Acessibilidade / Reportar erro

De Dove mi Trovo a Whereabouts: Jhumpa Lahiri e a Autotradução

From Dove mi Trovo to Whereabouts: Jhumpa Lahiri and Autotranslation

RESUMO

Este artigo discute a autotradução, centrando-se na escritora Jhumpa Lahiri, enquanto autotradutora de Dove mi Trovo (2018) - obra escrita pela autora em italiano e traduzida por ela para a língua inglesa, cuja publicação foi intitulada Whereabouts (2021a). A discussão destaca essa particularidade que recobre tal prática de Lahiri, isto é, o fato de que a referida autotradução deu-se a partir da língua italiana para a língua inglesa, embora a autora, sendo inglesa, de descendência indiana e naturalizada norte-americana, tenha durante muitos anos escrito exclusivamente em inglês. Considerando essa configuração inversa e, com base nas próprias reflexões de Lahiri sobre autotradução, este artigo objetiva compreender como a autora percebe a sua prática.

PALAVRAS-CHAVE:
autotradução; Dove mi Trovo; Jhumpa Larihi; Whereabouts

ABSTRACT

This article discusses about self-translation, focusing on the writer Jhumpa Lahiri, as the self-translator of Dove mi Trovo (2018) - a work written by the author in Italian and translated by herself into English, whose publication was entitled Whereabouts (2021a). The discussion highlights this particularity that covers this practice of Lahiri, that is, the fact that the referred self-translation took place from the Italian language to the English language, although the author, being English, of Indian descent and naturalized North American, has for many years written exclusively in English. Considering this inverse configuration and based on Lahiri's own reflections on self-translation, this article aims to understand how the author perceives her practice.

KEYWORDS:
Dove mi Trovo; Jhumpa Lahiri; selftranslation; Whereabouts

Palavras iniciais

O ato brutal de autotradução liberta-se, de uma vez por todas, do falso mito do texto definitivo. Foi só me autotraduzindo que finalmente entendi o que Valéry quis dizer quando disse que uma obra de arte nunca se termina, apenas se abandona (LAHIRI, 2021LAHIRI, Jhumpa. Where I find myself: on Selftranslation. Words Without Borders, 27 abr. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www.wordswithoutborders.org/article/april-2021-where-i-find-myself-on-self-translation-jhumpa-lahiri . Acesso em: 10 dez. 2021.
https://www.wordswithoutborders.org/arti...
b, tradução nossa).1 1 A autoria das traduções apresentadas neste texto é conferida à sua autora. Do original: “The brutal act of self-translation frees oneself, once and for all, from the false myth of the definitive text. It was only by self-translating that I finally understood what Valéry meant when he said that a work of art was never finished, only abandoned” (LAHIRI, 2021b).

O ato da autotradução, caracterizado como “brutal” por Jhumpa Lahiri na epígrafe acima, teve sua primeira referência conceitual datada da década de 1970, atribuída ao eslovaco Anton Popovič (1933-1984). No Dictionary for the Analysis of Literary Translation2 2 Dicionário para a análise da tradução literária (POPOVIČ, 1976, tradução nossa). , esse destacado estudioso da tarefa tradutória e da Literatura Comparada descreve a autotradução como “a tradução de uma obra original em outra língua pelo próprio autor” (POPOVIČ, 1976POPOVIČ, Anton. Dictionary for the analysis of literary translation. Canada: University of Alberta, 1976. 37 p., p. 19, tradução nossa).3 3 Do original: “[…] the translation of an original work into another language by the author himself” (POPOVIČ, 1976, p. 10).

Também definida por Rainier Grutman (1998GRUTMAN, Rainier. Auto-translation. In: BAKER, Mona; SALDANHA, Gabriela (ed.). Routledge encyclopedia of translation studies. Londres: Routledge, 1998. p. 17-20.) como a ação realizada por um autor na qual ele se empenha em traduzir sua própria escrita, ou ainda como o resultado desse empreendimento, a autotradução foi experimentada por grandes personalidades da literatura no passado - como é o caso do dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906-1989), do poeta russo Joseph Brodsky (1940-1996) e do escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), para citar alguns. E, na atualidade, essa prática continua recorrente.

No entanto, ela parece ainda carecer de investigação, pois nomes como os desses autores estiveram sempre presentes em estudos a partir de pesquisas que exploravam a autotradução enquanto prática bilíngue, compreendidas como atividade rara, majorando, assim, o “capital simbólico do tradutor que a pratica”, sendo que tais estudos “não se concentravam sobre as características da atividade em si”, segundo as palavras de Maria Alice Gonçalves Antunes (2021ANTUNES, Maria Alice Gonçalves. Autotradução: breve histórico, motivo, consequências e questões. In: SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade (org.). Estudos da tradução em foco: Jornadas Casa Dirce/UERJ. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2021. p. 42-61., p. 44).

Dito de outro modo, durante muito tempo, no campo da pesquisa, o estudo sobre a autotradução não recebeu a mesma atenção recebida pelo autor bilíngue, sendo que é recente a mudança nessa direção, haja vista as importantes pesquisas que têm sido realizadas envolvendo essa tarefa, como conclui Antunes (apud Salgueiro, 2021SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade (org.). Estudos da tradução em foco: jornadas Casa Dirce/UERJ. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2021. 100 p., p. 44). Essas pesquisas são relevantes, pois cumprem o papel de dissipar completamente “o mal-entendido que aponta para a pouca frequência da atividade”, o que evidencia uma mudança “na orientação da pesquisa sobre a autotradução”, encaminhando-a, assim, para o enfoque teórico (ANTUNES, 2021ANTUNES, Maria Alice Gonçalves. Autotradução: breve histórico, motivo, consequências e questões. In: SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade (org.). Estudos da tradução em foco: Jornadas Casa Dirce/UERJ. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2021. p. 42-61., p. 44).

Nesse prisma, acreditamos que entender o processo de autotradução a partir dos posicionamentos e autoimagens de profissionais da área em questão pode contribuir de modo significativo para que, por exemplo, o enfoque mencionado por Antunes (2021ANTUNES, Maria Alice Gonçalves. Autotradução: breve histórico, motivo, consequências e questões. In: SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade (org.). Estudos da tradução em foco: Jornadas Casa Dirce/UERJ. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2021. p. 42-61.) seja fomentado. Por isso, neste debate, trazemos à cena a escritora Jhumpa LahiriLAHIRI, Jhumpa. Dove mi Trovo. Milan: Ugo Guanda Editore milão, 2018. 180 p., enquanto praticante da autotradução de Dove mi Trovo4 4 Onde eu me encontro - obra ainda sem tradução no Brasil. (2018) - obra escrita pela autora em língua italiana - para a língua inglesa, cuja publicação foi intitulada Whereabouts (2021aLAHIRI, Jhumpa. Whereabouts: Jhumpa Lahiri. London: Bloomsbury, 2021a. 176 p.).5 5 Paradeiro.

