Open-access Clave de Vupes ou lições de comunicação e escuta em Grande Sertão: Veredas

Vupes’s Clef or communication and listening lessons in Grande Sertão: Veredas

RESUMO

Este artigo investiga a personagem Vupes, o alemão, do Grande sertão: veredas (1956). Para isso são considerados, a partir da narração de Riobaldo, aspectos históricos, poetológicos e sonoros que possam trazer informações tanto sobre a personagem como sobre a escuta de Riobaldo. Com ênfase na dimensão comunicacional da alteridade, da escuta e da condição de estrangeiro, fizemos um levantamento do estado da arte da relação de Guimarães Rosa com a Alemanha, analisamos cartas, diários, cadernetas, mapas, a biblioteca pessoal e papéis burocráticos do escritor no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP).

PALAVRAS-CHAVE: Guimarães Rosa; Grande Sertão: Veredas; biografia de personagens; comunicação e escuta; Alemanha

ABSTRACT

This article investigates the character Vupes, the German, from Grande Sertão: Veredas (1956). For this, based on Riobaldo’s narration, historical, poetological and sound aspects that can bring information about the character and about the listening of Riobaldo are considered. Vupes and Riobaldo are studied from the communicational dimension of alterity, listening and the condition of the foreigner. For the study of this German character, we surveyed the state of the art of Guimarães Rosa’s relationship with Germany, analyzed letters, diaries, notebooks, maps, the writer's personal library and bureaucratic papers at the Institute of Brazilian Studies at the University of São Paulo (IEB-USP).

KEYWORDS: Guimaraes Rosa; Grande Sertão: Veredas; character biography; communication and listening; Germany

Uma clave de Vupes?

Do latim clavis, chave. Em notação musical, a clave é um sinal gráfico colocado no início da pauta, determinando a altura das notas em relação às linhas. Indica, assim, a região cromática da composição e informa ao músico como ler a partitura. A clave nos lembra que a escrita musical é sempre relativa, pois as notas não têm lugares fixos e sequer são, elas mesmas, entidades destinadas a vibrarem sempre na mesma frequência. Por isso recorremos, aqui, à figura da clave como metáfora a nos abrir a porta que leva a Vupes, personagem do Grande sertão: veredas pleno de emissões sonoras, vocais e aurais. De início, apresentamos a hipótese de que Vupes vibra numa região bastante baixa, quase suprassônica, de difícil acesso aos ouvidos humanos. Mas essa é uma ideia que, juntamente com outras, será problematizada e apresentada ao longo deste artigo.

Tema e variações

O nome de Vupes não se deixa captar pelo labirinto auditivo de Riobaldo. O jagunço que confia em sua pontaria, hesita na escuta. Pode-se dizer, a princípio, que, para Riobaldo, “Vupes” é um nome-mistério que em nenhum momento se revela por completo. Riobaldo esforça-se: curioso, pergunta ao Doutor: “Como é mesmo que o senhor frasêia?” (ROSA, 2019, p. 57). Ouve a resposta e, embora frustrado por não conseguir decifrar a sonoridade, supõe-lhe variações: “Wusp? É. Seo Emílio Wuspes… Wupsis… Vupses” (ROSA, 2019, p. 57). Com isso, tem-se um nome à margem da escrita, pois memória de som ou tema musical, instigante, marcado por estranheza e estrangeiridade, mas também por adaptabilidade. O modo de abordá-lo ou perscrutá-lo deve passar, necessariamente, por um pensamento da voz e da escuta. Tal é a tarefa que se propõe este trabalho: a partir das percepções narradas por Riobaldo, escutar, ouvir, reproduzir, variar, ensaiar e tentar compreender Vupes.

A presença de tal personagem no Grande sertão sempre nos inquietou, mas foi apenas a partir de ressonâncias da comunidade de estudos rosianos que pudemos dar início a uma investigação mais consistente. Em especial, devemos muito às pesquisas prévias realizadas por Paulo Soethe, que, em artigos decorrentes de seu projeto de pesquisa “Riobaldo encontra Vupes” (2005, 2007 e 2012) e em entrevistas que cordialmente nos concedeu, encorajou-nos a investir em Vupes como objeto de estudo: “Parece-me plausível, para uma investigação mais exaustiva, a hipótese de que estaria em questão, no personagem Vupes, a linha alemã dentre os muitos fios do tecido étnico e cultural brasileiro” (SOETHE, 2005, p. 292). A mesma gratidão manifestamos aqui à Tereza Virginia Barbosa, por ter dedicado boas páginas de seus escritos a esse mesmo personagem, inclusive em seu mais recente livro, no qual identifica uma relação de tensão entre Vupes e Riobaldo e, mais ainda, vê ali um tema profícuo para investigações futuras: “Lêmure fabuloso, Vupes, em sua relação com Riobaldo e Fausto, renderia um livro inteiro” (BARBOSA, 2022, p. 32).

Embora ocupando papel secundário na trama e nas memórias de Riobaldo, o alemão Vupes reúne uma ampla gama de imaginários e elementos que convidam a pensar, entre outros, a relação de Guimarães Rosa com a Alemanha e sua cultura, a xenofilia ou atração pelo estranho, o poder da voz, os encontros e a alteridade. Para pensar esse conteúdo, cabe-nos partir de nosso campo disciplinar (as ciências da comunicação), recorrendo às teorias da escuta, da alteridade, da oralidade, à poética do nome próprio, à memória auditiva e dialética do pátrio-estrangeiro. Salientamos, ainda, que a presente investigação tange não só a poética de um personagem, mas igualmente a relação de seu autor com a cultura alemã. Desse modo, da biografia de João Guimarães Rosa, são aqui relevantes: seus primeiros contatos com a língua alemã, o aprendizado com os padres Mathias Willems, Alfredo Piquet, João B. Lehmann, Guilherme Gross, entre outros, conforme se vê na obra de Chagas (2014); a leitura interessada das primeiras Märchen e sagas no idioma original, assim como uma predileção por amizades com estrangeiros, sotaques nórdicos, e posteriormente pelas relações profissionais (Joseph C. Witsch, Curt Meyer-Clason, Günter Lorenz, Mário Calábria) e pessoais com alemães, sendo sua própria companheira de vida, Aracy Moebius de Carvalho, portadora da dupla cidadania teuto-brasileira. No nível mitopoético, há de se assinalar o trabalho já sistemático de Rosa em torno da literatura de língua alemã, resultando em intertextualidades e referências em sua própria obra, como é o caso (e não só) do Simplicissimus e da Matéria Fáustica (Fauststoff) presentes em Grande sertão: veredas.

