Open-access O Auto da Compadecida: memória, identidade e imaginário em tradução intersemiótica

O auto da compadecida: memory, identity and imaginary in intersemiotic translation

RESUMO

O Auto da Compadecida, filme dirigido por Guel Arraes, em 2000, trata-se de uma tradução intersemiótica do texto dramático de Ariano Suassuna, produzido em 1955. O objetivo deste trabalho é discutir as articulações entre imaginário, memória e identidade no contexto da obra cinematográfica. Analisa-se, nesta proposta, a linguagem verbal, visual e sonora do filme, considerando suas conexões com as identidades e à memória, aspectos que nos remetem a complexas reflexões sobre instâncias expressivas, que se revelam como performances de uma cultura traduzidas em paisagens imaginárias. Metodologicamente, o texto fundamenta-se nos princípios dos estudos comparados de literatura, segundo os quais os textos artísticos, em permanente diálogo, são tratados em suas singularidades, não se considerando o texto de origem modelar ou paradigmático ao qual sua releitura se reportaria como fonte ou influência. Esta pesquisa bibliográfica, de matriz interdisciplinar, aporta-se na concepção de tradução intersemiótica de Julio Plaza. A abordagem da trilha sonora está embasada nos estudos de paisagem sonora de Murray Schaffer. Adota-se o método analítico para leitura crítica do material verbal, visual e sonoro, composto pela construção linguística, imagética e melódica, pelas técnicas de criação de imagens, pela instrumentação, pelo uso de efeitos de sonoridade e oralidade. Entre os resultados, destacamos a qualidade estética que se revela na forma híbrida como as linguagens se articulam de maneira a revelar o imaginário do sertão nordestino, como um lugar de memória cultural, a partir do qual se desnudam as identidades locais, regionais e nacionais.

PALAVRAS-CHAVE: tradução intersemiótica; memória; identidade; imaginário; Auto da Compadecida.

ABSTRACT

O Auto da Compadecida, a film directed by Guel Arraes, in 2000, is an intersemiotic translation of the dramatic text by Ariano Suassuna, produced in 1955. This research discuss the articulations between imaginary, memory and identity in the context of the cinematographic narrative. In this proposal, the verbal, visual and sound languages presented in the film is analyzed, considering the connections with important themes as identities and memory, aspects that lead us to complex reflections on expressive instances which are revealed as performances of a culture translated in imaginary landscapes. Methodologically, the text is based on the principles of Comparative Studies of Literature, according to which artistic texts, in permanent dialogue, are treated in their singularities. This bibliographical research, with an interdisciplinary mark, is based on Julio Plaza's conception of intersemiotic translation. The soundtrack's approach is defined by Murray Schaffer's soundscape studies. The analytical method is adopted for the critical reading of verbal, visual and sound material, consisting of linguistic, imagery and melodic construction, image creation techniques, instrumentation, and the use of sound effects and orality in the cinematographic narrative. Among the results, we enphasize the aesthetic quality that is revealed in the hybrid way in which the languages ​​are articulated in order to point out the images of the northeastern landscape as a place of cultural memory, from which local, regional and national identities are discovered.

KEYWORDS: intersemiotic translation; memory; identity; imaginary; Auto da Compadecida

Romancista, poeta, artista plástico, professor, ensaísta e um dos maiores dramaturgos de nossa terra, Ariano Suassuna carrega de sua infância o encanto pela cultura popular brasileira, construindo um patrimônio artístico-literário que alça voo transnacional, despertando interesse de leitores e estudiosos, sendo traduzido em diferentes cantos do mundo. Sua obra é marcada por uma rica e desafiadora história de vida. A perda do pai, aos três anos de idade, rendeu-lhe um “dever de memória” (RICOEUR, 2007) que lhe impulsionou a concretização de um projeto estético de significativa grandeza no qual inscreve muitas de suas experiências, entre as quais o contato com o circo e o grande apreço pela figura do palhaço; com os cantadores de rua e de feiras; com o teatro de mamulengos, com a literatura de cordel e os desafios de viola; com gêneros artísticos marcados pela improvisação.

O forte vínculo com a terra, o apreço pela simplicidade, o valor conferido à tradição oral, com vigorosa marca dos romanceiros, além do convívio com a tradição escrita, por meio de livros que lhe chegaram às mãos pela vasta biblioteca do pai, apreciador dos clássicos nacionais e estrangeiros, somados aos estudos de juventude, que lhe trouxeram a conhecimento García Lorca, o romanceiro ibérico, a figura dos pícaros, os autos e farsas vicentinos, foram descobertas que iluminaram e conduziram sua vocação artística para a arte da palavra, bem definida por ele: “Arte para mim não é mercado, é missão, vocação e festa” (SUASSUNA, 2014, n.p.).

Importante lembrar da idealização do Movimento Armorial, nos anos 1970, com o objetivo de perscrutar uma arte brasileira erudita assentada nas raízes populares da nossa cultura, em palavras de Suassuna, uma arte

[...] que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos ‘folhetos’ do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus ‘cantares’, e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados. (SUASSUNA, 1973, p.221 apud NOGUEIRA, 2002, p.112).

Essa relação visceral com a cultura brasileira, compreendida como uma forma viva de expressão de nossa identidade, compõe o imaginário denso com o qual conquista tantos e diferentes públicos. Sua arte guarda vozes e valores da cultura local, regional e nacional como um patrimônio simbólico a ser cultivado pela memória.

Embora avesso ao mundo das comunicações de massa e à indústria cultural, foi pela televisão e pelo cinema que sua obra Auto da Compadecida ganhou alcance nacional e internacional - o sertão ganhou o mundo e circulou por diferentes classes sociais.