Com base nisso, destacamos, inicialmente, a particularidade que reveste essa prática de Lahiri, isto é, partimos do fato de que a referida autotradução deu-se da língua italiana para a língua inglesa, como registrado acima, embora a autora, sendo inglesa, de descendência indiana e naturalizada norte-americana, tenha durante muitos anos escrito exclusivamente em língua inglesa. Tomamos, então, esse caminho inicial para apresentar certos enfrentamentos experienciados por Lahiri decorrentes dessa sua autotradução, a fim de entender como esse processo se desenvolveu, tendo como norte as próprias reflexões de Lahiri a respeito do assunto em pauta.

Para integrar o corpo teórico, estão presentes nesta discussão estudiosos da autotradução, tais como Popovič (1976POPOVIČ, Anton. Dictionary for the analysis of literary translation. Canada: University of Alberta, 1976. 37 p.), Grutman (1998GRUTMAN, Rainier. Auto-translation. In: BAKER, Mona; SALDANHA, Gabriela (ed.). Routledge encyclopedia of translation studies. Londres: Routledge, 1998. p. 17-20.) e Antunes (2021ANTUNES, Maria Alice Gonçalves. Autotradução: breve histórico, motivo, consequências e questões. In: SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade (org.). Estudos da tradução em foco: Jornadas Casa Dirce/UERJ. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2021. p. 42-61.), para citar alguns.

Lahiri e sua autotradução: Dov'è lei? 6 6 Onde ela se encontra?

Na esfera literária, importantes nomes de diferentes culturas se destacaram pelo seu empenho na autotradução, sendo que muitos se envolveram nessa prática tendo como ponto de partida a sua primeira língua. Vladimir Vladimirovich Nabokov (1899-1977) é uma referência nesse sentido, pois traduziu suas obras do russo para a língua inglesa. Joseph Brodsky (1940-1996) é outro escritor russo que trilhou caminho semelhante ao de Nabokov. Além disso, ambos os escritores também traduziram suas obras escritas em inglês para o russo, uma vez que eles se dedicaram à escrita nesses dois idiomas.

Aqui é inevitável retomarmos ao nome de um dos mais prestigiados e influentes escritores do século XX, Samuel Beckett (1906-1989), mencionado em nossa introdução. A obra de Beckett (1986BECKETT, Samuel. Malone morre. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Brasiliense, 1986. 160 p., 2014BECKETT, Samuel. Molloy. Tradução de Ana Helena Souza. São Paulo: Brasiliense, 2014. 264 p.) compreende, além de textos em irlandês, sua primeira língua, textos escritos em francês. O autor de Molloy (1951) e Malone Morre(1951) também assumiu a tradução de seus próprios trabalhos tanto a partir da sua primeira língua para o francês quanto do francês para o inglês, performando essa prática de modo similar ao de Nabokov e Brodsky, isto é, atuando na autotradução em duas direções linguísticas.

Destacamos também, dentre tantos autores de dupla nacionalidade literária, Juan Rodolfo Wilcock (1919-1978), escritor nascido em Buenos Aires, Argentina - destacado por seus trabalhos no campo da dramaturgia, da poesia e da tradução, dentre outros -, escreveu parte expressiva de sua obra em língua italiana, ocupando-se, na sequência, da tarefa de traduzi-la para o espanhol.

É nesse contexto relacionado ao idioma italiano e à autotradução que se encontra a autora de Dove me Trovo (2018), Jhumpa Lahiri. Esse romance foi traduzido pela própria autora para a língua inglesa, sua primeira língua, recebendo o título de Whereabouts (2021aLAHIRI, Jhumpa. Whereabouts: Jhumpa Lahiri. London: Bloomsbury, 2021a. 176 p.). Trata-se de uma narrativa protagonizada por uma mulher solitária, de aproximadamente quarenta anos, que enfrenta problemas de identificação com o lugar onde vive. Como desdobramento disso, a protagonista nega-se a criar laços com as pessoas de seu convívio. Em seus trânsitos pelos diversos locais da cidade, tais como biblioteca, museus, cafés, salas de espera, a protagonista - semelhante ao flêneur benjaminiano, que percorre as ruas parisienses - vai revelando o esforço intelectual de Lahiri. E, dessa maneira, é possível notarmos, mais uma vez, a atenção da autora a questões associadas à identidade cultural.

Lahiri, conhecida por suas escritas que trazem temáticas ligadas, de modo especial, à identidade cultural, deslocamento/migração, choque cultural, havia se recusado à autotradução de sua primeira obra em italiano, In Altre Parole7 7 Em outras palavras - obra sem tradução no Brasil, sendo que seus excertos, em italiano, mencionados neste texto se referem à sua publicação bilingue (italiano/inglês), de 2017. (2015LAHIRI, Jhumpa. In altre parole. Milano: Editora Guanda, 2015. 144 p.), trabalho que reúne uma série de ensaios escritos durante sua estada por dois anos em Roma. Nesses ensaios, Lahiri relata, sobretudo, seu percurso rumo à aprendizagem da língua italiana e expõe algumas de suas experiências vividas na Itália, compartilhando com o leitor situações de diversas ordens, decorridas de seu convívio com essa, então, nova cultura para ela.

