialmente com a concretização do SUS. A rede pública de Campinas iniciou a metodologia Paideia de cogestão das instituições e do cuidado em saúde, que foi uma experiência importante para a sistematização da prática do apoio matricial. Desenvolvida por Campos et al. (2014)Campos, G. W. S., Figueiredo, M. D., Pereira Júnior, N., & Castro, C. P. (2014). A aplicação da metodologia Paidéia no Apoio Institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface – Comunicação, Educação e Saúde, 18(Supl 1), 983-995. Recuperado em 1 de fevereiro de 2015, de http://www.scielo.br/pdf/icse/v18s1/18075762-icse-18-1-0983.pdf
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ao longo dos últimos 25 anos, esse dispositivo vem sendo amplamente utilizado em políticas e práticas de saúde no Brasil, apresentando-se como um instrumento fortemente incorporado pelas redes de saúde mental.
Orientados por este referencial, serviços de saúde mental, de atenção básica e da área hospitalar do Sistema Único de Saúde de Campinas sofreram mudanças organizacionais, novos arranjos, inovadores dispositivos de gestão e do processo de trabalho. Buscou-se, com isso, a democratização institucional e a qualificação do atendimento à população (Campos et al., 2014Campos, G. W. S., Figueiredo, M. D., Pereira Júnior, N., & Castro, C. P. (2014). A aplicação da metodologia Paidéia no Apoio Institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface – Comunicação, Educação e Saúde, 18(Supl 1), 983-995. Recuperado em 1 de fevereiro de 2015, de http://www.scielo.br/pdf/icse/v18s1/18075762-icse-18-1-0983.pdf
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).
Com base nesses achados e considerando que estudos que referem exclusivamente sobre o matriciamento em álcool e outras drogas são escassos na literatura, propusemo-nos a realizar este estudo, o qual se trata de recorte de uma pesquisa de mestrado mais ampla, cujo objetivo geral foi compreender o processo do Apoio Matricial, na perspectiva dos profissionais dos CAPS AD e Atenção Básica, de forma específica na rede de atenção às pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas.
3 Percurso Metodológico
Trata-se de estudo transversal, descritivo exploratório, com abordagem qualitativa e participativa. Desse modo, baseia-se nos modos de concepção da realidade e da relação sujeito-objeto característicos da abordagem qualitativa das relações sociais. Nas pesquisas qualitativas, sujeito e objeto se relacionam de modo que a visão de mundo do pesquisador permeia sua aproximação do objeto e, além disso, o pesquisador é considerado como instrumento-chave para a compreensão da realidade a ser estudada (Minayo, 2010Minayo, M. C. S. (2010). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec.).
No que se refere ao aspecto participativo da pesquisa, Campos & Castro (2014)Campos, G. W., & Castro, C. P. (2014). Apoio Institucional: Paideia como estratégia para educação permanente em saúde. Trabalho, Educação e Saúde, 12(1), 29-50. Recuperado em 1 de dezembro de 2016, de http://www.scielo.br/pdf/tes/v12n1/03.pdf
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e Furtado (2001)Furtado, J. P. (2001). Avaliação como dispositivo (Tese de doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas. destacam a importância da produção de conhecimento em saúde ser um processo resultante de parcerias entre pesquisadores e pessoas afetadas e envolvidas pelo tema da pesquisa, como profissionais da rede, usuários, familiares, gestores. Os autores defendem que a escolha por uma pesquisa de dimensão participativa justifica-se por uma posição política e ideológica, pautadas em ideais de justiça social e democracia.
A pesquisadora responsável por esta pesquisa era também trabalhadora de um dos CAPS AD participantes do estudo no início da pesquisa e, atualmente, é gestora de um CAPS AD também participante do estudo na época. Vivenciar os processos de apoio matricial, assim como a relação que se estabelecia entre a atenção básica e CAPS AD, como trabalhadora, potencializou a sensibilidade para compreender os grupos focais, facilitando, assim, o processo de análise de dados.
No caso desta pesquisa, em específico, compreende-se que a participação dos profissionais na investigação sobre o processo de apoio matricial é central para descrever, analisar e transformar essas práticas, visto que são esses participantes que direcionam o cuidado às pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, possibilitando, assim, espaço para enunciação e reflexão sobre dificuldades e potencialidades encontradas nos cotidianos de ações de cuidado.
A pesquisa foi composta por 15 profissionais de saúde, sendo 8 profissionais de três CAPS AD e 7 profissionais das Unidades Básicas de Saúde da cidade de Campinas, com nível técnico, médio e graduação, atuantes no processo de Apoio Matricial na rede de atenção às pessoas com necessidades decorrentes do uso problemático de álcool e outras drogas, seja no papel de matriciadores ou matriciados. O período de coleta de dados se deu de fevereiro a junho de 2016.
Os critérios de inclusão dos participantes no estudo foram: assinar voluntariamente o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e atuar há pelo menos seis meses em práticas de Apoio Matricial (como matriciadores ou matriciados), voltados à rede de apoio em álcool e outras drogas.