Os processos de adaptação e tradução que envolvem O Auto da Compadecida são bastante diversificados, inclusive considerando diferentes plataformas, que possibilitaram não somente a circulação, mas também a leitura a partir de novas significações pela conformação de outras linguagens.

A peça teatral escrita por Ariano Suassuna em 1955 deu origem a diversas traduções audiovisuais, a saber: A Compadecida, de George Jonas (1969), Os Trapalhões no Auto da Compadecida, de Roberto Farias (1987), a microssérie televisiva O Auto da Compadecida, de Miguel Arraes (1999) e o filme OAuto da Compadecida, também de Miguel Arraes (2000). No caso das adaptações feitas por Arraes, o Auto se constitui um híbrido, uma vez que contemplou a televisão e, na sequência, o cinema. Essa rica variedade sinaliza a relevância de uma obra para o contexto cultural brasileiro e para outras culturas, uma vez que passou também por traduções, implicando o desafio da transposição da linguagem verbal (peça teatral) para a linguagem audiovisual (TV, cinema, mídias digitais) e evidenciando o quanto a sociedade é atravessada pelas narrativas, quaisquer que sejam elas (SILVA, 2021).

Em se tratando de mídia digital, cabe contextualizar, ainda que brevemente, o cenário de O Auto da Compadecida. No final da década de 1990, houve disseminação de conteúdos digitais que ganharam visibilidade por meio de um modo singular de propagação em rede, inclusive com reproduções em outros contextos. À vista disso, somam-se a estas adaptações e traduções os produtos originários das redes sociais digitais, que têm gerado sentidos e significados culturais. Compete lembrar que, ainda que essas transcriações de O Auto da Compadecida tenham estreito diálogo com o texto literário, elas ressignificaram a obra em termos de conteúdo e de evento estético e se adaptaram às plataformas que a acolhem. No YouTube, Facebook, Instagram e Pinterest, é possível encontrar diversas releituras de O Auto da Compadecida. O segundo autor, à sua maneira, interpreta a obra originária e a transforma, conforme seus critérios criativos, para a linguagem da plataforma escolhida (SILVA, 2021).

Importa-nos, neste artigo, analisar uma dessas traduções criativas, o filme O Auto da Compadecida, dirigido por Guel Arraes e lançado no ano 2000. Trata-se de uma produção que faz reverberar o imaginário de Suassuna, hibridizado com o imaginário do cineasta Guel Arraes, que recria não apenas suas memórias pessoais, mas também dá a ver uma memória coletiva que evoca aspectos de nossa identidade brasileira. Interessa-nos perscrutar as interfaces do imaginário com a memória e a identidade no contexto da obra cinematográfica. Para tanto, voltamos nosso olhar para a linguagem verbal, visual e sonora do filme, a fim de compreender como essas instâncias expressivas revelam paisagens culturais e imaginárias construídas artisticamente.

Do ponto de vista metodológico, o texto fundamenta-se nos princípios dos estudos comparados de literatura, segundo os quais os textos artísticos, em permanente diálogo, são tratados em suas singularidades, não se considerando o texto de origem modelar ou paradigmático, mas observando-se possibilidades prementes de novas e outras conformações. Adota-se o método analítico para leitura crítica do material visual, sonoro e verbal, composto pela construção imagética, melódica e linguística, pelas técnicas de criação de imagens, pela instrumentação, pelo uso de efeitos de sonoridade e oralidade.

Será observada a interconexão dos temas e das linguagens e suas semioses na obra fílmica analisando as formas como se apresenta a tradução criativa. O conceito de tradução com o qual operacionalizamos nossa leitura crítica fundamenta-se semioticamente nos estudos de Julio Plaza para quem

[...] a operação tradutora como trânsito criativo de linguagens nada tem a ver com a fidelidade, pois ela cria sua própria verdade e uma relação fortemente tramada entre seus diversos momentos, ou seja, entre passado-presente e futuro, lugar-tempo onde se processa o movimento de transformação de estruturas e eventos. (PLAZA, 2003, p.1).

Ao operar com o conceito de tradução intersemiótica, constata-se como o segundo texto ‘inventa’ o primeiro (CARVALHAL, 2006), dando-lhe novos significados.

Compreendemos que a inter-relação dos temas e das linguagens se conjugam na composição de uma obra que convida à percepção das identidades, à memória inconsciente da coletividade, ao imaginário do sertão e do Brasil.

O Auto Em-cena

As produções de um autor/diretor, seja ele escritor ou cineasta, possibilitam-nos um olhar cuidadoso para focalizar estratégias de construção dos textos, como suas vidas se inscrevem em suas criações e, certamente, como impactam no modo de quem se dispõe a analisá-las. Daí a importância de considerar as criações na relação não somente com suas biografias, mas principalmente com o contexto sócio, político, econômico e cultural dos autores e de suas obras.

É fato que tanto a visão literária de Suassuna, quanto a produção audiovisual de Guel Arraes reverberam em suas produções. A biografia destes autores e, também, a força narrativa de suas produções evidenciam traços de ruptura não somente cultural, mas social e política, que podem ser consideradas qualidades notáveis, uma vez que se afastam de fórmulas prontas.