Mediante a possibilidade de traduzir In Altre Parole para o inglês, Lahiri acenou negativamente. Ao negar-se à prática da autotradução desses ensaios, a autora estava relutante em movimentar-se entre o inglês e o italiano naquela época em que, para ela, tudo parecia instável em Veneza, “como as casas que pareciam flutuar”8 8 Do original: “[…] Le case sembrano galleggiare”. (LAHIRI, 2017, p. 98). (LAHIRI, 2017LAHIRI, Jhumpa. In other words. Tradução de Ann Goldstein. New York: Vintage Books, 2017. 156 p., p. 13-14, tradução nossa). E, recorrendo a uma analogia de cunho geográfico, ela admitiu que a desorientação que sentia nessa cidade era semelhante a que experimentava quando escrevia em italiano (LAHIRI, 2017LAHIRI, Jhumpa. In other words. Tradução de Ann Goldstein. New York: Vintage Books, 2017. 156 p.). Sobre esse assunto, Lahiri ainda destaca que “se tivesse traduzido esse livro, a tentação teria sido melhorá-lo, torná-lo mais forte por meio de sua língua mais avançada, o inglês” (LAHIRI, 2017LAHIRI, Jhumpa. In other words. Tradução de Ann Goldstein. New York: Vintage Books, 2017. 156 p., p. 13-14, tradução nossa).9 9 Do original: “My impulse at the time was to protect my Italian. Returning to English was disorienting, frustrating, also discouraging. […] In addition, had I translated this book, the temptation would have been to improve it, to make it stronger by means of my stronger language”. (LAHIRI, 2017, p. 13-14). (A nota introdutória de In Altre Parole, escrita por sua autora, é apresentada apenas em Língua Inglesa).

Em certa medida, esse seu posicionamento é reverberado em “Lo Scambio” (LAHIRI, 2017LAHIRI, Jhumpa. In other words. Tradução de Ann Goldstein. New York: Vintage Books, 2017. 156 p.)10 10 “A troca” (LAHIRI, 2017, p. 66-80). , ensaio integrante de In Altre Parole. Nesse texto, Lahiri volta-se à história sobre uma tradutora que, sempre que lança o olhar para seu passado, não aprecia a imagem vislumbrada sobre si, pois a considera imperfeita. Em razão disso, a tradutora expressa o desejo de produzir uma outra versão de si “do mesmo modo que ela poderia transformar um texto de uma língua para outra11 11 Do original: “[...] nello stesso modo in cui poteva transformare un testo de una lingua a un’altra”. (LAHIRI, 2017, p. 66). ” (LAHIRI, 2017LAHIRI, Jhumpa. In other words. Tradução de Ann Goldstein. New York: Vintage Books, 2017. 156 p., p. 66, tradução nossa).

Diante disso, parece inevitável pensarmos que a possibilidade de uma retomada textual a partir da autotradução impulsione ao caminho da reescrita, como um resultado do esforço tradutório que, inegavelmente, é acompanhado pela recriação, de forma similar, por exemplo, ao que sustenta André Lefevere (2006LEFEVERE, André. Translation Rewriting, and the Manipulation of Literary Fame. London: Routledge, 2006. 134 p.) ao se reportar ao ato da tradução literária.

Nessa linha, em L’épreuve de l’étranger - Culture et traduction dans l'Allemagne romantique12 12 A prova do estrangeiro - Cultura e tradução na Alemanha romântica. , Antoine Berman (1984BERMAN, Antoine. L’épreuve de l’étranger: culture et traduction dans i’allemagne romantique. Paris: Gallimard, 1984. 322 p.), imprimindo valor ao ato da tradução, defende que esse tradutor profissional se percebe como um escritor, quando na verdade ele é um reescritor. Por extensão, entendemos que é o que ocorre com quem se autotraduz.

Por esse ângulo, apesar de diversas referências de Lahiri (2017LAHIRI, Jhumpa. In other words. Tradução de Ann Goldstein. New York: Vintage Books, 2017. 156 p.) ao seu desconforto, naquele momento, em relação aos aspectos linguísticos de sua escrita em italiano - por estar em um estágio inicial de aprendizagem desse idioma, assim como de sua imersão cultural na Itália -, podemos inferir que o que está em jogo nesse processo vai além desses aspectos.

Conjecturamos que a escritora teme pela direção que poderia dar ao seu texto mediante uma possível autotradução, justamente por ter consciência de que traduzir é transformar, é reescrever, é recriar. Devido a isso, ela deixa transparecer que compreende que nesta prática específica está envolvida uma língua que lhe favorece uma gama maior de possibilidades, o inglês, comparada ao italiano - idioma em fase de aprendizagem - e que ela pode acessá-la com eficiência por ser a sua primeira língua. Nesse caso, a tradução de In Altre Parole, realizada por Lahiri, resultaria em uma nova versão do texto de partida.

Se Lahiri declinou dessa tarefa com In Altre Parole, o mesmo não ocorreu com Dove me Trovo. Inicialmente, um cenário de dúvida levou Lahiri a questionar-se quanto à sua capacidade de realizar essa tradução do italiano para o inglês, conforme podemos verificar no excerto abaixo:

Tendo escrito meu romance Dove mi trovo em italiano, fui a primeira a duvidar que ele pudesse se transformar em inglês. Naturalmente, ele poderia ser traduzido; qualquer texto pode, com maior ou menor grau de sucesso. Não fiquei apreensiva quando os tradutores começaram a transformar o romance em outras línguas - em espanhol ou alemão ou holandês, por exemplo. Em vez disso, a perspectiva me gratificou. Mas quando chegou a hora de reproduzir este livro em particular, concebido e escrito em italiano, para a língua que eu conhecia melhor - a língua da qual eu tinha me afastado enfaticamente [o inglês] para que nascesse em primeiro lugar - eu estava em dúvida. Enquanto escrevia Dove mi Trovo, a ideia de ser algo diferente de um texto italiano parecia irrelevante. Ao escrever, é preciso manter os olhos na estrada, em frente, e não contemplar ou antecipar a condução em outra direção. Os perigos, tanto para o escritor quanto para o motorista, são óbvios. E, no entanto, ainda enquanto escrevia, sentia-me ofuscada por duas questões: 1) quando o texto seria traduzido para o inglês? e 2) quem o traduziria? Essas questões surgiram do fato de que eu também sou, e fui por muitos anos exclusivamente, uma escritora de língua inglesa. E assim, se eu optar por escrever em italiano, a versão em inglês imediatamente se destaca, como um bulbo que brota cedo demais no meio do inverno. Tudo o que escrevo em italiano nasce com o potencial simultâneo - ou talvez destino seja a melhor palavra aqui - de existir em inglês. Outra imagem, talvez chocante, vem à mente: a do túmulo de um cônjuge sobrevivente, demarcado e esperando. A responsabilidade da tradução é tão grave e tão precária quanto a de um cirurgião treinado para transplantar órgãos ou redirecionar o fluxo sanguíneo para nossos corações, e hesitei longamente sobre a questão de quem faria a cirurgia (LAHIRI, 2021LAHIRI, Jhumpa. Where I find myself: on Selftranslation. Words Without Borders, 27 abr. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www.wordswithoutborders.org/article/april-2021-where-i-find-myself-on-self-translation-jhumpa-lahiri . Acesso em: 10 dez. 2021.
https://www.wordswithoutborders.org/arti...
b, tradução nossa).13 13 Do original: “Having written my novel Dove mi trovo in Italian, I was the first to doubt that it could transform into English. Naturally it could be translated; any text can, to greater or lesser degrees of success. I was not apprehensive when translators began turning the novel into other languages - into Spanish or German or Dutch, for example. Rather, the prospect gratified me. But when it came to replicating this particular book, conceived and written in Italian, into the language that I knew best - language I had emphatically stepped away from in order for it to be born in the first place - I was of two minds. As I was writing Dove mi trovo, the thought of it being anything other than an Italian text felt irrelevant. While writing, one must keep one’s eyes on the road, straight ahead, and not contemplate or anticipate driving down another. The dangers, for the writer as for the driver, are obvious. And yet, even as I was writing, I felt shadowed by two questions: 1) when would the text be turned into English and 2) who would translate it? These questions rose from the fact that I am also, and was for many years exclusively, a writer in English. And so, if I choose to write in Italian, the English version immediately rears its head, like a bulb that sprouts too early in mid-winter. Everything I write in Italian is born with the simultaneous potential - or perhaps destiny is the better word here - of existing in English. Another image, perhaps jarring, comes to mind: that of the burial plot of a surviving spouse, demarcated and waiting. The responsibility of translation is as grave and as precarious as that of a surgeon who is trained to transplant organs, or to redirect the blood flow to our hearts, and I wavered at length over the question of who would perform the surgery”. (LAHIRI, 2021b).