O contexto do estudo foi constituído pela rede de saúde estabelecida entre os três CAPS AD que assistem às demandas em saúde da população em uso problemático de álcool e outras drogas da cidade de Campinas e as UBS (Unidade Básica de Saúde) que se articulam com esses CAPS AD na perspectiva do Apoio Matricial. Os três CAPS AD participantes do estudo funcionam em parceria com a Prefeitura Municipal de Campinas, em convênio com o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira.
Destaca-se que, para este estudo, apenas os CAPS-AD foram elencados como potenciais unidades matriciadoras da atenção AD para a ABS pelo fato do município não contar com outras estratégias de apoio matricial, como é o caso dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Os NASF foram implantados recentemente no Município onde as ações de Apoio Matricial já existiam.
Para localização dos participantes, incialmente foi realizado contato com os gestores dos CAPS AD a fim de identificar os profissionais que realizam Apoio Matricial e em quais UBS esses profissionais o realizam. Após esse contato prévio, foi agendada data para contato inicial com os profissionais matriciadores dos CAPS AD. Esse contato se deu em reuniões de equipe, nas quais foi apresentado o projeto aos profissionais, os objetivos, local e data da coleta de dados. Nesse momento, somando os três CAPS AD, nove profissionais se interessaram em participar da pesquisa, sabendo que primeiro CAPS AD possui quadro de funcionários que somam em 42 profissionais, sendo que 07 realizavam ações de Apoio Matricial. Já o quadro de profissionais do segundo CAPS AD é composto por 31 profissionais, sendo que 08 realizavam ações de Apoio Matricial e o último CAPS AD com 24 profissionais, sendo que destes 08 realizavam ações de Apoio Matricial.
Entre os CAPS AD pesquisados, dois funcionavam como CAPS tipo II, e um funcionava como CAPS tipo III, ou seja, com disponibilidade para oito vagas de leito noite. Um dos CAPS pesquisados abrangia os Distritos Noroeste e Sudoeste e sediava a equipe do CAPS AD responsável pelo distrito Noroeste, sendo este o único CAPS AD do município de Campinas com administração municipal.
Participaram da pesquisa trabalhadores de 4 UBS indicadas pelos serviços matriciadores. Campinas possui 63 UBS que são responsáveis pela atenção básica à saúde no município. Contam com suporte e retaguarda de equipes técnicas distritais e centrais da Secretaria Municipal de Saúde e possuem Conselho local de Saúde, com representantes da população usuária, dos trabalhadores de Saúde e da Secretaria Municipal de Saúde.
Compreende-se matriciadores como profissionais com formação de graduação, técnica ou média, que estão nas equipes de serviços especializados, como os CAPS, e que realizam ações de Apoio Matricial; os profissionais matriciados possuem também formação de graduação, média ou técnica, e compõem a Atenção Básica à Saúde e realizam ações de Apoio Matricial. Os matriciadores exercem o apoio especializado às equipes da Atenção Básica, contudo, este movimento não deve ser entendido como um processo vertical, pois a construção que se dá no processo de Apoio Matricial é circular; a troca de saberes movimenta-se de forma horizontal e dinâmica em busca de uma rede costurada, fio a fio, por mãos de matriciadores, de matriciados e de usuários da rede de saúde mental.
Para a coleta de dados foram utilizados três instrumentos, sendo estes: protocolo de informações dos profissionais, contendo informações sobre os dados pessoais e relacionados ao tempo de serviço e experiência em saúde mental, protocolo de informações dos serviços, contendo informações específicas da dinâmica de funcionamento e roteiro para desenvolvimento do grupo focal. Os instrumentos foram elaborados pela pesquisadora tendo como base o material teórico sobre o tema, e submetidos à análise e à validação por especialistas da área.
Todos os profissionais participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, autorizando a utilização do material produzido na pesquisa, resguardado o sigilo, respeitando as prerrogativas da Resolução nº 466/12 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
Para a coleta de dados, utilizou-se da técnica do grupo focal. De acordo com Westphal et al. (1996)Westphal, M. F., Bógus, C. M., & Faria, M. M. (1996). Grupos focais: experiências precursoras em programas educativos em saúde no Brasil. Boletim da Oficina Sanitária do Panamá, 120(6), 472-482. e Gatti (2005)Gatti, B. A. (2005). Grupo focal na pesquisa em ciências sociais e humanas. Brasília: Líber Livro., esta é entendida como uma técnica de coleta de dados em que pessoas que compartilham traços comuns aprofundam discussões sobre uma questão específica. Com isso, é possível atingir um número maior de pessoas ao mesmo tempo e obter dados com certo nível de profundidade em um período curto de tempo.
Foram realizados dois grupos focais, com duração de aproximadamente duas horas cada um, como prevê a literatura. O grupo focal com os trabalhadores dos CAPS AD incluiu oito profissionais matriciadores e o grupo focal com matriciados das UBS contou com a participação de sete profissionais, totalizando 15 participantes. O desenvolvimento dos grupos focais foi áudio-gravado e posteriormente transcrito.