Miguel Arraes de Alencar Filho, conhecido como Guel Arraes, é um cineasta pernambucano, diretor de televisão. Seu pai foi ex-presidente nacional do Partido Socialista Brasileiro (PSB), deposto e exilado após o Golpe de 64. À época, sua família migrou para a Argélia, o que possibilitou Guel estudar antropologia na França, onde se encantou pelo cinema. No período de sua juventude, entre os 18 e os 25 anos, dedicou-se aos estudos sobre cinema e tornou-se um autodidata no assunto, chegou a trabalhar como assistente de Jean-Luc Godard. Em sua trajetória, criou profícuos diálogos com Jean Rouch, um dos criadores do “cinema verdade” e diretor do Comitê do Filme Etnográfico. Antes de adaptar O Auto da Compadecida, Guel já possuía ampla experiência na televisão e, em 1991, conquistou seu próprio núcleo na Rede Globo de Televisão. Cabe ressaltar que esse núcleo se originou em um contexto em que a Globo começou a implementar, em sua programação, a regionalização, visando com isto à diversidade regional com produtos genuinamente brasileiros. O interesse pelo “povo” e pelas “manifestações populares” pode ser verificado, nessa fase:

[...] em vários quadros ou programas propostos pelo grupo liderado por Guel Arraes por meio da valorização do cotidiano do brasileiro e das pessoas comuns e anônimas, assim como das diferentes práticas, das manifestações culturais das periferias, das iniciativas populares e não-oficiais (FIGUEIRÔA; FECHINE, 2008, p. 24).

Além de O Auto da Compadecida, Guel Arraes dirigiu, entre outros sucessos, Armação Ilimitada (Globo, 1985-1988) e TV Pirata (Globo, 1988-1990; 1992). O cineasta pernambucano já havia trabalhado com a temática regional ambientada no Nordeste em outras produções, a exemplo de Lisbela e o Prisioneiro (2003) e O Bem Amado (2010). A adaptação do Auto feita pelo cineasta obteve bons índices de audiência tanto na televisão quanto no cinema, chegando, inclusive, a conquistar a segunda maior bilheteria entre os filmes brasileiros no período de 1995 a 2000.

Apesar de Guel Arraes e Ariano Suassuna serem de gerações diferentes, eles possuem trajetórias cruzadas na vida e nas ideias, conforme adverte Ferreira:

Mas os caminhos de Guel Arraes e Ariano Suassuna se cruzaram muito tempo antes da adaptação do Auto, tanto porque ambos moravam na mesma rua [em Recife, grifos nossos] - as casas são uma de frente para a outra -, quanto, e especialmente, por razões políticas. Foi Suassuna quem convenceu o pai do cineasta a entrar no PSB em 1990. Miguel, por coincidência, era avô do falecido candidato à presidência em 2014, Eduardo Campos, a quem Suassuna apoiava fervorosamente e afirmou se tratar do político mais brilhante que já conheceu. Inclusive Suassuna voltou a ocupar em 2006 sua função como chefe da Secretaria de Cultura do Governo de Pernambuco na gestão de Campos (FERREIRA, 2015, p. 47).

Guel Arraes, ainda conforme Ferreira (2015), teve proximidade com Suassuna desde a infância por intermédio de seu pai, que era amigo do escritor. “O cunhado de Guel, Maximiano Campos, integrou o Movimento Armorial e teve também peso ao influenciar o cineasta quanto às propostas do grupo, além de tê-lo apresentado às obras suassunianas” (FERREIRA, 2015, p. 49).

A narrativa cinematográfica O Auto da Compadecida ambienta-se em Taperoá, na década de 1930, conta as peripécias de João Grilo, um personagem que luta permanentemente pela sobrevivência, e seu inseparável amigo Chicó, um astuto contador de histórias. Em busca de ganhar dinheiro, os dois frequentam a padaria de seu Eurico, onde são explorados e, também, onde descobrem as traições da esposa Dora. Em suas confusões, envolvem o Padre, o Bispo; arrumam briga com Severino, o cangaceiro. No final das contas, João Grilo morre e Chicó fica sozinho. João Grilo consegue voltar à vida com a intercessão da Compadecida. Chicó casa-se com Rosinha, filha de um rico da cidade e ela é deserdada. Os três acabam juntos e pobres como no início da narrativa.

Observamos que a narrativa cinematográfica carrega elementos fundantes do enredo de Suassuna, entretanto são suprimidos alguns episódios e personagens, bem como são acrescentados outros. Para Julio Plaza (2003), a tradução implica mudanças, ainda que permaneçam elementos invariantes.

Ao ser perguntado sobre a escrita da peça, Ariano se reporta à literatura de cordel nordestina.

Como foi que o senhor teve aquela idéia do gato que defeca dinheiro? Ariano respondeu: ‘Eu achei num folheto de cordel.’ O crítico: E a história da bexiga de sangue e da musiquinha que ressuscita a pessoa? Ariano: ‘Tirei de outro folheto.’ O outro: E o cachorro que morre e deixa dinheiro para fazer o enterro? Ariano: ‘Aquilo ali é do folheto também.’ O sujeito impacientou-se e disse: Agora danou-se mesmo! Então, o que foi que o senhor escreveu? E Ariano: ‘Óxente! Escrevi foi a peça!’. (TAVARES, 2004, p. 191).

O enredo do primeiro ato da obra dramática baseia-se no folheto satírico e picaresco O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros, registrado por Leonardo Mota como O enterro do cachorro, narrativa africana do século V, que transitou em Portugal e chegou ao Brasil. O segundo ato, do gato que descome dinheiro, baseia-se no folheto História do cavalo que defecava dinheiro, de autoria desconhecida e igualmente registrada por Leonardo Mota em Violeiros do Norte. O terceiro ato é o julgamento com a intervenção de Nossa Senhora, episódio baseado em O castigo da soberba, um auto popular anônimo. A personagem João Grilo surgiu de um folheto de João Martins de Athayde, As proezas de João Grilo, personagem de origem no romanceiro ibérico.