Como observa a autora, para o escritor que toma a decisão de traduzir a sua própria obra, o perigo é óbvio, pois em meio a esse processo haverá a “tentação”, a oportunidade de o escritor retomar seu texto. Isso pode ocorrer, por várias razões, como, por exemplo, quando o autor tem a intenção de implementar melhorias em seu texto.

Diante disso, tanto a forma quanto o conteúdo do texto fonte são expostos a possíveis mudanças. Logo, como menciona Antoni Marí (2002MARÍ, Antoni. La autotraducción: entre fidelidad y licencia. Quimera, v. 210, p. 15-16, 2002., p. 16), “autotradução é uma oportunidade de avaliar e criticar o texto fonte com rigor e precisão, de maneira que seja permitido e exigido que o texto venha a ser revisitado novamente”. Ou, como descreve Lahiri, “a autotradução oferece um segundo ato para um livro, mas, [...], esse segundo ato diz respeito menos à versão traduzida do que ao original, que agora é reajustado e realinhado graças ao processo de desmontagem e remontagem” (LAHIRI, 2021LAHIRI, Jhumpa. Where I find myself: on Selftranslation. Words Without Borders, 27 abr. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www.wordswithoutborders.org/article/april-2021-where-i-find-myself-on-self-translation-jhumpa-lahiri . Acesso em: 10 dez. 2021.
https://www.wordswithoutborders.org/arti...
b, tradução nossa).14 14 Do original: “Self-translation affords a second act for a book, but in my opinion, this second act pertains less to the translated version than to the original, which is now readjusted and realigned thanks to the process of being dismantled and reassembled”. (LAHIRI, 2021b).

À vista disso, não é raro que autotradutores se deparem com sentimentos os mais variados, como a dúvida, a desorientação, o medo, a ansiedade, para citar alguns. Grutman (2018GRUTMAN, Rainier. Jhumpa Lahiri and Amara Lakhous: resisting self-translation in Rome. Testo & Senso, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/340493086_Resisting_self-translation_Jhumpa_Lahiri_and_Amara_Lakhous . Acesso em: 10 fev. 2021.
https://www.researchgate.net/publication...
), ao discutir esse ponto, cita o caso do acadêmico, romancista e tradutor Raymond Federman (1928-2009), reconhecido também por seus estudos sobre Samuel Beckett. Destacando uma passagem em que Federman registra apreensão, sentimento de incompletude diante de seu trabalho de autotradução, Grutman argumenta que:

O 'medo' e a 'apreensão' que ele menciona estão ligados a outro traço da autotradução, a saber, sua tendência (que ela compartilha com a tradução tout court) de revelar, desnudar, até mesmo expor 'a pobreza, a semântica, mas também a pobreza metafórica de certas palavras na outra língua’ (GRUTMAN, 2018GRUTMAN, Rainier. Jhumpa Lahiri and Amara Lakhous: resisting self-translation in Rome. Testo & Senso, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/340493086_Resisting_self-translation_Jhumpa_Lahiri_and_Amara_Lakhous . Acesso em: 10 fev. 2021.
https://www.researchgate.net/publication...
, p. 2, tradução nossa).15 15 Do original: “The ‘fear’ and ‘apprehension’ he mentions are linked to another trait of selftranslation, namely its tendency (which it shares with translation tout court) to reveal, lay bare, even expose ‘the poverty, the semantic but also the metaphorical poverty of certain words in the other language’ (FEDERMAN, 1993, p. 80). (GRUTMAN, 2018, p. 2).

Ademais, diríamos que esse processo expõe o escritor frente a possíveis falhas, frente a ele próprio, enquanto ser imperfeito, desencadeando sofrimentos, movimentos cambiantes, os quais impulsionam indivíduos ora para uma direção, ora para outra. Na perspectiva da tradução, esses movimentos podem ser retratados, por exemplo, quando a atenção, o cuidado do autotradutor recai ora sob seu texto de partida, ora sob seu texto de chegada/ autotradução.

É provável que conflitos experienciados pelo autotradutor, ao se perceber nesse entrelugar - entre a tradução e a autotradução de seu texto - causem-lhe sensações paradoxais. Em certa medida, podemos cogitar que essas sensações se assemelham àquelas vivenciadas pela protagonista de “Il Colpo di Fulmine” (LAHIRI, 2017LAHIRI, Jhumpa. In other words. Tradução de Ann Goldstein. New York: Vintage Books, 2017. 156 p., p. 14)16 16 “Amor à primeira vista”. (LAHIRI, 2017, p. 12) - um dos ensaios que compõe In Altre Parole (2015). , que ao relatar sobre a primavera, confessa sentir-se desorientada sob a nova luz que emana nessa época, atribuindo o seu sofrimento a esta estação de luz. Em outras palavras, o contraponto, nesta passagem, é estabelecido quando se detecta que a luz é tomada em sentido oposto ao que lhe é comumente relacionado, isto é, em um sentido afastado da ideia de orientação, sendo que, no lugar disso, a luz é associada à sensação de desorientação.