As observações foram registradas, pela própria pesquisadora, em diário de campo. A pesquisadora assumiu o papel de observadora dos grupos focais, realizando por meio do diário de campo o registro completo e preciso das observações, experiências pessoais do profissional/investigador, suas reflexões e comentários, assim como o registro de reações, sentimentos, comportamentos dos participantes. Para a condução dos grupos focais, foi feito contato com a equipe do Grupo de Pesquisa Paideia, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da UNICAMP, do qual a pesquisadora participou durante o ano de 2015, e realizado convite aos profissionais que se interessaram pelo tema. Duas profissionais aceitaram o convite para moderar os Grupos Focais.
A transcrição das gravações respeitou a veracidade e originalidade dos discursos e a preservação da identidade dos autores das falas, assim como a descrição do que foi observado. Os dados provenientes do protocolo de informações dos serviços foram analisados descritivamente. Os dados oriundos dos grupos focais foram analisados por meio da Análise Temática proposta por Bardin (2009)Bardin, L. (2009). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70. como uma das técnicas da Análise de Conteúdo. Com base nessa abordagem, as transcrições foram lidas a fim de identificarmos os núcleos de sentido. Após, foram identificados os temas e agregados em categorias temáticas.
Antes da realização dos grupos focais e após contato com Gestores e coordenadores dos serviços, e preenchimento do protocolo de informações, foi possível caracterizar os serviços com base em informações coletadas com os três gestores dos CAPS AD e com os quatro coordenadores das UBS. Participaram do estudo sete serviços, entre CAPS AD e Atenção Básica, aos quais os profissionais participantes estão vinculados. Os serviços foram identificados por A, B e assim sucessivamente até a letra G, mantendo, assim, os nomes dos serviços em sigilo. Para manter o sigilo em relação às identidades dos participantes, aqueles dos CAPS AD foram identificados pela letra P acrescida de um número e da sigla CAPS, e os participantes da Atenção Básica foram identificados da mesma forma, pela letra P acrescida de um número e das letras AB.
Após análise do material coletado por meio dos grupos focais, foram elencadas as seguintes categorias de análise:
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Dificuldades e facilitadores do processo de Apoio Matricial;
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Especificidades que permeiam as estratégias de cuidado com pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas;
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Concepções e ações do Apoio Matricial;
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Potências e limites do Apoio Matricial;
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Pacto de gestão ou aspectos político-institucionais.
Assim, neste artigo, trataremos apenas das duas primeiras categorias.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos, código 1.505.113, e pelo Centro de Educação dos trabalhadores da Saúde (CETS), nº 083/2015.
4 Resultados e Discussão
4.1 Dinâmica de trabalho de apoio matricial
Neste item, serão apresentados os resultados referentes à dinâmica de trabalho dos CAPS AD para ações de apoio matricial.
Como verificado na Tabela 1, o Apoio Matricial vai além das fronteiras do setor saúde, dá-se de forma intersetorial também com serviços da assistência. Dessa forma, faz-se necessário facilitar a comunicação entre distintos especialistas e profissionais, assim como montar um sistema que produza um compartilhamento de responsabilidades pelos casos e pela ação prática e sistemática, conforme cada projeto terapêutico específico, para que a interdisciplinaridade ocorra de fato e contribua para aumentar a eficácia das intervenções. É importante que o papel de cada instância, de cada profissional, esteja bem claro (Campos et al., 2014Campos, G. W. S., Figueiredo, M. D., Pereira Júnior, N., & Castro, C. P. (2014). A aplicação da metodologia Paidéia no Apoio Institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface – Comunicação, Educação e Saúde, 18(Supl 1), 983-995. Recuperado em 1 de fevereiro de 2015, de http://www.scielo.br/pdf/icse/v18s1/18075762-icse-18-1-0983.pdf
http://www.scielo.br/pdf/icse/v18s1/1807...
).
Apoio matricial e equipe de referência são arranjos que aumentam as possibilidades de se realizar clínica ampliada e integração dialógica entre distintas especialidades, profissões e setores, facilitando a comunicação entre distintos especialistas e profissionais, o compartilhamento de responsabilidades pelos casos e pela ação prática, além de fomentar a interdisciplinaridade e propiciar o aumento da eficácia das intervenções (Campos & Domitti, 2007Campos, G. W., & Domitti, A. C. (2007). Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cadernos de Saúde Pública, 23(2), 399-407. Recuperado em 1 de maio de 2014, de http://www.scielo.br/pdf/csp/v23n2/16.pdf
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). A Tabela 2, a seguir, ilustra a dinâmica de trabalho dos profissionais da Atenção Básica para a realização do Apoio Matricial.
As ações de apoio matricial são identificadas de maneiras distintas pelos diferentes gestores.
De modo geral, identificamos que parte dos coordenadores definem o apoio com base em seus arranjos de efetivação, como reuniões entre profissionais de diferentes serviços da rede, por exemplo. Outros gestores identificam o apoio com base nas estratégias matriciais (como o compartilhamento de casos e a construção de PTS). Embora nessas definições esteja implícita a função do apoio de promover a indissociabilidade entre gestão e clínica, entre aspectos clínicos e pedagógicos, essas funções não são explicitamente enunciadas pelos gestores.