Hipóteses onomásticas

Antes de abordarmos a biografia de Emílio Vupes e sua relação com Riobaldo, vamos nos concentrar brevemente em algumas hipóteses sobre a origem de seu nome. Se nos deixarmos levar por uma primeira impressão, tanto sonora quanto ortográfica, o nome Vupes é logo associado à raposa, que em latim é justamente Vulpes. Não se trata de analogia absurda, visto a quantidade abundante de anotações feitas por Rosa sobre esse animal em seus cadernos e diários, assim como referências em diversas de suas obras. Em Ave, palavra (ROSA, 2009), por exemplo, é notório o fascínio que tal animal exerce sobre o autor: “A espinha da raposa é uma espécie de serpente” (ROSA, 2009, p. 74); “A raposa, hereditária anciã: vid. Seu andar, sua astúcia-audácia. Avança, mas nuns passos de quem se retira” (ROSA, 2009, p. 120); ou ainda “A raposa regougã, bicho de sábia fome e sentidos” (ROSA, 2009, p. 201). De fato, há sempre uma raposa dando o ar da graça nas narrativas rosianas, desde Sagarana (1946) até Tutameia (1967).

No contexto do Grande sertão, há dois personagens que respondem bem mais às características de raposa do que Vupes. Considerando que “tem coisa e c’ousa, e o ó da raposa…” (ROSA, 2019, p. 37), chegamos a Zé Bebelo, homem que “sabia o que queria, homem de muita raposice” (ROSA, 2019, p. 182). Também o inimigo mór de Riobaldo é assemelhado ao mesmo animal: “E - mas - o Hermógenes? Sobreveja o senhor o meu descrever: ele vinha por ali, à refalsa, socapa de se rir e se divertir do meio dos outros, sem a soberba, sendo em sendo o raposo meco” (ROSA, 2019, p. 326). Assim, na escala das raposas, Vupes seria apenas mais um exemplar entre as espécies pertencentes à grande família (não só simbólica, mas sobretudo biológica) dos canidae, da qual fazem parte também cães, lobos, coiotes e chacais. Vupes parente do Cão? Tereza Virgínia Barbosa, ao identificar no prenome Emílio o êmulo (aemulus, do latim), conjetura que:

Assim, nesse viés, pode-se ler: lobo, raposa rival ou gentil, êmulo maligno. As características de Vupes (as várias formas de dizer seu nome, sua frieza e estrangeiridade, sua beleza atilada, sua permanência por todos os caminhos, sua versatilidade inesgotável) coadunam com a interpretação [de um adversário-raposo ou adversário-lobo]. Vupes aparece e some dissimuladamente, pelo romance inteiro, até o final com Quelemém. (BARBOSA, 2022, p. 33).

Mesmo se sairmos da perspectiva do bestiário, a ideia de Vupes como rival de Riobaldo permanece relevante, mas esse é um tópico que retomaremos mais à frente, assim como algumas questões históricas referentes à imigração alemã no Brasil e sua influência direta sobre Guimarães Rosa. Por enquanto, gostaríamos de levantar uma segunda hipótese filológica, não mais referente ao latim, mas à matriz germânica. Se pronunciarmos rapidamente o nome Vupes, reproduzimos o mesmo som de Wupps! interjeição alemã que indica um movimento rápido. Wupps! vale para escorregão, vacilo, andar saltitante, ora um pulo do gato, ora o vaivém de uma gangorra ou da criança no berço, assim como ao mero som de um vento - que vibra grave e veloz. Vupes, vibração? Trata-se, aqui, de algo ainda no nível onomatopeico, mas que, como veremos, pode se desdobrar em surpreendente polissemia.

O célebre dicionário dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm (1838-1961) diz algo como: “wupps chama wupp, que chama wipps, que chama wipp, que chama schwupps, que chama schwups e, em seguida, chama klapps com klapp e hopps com hopp”.1 Ou seja, passa-se da simples interjeição ao verbo wuppsen, gingar, e à divertida característica da Wuppdizität, que bem poderia soar em português como vupsidade. Impossível ignorar o vaivém. Afinal, em Wuppe estaria também uma variação mais rara de Wippe, o balanço ou berço. Não somos filólogos e não temos como aprofundar toda essa gama de palavras. Por outro lado, não resistimos à tentação de continuar nessa mesma linha de raciocínio, principalmente quando o citado dicionário relaciona a onomatopeia Wupps! com a expressão “Kipper und Wipper”: enganador, falsário, trapaceiro [Figuras 1 e 2]. No imaginário alemão, tal expressão é usada como insulto e estaria ligada (também, mas não só) à figura secular do negociante judeu:

Wipper, aquele que altera moedas com a intenção de reduzi-las ou falsificá-las; é reconhecido especialmente no início do século 17 sob a forma do kipper und wipper; não poderíamos ver algo de judeu nesse jeito de ser do wipper, alguém que explora os pobres até os ossos? […]; há ainda os malditos kipper und wipper da guerra de 1621, ordinários enganadores e falsários. A palavra pode ser utilizada como mero xingamento. (GRIMM; GRIMM, 1838-1961, Vl. 30, p. 516)2

Figura 1:
Representação de um grupo de alteradores de moeda, durante a grande crise econômica de 1618-1623, ocorrida no espaço geográfico onde hoje é a Alemanha. A prática consistia em cunhar moedas de mesmo valor, mas com peso cada vez menor ou com metais menos nobres. Autor desconhecido.