A percepção de Lahiri, exibida a seguir, aponta para este horizonte em que sentimentos paradoxais implicados no ato de autotraduzir se manifestam, vejamos:

Ao traduzir a si mesmo, cada falha ou fraqueza no texto anterior torna-se imediata e dolorosamente aparente. Mantendo minhas metáforas médicas, eu diria que a autotradução é como um desses corantes radioativos que permitem aos médicos olhar através de nossa pele para localizar danos na cartilagem, bloqueios infelizes e outros estados de imperfeição. [...]. A autotradução é um retrocesso e um movimento para frente desconcertante e paradoxal ao mesmo tempo. Há uma tensão contínua entre o impulso de seguir em frente minado por uma estranha força gravitacional que o retém. Sente-se silenciado no próprio ato de falar (LAHIRI, 2021LAHIRI, Jhumpa. Where I find myself: on Selftranslation. Words Without Borders, 27 abr. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www.wordswithoutborders.org/article/april-2021-where-i-find-myself-on-self-translation-jhumpa-lahiri . Acesso em: 10 dez. 2021.
https://www.wordswithoutborders.org/arti...
b, tradução nossa).17 17 Do original: “[…] the second version of the book was now generating a third: a revised Italian text that was stemming from my self-translation. When translating oneself, each and every flaw or weakness in the former text becomes immediately and painfully apparent. Keeping to my medical metaphors, I would say that self-translation is like one of those radioactive dyes that enable doctors to look through our skin to locate damage in the cartilage, unfortunate blockages, and other states of imperfection. […] Self-translation is a bewildering, paradoxical going backward and moving forward at once. There is ongoing tension between the impulse to plow ahead undermined by a strange gravitational force that holds you back. One feels silenced in the very act of speaking”. (LAHIRI, 2021b).

Seguindo esse viés, é interessante observar a perspectiva que se coloca em oposição a essas reações mencionadas por Lahiri e Federman. Como nos lembra Grutman (2018LAHIRI, Jhumpa. Dove mi Trovo. Milan: Ugo Guanda Editore milão, 2018. 180 p.), há escritores bilíngues que se afastam do perfil temerário em relação à sua autotradução, sendo Nancy Huston (1953-), na França, e André Brink (1935-2015), na África do Sul, exemplos de escritores bilingues que percebem essa tarefa a partir de um ponto de vista positivo, pois a empregam como uma espécie de feedback sobre seus trabalhos.

Por certo, nesse domínio, aspectos considerados positivos podem ser entendidos como aspectos motivadores, propulsores dessa prática. E, sob essa ótica, podemos citar o caso de autotradução realizada em duas regiões da Espanha. Antunes (2009ANTUNES, Maria Alice Gonçalves. O respeito pelo original: João Ubaldo Ribeiro e a autotradução. São Paulo: Annablume, 2009. 276 p.apud SANTOYO, 2002) menciona que nas regiões da Catalunha e da Galícia, onde o catalão e o galego são, respectivamente, os idiomas oficiais, há ainda uma segunda língua, empregada pela maioria da população. Em razão disso, a autotradução tem sido prática bastante recorrente em sociedades multilíngues como essas, motivada por fatores políticos e econômicos.

Nessa esteira, podemos considerar ainda a atual configuração mundial, cujas fronteiras têm se revelado cada vez mais porosas, devido a fatores como os citados acima, os que impelem, muitas vezes, grupos de pessoas a fluxos migratórios, ocasionando, assim, situações de exílio. Desse modo, é por meio da literatura e do emprego do idioma da nova pátria que, com certa frequência, vozes de exilados são propagadas, motivando não apenas escritas exofônicas18 18 Expressão que define o fenômeno por meio do qual escritores adotam uma determinada linguagem literária diferente da sua língua materna, empregando-a como veículo de expressão literária. (WRIGHT, 2013). , mas também autotraduções em sua sequência.

Dentro desse contexto, a título de ilustração, reportamo-nos ao caso de Amara Lakhous, exemplo mencionado por Grutman (2018GRUTMAN, Rainier. Jhumpa Lahiri and Amara Lakhous: resisting self-translation in Rome. Testo & Senso, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/340493086_Resisting_self-translation_Jhumpa_Lahiri_and_Amara_Lakhous . Acesso em: 10 fev. 2021.
https://www.researchgate.net/publication...
) envolvendo processo de escrita e deslocamentos. Lakhous é um escritor argelino que aos seus vinte e cinco anos, no início da década de 1990, estabeleceu-se em Roma devido à guerra civil deflagrada entre o governo argelino e a Frente Islâmica de Salvação (GRUTMAN, 2018GRUTMAN, Rainier. Jhumpa Lahiri and Amara Lakhous: resisting self-translation in Rome. Testo & Senso, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/340493086_Resisting_self-translation_Jhumpa_Lahiri_and_Amara_Lakhous . Acesso em: 10 fev. 2021.
https://www.researchgate.net/publication...
). Ele, que era fluente em berbere - falado no norte da África - árabe e francês, ao chegar à Itália logo tornou-se fluente também em italiano, publicando, em 2006, uma autotradução, do árabe para o italiano, de Scontro di civiltà per un ascensore a Piazza Vittorio19 19 Choque de civilizações em um elevador na Piazza Vittorio. (GRUTMAN, 2018GRUTMAN, Rainier. Jhumpa Lahiri and Amara Lakhous: resisting self-translation in Rome. Testo & Senso, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/340493086_Resisting_self-translation_Jhumpa_Lahiri_and_Amara_Lakhous . Acesso em: 10 fev. 2021.
https://www.researchgate.net/publication...
). A narrativa se passa em Roma, abordando temáticas bastante comuns a escritores exilados, como identidade racial e efeitos da marginalização social.

Deslocamentos e exílio também fazem parte do histórico de vida de Lahiri, visto que a autora possui descendência indiana, nasceu na Inglaterra, reside nos Estados Unidos e fixou residência temporária na Itália em sua vida adulta. Isso está revelado em sua literatura, pois, conforme descrito anteriormente, a migração e seus desdobramentos estão evidenciados na maioria de suas obras.