Com relação aos serviços que possuem Estratégia Saúde da Família (ESF), destaca-se em relação a esses dados um arranjo híbrido presente no município de Campinas, que inclui na própria ABS equipes mínimas de saúde mental em algumas unidades. Nessas unidades, os arranjos de apoio matricial ganham contornos diferentes em relação às unidades que são exclusivamente matriciadas pelos CAPS.
Os resultados oriundos dos grupos focais apontam que os profissionais matriciados (ABS) percebem essa inserção como facilitador do processo de Apoio Matricial, já os profissionais matriciadores dividem opinião com relação às equipes de Saúde Mental inseridas formalmente na Atenção Primária: alguns apontam que a presença destas equipes na UBS facilita o processo de Apoio Matricial pela presença mais intensiva desses profissionais no cotidiano do serviço, e outros apontam que a presença destas dificulta o processo de Apoio Matricial, uma vez que a possibilidade do potencial das demandas/ofertas de saúde mental ficarem localizadas nesses profissionais é grande.
As equipes de Saúde Mental foram estabelecidas na rede de AB de Campinas desde a década de 1970, as quais foram marcadamente ampliadas durante a implantação do projeto de Apoio Matricial. As equipes de Saúde Mental são compostas por profissionais com formação específica em psiquiatria, psicologia e terapia ocupacional. Na ocasião dessa implantação, cerca de 1/3 das equipes das UBS contavam com profissionais de saúde mental (Campinas, 2006Campinas. Prefeitura. Secretaria Municipal de Saúde – SMS. (2006). Estrutura do SUS-Campinas. Campinas: Prefeitura Municipal. Recuperado em 1 de maio de 2015, de http://www.campinas.sp.gov.br
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).
Hoje, em relação às unidades participantes, quatro contam com equipes mínimas e duas contam com o apoio em saúde mental exclusivamente oferecido pelos CAPS.
Comparando-se as duas tabelas, percebe-se que os CAPS AD estão organizados para o processo de Apoio Matricial de forma diferente da AB, pois cada profissional do CAPS AD é referência para uma ou mais UBS, fator esse que facilita a comunicação e personifica a relação de matriciamento. Outro fato que diferencia o formato do apoio matricial ofertado pelos CAPS AD é que estes realizam ações de apoio matricial para além da saúde, envolvendo articulação intersetorial por meio da lógica territorial. A lógica de apoio matricial estabelecida pelos profissionais das equipes de saúde mental da AB se dá por meio do referenciamento de cada profissional da equipe de saúde mental para no mínimo duas ESF, pelo menos uma dentro da UBS e outra UBS da referência.
O grande desafio, principalmente diante dos últimos retrocessos político institucionais, vai além de substituir os hospitais psiquiátricos, é substituir a lógica manicomial. A Atenção Básica apresenta uma potência para o enfrentamento deste desafio, já que se aproxima, quase que de forma inevitável, das demandas de saúde mental em seu contexto cotidiano, propiciando novas abordagens que podem evitar encaminhamentos desnecessários aos serviços especializados (Figueiredo & Campos, 2008Figueiredo, M. D., & Campos, R. O. (2008). Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica. Saúde em Debate, 32(78-80), 143-149.).
Dessa forma, faz-se necessário sensibilizar os profissionais da Atenção Básica sobre a potência do cuidado a ser oferecido neste nível de atenção, entendendo que o perfil dos usuários dos CAPS AD diferencia-se das pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas que se encontram no território.
4.2 Dificuldades e facilitadores do processo de Apoio Matricial
A partir dos grupos focais, os profissionais apontaram dificuldades que permeiam as ações de Apoio Matricial, em geral, como a grande rotatividade de profissionais, ausência de médico psiquiatra, recursos humanos insuficientes na rede, ausência de serviços que abranjam as especificidades dos casos e perspectivas assistencialistas do Apoio Matricial.
Em relação aos aspectos específicos do apoio matricial na atenção às problemáticas AD, foram identificadas questões em relação à prevenção e à articulação do cuidado.
O aspecto de estabelecer parcerias entre profissionais da AB e dos CAPS AD e construir vínculos entre profissionais e pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas é apontado como favorável para a construção do Apoio Matricial, mencionado por profissionais da AB, por aumentar a rede de suporte tanto para o usuário quanto para o profissional generalista, como mostram os depoimentos a seguir.
Eu sinto que as unidades básicas usam o CAPS como substitutivo de laço afetivo na construção de parcerias profissionais (P11 AB).
[...] mas se você perguntar assim, quem é sua referência no CAPS, ele sabe o nome. Ele sabe que se precisar a gente aciona e a pessoa ou vai receber lá ou vai até o Centro de Saúde, então a gente tem conseguido, mais recente, a gente tem conseguido que o CAPS faça atendimento em conjunto e funciona superbem. A gente tem muito mais dificuldade hoje quando a gente liga no CAPS III e precisa de um leito né, mesmo no CAPS AD, a recepção é outra né, porque a gente se conhece [...] (P12 AB).