Figura 2:
Representação antissemita do século 17 de um “Kipper und Wipper” caracterizado como judeu; entre os dizeres da imagem, está “Wir wollen uns von ihm wenden”, ou seja, “Queremos nos desviar dele”. Autor desconhecido.

A etimologia aplica-se igualmente ao rio Wupper, que banha as cidades alemãs de Wuppertal e Wipperfürth, desembocando no grande Reno. Tal rio é conhecido por sua nascente de águas velozes, vibrantes, exultantes. Dele vem a expressão idiomática “Atravessar o Wupper”, que corresponderia em parte ao ditado bíblico “Atravessar o rio Jordão”, passar por um momento difícil. No entanto, a variante alemã dessa travessia é menos esperançosa, pois muitas vezes significa que alguém, após longa dificuldade, foi derrotado, desapareceu, exilou-se ou mesmo morreu. Embora seja um rio de pequeno porte, o Wupper muitas vezes é chamado em sua região de “Amazonas da terra montanhosa” por sua rica biodiversidade e importância para ecologia local, como se vê no livro homônimo de Sigurd Tesche (2016).

Biografia de Vupes

Alemão e comerciante de ocasião - pois nada se sabe de sua vida pregressa - exerce grande impressão sobre Riobaldo. É figura de alteridade, mas igualmente de projeção e espelhamento. Vai e volta à memória do narrador sem ordenação cronológica, encadeado a acontecimentos que antecedem decisões irreversíveis e mudanças de rumo. Ao longo do romance, aparece cinco vezes. Primeiro, numa descrição detalhada de sua aparência e hábitos, através da qual Riobaldo demonstra-lhe enorme curiosidade e admiração; mais à frente, em casa de Assis Wababa, a quem Vupes traz notícias de modernização, como o surgimento de vias férreas, enquanto frustra as expectativas profissionais do jovem Riobaldo; na terceira aparição, bem mais curta que as anteriores, apresenta-se à memória do narrador como alguém de grande capacidade de observação e mesmo de profecia; num quarto momento, o alemão integra a lista de pessoas memoráveis de Riobaldo; e, por fim, Vupes topa com o protagonista, por acaso, em casa de Compadre Quelemém de Góis.

“Ah, e não, alto-lá comigo, que assim falseio, o mesmo é. Pois ia me esquecendo: o Vupes!” (ROSA, 2019, p. 57). É assim, quase numa digressão, que Riobaldo introduz Vupes à sua conversa com o Doutor. Ali já se anuncia a condição estrangeira da personagem: homem alto, claro, olhos azuis, forte, além de uma mímica discreta de quem fala sem mover os músculos da face ou mãos. Nesse momento, Riobaldo é cuidadoso com o que fala, parece não querer revelar ao Doutor lembranças amargas em relação a Vupes. Utiliza, ao menos de início, uma fala diplomática, “Pessoa boa” (ROSA, 2019, p. 57), juízo que, como veremos, sofrerá consideráveis alterações ao longo da narrativa. Na edição alemã, Meyer-Clason, traduz os olhos azuis de Vupes por blauäugig,3 adjetivo que pouco tem a ver com a cor das pupilas, e sim com um caráter pueril e crédulo; enfim, a um ar de ingenuidade que, ao menos de início, pretende-se transmitir. É com a mesma ironia (mineira) que Riobaldo encadeia: “Ah, o senhor conheceu ele? Ô titiquinha de mundo!” (ROSA, 2019, p. 57).

Em tudo, Vupes era diferente. Impunha respeito pelo modo “diverso de proceder” (ROSA, 2019, p. 57), metódico e hábil, entendia de ferramentas e armas, embora andasse desarmado e distante da política. Percorria o sertão vendendo novidades técnicas, que facilitavam a vida da gente do campo e traziam ares de mudança: “[...] arados, enxadas, debulhadora, facão de aço, ferramentas rógers e roscofes4, latas de formicida, arsênico e creolinas; e até papa-vento, desses moinhos-de-vento de sungar água, com torre, ele tomava empreitada de armar” (ROSA, 2019, p. 57). Logo após esta descrição preliminar, Riobaldo revela que prefere relatar os acontecimentos agradáveis aos desagradáveis, num exercício seletivo de memória: “Sempre gosto de tornar a encontrar em paz qualquer velha conhecença - consoante a pessoa se ri, a gente se acha de voltar aos passados, mas parece que escolhidas só as peripécias avaliáveis, as que agradáveis foram.” (ROSA, 2019, p.57).

Entre tais peripécias aprazíveis encontram-se também as donzelas com nomes de flor: “Alemão Vupes ali, e eu recordei lembrança daquelas mocinhas - a Miosótis e a Rosa’uarda - as que, no Curralinho eu pensava que tinham sido as minhas namoradas” (ROSA, 2019, p. 57-58). Tudo isso se passa num único parágrafo do Grande sertão, no qual é possível notar que a memória de Riobaldo, além de seletiva, opera por desvios. As mocinhas que foram suas “quase namoradas”, invadiram um fluxo discursivo cujo foco deveria ser apenas Vupes; no limite, elas funcionam como manobras desviantes (Ablenkungen) da fala, distrações, espécie de pontuação sincopada a evidenciar o desconforto de Riobaldo e sua dificuldade em permanecer concentrado. Desse modo, como observou Antonio Candido (2002), o caráter ambivalente que permeia todo o romance (androginia, indecisões, o bem entrelaçado ao mal) faz-se também presente na fala do protagonista, que quer e não quer rememorar. São recursos narrativos muito bem costurados em imagens-chave, capazes de distender temporalmente a vivência e de hierarquizar a percepção do leitor.

Inúmeras são as imagens-chave, todas num mesmo parágrafo, como esta: “Ele pitava charutos” (ROSA, 2019, p. 58). Entre uma baforada e outra, Vupes falava de um jeito estrangeiro que continuava fascinando um Riobaldo já adulto, jagunço. A essa altura, Vupes também não era mais um imigrante novato, conhecia o Sertão, e é possível que tenha aprendido a fazer bom uso da própria aura exótica para sobreviver. Foi ali que propôs a Riobaldo uma missão, de conduzi-lo em viagem a cidade São Francisco, não sem antes lisonjeá-lo: “Sei senhor homem valente, muito valente… Eu precisar de homem valente assim, viajar meu, quinze dias, sertão agora aqui muito atrapalhado, gente braba, tudo…” (ROSA, 2019, p. 58). O parágrafo se encerra com a risada de Riobaldo ao ouvir o sotaque do velho conhecido.