Contudo, a relação de Lahiri com deslocamento, assim como com exílio é distinta à experimentada por Lakhous. Enquanto, para ele, o exílio foi uma condição de sobrevivência, para ela, em se tratando de seu deslocamento para Roma, foi uma opção revestida de afeto pela cultura italiana, uma jornada ao encontro de uma cultura que a autora já admirava. Ratificando essa afirmativa, em seu ensaio “Secondo Esilio20 20 “Segundo exílio”. ”, ela reflete acerca de seu exílio, vivenciado após retornar de Roma aos Estados Unidos (LAHIRI, 2017LAHIRI, Jhumpa. In other words. Tradução de Ann Goldstein. New York: Vintage Books, 2017. 156 p.). No ensaio, podemos conferir o emprego de uma “metáfora maternal” - como ela denomina -, aludindo à relação entre o que a autora sentiu ao deixar Roma e a primeira vez que precisou se separar de seus filhos (LAHIRI, 2017LAHIRI, Jhumpa. In other words. Tradução de Ann Goldstein. New York: Vintage Books, 2017. 156 p.). Em ambas as circunstâncias, de acordo com Lahiri (2017LAHIRI, Jhumpa. In other words. Tradução de Ann Goldstein. New York: Vintage Books, 2017. 156 p.), seu sentimento foi de grande ansiedade e culpa.

A partir das ilustrações expostas nesta discussão, apesar de não esgotarem os aspectos positivos/motivadores que comumente provocam a autotradução, fica patente que há um leque de possibilidades atreladas às razões que induzem escritores a se autotraduzirem.

Independentemente das razões que cercam o trabalho de autotradução, o fato é que o processo e o resultado inerentes a essa ação não se configuram como simples, a força da linguagem se impõe mediante as oportunidades que vão surgindo na retomada da palavra e da leitura. Face a isso, há, por assim dizer, certa fragilidade rondando o objeto que é posto à prova em um estágio de autotradução. Mas se engana quem entende que a fragilidade exista exclusivamente nesse domínio, pois ela persegue, de forma correlata, o agente desse processo, como observa Lahiri:

A coisa profundamente desestabilizadora sobre a autotradução é que o livro ameaça se desfazer, precipitar-se em direção à aniquilação potencial. Parece se aniquilar. Ou estou aniquilando-o? Nenhum texto deve sustentar esse nível de escrutínio; em um certo ponto, ele cede. É a leitura e o escrutínio, a insistente indagação implícita no ato de escrever e traduzir, que inevitavelmente empurra o texto. [...] Esta tarefa não é para os fracos de coração. Isso força você a duvidar da validade de cada palavra na página. Ele lança seu livro - já publicado, entre capas, vendido nas prateleiras das lojas - em um estado revisado de profunda incerteza. É uma operação que se sente condenada desde o início, mesmo contrária à natureza, como as experiências de Victor Frankenstein (LAHIRI, 2021LAHIRI, Jhumpa. Where I find myself: on Selftranslation. Words Without Borders, 27 abr. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www.wordswithoutborders.org/article/april-2021-where-i-find-myself-on-self-translation-jhumpa-lahiri . Acesso em: 10 dez. 2021.
https://www.wordswithoutborders.org/arti...
b, tradução nossa).21 21 Do original: “The profoundly destabilizing thing about self-translation is that the book threatens to unravel, to hurtle toward potential annihilation. It seems to annihilate itself. Or am I annihilating it? No text should sustain that level of scrutiny; at a certain point, it cedes. It’s the reading and the scrutinizing, the insistent inquiry implicit in the act of writing and translating, that inevitably jostles the text. [...] This task is not for the faint of heart. It forces you to doubt the validity of every word on the page. It casts your book—already published, between covers, sold on shelves in stores—into a revised state of profound uncertainty. It is an operation that feels doomed from the start, even contrary to nature, like the experiments of Victor Frankenstein”. (LAHIRI, 2021b).

A menção ao personagem de Mary Shelley pode render mais do que a discussão acerca da condenação sugerida por Lahiri - ao traçar um paralelo entre texto autotraduzido e Victor. É possível conjecturarmos a relação da autotradução com a vida suscitada pela obra de Shelley, pois não esqueçamos que os experimentos de Victor visavam à imortalidade. Do ponto de vista teórico e prático, não é o que a tradução/autotradução permite, uma espécie de imortalidade ou, como diria Walter Benjamin (2018BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. In: BENJAMIN, Walter. Linguagem, tradução e literatura (filosofia, teoria e crítica). Tradição de João Barrento. São Paulo: Autêntica, 2018. p. 87-100., p. 89), a “sobrevida das obras de arte”?

É perceptível que Lahiri compactua dessa compreensão de que a tarefa da tradução está intimamente correlacionada à vida da obra quando ela alude que, “ao traduzir Dove mi trovo, ao escrevê-lo uma segunda vez em uma segunda língua e deixá-lo nascer, em grande parte intacto, uma segunda vez”, sentiu-se “mais próxima dele, duplamente ligada a ele” (LAHIRI, 2021LAHIRI, Jhumpa. Where I find myself: on Selftranslation. Words Without Borders, 27 abr. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www.wordswithoutborders.org/article/april-2021-where-i-find-myself-on-self-translation-jhumpa-lahiri . Acesso em: 10 dez. 2021.
https://www.wordswithoutborders.org/arti...
b). Admitir a possibilidade do “nascimento” do novo texto “em grande parte intacto” é, por outro viés, confirmar que em sua “nova vida” esse texto se apresenta transformado, renovado, pois, se há grande parte intacta, significa que uma parte - a parte residual do texto - sofreu alguma mudança. Seguindo a lógica benjaminiana, o texto de partida “transforma-se ao longo da sua sobrevida, que não poderia ter esse nome se não fosse uma transmutação e renovação do vivo” (BENJAMIN, 2018BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. In: BENJAMIN, Walter. Linguagem, tradução e literatura (filosofia, teoria e crítica). Tradição de João Barrento. São Paulo: Autêntica, 2018. p. 87-100., p. 91).

Com base nisso, é válido acrescentar que a autotradução - concebida como sobrevida/prolongamento - afeta diretamente na interação entre obra/escritor, pois, como atesta Lahiri, autotraduzir-se “significa prolongar o relacionamento do escritor com o livro que ele escreveu”, nessa dinâmica entre escritor e obra, entremeada pela autotradução, “o tempo se expande e o sol ainda brilha quando você espera que as coisas fiquem escuras. Esse excesso desorientador de luz do dia não parece natural, mas também é vantajoso, mágico” (LAHIRI, 2021LAHIRI, Jhumpa. Where I find myself: on Selftranslation. Words Without Borders, 27 abr. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www.wordswithoutborders.org/article/april-2021-where-i-find-myself-on-self-translation-jhumpa-lahiri . Acesso em: 10 dez. 2021.
https://www.wordswithoutborders.org/arti...
b).