Rigotti (2016)Rigotti, D. G. (2016). Matriciamento e coprodução de autonomia: percepções dos apoiadores matriciais do SUS – Campinas (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas. esclarece que investir no estabelecimento de vínculos entre os profissionais é uma condição para que o matriciamento se estabeleça. Assim, identificações nascem entre os profissionais, tanto das equipes de apoiadores como das equipes da atenção básica, favorecendo a sensação de pertencimento a ambas as equipes. Nesse sentido, as ações são vistas como produtoras de corresponsabilidade, e as intervenções dos matriciadores não são sentidas como controle sobre as equipes da Atenção Básica.
A metodologia de apoio matricial, quando percebida e aproveitada por meio dos afetos, torna-se muito mais potente. Por exemplo, quando os matriciadores percebem os aspectos morais envolvidos na discussão de um caso, assim como o incômodo ou desejo, esses aspectos devem ser utilizados pela equipe e não negados, como ponte para comunicação, troca de saberes e construção coletiva de diretrizes de cuidado às pessoas com problemáticas decorrentes do uso de álcool e outras drogas.
Alguns profissionais dos CAPS AD e das UBS percebem a especificidade de Álcool e outras drogas como elemento de resistência para a atenção resolutiva aos usuários, tanto no que se refere ao acesso ao serviço quanto no que se refere ao acolhimento e oferta de cuidados, como mostram os relatos a seguir.
[...] porque acho que na questão AD tem a dificuldade de acesso mesmo dos usuários tanto aos CS, mas também aos CAPS, acho que a gente no CAPS pega ai uma porcentagem bem pequena das pessoas que demandariam cuidado na área [...]. Falando diretamente do CAPS AD, dessa questão do AD, pra mim, essa resistência, da AB começa quando eles iniciam a conversa dizendo para os CAPS que “nós não temos casos AD neste território” (P1 CAPS).
[...] é essa ótica que eu queria colocar, essa questão da gente entender como um problema de saúde pública, sim, a do AD (P12 AB).
Se, por um lado, esse elemento, que gira em torno do processo de estigmatização da pessoa em uso de álcool/drogas é apontado como um dificultador da operacionalização do apoio, por outro lado, possibilita-nos amadurecer e refletir sobre os desafios da universalidade do acesso e da integralidade do cuidado, que se apresentam em situações limites no caso dessa população. Sabendo que a experiência com as drogas é uma prática social estigmatizada, resultando, por vezes, em preconceitos, discriminação e criminalização, criando, assim, verdadeiras barreiras ao acesso, o amadurecimento da prática de cuidado dessas pessoas pode nos conduzir a uma democratização das instituições de cuidado para a população em geral (Tedesco & Souza, 2009Tedesco, S., & Souza, T. P. (2009). Territórios da clínica: redução de danos e os novos percursos éticos para a clínica das drogas. In S. R. Carvalho, M. E. Barros & S. Ferigato (Orgs.), Conexões: saúde coletiva e políticas de subjetividade (pp. 16-36). São Paulo: Editora Hucitec.; Souza, 2013Souza, T. P. (2013). A norma da abstinência e o dispositivo “drogas” Direitos Universais em territórios marginais de produção de saúde (perspectivas da redução de danos) (Tese de doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.).
Em relação às pessoas que necessitam dos cuidados oferecidos pelas políticas AD, trata-se de um embate aos movimentos de contrafissura.
O conceito de contrafissura é entendido por Lancetti (2015)Lancetti, A. (2015). Contrafissura e plasticidade psíquica. São Paulo: Hucitec. como um sintoma social que nasce do proibicionismo e de seu fracasso, favorecido por uma corrente midiática que potencializa o desespero por resolver imediatamente e de modo simplificado aspectos relacionados ao uso de álcool e outras drogas, focando a questão nas drogas e não na pessoa que faz seu uso. O autor problematiza que a contrafissura seria a primeira barreira enfrentada por gestores e cuidadores. Esta barreira pode ser entendida com base nos limites do senso comum e, como um sintoma social, segue sendo reafirmado, mesmo que evidenciada sua baixa efetividade clínica de funcionamento e eficácia questionável. Assim, a contrafissura manifesta-se também em cada cuidador como certa resistência ao entrar em contato com o tema do álcool e outras drogas.
A eficácia do tratamento do uso problemático de álcool e outras drogas depende quase que exclusivamente do desejo, da motivação e do empenho do usuário em querer interromper ou diminuir o uso. É então de responsabilidade dos profissionais de saúde auxiliá-lo a identificar suas dificuldades e a planejar mudanças, sempre em concordância com suas expectativas e possibilidades. Tal processo é construído com base em uma relação terapêutica de confiança e comprometimento de ambas as partes, e também de embasamento teórico pautado em metodologias de cuidado, como a redução de danos, reconhecida e embasada em pesquisas científicas de instituições responsáveis com a ciência e a ética. O cuidado direcionado às pessoas que fazem uso problemático de drogas exige especificidades pautadas na subjetividade e no respeito à escolha de cuidado dos usuários.
Os autores Figueiredo & Campos (2009)Figueiredo, M. D., & Campos, R. O. (2009). Saúde Mental na atenção básica à saúde de Campinas, SP: uma rede ou um emaranhado? Saúde Ciência & Saúde Coletiva, 14(1), 129-138. nos explicam que, para as mudanças de paradigmas, é necessário qualificar as equipes a incorporarem, em seu repertório de atuação, outras dimensões do sujeito além de sua faceta biológica, valorizando a sua subjetividade e o conjunto de relações sociais que determinam desejos, interesses e necessidades.