Mas antes de narrar ao Doutor sobre a jornada que duraria 15 dias, Riobaldo foge mais uma vez do assunto, desvia, e retrata mazelas do sertão de uma perspectiva distanciada (quase científica ou etnográfica): “Assim que é vida assoprada, vivida por cima” ou, quem sabe, airosa ou acima do bem e do mal. Sua lente captava doença, gente faminta, “coisas sem continuação” para, em seguida, voltar ao tema Vupes e dizer que “com as graças, dele aprendi, muito” (ROSA, 2019, p. 58). Nesse momento, o jagunço permite-se admirar a outridade do estrangeiro e companheiro de viagem:

O Vupes vivia o regulado miúdo, e para tudo tinha sangue-frio. O senhor imagine: parecia que não se mealhava a nada, mas ele pegava uma coisa aqui, outra coisinha ali, outra acolá - uma moranga, uns ovos, grelos de bambu, umas ervas, e, depois, quando se topava com uma casa mais melhorzinha, ele encomendava pago um jantar ou almoço, pratos diversos, farto real, ele mesmo ensinava o guisar, tudo virava iguarias! Assim no sertão ele formava conforto, o que queria. Saiba-se! Deixamos o homem no final, e eu cuidei bem dele, que tinha demonstrado a confiança minha. (ROSA, 2019, p. 58).

Temos aqui um cenário de cordialidade que, algumas dezenas de páginas à frente, irá se desmanchar por completo. Após uma lista de peripécias heróicas e saudades de Diadorim, Riobaldo resolve dar conta ao Doutor de lembranças mais remotas, tais como sua vida de menino, criado unicamente pela mãe, “a Bigrí”; também a morte dessa e a mudança para a casa de seu “padrinho-pai” Selorico Mendes, mudança repleta de ambivalências e estranhamentos; assim como sua escolarização tardia com Mestre Lucas, momento de descoberta pelo gosto do estudo, do aprendizado, e da presença do mestre que lhe mostra um mundo para além das fronteiras do sertão e da jagunçagem. É com Mestre Lucas que Riobaldo interessa-se pelo saber e sente-se reconhecido: “Baldo, você carecia mesmo de estudar e tirar carta-de-doutor, porque para cuidar do trivial você jeito não tem. Você não é habilidoso” (ROSA, 2019, p. 87). Ou: “Mas o mais certo de tudo é que um professor de mão-cheia você dava…” (ROSA, 2019, p. 87). Tais lembranças, da infância à mocidade, culminam quando o protagonista descobre ser, de fato, filho biológico de Selorico Mendes, condição de ilegitimidade que lhe causa vergonha e confusão mental. É assim que Riobaldo foge e começa uma nova travessia, de autodescoberta, (re)invenção de si e traçado do próprio destino:

Virei bem fugido. Toquei direto para o Curralim. […] Razão por que fiz? Sei ou não sei. […] Eu fazia minha raiva. Raiva bem não era, isto é: só uma espécie de despique a dentro, o vexame que me inçava não me dava rumo para continuação. Único reger era me empinar e assoprar em esta minha cabeça, aí a confusão e desordem e altos desesperos. Arremessei o cavalo, galopei demais. […] Aquela hora eu queria só gente estranha, muito estrangeira, estrangeira inteira! (ROSA, 2019, p. 93).

É nesse cenário, marcado principalmente por vergonha, que Riobaldo tenta se aproximar de Vupes, como quem busca no deserto um oásis - mas só encontra miragem. Em casa de Assis Wababa, outro estrangeiro digno de sua admiração, Riobaldo sonda possibilidades junto ao alemão, busca um jeito de entrar com dignidade na vida adulta. Tudo desanda: “Me alembro: entrei no que imaginei - na ilusãozinha de que para mim também estava tudo assim resolvido, o progresso moderno: e que eu me representava ali rico, estabelecido. Mesmo vi como seria bom, se fosse verdade” (ROSA, 2019, p. 95). Esperançoso, pois, Riobaldo pergunta a Vupes se esse não poderia dar-lhe um trabalho, mas a resposta foi o seco “Níquites!” [nichts!] e rapidamente nota o desnível: “Ali nem acabei de falar, e em mim eu já estava arrependido, com toda a velocidade” (ROSA, 2019, p. 95). Tal contexto de humilhação também foi observado por Paulo Soethe (2007) em seus trabalhos sobre Rosa e a Alemanha: “[...] a companhia desses senhores tornou-se vergonhosa para Riobaldo que, ao se sentir diminuído, despede-se e parte” (SOETHE, 2007, p. 188).

Nessa visita, nota-se um ponto de irreversibilidade. A vida de Riobaldo poderia ter sido bem outra se Vupes lhe tivesse dado uma chance: “Ah, e se não fosse, cada acaso, não tivesse sido, qual é então que teria sido meu destino seguinte?” (ROSA, 2019, p. 96). Ali, mesmo no amargor de não se sentir parte daquela sociedade, o jovem protagonista retém do senhor Alemão palavras que ressoariam anos mais tarde em sua lida e entendimento do mundo. A observação é igualmente de Paulo Soethe, atento ao elogio que Vupes dirige a Ribaldo: “Senhor atira bem, porque atira com espírito. Sempre o espírito é que acerta…”. Dessa frase, Soethe capta a faculdade da eustochia, descrita, por exemplo, na Segunda analítica, de Aristóteles (2005, I, 34, 89b, p. 10-11), termo que designa simultaneamente boa pontaria, intuição certeira e habilidade para aproveitar a ocasião. Lembremos que a eustochia é derivada de stochos, cujo campo semântico envolve (além da mira e das atividades de arqueiro), o acaso, o aleatório e o destino, como se vê na palavra stochastikós, além do stocházomai (refletir, pensar, adivinhar, suspeitar, conjeturar).