Por fim, resta-nos dizer que é visível o tom poético que recobre as ponderações de Lahiri sobre a sua compreensão de autotradução destacadas neste texto. Seja por meio do emprego de metáforas ou de seu olhar sensível, essa escritora que se mostra múltipla, tal qual a sua identidade, uma vez que transita entre as funções de escrever, traduzir, autotraduzir e tecer autocríticas, tem nos instigado, cada vez mais, a propor novos estudos em torno de sua prática e de suas obras. Pretendemos seguir esta motivação.

REFERÊNCIAS

  • ANTUNES, Maria Alice Gonçalves. Autotradução: breve histórico, motivo, consequências e questões. In: SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade (org.). Estudos da tradução em foco: Jornadas Casa Dirce/UERJ. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2021. p. 42-61.
  • ANTUNES, Maria Alice Gonçalves. O respeito pelo original: João Ubaldo Ribeiro e a autotradução. São Paulo: Annablume, 2009. 276 p.
  • BECKETT, Samuel. Malone morre Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Brasiliense, 1986. 160 p.
  • BECKETT, Samuel. Molloy Tradução de Ana Helena Souza. São Paulo: Brasiliense, 2014. 264 p.
  • BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. In: BENJAMIN, Walter. Linguagem, tradução e literatura (filosofia, teoria e crítica) Tradição de João Barrento. São Paulo: Autêntica, 2018. p. 87-100.
  • BERMAN, Antoine. L’épreuve de l’étranger: culture et traduction dans i’allemagne romantique. Paris: Gallimard, 1984. 322 p.
  • GRUTMAN, Rainier. Auto-translation. In: BAKER, Mona; SALDANHA, Gabriela (ed.). Routledge encyclopedia of translation studies Londres: Routledge, 1998. p. 17-20.
  • GRUTMAN, Rainier. Jhumpa Lahiri and Amara Lakhous: resisting self-translation in Rome. Testo & Senso, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/340493086_Resisting_self-translation_Jhumpa_Lahiri_and_Amara_Lakhous Acesso em: 10 fev. 2021.
    » https://www.researchgate.net/publication/340493086_Resisting_self-translation_Jhumpa_Lahiri_and_Amara_Lakhous
  • LAHIRI, Jhumpa. Dove mi Trovo Milan: Ugo Guanda Editore milão, 2018. 180 p.
  • LAHIRI, Jhumpa. In altre parole Milano: Editora Guanda, 2015. 144 p.
  • LAHIRI, Jhumpa. In other words Tradução de Ann Goldstein. New York: Vintage Books, 2017. 156 p.
  • LAHIRI, Jhumpa. Whereabouts: Jhumpa Lahiri. London: Bloomsbury, 2021a. 176 p.
  • LAHIRI, Jhumpa. Where I find myself: on Selftranslation. Words Without Borders, 27 abr. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www.wordswithoutborders.org/article/april-2021-where-i-find-myself-on-self-translation-jhumpa-lahiri Acesso em: 10 dez. 2021.
    » https://www.wordswithoutborders.org/article/april-2021-where-i-find-myself-on-self-translation-jhumpa-lahiri
  • LEFEVERE, André. Translation Rewriting, and the Manipulation of Literary Fame London: Routledge, 2006. 134 p.
  • MARÍ, Antoni. La autotraducción: entre fidelidad y licencia. Quimera, v. 210, p. 15-16, 2002.
  • POPOVIČ, Anton. Dictionary for the analysis of literary translation Canada: University of Alberta, 1976. 37 p.
  • SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade (org.). Estudos da tradução em foco: jornadas Casa Dirce/UERJ. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2021. 100 p.
  • WRIGHT, Chantal. Yoko Tawada’s exophonic texts. In: TAWADA. Portrait of Tongue Ottawa: University of Ottawa Press, 2013. p. 1-21.
  • 1
    A autoria das traduções apresentadas neste texto é conferida à sua autora. Do original: “The brutal act of self-translation frees oneself, once and for all, from the false myth of the definitive text. It was only by self-translating that I finally understood what Valéry meant when he said that a work of art was never finished, only abandoned” (LAHIRI, 2021bLAHIRI, Jhumpa. Where I find myself: on Selftranslation. Words Without Borders, 27 abr. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www.wordswithoutborders.org/article/april-2021-where-i-find-myself-on-self-translation-jhumpa-lahiri . Acesso em: 10 dez. 2021.
    https://www.wordswithoutborders.org/arti...
    ).
  • 2
    Dicionário para a análise da tradução literária (POPOVIČ, 1976POPOVIČ, Anton. Dictionary for the analysis of literary translation. Canada: University of Alberta, 1976. 37 p., tradução nossa).
  • 3
    Do original: “[…] the translation of an original work into another language by the author himself” (POPOVIČ, 1976POPOVIČ, Anton. Dictionary for the analysis of literary translation. Canada: University of Alberta, 1976. 37 p., p. 10).
  • 4
    Onde eu me encontro - obra ainda sem tradução no Brasil.
  • 5
    Paradeiro.
  • 6
    Onde ela se encontra?
  • 7
    Em outras palavras - obra sem tradução no Brasil, sendo que seus excertos, em italiano, mencionados neste texto se referem à sua publicação bilingue (italiano/inglês), de 2017.
  • 8
    Do original: “[…] Le case sembrano galleggiare”. (LAHIRI, 2017LAHIRI, Jhumpa. In other words. Tradução de Ann Goldstein. New York: Vintage Books, 2017. 156 p., p. 98).
  • 9
    Do original: “My impulse at the time was to protect my Italian. Returning to English was disorienting, frustrating, also discouraging. […] In addition, had I translated this book, the temptation would have been to improve it, to make it stronger by means of my stronger language”. (LAHIRI, 2017LAHIRI, Jhumpa. In other words. Tradução de Ann Goldstein. New York: Vintage Books, 2017. 156 p., p. 13-14). (A nota introdutória de In Altre Parole, escrita por sua autora, é apresentada apenas em Língua Inglesa).
  • 10
    “A troca” (LAHIRI, 2017LAHIRI, Jhumpa. In other words. Tradução de Ann Goldstein. New York: Vintage Books, 2017. 156 p., p. 66-80).
  • 11
    Do original: “[...] nello stesso modo in cui poteva transformare un testo de una lingua a un’altra”. (LAHIRI, 2017LAHIRI, Jhumpa. In other words. Tradução de Ann Goldstein. New York: Vintage Books, 2017. 156 p., p. 66).
  • 12
    A prova do estrangeiro - Cultura e tradução na Alemanha romântica.
  • 13