4.3 Especificidades que permeiam as estratégias de cuidado com pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas
O item apresenta de forma específica estratégias de cuidado citadas nas discussões dos grupos focais. Elementos como a perspectiva de cuidado pelo viés da redução de danos e abstinências, assim como a política de álcool e outras drogas foram mencionados nas narrativas. Os profissionais matriciadores percebem, majoritariamente, o cuidado efetivo por meio da perspectiva da redução de danos, enquanto alguns profissionais matriciados especificam o cuidado a usuários de álcool e outras drogas, majoritariamente, pelo viés da abstinência, como mostram os relatos a seguir dos profissionais dos CAPS AD.
[...] é, e assim, atualmente no matriciamento que eu faço, além desse processo de estabelecer parcerias, tem sido um investimento grande para a redução de danos no território, e em um dos Centros de Saúde que apoiam o matriciamento, tem campo da redução de danos que acontece lá toda vez por semana (P1 CAPS).
É aquelas discussões básicas, né, de redução de danos, que acho que a gente, né, no AD já opera isso de algum modo, mas na Atenção Básica isso ainda é muito distante. Às vezes, você tá discutindo o caso com esse paradigma com alguém que tá pretendendo a abstinência o tempo todo, e aí dificulta muito! (P2 CAPS).
Mas então, é muito isso ai tá vendo! Os CAPS têm que trazer pra discussão, os CAPS têm que falar da política de álcool e drogas, tudo bem que é nosso lugar e tal, mas só a gente que tem que falar disso, meu, é desgastante! (P3 CAPS).
Assim, faz-se necessária a ampliação, também por meio do apoio matricial, das discussões que permeiam a prática de redução de danos, que busca encorajar as pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas a tornarem-se protagonistas da sua relação com a droga e com o tratamento, promovendo o autocuidado com a saúde e a busca por direitos, que resultem em políticas públicas.
Infelizmente, o panorama nacional atual não vai nesta direção. A Política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas respaldada pela Portaria nº 1.059/GM, de 04 de julho de 2005, do Ministério da Saúde, que destinava incentivo financeiro para o fomento de ações de redução de danos em Centros de Atenção Psicossocial para o Álcool e outras Drogas, importante política construída a partir da Reforma Psiquiátrica, implantada mais integralmente por meio da Lei nº 10.216, e no reconhecimento da importância do respeito à dignidade humana de pessoas em uso problemático de drogas (Brasil, 2005Brasil. (2005). Reforma Psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. Brasília: Ministério da Saúde. Recuperado em 25 de junho de 2014, de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Relatorio15_anos_Caracas.pdf
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), está em risco desde que a Lei nº 13.840, de 05 de junho de 2019, foi sancionada pelo Governo Federal. Com a nova Lei, a internação do usuário poderá ser solicitada por familiar ou responsável familiar, servidor(a) público da área da saúde, Assistência Social ou órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) e será formalizada por decisão médica. Além desses pontos de retrocesso e ameaça às conquistas com a PNAD, a nova Lei não reconhece a Redução de Danos como um cuidado às pessoas em uso problemático de álcool e outras drogas, reconhecendo somente a Abstinência como única forma de tratamento (Brasil, 2019Brasil. (2019, 5 de junho). Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, seção 1, p. 2. Recuperado em 1 de setembro de 2019, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13840.htm
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).
A referida Lei também redireciona os investimentos financeiros, estimulando a internação de pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas em Comunidades Terapêuticas (CTs). Os CAPS AD ainda são insuficientes e necessitam de investimento para sua ampliação e manutenção, contudo, tal fato não pode ser utilizado como justificativa para o direcionamento de recursos públicos, sem licitação, para contratar vagas de internação em instituições privadas e de orientação religiosa, como são as CTs, em sua maioria, sem que estas se submetam ao cumprimento de normas equivalentes às que são submetidos os serviços que prestam atenção à saúde. Assim, fazem-se necessárias evidências científicas para que estas instituições comprovem sua eficácia e o investimento numeroso previsto por esta nova lei.
Os contextos em que os usuários estão em situação de rua, envolvidos com o tráfico de drogas e com comorbidades com doenças sexualmente transmissíveis também foram elementos apontados pelos profissionais matriciadores como especificidades comumente presentes da rede AD. Tais questões lançam os profissionais a compartilharem em rede ações de cuidado que esbarram nos limites da clínica ou levam a clínica ao seu limite potencial, o que apenas ressalta as situações limite que estes profissionais vivenciam, como mostram os depoimentos a seguir.
[...] começamos com um caso bem grave, prostituição, moradora de rua, fazia troca do corpo pelo uso intenso de crack, estourando de DST [...] (P5 CAPS).
[...] aí a gente que se dispõem a lidar com as questões limites, situação de rua, e os aspectos que o AD traz são bem dramáticas, situações da gente atender pessoas em situações de rua e tal [...] (P2 CAPS).