De acordo com Suassuna (2008), do Romanceiro Popular do Nordeste e dos espetáculos populares, como Bumba-meu-boi, mamulengo e autos religiosos, surgiu o Auto da Compadecida. Não podemos nos furtar de destacar que ele traz ao palco imaginário de sua obra experiências vivenciadas no cotidiano e, também, de leituras realizadas no decurso de sua história de vida. O primeiro movimento tradutor consiste nessa transposição da experiência vivida e dos textos lidos em matéria ficcional, em fábula, para o discurso dramático. Trata-se de um encontro entre a ideia e a materialidade da palavra narrativa.

Os folhetos de cordel com os quais convivia desde a infância são produções culturais que circularam e chegaram como herança ibérica, aclimatando-se na cultura nordestina, sendo considerados legítimos representantes da arte popular brasileira. Escritos em versos e muitas vezes cantados, apresentam estreita ligação com a tradição oral, assim como os espetáculos e autos populares. Essa matéria prima oriunda da tradição é transcriada na linguagem dramática de Suassuna com humor e ironia, aspecto que assemelha o texto dramático e o fílmico.

O Palhaço é uma voz relevante como condutor da narrativa dramática2, não apenas anuncia o espetáculo, mas articula os atos, responsabiliza-se pelo ‘grand finale’. No filme, sua ausência altera a estrutura narrativa do texto da obra original, embora a evocação circense permaneça forte como estratégia ajustada à linguagem cinematográfica. O filme de Guel opta pela ausência do narrador explícito - uma das características do cinema clássico, que abre mão da representação para evidenciar o mundo autônomo - mas o foco recai sobre os protagonistas, João Grilo (Matheus Narchtegeale) e Chicó (Selton Mello).

O filme inicia com os protagonistas percorrendo as ruas da cidade de Taperoá, convidando a população para assistir à história do homem mais corajoso do mundo. Na sequência, imagens em preto e branco da Paixão de Cristo são projetadas, evidenciando a metalinguagem, isto é, o cinema dentro do cinema. Ainda que o narrador seja “ocultado”, há inserções de animações computadorizadas que são narradas com a astúscia fantasiosa do Chicó.

A figura do pícaro, uma espécie de anti-herói dos contos orais da Península Ibérica desde a Idade Média, é recriada nos dois textos, com características próprias do Brasil, na personagem João Grilo, ao tentar ascensão social em um meio hostil, em uma rígida sociedade estamental - argumento defendido ficcionalmente por Suassuna e por Arraes.

Para Henrique Oscar, prefaciador do texto dramático, o Auto da Compadecida (1983) bebe na tradição das peças da Idade Média, conhecidas como milagres de Nossa Senhora, em que, em uma narrativa, profana, os heróis em dificuldade apelam para a santa, que os salva de situações difíceis. Os autos medievais, como o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, são aproximações possíveis, assim como a commedia del’arte - textos diversos revisitados e transcriados à brasileira.

A visão cristã da vida e a simplicidade da fé que marcam o repertório popular, a comédia, o tom alegórico, o final moralizante, a linguagem regionalista e coloquial são características que aproximam as duas obras.

O espaço narrativo, os cenários, o figurino - a dupla de protagonistas com roupas leves, chinelos de couro - faz rememorar os brincantes nordestinos, bem como alude aos tons de uma atmosfera medieval, que reúne religiosidade e sátira.

São muitas as formas como o texto de Guel Arraes carrega a matéria literária de Suassuna. Ambos, a despeito das singularidades de suas linguagens - dramática e cinematográfica -, compõem texturas densas, uma vez que acolhem memórias da cultura popular brasileira e de sua formação, sobretudo com os textos que transitaram da Península Ibérica para o Brasil.

Do ponto de vista das diferenças, evidenciando cada contexto de produção e de recepção, enquanto Suassuna enriquece a picardia com a união de João Grilo e Chicó, Guel Arraes insere outros episódios e personagens, como o romance Chicó-Rosinha, entre outras razões, para intensificar o interesse do público. Conforme registra Marly Camargo de Barros Vidal, o cineasta brasileiro, em entrevista com Sérgio Rizzo na revista SET, comenta:

A adaptação precisava ser maior, e uma das coisas que criam interesse é uma história de amor. Era uma idéia arriscada porque a característica dos personagens picarescos, como João Grilo e Chicó, é a de não ter preocupação sentimental. A busca deles é por comida e comida. Quase que a gente dividiu Chicó em dois. (VIDAL, 2007, p.7).

Novos personagens, novos núcleos dramáticos e elementos retirados de outras obras de Suassuna desdobram-se em modificações no modo de narrar fílmico, ampliando recursos de intertextualidade e de metalinguagem, conforme já assinalado.

Importante sinalizar que o filme (2000) é posterior à minissérie da Globo (1999), na qual Guel Arraes optou por expandir a narrativa, criando relações amorosas e de suspense à moda dos folhetins, como era estratégia recorrente na televisão brasileira. Esses recursos não invalidam o posicionamento de Arraes na defesa da causa social. Na cena do julgamento, quando Nossa Senhora Compadecida intercede em favor de João Grilo, uma fala emotiva é acompanhada por fotos em preto e branco evocando a miséria dos sertanejos; assim também a cena final dos três personagens - Rosinha, Chicó e Grilo - como retirantes - convoca o espectador a se solidarizar com os injustiçados. Associa-se a isso, como em um movimento cíclico, a primeira cena do filme, em que os protagonistas Chicó e Grilo convidam o povo para assistir a história do homem mais corajoso do mundo - cena que termina na igreja com a projeção da Paixão de Cristo, em uma referência metalinguística ao papel do cinema em dar a ver e a denunciar a luta incessante de personagens desprivilegiados pela sobrevivência em meio aos poderosos.