Tudo isso, de fato, era Riobaldo, dotado de pontaria e de intuição inigualáveis. Após esse encontro determinante com Vupes, ele segue seu caminho quase inevitável à jagunçagem. Vai ser professor de Zé Bebelo, de quem muito aprende sobre as tramas e tramoias da guerra e da política. Depois, por uma intuitiva fidelidade a Diadorim e Joca Ramiro, junta-se a este bando para cumprir sua sina paradoxal de jagunço que veio, “[...] corajoso, para derrubar o Hermógenes e limpar estes Gerais da jagunçagem” (ROSA, 2019, p. 431). Riobaldo encontrará Vupes outras vezes, mas de passagem. Quando atira e espanta-se com o próprio talento, exclama: “Aquele Vupes era profeta!” (ROSA, 2019, p. 121) - ora, profeta é aquele que professa, de uma fala profunda e vibrante capaz de ecoar no futuro. É possível que Riobaldo tenha encontrado em Vupes uma espécie de oráculo ou amuleto, cuja lembrança o acompanhou vida afora.

Lembremos que Riobaldo diz: “Vupes vivia o regulado miúdo, e para tudo tinha sangue-frio.” É possível que essa expressão de admiração se refira a uma ética da sabedoria, em saber fazer do pouco o muito ou o aprazível, ser capaz de tornar o mínimo, vital, e saber superar as dificuldades, não sem algum estoicismo, uma vez que ele “parecia que não se mealhava a nada”. E conclui a parte dizendo: “Assim no sertão ele formava conforto”, ou seja, não sem algum prazer estético. Além de viver o “regulado miúdo”, o mesmo trecho diz: “para tudo tinha sangue-frio”, o que não é pouca coisa em se tratando da violência do território por onde o estrangeiro transita. Pode ser que aquilo que Riobaldo chama de “sangue-frio”, não seja mais do que a impassibilidade ou a capacidade de ataraxia demonstrada pelo alemão. A ataraxia (imperturbabilidade) não deixa de ser uma forma de sabedoria, trata-se de uma forma de lidar consigo, os outros e as situações.

Vupes, Rosa e a imigração alemã

Ao investigar “As fontes alemãs de Guimarães Rosa”, Paulo Soethe (2012) recolhe subsídios históricos e documentais à tese que entende o Grande sertão: veredas como romance de formação do Brasil, defendida, entre outros, por Willi Bolle (2004). O sertão seria, assim, palco da interculturalidade brasileira, constituída não somente por indígenas, portugueses e africanos, mas também por sírios, libaneses, alemães, e todos os demais tipos - demasiadamente humanos e complexos - que aparecem ao longo do romance. Ao percorrer os volumes da biblioteca particular do autor, Soethe (2012) deparou-se com o livro A aculturação dos alemães no Brasil (WILLEMS, 1946), repleto de anotações e sinais de uso. Seu autor, o sociólogo alemão Emilio Willems (1905-1997), fez parte da primeira geração de professores europeus da USP e, segundo Soethe, pode ter sido a inspiração que Guimarães Rosa procurava quando da criação da personagem Emílio Vupes.

Willems, em sua obra, descreve as diversas ondas de imigração alemã no Brasil, ligadas a crises econômicas e ao advento da industrialização na Europa, assim como às Guerras Napoleônicas e a Guerra Franco-Prussiana. No início dos anos 1830, os imigrantes que chegavam ao Espírito Santo e Minas Gerais falantes da língua alemã eram, em grande parte, camponeses com famílias numerosas, desprovidos de possibilidade de sustento em sua terra natal. Nas décadas seguintes, esse perfil sofre alterações. A partir de 1871, com a chamada Unificação Alemã, os imigrantes nem sempre chegam em família, mas muitas vezes sozinhos, uma maioria masculina e de origens muito diversas: trabalhadores urbanos prejudicados pela industrialização; criminosos e prisioneiros dos quais a nova nação alemã pretendia se livrar; homens de ciência, tais como naturalistas e etnólogos; ou ainda eugenistas, incentivados pelo império brasileiro a participarem de um processo de “embranquecimento da população”; também aventureiros em busca de minerais preciosos; importadores e comerciantes de produtos técnicos europeus. É possível que o Vupes, tal como descrito no Grande sertão, faça parte dessa geração de alemães, chegados a partir de 1871. Bolle (2004), com impressionante detalhismo (ou uma simpática Pingeligkeit), traça não só o mapa do sertão rosiano, mas recupera a linha do tempo que atravessa a intrincada narrativa de Riobaldo. Seu cálculo nos parece bastante convincente:

O autor não deixa de incentivar o leitor a recompor a cronologia a partir de pequenas indicações camufladas no texto. Assim, na casa do comerciante “seo” Assis Wababa, para onde se dirige Riobaldo, o alemão Vupes dá a notícia de “em em breves tempos os trilhos do trem-de-ferro se armavam de chegar até lá, o Curralinho então se destinava a ser lugar comercial de todo valor”. Uma consulta ao Dicionário histórico-geográfico de Minas Gerais, de Waldemar de Almeida Barbosa (1968/1995), nos informa que a inauguração da estação da Estrada de Ferro Central do Brasil em Corinto se deu em 20 de março de 1906. Portanto, o primeiro contato de Riobaldo com a jagunçagem é anterior a essa data. E posterior à instituição da República, referência de diversos pronunciamentos de Zé Bebelo. Eis o que permite datar as lutas de jagunços retratadas por Guimarães Rosa num tempo bastante próximo ao da guerra de Canudos. (BOLLE, 2004, p. 107).

Hoje, a partir do cruzamento de dados históricos de imigração com a imprensa das sociedades de língua alemã do século XIX (antes e após a unificação), fica notório o investimento econômico e simbólico ali envolvido. Sociedades de empreendimentos especializaram-se em organizar a formação de colônias em todo o Continente Americano, o que movimentou os setores das viagens, navios, comércio e, no limite, a expansão civilizatória. Em arquivos de jornais alemães antigos, encontramos inúmeros anúncios e reportagens nessa direção [Figuras 3, 4, 5 e 6].