[...] muitas dúvidas que eles tinham sobre redução de danos, muitos ACS tinham medo de abordar no território porque alguns usuários eram traficantes e alguns usuários estavam em TB [...] (P1 CAPS).
Eu tive a oportunidade de matriciar duas UBS, uma na Sudoeste e outra na Noroeste, e o interessante é que foram realidades bem diferentes, uso mais coletivo, uma dinâmica bem vulnerável e bem volumosa de garotas que usam lá, não só elas, mas seus clientes também [...] (P7 CAPS).
Percebe-se nos relatos a necessidade de aproximação e esclarecimento em relação ao tema do uso de álcool e outras drogas, fato este que direciona o cuidado às pessoas com tal problemática. O uso de drogas é um fenômeno complexo, que além da área da saúde envolve outras esferas, como segurança pública e assistência social, por exemplo. Faz-se necessário o entendimento deste fenômeno e o cuidado às pessoas sob a ótica da complexidade, assim como da representação social do uso, do usuário e do cuidado. É urgente a efetivação de políticas públicas na perspectiva de uma atuação interdisciplinar e intersetorial para uma abordagem integral do sujeito, na busca de qualificar acesso e vinculação em rede.
Lancetti (2015)Lancetti, A. (2015). Contrafissura e plasticidade psíquica. São Paulo: Hucitec. e Souza (2013)Souza, T. P. (2013). A norma da abstinência e o dispositivo “drogas” Direitos Universais em territórios marginais de produção de saúde (perspectivas da redução de danos) (Tese de doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas. apontam que é preciso atravessar a superfície discursiva sobre as drogas, superando o estancamento de papéis e relações restritas entre a das pessoas que usam drogas destrutivamente e a dos que supostamente curariam os drogados.
Observa-se, nos relatos de profissionais dos CAPS AD e AB, a percepção do cuidado às pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas não limitar-se somente à questão do uso da substância:
[...] de um entendimento do sujeito mais integral, né, do uso da substância e tal e que isso também pode ser cuidado na AB (P5 CAPS).
Acho que isso, às vezes, é bem negativo no matriciamento, usuário bateu na mãe idosa ou aquele menino tão bom agora tá usando drogas e aí não generalizar, sabe o próprio profissional fica com esses julgamentos morais, a questão não é a droga, é o desemprego, falta de acesso a coisas básicas no território (P6 CAPS).
Casos, de CAPS AD. Você pode olhar o paciente AD de duas óticas hoje, como um problema de saúde pública, uma doença, que é o que nós, profissionais de saúde, trabalhamos, ou a via da criminalidade e tudo mais, né, que pra mim vem daí o preconceito (P11 AB).
Varanda (2009)Varanda, W. (2009). Liminaridade bebidas alcóolicas e outras drogas: funções e significados entre moradores de rua (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo. discute sobre a referência a uma criminalidade preconceituosamente generalizada na população de rua e usuários de drogas que é apresentada pelos próprios moradores de rua e usuários, considerando a maneira como avaliam que são percebidos, em função da incapacidade do cidadão comum em distinguir quem realmente representa alguma ameaça no contexto da violência urbana.
A compreensão do uso problemático de álcool e outras drogas deve se dar para além do contexto criminal e de coerção. As intervenções às pessoas em uso problemático devem prezar pelo cuidado em liberdade e pela não estigmatização.
Pouco se discute sobre a necessidade de modificar a realidade que determina e co-produz o fenômeno do uso de drogas. É urgente e necessária a efetivação de políticas públicas que não sejam pautadas na compreensão de que as pessoas que fazem uso problemático de drogas são um problema, mas sim de que tal fato é resultado de uma série de relações que determinam o lugar que essas pessoas ocupam no mundo.
É importante perceber, por exemplo, que uma das formas de conceber o uso de drogas, que escapa do convencional, é percebê-lo também como um esforço de questionar, denunciar e reagir às formas empobrecidas de existência de pessoas oprimidas e negadas a um funcionamento de sociedade capitalista neoliberal que enfatiza o lucro individual e nega o Estado de direito.
Preconceito, ameaças, medos, julgamentos morais foram elementos revelados nas narrativas de profissionais matriciados no cuidado com o usuário de álcool e outras drogas:
O preconceito é uma questão de prática, a gente faz, né, por bandidos. Sabe, são “bandidos” [...] eu vejo ameaças aos funcionários do Cândido, a mim, entendeu? (P15 AB).
Eles ameaçam. Eles ameaçam muitos profissionais do Centro de Saúde (P14 AB).
Que tem sempre aquela coisa, sabe, eu não sinto por parte das pessoas uma disposição de ir atrás mesmo e tem o preconceito mesmo né [...] (P13 AB).
E é uma coisa bem diferente o etilista do drogadicto né. O etilista não tá ligado diretamente com a criminalidade, o drogadicto está (P15 AB).