Muda o suporte, a linguagem e os modos operacionais na tradução intersemiótica do teatro para a minissérie e desta para o cinema. Desenhos, fotografias, vídeos, entre outros procedimentos trabalhados artesanalmente compõem a forma criativa da linguagem cinematográfica de Guel Arraes. Esse movimento de abrangência poética que faz reverberar de maneira enriquecida a obra dramática de Suassuna passa pela elaboração da trilha sonora executada pelo grupo SaGrama.

As trilhas, em geral, assumem papel relevante na elaboração criativa dos filmes, já que reforçam o caráter do discurso, podendo auxiliar na indução de estados emocionais, como tensão, interesse, suspense, além de dar ritmo, delinear o fluxo dramático. A construção dos acordes, a sequência harmônica, a textura na escolha da instrumentação, enfim, o tecido construído no universo sonoro, em estreito diálogo com a imagem e o texto verbal, são linguagens do imaginário disponíveis e abertas à percepção do espectador.

Sabemos que o vasto universo de sons se constitui em um dos elementos essenciais na vida da espécie humana. Altura e pulsação estão presentes e atuantes em todo o nosso corpo, desde o fluxo sanguíneo, as batidas do coração, o estômago faminto, a respiração, até em manifestações externas, como andar e correr. Nesse contexto, é natural que os diversos sons à nossa volta agucem nossa imaginação. Ao serem organizados em estruturas mais complexas, como melodia, harmonia e textura, despertam em nossa memória conexões emocionais. Isto ocorre tanto na música erudita, quanto na música folclórica e “na música comum3, na qual um compositor ‘encapsula’ uma mensagem, uma emoção, uma intuição em sua obra musical e envia-a através do tempo e do espaço até o ouvinte usando como meio a psique e o corpo do músico executante”. (STEWART, 1989, p. 33).

A música é [...] indutora de nossa atividade motora, afetiva e intelectual, em razão de seus elementos constitutivos (ritmo, melodia, harmonia, timbre), de seus parâmetros formadores (duração, altura, intensidade, densidade, textura) e de seus movimentos sintáticos e relacionais, com o poder de co-mover o receptor que, na escuta, acaba por responder afetiva, intelectual e corporalmente a todos esses elementos de comunicação postos em jogo por ela, música. (ZAMPRONHA, 2002, p. 43).

Essas conexões são refletidas de forma mais intensa ou mais branda de acordo com o índice de significações vivenciadas pela pessoa. Esses diferentes níveis de vivência inconscientemente criam vínculos de identidade e de emoção. Nesse sentido, as manifestações sonoras espontâneas, a música autóctone e a música folclórica exercem alto poder identitário.

A música ambiental ou étnica dos povos representa um desenvolvimento da utilização primordial do som musical. Há nela uma qualidade culturalmente única, que está intimamente relacionada com a terra de origem. É essa qualidade que torna a música folclórica capaz de ser reconhecida instantaneamente. (STEWART, 1989, p. 40).

Cada comunidade incorpora padrões rítmicos próprios e se apropria deles, criando identidades específicas. Nesse sentido, o Auto da Compadecida apresenta fortes vínculos com ritmos característicos da comunidade nordestina.

Há a uma ambiência, definida por Murray Schafer (1991) como paisagem sonora, que resulta de sons fundamentais, inerentes a um determinado tempo e espaço. No filme O Auto da Compadecida, os temas engendram-se em texturas experimentais, com uma coreografia musical, por vezes valorada em determinados personagens, como João Grilo, em que a harmonia sonora densa busca enfatizar sua irreverência, esperteza e malícia. Os compositores da trilha sonora utilizaram instrumentos musicais e técnicas de composição e interpretação específicas do universo rural nordestino.

No plano linguístico, fica evidenciada toda a sonoridade marcante da oralidade sertaneja tão presente nos repentes e na Literatura de Cordel, que enriquecem a paisagem sonora da obra dramática e fílmica, funcionando como expressão da cultura popular, criando um imaginário que se tece de diversas representações da cultura nacional brasileira. No dizer de Stuart Hall (2002),

Segue-se que a nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos - um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da ideia da nação tal como representada em sua cultura nacional. (HALL, 2002, p. 48-49).

Os temas musicais, na obra fílmica, de maneira similar ao sotaque das personagens, carregam elementos da música tradicional rural nas melodias, no uso de instrumentos, nos efeitos sonoros e na performance dos músicos, em busca de uma paisagem sonora do interior nordestino, inserida no contexto da música armorial, cujo intuito era produzir uma arte brasileira a partir da conjunção de elementos eruditos e populares favorecendo diálogo de imaginários.

A trilha, produzida por Carlinhos Borges e João Falcão, consta de quatorze temas compostos e/ou ambientados por Sérgio Campelo, Dimas Sedícias, Ewerton Brandão Sarmento (Bozó) e Cláudio Moura, além do Aboio, canção regional de domínio público, em gravação direta na Fazenda Conceição, em Sítio dos Nunes/PE. A gravadora Natasha Records do Rio de Janeiro realizou a primeira prensagem da trilha sonora de O Auto da Compadecida em formato de CD em 2000 e da utilização de duas produções musicais icônicas como síntese da banda sonora, a canção Cabocla Serrana, de Cândido das Neves, interpretado por Vicente Celestino, e o repente Meia quadra, de Severino Pinto e Lourival Batista. Foram compostos temas específicos para cada personagem e/ou situação central ou cena de virada da narrativa, de forma similar aos leitmotivs, motivos condutores de identificação e vinculação imediata a um personagem ou cena, muito utilizados por Richard Wagner.