Figura 3:
Páginas do Morgenblatt für gebildete Stände, de 13 de agosto de 1828, com relato sobre o Sertão e o sertanejo. Naquela primeira metade do século XIX, o imaginário do Sertão mineiro já se encontrava bem presente nos periódicos alemães. Nesta matéria, o autor-viajante retrata a presença imponente das palmeiras de buriti na paisagem, contraposta ao perigo de cobras enormes, cuja “carne não serve para alimento”. Sobre o sertanejo, chama-lhe atenção a robustez: “a fertilidade das mulheres aqui é incrivelmente grande” e “a mortalidade é tão baixa, que por ano aqui morrem apenas três ou quatro pessoas”.

Figura 4:
Anúncio da sociedade Schlobach & Morgenstern no Leipziger Zeitung de 26 de março de 1857, em busca de interessados a emigrarem para a “Província de Minas Gerais”, onde se fundava a “Colônia Saxonia”. A empresa diz dar preferência a “gente do campo sólida e forte” e que, “ao chegarem ao brasil, os colonos “terão terra, equipamentos, sementes e alimentação até a primeira colheita, assim como de três a quatro anos de crédito”.

Figura 5:
Anúncio de venda de passagens de navio com destinos, entre outros, a Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. Note-se que a terceira classe é destinada a passageiros emigrantes de todas as idades, e que também as crianças pagavam por suas passagens.

Figura 6:
Página de jornal com anúncio de passagens de navio para emigrantes alemães, com destino a todo o continente americano.

Quanto a Guimarães Rosa, criador de Vupes, sabemos de seu interesse pela cultura alemã e que conviveu com muitos deles no Brasil antes de passar sua temporada em Hamburgo. Várias colônias alemãs haviam se instalado em muitos municípios de Minas Gerais a partir de 1853, dedicadas, principalmente, à agricultura. Havia uma em Belo Horizonte e também em Betim. Conforme depoimento de sua mãe, Francisca Guimarães (Chiquitinha), ao Suplemento literário Minas Gerais (1968), a primeira namorada do escritor:

Era filha de alemães, e morava em Betim. Depois mudou-se para São Paulo. [Rosa] ficou desesperado: arranjou um emprego imediatamente, e, para aumentar suas finanças, chegou a vender o violino, que começava a aprender. E foi a São Paulo. Mas voltou tão desiludido com a alemãzinha que para esquecer começou a namorar uma vizinha, que acabou sendo sua [primeira] mulher. (SUPLEMENTO LITERÁRIO MINAS GERAIS, 1968, p. 3)

Não é improvável que Rosa tenha frequentado a comunidade alemã instalada em Capela Nova (Betim), onde seu avô Luiz Guimarães possuía negócios e propriedades. Esse dado biográfico, portanto, nos ajuda a perceber que novas e possíveis conexões entre Rosa e a Alemanha podem continuar a surgir da pesquisa de seu acervo, dos estudos de sua obra e de sua biografia. Ainda mais determinante foram os anos de Rosa como aluno interno do Colégio Arnaldo em Belo Horizonte, onde estudou de 1920 a 1925, sob a tutela de padres alemães, como Mathias Willems, Alfredo Piquet, João B. Lehmann, Frederiko Vienken, José Francisco Xavier Symalla, Afonso Wenger, Luiz Roth, Guilherme Gross, sendo por eles muito influenciado. Ali, aprendeu a falar e amar a língua de seus mestres, além de ter lido com entusiasmo as obras da maravilhosa biblioteca do colégio, que priorizava referências alemãs, obras de todos os tipos, desde a descrição da fauna e flora, como Guia de fitoterapia (1925) e o Eulenartige Nachtfalter (Mariposas Noctuídeas), de 1919, o Amphitheatrum Sapientiae Aeternae (Anfiteatro da sabedoria eterna, 1605), de Heinrich Khunrath, e o Dictionnaire de théologie catholique (Dicionário de teologia católica, 1923), dicionários do alemão para o grego, francês, italiano, espanhol e português. Nas estantes, Santo Agostinho, as Confissões e Cidade de Deus, São Tomás de Aquino e a Suma teológica, e livros como as Obras ascéticas, de Afonso Maria de Ligório (1696-1787), e as de François-René Chateaubriand (1768-1848). Também estavam Goethe, Heine, Platão e outros.

Na vida adulta, o contato com a cultura alemã intensificou-se. Seu primeiro posto no exterior como diplomata foi no consulado de Hamburgo. Em suas cartas para a família, em especial, ao primo Pedro Moreira Barbosa, mostra-se encantado com o país. O mesmo ocorre em seu conhecido Diário da Alemanha (ou Diário da guerra), embora neste caso mostre-se incomodado com o apreço ao militarismo demonstrado pelos alemães. Em uma carta ao primo Pedro Barbosa, datada de 17 de maio de 1938, portanto, logo nos primeiros meses de sua estada no país, assinala:

Depois escreverei carta mandando-lhe impressões desta terra maravilhosa. Por ora, ainda atordoado com as belezas da Alemanha septentrional, rabisco apenas estas linhas; a vista retro com um cantinho do Alster - lago deslumbrante que adorna o centro da cidade - poderá dar-lhe uma ideia do que é Hamburg: linda, incomparável! (ROSA, 1938, p. 1).

Vupes, o aural

A força sonora da obra rosiana, em especial do Grande sertão, já chamava atenção dos leitores da primeira hora. Meyer-Clason, ao intuir ali uma composição musical “expressionista”, procura reproduzir na tradução a mesma dinâmica do original, “[...] dependendo do trecho, com um andante, um presto, um scherzo ou um furioso” (ROSA, 2003, p. 170). Envaidecido, porém diplomático, Rosa confirma a suspeita de seu tradutor, citando um trecho da tese catedrática de Dirce Riedel, de 1962:

Entre os processos intensificadores que caracterizam a narrativa de Guimarães Rosa, retardando-lhe o ritmo, está a tendência expressionista para se deter diante das coisas, colocando-se dentro delas, pensando-as e sentindo-as subjetivamente, revelando, assim, em seu processo, as formas, as cores, os sons… [...]. Com a atitude do artista expressionista, capaz de se colocar em qualquer objeto, Guimarães Rosa apresenta o som na momentaneidade da sua missão: […] o guincho subinte de um rato-do-mato. (RIEDEL, 1962, apudROSA, 2003, p. 171).