    Do original: “Having written my novel Dove mi trovo in Italian, I was the first to doubt that it could transform into English. Naturally it could be translated; any text can, to greater or lesser degrees of success. I was not apprehensive when translators began turning the novel into other languages - into Spanish or German or Dutch, for example. Rather, the prospect gratified me. But when it came to replicating this particular book, conceived and written in Italian, into the language that I knew best - language I had emphatically stepped away from in order for it to be born in the first place - I was of two minds. As I was writing Dove mi trovo, the thought of it being anything other than an Italian text felt irrelevant. While writing, one must keep one’s eyes on the road, straight ahead, and not contemplate or anticipate driving down another. The dangers, for the writer as for the driver, are obvious. And yet, even as I was writing, I felt shadowed by two questions: 1) when would the text be turned into English and 2) who would translate it? These questions rose from the fact that I am also, and was for many years exclusively, a writer in English. And so, if I choose to write in Italian, the English version immediately rears its head, like a bulb that sprouts too early in mid-winter. Everything I write in Italian is born with the simultaneous potential - or perhaps destiny is the better word here - of existing in English. Another image, perhaps jarring, comes to mind: that of the burial plot of a surviving spouse, demarcated and waiting. The responsibility of translation is as grave and as precarious as that of a surgeon who is trained to transplant organs, or to redirect the blood flow to our hearts, and I wavered at length over the question of who would perform the surgery”. (LAHIRI, 2021bLAHIRI, Jhumpa. Where I find myself: on Selftranslation. Words Without Borders, 27 abr. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www.wordswithoutborders.org/article/april-2021-where-i-find-myself-on-self-translation-jhumpa-lahiri . Acesso em: 10 dez. 2021.
    https://www.wordswithoutborders.org/arti...
    ).
  • 14
    Do original: “Self-translation affords a second act for a book, but in my opinion, this second act pertains less to the translated version than to the original, which is now readjusted and realigned thanks to the process of being dismantled and reassembled”. (LAHIRI, 2021bLAHIRI, Jhumpa. Where I find myself: on Selftranslation. Words Without Borders, 27 abr. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www.wordswithoutborders.org/article/april-2021-where-i-find-myself-on-self-translation-jhumpa-lahiri . Acesso em: 10 dez. 2021.
    https://www.wordswithoutborders.org/arti...
    ).
  • 15
    Do original: “The ‘fear’ and ‘apprehension’ he mentions are linked to another trait of selftranslation, namely its tendency (which it shares with translation tout court) to reveal, lay bare, even expose ‘the poverty, the semantic but also the metaphorical poverty of certain words in the other language’ (FEDERMAN, 1993, p. 80). (GRUTMAN, 2018, p. 2).
  • 16
    “Amor à primeira vista”. (LAHIRI, 2017LAHIRI, Jhumpa. In other words. Tradução de Ann Goldstein. New York: Vintage Books, 2017. 156 p., p. 12) - um dos ensaios que compõe In Altre Parole (2015).
  • 17
    Do original: “[…] the second version of the book was now generating a third: a revised Italian text that was stemming from my self-translation. When translating oneself, each and every flaw or weakness in the former text becomes immediately and painfully apparent. Keeping to my medical metaphors, I would say that self-translation is like one of those radioactive dyes that enable doctors to look through our skin to locate damage in the cartilage, unfortunate blockages, and other states of imperfection. […] Self-translation is a bewildering, paradoxical going backward and moving forward at once. There is ongoing tension between the impulse to plow ahead undermined by a strange gravitational force that holds you back. One feels silenced in the very act of speaking”. (LAHIRI, 2021bLAHIRI, Jhumpa. Where I find myself: on Selftranslation. Words Without Borders, 27 abr. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www.wordswithoutborders.org/article/april-2021-where-i-find-myself-on-self-translation-jhumpa-lahiri . Acesso em: 10 dez. 2021.
    https://www.wordswithoutborders.org/arti...
    ).
  • 18
    Expressão que define o fenômeno por meio do qual escritores adotam uma determinada linguagem literária diferente da sua língua materna, empregando-a como veículo de expressão literária. (WRIGHT, 2013WRIGHT, Chantal. Yoko Tawada’s exophonic texts. In: TAWADA. Portrait of Tongue. Ottawa: University of Ottawa Press, 2013. p. 1-21.).
  • 19
    Choque de civilizações em um elevador na Piazza Vittorio.
  • 20
    “Segundo exílio”.
  • 21
    Do original: “The profoundly destabilizing thing about self-translation is that the book threatens to unravel, to hurtle toward potential annihilation. It seems to annihilate itself. Or am I annihilating it? No text should sustain that level of scrutiny; at a certain point, it cedes. It’s the reading and the scrutinizing, the insistent inquiry implicit in the act of writing and translating, that inevitably jostles the text. [...] This task is not for the faint of heart. It forces you to doubt the validity of every word on the page. It casts your book—already published, between covers, sold on shelves in stores—into a revised state of profound uncertainty. It is an operation that feels doomed from the start, even contrary to nature, like the experiments of Victor Frankenstein”. (LAHIRI, 2021bLAHIRI, Jhumpa. Where I find myself: on Selftranslation. Words Without Borders, 27 abr. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www.wordswithoutborders.org/article/april-2021-where-i-find-myself-on-self-translation-jhumpa-lahiri . Acesso em: 10 dez. 2021.
    https://www.wordswithoutborders.org/arti...
    ).

Editado por

Editor-chefe:

Rachel Esteves Lima

Editor executivo:

Regina Zilberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2022
  • Aceito
    15 Maio 2022
Associação Brasileira de Literatura Comparada Rua Barão de Jeremoabo, 147, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, BA, Brasil, CEP: 40170-115, Telefones: (+55 71) 3283-6207; (+55 71) 3283-6256, E-mail: abralic.revista@abralic.org.br - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: abralic.revista@abralic.org.br