O filme inicia com um aboio, uma canção de trabalho, misto de canto e oração, entoado pelos vaqueiros ao conduzir o gado, som improvisado acompanhado pelo berrante, com seus sons longos e profundos, podendo ser ouvido de muito longe. Inserida após João Grilo e Chicó convidarem os habitantes de Taperoá para assistirem ao filme Paixão de Cristo, remete ao espaço físico, social e cultural dos protagonistas e funciona como forma de solene convocação.

O tema de João Grilo, figura alegre, cômica, de origem humilde, que cria situações de intriga e utiliza todos os tipos de artimanha para dar forma às suas histórias é a Presepada, uma melodia que apresenta diversas mudanças de andamento, metaforizando as reviravoltas nas histórias, na maior parte das vezes, mentirosas.

Como o próprio título, a melodia concebe as aventuras e desventuras de Grilo, cuja vida é construída num tecer e destecer de “causos”. A alternância de andamentos é essa passagem de uma história para outra, numa construção interminável de tramas que precisam ser complementadas a fim de se manterem como verdade. É também a simbologia de uma personagem que possui a inquietude como traço de sua personalidade [...] (NASCIMENTO NETO, 2006, p. 140-141).

O imaginário criado por Chicó sintoniza com a Régia, forma musical cuja instrumentação com diversas frases em solo da viola nordestina, da clarineta, das flautas e dos demais instrumentos em diálogo cria matizes de sonoridades similares aos estágios das histórias criadas por Chicó. “Um som semelhante ao tropel de cavalos permeia toda a melodia, simbolizando a capacidade de Chicó em divagar em sua narrativa” (NASCIMENTO NETO, 2006, p. 141).

Rói-couro é o tema de Dora e inclui duas danças nordestinas: o xaxado - dança típica masculina divulgada no sertão por Lampião e seus cangaceiros - e o baião - música resultante da fusão de danças africanas, indígenas e portuguesas.

Em sintonia com a identidade da personagem, segundo Nascimento Neto,

O adultério é vivenciado por esta mulher como um meio legal para punir o marido pelo tormento que ele lhe causara no início do casamento. Dia após dia, ela luta incessante em busca de prazer e sobrevivência. Rói-couro remata a dualidade de uma mulher que se completa sendo rica e sensual. O xaxado representa a riqueza e a consequente dureza nas atitudes, a fortaleza nas ações. O baião é o seu caráter feminino vindo à tona, quando percebe que o prazer deve ser buscado na tentativa de ser feliz. (NASCIMENTO NETO, 2006, p.142).

Cavalo Bento é o tema do Major de Taperoá, Antônio Moraes, típico mandante do sertão nordestino, fazendeiro poderoso e temido por todos e reporta-se ao cordel O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros - história lembrada na cena da morte do cachorro.

Um tom solene é evidenciado ao som de caixas-repiques, sendo seguido por flautas feitas de taquara, que dão início ao baião que marca a entrada de Antônio Moraes à cidade. Feito as tradicionais bandas de pífano que anunciam a chegada de alguém importante a um lugarejo, Cavalo bento é a anunciação de que o importante coronel está adentrando em Taperoá. (NASCIMENTO NETO, 2006, p.143).

A percussão bem marcada e a melodia com predominância rítmica são elementos sonoros característicos de pessoas influentes.

Severino é o tema do cangaceiro assaltante de fazendas e vilas. Com ritmo frenético na forma de cavalinho marinho autêntico, é introduzido por uma melodia em trecho solo da rabeca em andamento lento seguido por uma marcação rítmica acelerada, evocando o percurso de vida de Severino, conforme afirma Nascimento Neto (2006).

Engenho é o tema que pauta a disputa entre Major e João Grilo, por meio de perguntas que devem ser respondidas de maneira correta, tendo um prêmio pelo acerto, neste caso um emprego para Grilo na fazenda do latifundiário, ou, o castigo, perder “uma tira de couro de seu lombo” (NASCIMENTO NETO, 2006, p. 143).

Choro Miúdo é tema de Rosinha, a filha do Major, que se apaixona por Chicó e tenta burlar o pai, com o auxílio de João Grilo, para conseguir o dote de casamento deixado por sua bisavó, uma porca de dinheiro - remetendo à peça teatral de Suassuna O Santo e a Porca. A forma escolhida por Ewerton Brandão Sarmento para compor o leitmotiv de Rosinha é o choro, por trazer elementos mais urbanos em sua estrutura, em associação com seu estilo de vida na metrópole.

Embolé é o tema de amor de Chicó e Rosinha, uma canção modal com predomínio do dueto de flauta e clarinete em andamento tranquilo, construída com poucas notas e um cromatismo que acentua sua singeleza.

Caboclos de Orubá é a melodia para a luta de três participantes do maculelê, dança guerreira de origem africana, na qual portam dois bastões de madeira, que batem sincronizadamente, como se fossem espadas. Composição modal menor, em velocidade acelerada, é interpretada por um flautim e percussão, em linha melódica muito ágil, caracterizando o espírito da luta.

O pulo da gaita é tema do episódio da gaita, que, quando tocada, tem o poder de ressuscitar os mortos.

A melodia, portanto, inicia-se num andamento lento, porém, logo em seguida, muda para o allegro, marcando, pelo toque da gaita, o processo de ressurreição de Chicó, que fingirá estar morto para também não perecer nas mãos dos cangaceiros. A lentidão assinala os primeiros movimentos de retorno à vida com o mexer dos dedos dos pés e das mãos, para, ao levantar inteiro, dançar e saltar quando da mudança de movimento da música, simbolizando a plenitude da vida recobrada. (NASCIMENTO NETO, 2006, p. 146).