A uma intervenção semelhante, dessa vez de seu tradutor italiano, Rosa responde entre parênteses: “(Tudo deve ser cacho de acordes. Como no xadrez: a jogada boa deve ter mais de uma finalidade ou uma causa)” (ROSA, 1972, p. 171). Em Escrever de ouvido (2018), obra concentrada na escrita de Clarice Lispector, Marília Librandi reconhece em Guimarães Rosa um dos precursores do “romance aural” brasileiro. O termo aural remete simultaneamente a aura e auricular, conferindo à audição a característica única do aqui-e-agora a qual se referia Walter Benjamin. No estudo de Librandi-Rocha, cujo terceiro capítulo é dedicado exclusivamente ao gênero romance, a autora traça os contornos da composição aural de Clarice Lispector, colocando em evidência o aspecto polifônico da prosa ficcional, até então negligenciada. Conceitualiza o termo de acordo com escritores como Mia Couto ou Toni Morrison, e em seguida apresenta uma leitura de A hora da estrela (1977), na qual, segundo sua pesquisa, a noção de “escrever de ouvido” encontra sua primeira expressão explícita. Dá especial atenção à novela ou romance aural como forma presente no Brasil, numa genealogia que remonta a Machado de Assis, além de inserir Oswald de Andrade e Guimarães Rosa como importantes representantes dessa linha.

Os estudos de Librandi-Rocha (2018) ancoram-se na fenomenologia da voz e da audição, bem representada por Jacques Derrida (A voz e o fenômeno, 1967), obra na qual o filósofo contrapõe a predominância ocular da fenomenologia a uma negligência não só da voz, mas principalmente da atividade quieta que é a audição. Cita igualmente Jean-Luc Nancy, À l’écoute (2002), obra que percorre de modo semelhante a via auricular, considerando o corpo como caixa de ressonância.

Nessa mesma linha, uma referência que pouco conhecemos, infelizmente, tanto por marginalidade acadêmica de seu autor como por raridade de traduções, é a obra de juventude de Günther Anders (publicada somente em 2017), que décadas antes de Derrida (já a partir dos anos 1920) realiza uma varredura na questão que opõe erroneamente visão e audição, sendo sua mais importante contribuição a crítica sagaz que faz da teoria fenomenológica, atingindo diretamente as figuras de seus mestres Husserl e Heidegger. Os trabalhos de Anders (2017) sobre a filosofia da música e da sonoridade, continuam ainda hoje pouco explorados. No Brasil, Ciro Marcondes Filho (2014) foi um dos poucos que parou para ouvir sua filosofia, trazendo a crítica de Anders (2017) à fenomenologia também para o interior de sua Nova Teoria da Comunicação.

No caso específico do Grande sertão: veredas, tais estudos nos auxiliam a localizar na voz (e também nos silêncios) de Riobaldo, modulações da memória, da narrativa e a ampliar os efeitos sobre o leitor. O impacto mítico da polifonia do sertão é compartilhado por vários estudiosos. Tereza Virgínia Barbosa (2018, p. 217), lembra que “Rosa era leitor contumaz de Homero, Heráclito e Plotino” e que, por isso, para bons ouvidos, não é muito difícil notar em sua obra ressonâncias de tais mestres antigos. Assim, a pesquisadora helenista vê em Vupes um parentesco com Agamenon:

O parágrafo [de apresentação de Vupes] se inicia com uma estranha frase (Ah, eh e não) seguida de uma advertência (assim falseio). Para a frase, observe-se que, se a lemos de uma determinada maneira, pronunciaremos (sem obviedade, pois o autor falseia o dito) o nome do general-mor dos aqueus na Ilíada: agá’ eh ê não [Agamenão]. Por que evocar o chefe dos chefes para descrever o Emílio Vupes/Wusp/Wuspes/Wupsis/Vupses? Importante lembrar que a origem latina do prenome citado é a mesma de “êmulo” e significa “rival”. (BARBOSA, 2019, p. 218).

Sim. Trata-se de conclusão à qual se poderia chegar por outras vias (análise histórica ou psicológica), mas que foi com maestria favorecida pelo espelhamento com o texto clássico. O mal-estar de Riobaldo em relação a Vupes passa, majoritariamente, por essa condição de rivalidade ou talvez de inveja. Rosa soube muito bem retratar a sede de estrangeiridade em Riobaldo, fazendo de sua interjeição um chamado a Agamenon: “[...] o agá é e não é, pois a letra ‘h’ é muda em português, é figura sem som, é letra morta (que vive da escrita); o motivo é literário também, reescreve-se o antigo” (BARBOSA, 2019, p. 220). Tereza Virgínia reconhece a finura humorada do autor com suas “[...] brincadeirinhas de sertanejo, pura mineiridade, escondição e ex-condição; forma de abrir horizontes, belos horizontes” (BARBOSA, 2019, p. 221).

De grande interesse nesta pesquisa é o aspecto da audição e da escuta, por ser comunicação, como já dissemos, aparentemente quieta e passiva. A formulação de Günther Anders a esse respeito ainda é a que mais se aproxima de nossas intenções: ao comentar o estilo musical de Debussy (em sua época bastante vanguardista e incompreendido), salienta que, para escutar esse tipo música era necessário empreender um tipo de percepção incomum - “[...] estar ao mesmo tempo atento e desatento enquanto se ouve a música” (ANDERS, 2017, p. 211). Quando Riobaldo fala de Vupes, temos a mesma impressão, a de que só captaremos suas modulações e “cachos de acordes”, se estivermos simultaneamente ligados e desligados.