Souza (2013)Souza, T. P. (2013). A norma da abstinência e o dispositivo “drogas” Direitos Universais em territórios marginais de produção de saúde (perspectivas da redução de danos) (Tese de doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas. demarca que o campo da saúde, após implantação das Políticas Públicas sobre drogas no Brasil, passou a ser munido de um arsenal político, institucional e legal capaz de produzir embates e mudanças sobre as políticas de drogas hegemônicas no Estado brasileiro. Assim, compreendia-se que a problemática das drogas poderia ser enfrentada com a ampliação da cobertura e a invenção de novos dispositivos de atenção, com uma mudança de olhar sobre este fenômeno de modo a superar a dualidade lícito-ilícito que estigmatiza, principalmente, os usuários de drogas ilícitas.
Diante dos depoimentos apresentados anteriormente, argumentamos que ainda há um longo caminho a ser percorrido para a total superação da visão preconceituosa que permeia práticas de cuidado.
Esta categoria discutiu as especificidades do cuidado com os usuários de álcool e outras drogas, alguns profissionais da Atenção Básica compreendem o cuidado a este público majoritariamente pelo viés da abstinência, enquanto os profissionais dos CAPS AD, em geral, propõem o cuidado pelo viés da Redução de Danos, podendo fazer uso de estratégias de abstinência quando essas se fizerem necessárias na avaliação e construção de cada caso singular.
Fatores como medo, ameaças, preconceitos e ausência de capacitação específica relacionada ao cuidado com os usuários de álcool e outras drogas foram apontados pelos participantes.
5 Considerações Finais
Profissionais da Atenção Básica e dos CAPS AD reconhecem que a metodologia do Apoio Matricial apresenta potencialidades ainda não alcançadas, mas em constante construção. Os profissionais dos CAPS AD identificam que a perspectiva da redução de danos ainda é pouco utilizada pela Atenção Básica, e os profissionais matriciados apontam dificuldades no encaminhamento para alguns CAPS AD.
Entre as temáticas que surgiram nos grupos focais, destacam-se as especificidades do Apoio Matricial na rede AD, como os aspectos morais e produtores de estigmas presentes nos relatos de alguns participantes. Alguns profissionais da Atenção Básica apresentaram discursos que explicitam o preconceito e o medo em relação às pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas. O Apoio Matricial é percebido pelos profissionais como um meio para que estes se sintam apropriados a fazer uma escuta qualificada, diminuindo, assim, a angústia e o sofrimento, possibilitando uma construção coletiva e transversalizada.
Embora os resultados e discussões produzidos pela pesquisa tenham se consolidado com base em um estudo municipal, compreendemos que a cidade de Campinas, por ser o município berço do conceito-ferramenta do apoio matricial e por seu pioneirismo no campo da saúde mental, tem potencial para produção de diagnósticos de limites e potências das práticas de apoio matricial que certamente poderão contribuir para a qualificação dessas práticas em outros territórios.
Compreendemos que a pesquisa nos forneceu elementos que explicitam a importância dos CAPS AD, da Atenção Básica e das ações matriciais. Faz-se necessário uma ética de trabalho acolhedora, não estigmatizante e resolutiva, superando a lógica da especialização e da fragmentação das ações de saúde mental. É urgente, principalmente diante do cenário de desmonte do SUS e da ameaça à sustentabilidade dos princípios básicos do SUS, consolidar uma rede de cuidados, disposta a atuar na perspectiva da transformação dos modos de atenção e cuidado em saúde mental.
Contudo, o atual cenário político invadido por controversas propostas de cuidado em que as pesquisas científicas não são mais primordiais aos modelos de cuidado propostos em saúde mental, e de forma específica, ao cuidado das pessoas em uso problemático de álcool e outras drogas, enfraquece de forma significativa as mudanças de paradigma em que as equipes de saúde, tanto da atenção básica como as dos CAPS AD, vinham se debruçando, na construção de um cuidado corresponsabilizado e de valorização da subjetividade. A resistência ao desmonte apresentado se faz no cotidiano do cuidado ofertado às pessoas, na divulgação da eficácia do cuidado e na exigência dos direitos humanos preservados.
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Os processos éticos vigentes foram cumpridos. O projeto de pesquisa de mestrado foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da UFSCar, tendo sido aprovado em 18/04/2016, sob o número 1.505.113, e submetido à Prefeitura Municipal de Campinas, por meio do CETS (Centro de Educação dos trabalhadores da Saúde), sendo aprovado em 15/12/2015, sob o número 083/2015.
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Como citar: Faria, P. F. O., Ferigato, S. H., & Lussi, I. A. O. (2020). O apoio matricial na rede de atenção às pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional. Ahead of Print. https://doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO1987
Referências
- Bardin, L. (2009). Análise de conteúdo Lisboa: Edições 70.
- Bertagnoni, L., Marques, A. L., Muramoto, M., & Mângia, E (2012). Núcleo de Apoio à Saúde da Família e Saúde Mental: itinerários terapêuticos de usuários acompanhados em duas Unidades Básicas de Saúde. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 23(2), 153-162. Recuperado em 1 de maio de 2014, de <file:///C:/Users/professor/Downloads/4907959959-1-SM.pdf
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Out 2020 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2020
Histórico
-
Recebido
18 Jul 2019 -
Revisado
16 Set 2019 -
Revisado
10 Dez 2019 -
Aceito
13 Jan 2020