Sentença é tema da morte de João Grilo, canção triste, marcada pelo solo do violoncelo. Filho de chocadeira é a composição que acompanha o demônio, o Encourado, sonoramente evocado pelos chocalhos e pratos, imitando onomatopaicamente o rastejar da víbora.

Mãe dos homens, tema de Nossa Senhora, a Compadecida, traz uma harmonia densa, com o uso de efeitos diversos, como quartas justas descendentes, porém com um resultado sonoro de muita suavidade, enfatizada pelo solo do violoncelo e dos violões e da viola nordestina, metaforizando o caráter meigo, porém decidido, de Nossa Senhora. A mudança de um andamento lento para o Allegro no final da melodia evidencia a vitória dela ante os argumentos do demônio.

A canção Cabocla serrana, composição de Cândido das Neves, e o repente Meia quadra, de Severino Pinto e Lourival Batista, são canções do repertório popular e folclórico brasileiro. A primeira contextualiza o universo rural brasileiro; a segunda Meia quadra é um desafio em estilo improvisado. Rememorando os trovadores medievais ibéricos, apresentam-se a fala ritmada e a rima, que nos remetem ao universo de dualidades, no caso dos personagens centrais do filme, do improviso diário ante os fatos de uma vida vivida para driblar os problemas.

O grupo SaGrama parte da pesquisa da paisagem sonora, gravando performances de cantores das feiras, da rua, do universo caboclo, reinterpretando essas sonoridades locais por meio de técnicas de execução instrumental inovadoras, que levam o ouvinte ao reconhecimento identitário e ao universo imaginário que o circunscreve.

Existe, sim, o cuidado de trabalhar as harmonias e melodias com cores diferentes, de mostrar a combinação dos timbres, por exemplo, da marimba com o clarinete. A gente gosta de jogar com essas sonoridades, extraídas tanto de um instrumento erudito quanto de um popular. [...] Há toda uma preparação para chegar até a coisa autêntica do ritmo da ciranda como uma abertura elaborada. [...] Por isso, a importância da qualidade de cada instrumentista, para lidar com a improvisação, com a leitura de uma partitura e, principalmente, com as nossas raízes, pois estamos também fazendo um trabalho de resgate. (ESTADÃO, 2001, p. 48-49).

Soma-se a essa paisagem musical a fala performatizada sonoramente, o “canto fala”, utilizado por Arnold Schoenberg (MENEZES FILHO, 1987) com improvisações, diálogos, a fala espontânea a revelar variações linguísticas e sotaques, além de dizeres da poesia popular, desafios e composições da literatura de cordel que enriquecem o ato discursivo sonoro.

Observamos que a trilha sonora de O Auto da Compadecida apresenta práticas de composição e orquestração, uso de instrumentos musicais, sonoridades e oralidades representativas de identidades, atreladas à memória inconsciente da coletividade, ao imaginário nordestino. À medida que o espectador capta essa textura sonora, decodifica, e é capaz de cocriar um tecido imaginário representativo da identidade local, cultural e nacional. A trilha sonora, elaborada com esse vigor estético, amplia as percepções do espectador, fortalecendo qualidades de sentimento.

Tanto do ponto de vista do conteúdo, quanto da expressão, cada qual circunscritos em sua arte, Ariano Suassuna e Guel Arraes revitalizam nossa memória cultural, valorizando nossas raízes em um rico movimento artístico que miscigena cultura popular e erudita. Assim, ambos constroem uma memória ativa, viva, movente, que recolhe e põe em movimento elementos da cultura nordestina, da cultura nacional e universal.

Henrique Oscar, no prefácio da obra dramática assinala:

De tudo que ficou dito, o leitor concluirá que é um programa da humanidade, com suas misérias, suas fraquezas, mas também suas razões de consolo e esperança, que “A Compadecida” evoca. É esse, justamente, o grande mérito do autor e a evidência da qualidade de sua obra: ter conseguido, a partir de uma situação local, regional, típica mesmo, compor um quadro de significação universalmente válida. (SUASSUNA, 1983, p. 14).

Tanto o texto dramático quanto o texto fílmico podem ser visitados como lugares de memória, porque nos remetem às nossas raízes identitárias, contra a ação do esquecimento tão recorrente em nossa sociedade em que tudo se liquefaz.

Visceralmente associada a fenômenos históricos e sociais, a memória de cada indivíduo - “historiador de si mesmo” (NORA, 1993, p.17) - dialoga com a memória social. Assim, retomando Halbwachs (1990) para quem as memórias individuais são pontos de vista sobre a memória coletiva, a literatura e o cinema revelam a memória de um autor ou diretor, mas também criam interfaces discursivas para revelação da memória coletiva, para a expressão de um imaginário que nos faz reconhecer como brasileiros.

Em Candido (2006), compreendemos ser a arte literária, e podemos estender à cinematográfica, como práticas simbólicas capazes expressar um imaginário da cultura, da nação, da sociedade a que se ligam, compondo-se como um sistema que faz interagir o estético e o histórico. Em Literatura e Sociedade, o referido autor define literatura como

[...] comunicação inter-humana, a literatura, que aparece sob esse ângulo como sistema simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade. (CANDIDO, 2006, p.31).

Cada qual, dramaturgo e cineasta, operando com o que sintoniza como “afinidade eletiva”, ou seja, com predileções de sensibilidade para cada projeto estético, transcria semioticamente a fim de fazer pensar sobre o sentido da história, tanto na direção do passado, como memória, quanto na do futuro, como vir-a-ser, como reflexão e reelaboração do vivido e possibilidades de transformação.

Se Suassuna faz reverberar a tendência regionalista dos anos 1930 no texto dramático de 1955, como forma de dar visão a aspectos de nossa brasilidade e ao mesmo tempo de denunciar as relações de poder e de injustiça social, Guel Arraes, em 2000, busca também a valorização de nossa regionalidade e de nossa nacionalidade, agregando um contraponto a todo um processo de globalização que tende a liquefazer esses valores e as tradições.

Considerações finais

Os estudos comparados de Literatura podem estabelecer fortes e interessantes vínculos com os Estudos de Tradução. O trabalho com a tradução intersemiótica na perspectiva de Julio Plaza favorece a compreensão dos processos de transformação criativa das obras, agenciando interpretações sobre intercâmbios culturais e de linguagens. Se entendermos cada arte como sistemas de signos e fenômenos de linguagem, somos convidados a refletir sobre a Tradução Intersemiótica como um tipo de tradução que consiste na transcriação de um sistema de signos para outro.

Por sermos seres habitados de tempo, como argumenta Plaza, o projeto tradutor opera sempre com novas sensibilidades, de forma que cada leitor captura do vivido e do lido o que elege reinventar.

[...] cada obra, longe de ser uma consequência teleonômica de uma linha evolutiva, é, ao contrário, instauradora da história, projetando-se na história como diferença. Se num primeiro momento, o tradutor detém um estado do passado para operar sobre ele, num segundo momento, ele reatualiza o passado no presente e vice-versa através da tradução carregada de sua própria historicidade, subvertendo a ordem da sucessividade e sobrepondo-lhe a ordem de um novo sistema e da configuração com o momento escolhido. (PLAZA, 2003, p. 5).

Nesse sentido, a tradução envolve um complexo movimento entre a autonomia e a submissão. Assim se estabelece o diálogo do novo com o velho, podendo variar entre o previsível e o imprevisível. A leitura para a tradução “não visa captar no original um interpretante que gere consenso, mas ao contrário, visa penetrar no que há de mais essencial no signo.” (PLAZA, 2003, p. 36).

A materialidade da tradução, seu modo e meio de ressignificar a história, de atualizar o passado, se tece em cada tempo histórico. Como prática crítico-criativa, como metacriação, como diálogo de signos, se opera o trânsito de sentidos e novas realidades estéticas despontam. O processo de tradução criativa pressupõe deslocamentos, desarranjos e rearranjos de signos, transcriação de formas à procura de novos sentidos.

Temas, eventos, personagens, tempo, pontos de vista redimensionam a narrativa e podem engajar a imaginação dos receptores em uma espécie de reconhecimento. A tradução organiza-se como uma comunicação intercultural e intertemporal. Para tanto, demanda memória, um repertório a considerar na leitura em favor da identificação e conferência de elementos.

O cinema tem uma gramática muito singular. Para Linda Hutcheon, trata-se de

[...] uma linguagem compósita em virtude de seus diferentes meios de expressão - fotografia sequencial, música, ruído e som fonético - o cinema herda todas as formas de arte associadas a tais meios de expressão[...] - a visualidade da fotografia e da pintura, o movimento da dança, o décor da arquitetura e a performance do teatro. (HUTCHEON, 2013, p. 64).

Como prática intersemiótica, no dizer de Plaza (2003), a tradução depende muito mais das qualidades criativas e repertoriais do tradutor do que da existência apriorística de um conjunto de normas e teorias. É como “apropriação reconfiguradora da tradição” que entendemos que a fabula de Suassuna encarna a obra cinematográfica de Guel Arraes.

As opções de performance do grupo SaGrama para a trilha sonora, fundadas no Movimento Armorial, com o intuito de resgate da paisagem sonora do universo interiorano e rural nordestino, em sua essência de improvisação, porém respaldada por técnicas composicionais complexas, amarram a intersemioticidade proposta por Guel Arraes.

O tecido sonoro proposto a partir de temas com forte característica identitária local ressalta o caráter intercultural e intertemporal proposto na tradução textual. Há uma inter-relação com a visualidade e a oralidade, implícita em cada modo, escala, intervalo, escolha de instrumentos característicos e, sobretudo, na performance dos intérpretes, altamente técnica, mas ao mesmo tempo, com um forte traço de liberdade improvisatória, característica dos músicos locais, recriando, dessa forma, uma paisagem sonora muito próxima da realidade do cotidiano interiorano nordestino.

Elaborado na estética do movimento armorial, o cineasta conseguiu realizar um exercício artístico interessante, ultrapassando seu espaço-tempo e ganhando horizontes mais universais. Longe de desteatralizar o texto de Suassuna - o que seria um movimento do cinema em busca de uma linguagem própria - trouxe à vista a poesia do teatro.

Referências

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  • 1
    SUASSUNA, A. Jornal da Semana, 1973, p.22.
  • 2
    Martín-Barbero ([1987]2013, p. 174) ao se referir sobre a estrutura dramática, esclarece que (...) a ideia de “espetáculo total” tem como eixo central quatro sentimentos básicos - medo, entusiasmo, dor e riso -, a eles correspondem quatro tipos de situações que são ao mesmo tempo sensações - terríveis, excitantes, ternas e burlescas - personificadas ou “vividas” por quatro personagens - O Traídor, o Justicieiro, a Vìtima e o Bobo - que ao juntar-se realizam a mistura de quatro gêneros: romance de ação, epopeia, tragédia e comédia.
  • 3
    O autor define como música comum a canção popular.

Editado por

  • Editor-chefe:
    Rachel Esteves Lima
  • Editor executivo:
    Regina Zilberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2022
  • Aceito
    15 Maio 2022
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