Em um estudo anterior, Castro (2013) em seu livro Comunicação e transcendência, ressalta a importância da palavra sonora e da comunicação da escuta:

A mais transcendental das experiências estéticas talvez seja a audição. Saber ouvir significa saber obedecer (Oboedire = ob-audire). Se ouve apenas com os ouvidos, mas a escuta é com todo o corpo. […] Atenção às diferentes formas de escutar implica diferentes acústicas, logo a escuta é um gesto que se adapta à mensagem recebida, assume a postura corporal, trabalha a atenção. (CASTRO, 2013, p. 11)

Através da indagação por Vupes, em seus traços e possível história, encontramos um Riobaldo escutador, de certeira intuição (eustóchia), disposto à comunicação e à transcendência de si, disposto enfim a ultrapassar as meras condições de sua origem para se inventar e fertilizar futuros ouvidos com novas estórias. Se Riobaldo não deixou descendência carnal, deixou certamente uma descendência aural e segue formando gerações de escutadores.

Referências

  • ANDERS, Günther. Musikphilosophische Schriften Texte und Dokumente. München: C.H. Beck, 2017. 417 p.
  • ARISTÓTELES, -. Segunda Analítica (ou Analíticos posteriores), I, 34, 89b 10-11 Edição consultada: Tradução Edson Bini. Bauru: Edipro, 2005.
  • BARBOSA, Tereza Virgínia Ribeiro. Lêmures gregos em João Guimarães Rosa Belo Horizonte: Relicário, 2022. 300 p.
  • BARBOSA, Tereza Virgínia Ribeiro. Ler, ver, reconhecer: anagnórisis em Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa. Plural Pluriel: revue des cultures de langue portugaise, n. 18, 2018.
  • BARBOSA, Tereza Virgínia Ribeiro. Auscultar Rosa, ouvir homero. Classica, v. 32, n. 1, p. 217-234, 2019.
  • BOLLE, Willi. Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades, 2004. 480 p.
  • CANDIDO, Antonio. Tese e antítese: ensaios. São Paulo: Queiroz, 2002. 160 p.
  • CASTRO, Gustavo. Comunicação e transcendência São Paulo: Annablume, 2013. 125 p.
  • CHAGAS, Carmo. Colégio Arnaldo 100 anos: patrimônio educacional e cultural de Belo Horizonte. São Paulo: SMS Editora, 2014. 114 p.
  • DERRIDA, Jacques. La voix et le phénomène Paris: Puf, 1967. 117 p.
  • GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhem. Deutsches Wörterbuch (1838-1961) Edição consultada: Digitalisierte Fassung im Wörterbuchnetz des Trier Center for Digital Humanities, Version 01/23. Disponível em: https://www.woerterbuchnetz.de/DWB Acesso em: 19 abr. 2023.
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  • LIBRANDI-ROCHA, Marília. Writing by Ear: Clarice Lispector and the Aural Novel. Toronto: University of Toronto Press, 2018. 240 p.
  • MARCONDES FILHO, Ciro. O rosto e a máquina: o fenômeno da comunicação humana visto pelos ângulos humano, medial e tecnológico. São Paulo: Paulus, 2014. 184 p.
  • NANCY, Jean-Luc. À l’écoute Paris: Galilée: 2002. 96 p.
  • RIEDEL, Dirce Cortês. O mundo sonoro de Guimarães Rosa Rio de Janeiro: Instituto de Educação do Estado da Guanabara, 1962. 155 p.
  • ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 560 p.
  • ROSA, João Guimarães. Ave, palavra Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 384 p.
  • ROSA, João Guimarães. Correspondência com o tradutor italiano Edoardo Bizzarri São Paulo: Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1972. 150 p.
  • ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason (1958-1967) Rio de Janeiro: UFMG & Nova Fronteira, 2003. 446 p.
  • ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Roman. Tradução de Curt Meyer-Clason. Köln: Kipenheuer und Witsch, 1964. 549 p.
  • ROSA, João Guimarães. [Correspondência ]. Destinatário: Pedro Barbosa Hamburgo, 17 de maio 1938. Carta pessoal.
  • SOETHE, Paulo Astor. A imagem da Alemanha em Guimarães Rosa como retrato auto-irônico. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 9, n. 17, p. 287-301, jun./dez. 2005.
  • SOETHE, Paulo Astor. Os humores de Wothan: fontes alemãs de Guimarães Rosa. In: CRUZ, Donizeti; ALVES, Lourdes K. (org.). Literatura e sociedade no contexto latino-americano Cascavel: Edunioeste, 2012. p. 223-240.
  • SOETHE, Paulo Astor. Goethe war ein Sertanejo: das selbstreflexive Deutschland-Bild Guimarães Rosas. In: BIRLE, Peter; SCHMIDT-WELLE, Friedhelm (ed.). Wechselseitige Perzeptionen. Deutschland - Lateinamerika im 20. Jahrhundert Frankfurt am Main: Vervuert, 2007. p. 171-193.
  • SUPLEMENTO LITERÁRIO MINAS GERAIS. “Dona Chiquita: As primeiras estórias de Guimarães Rosa” Entrevista a Humberto Werneck. V. III, n. 117, 23 nov. 1968. p. 3.
  • TESCHE, Sigurd (org.). Die Wupper - Amazonas im Bergischen Land Wipperfürth: Bergischer Verlag, 2016. 190 p.
  • WILLEMS, Emilio. A aculturação dos alemães no Brasil: estudo antropológico dos imigrantes alemães e seus descendentes no Brasil. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1946. 623 p.
  • 1
    No original: “Wupps, interj., in gleicher bedeutung wie wupp und neben diesem wie wipps neben wipp, schwupps neben schwupp, klapps neben klapp, hopps neben hopp usw.” In: Grimm Deutsches Wörterbuch W. Bd. 30, Sp. 2060.
  • 2
    No original: “Wipper einer, der die münzen wippt (s. wippen 3 c), um sie zu verschlechtern oder zu verfälschen; anfang des 17. jh. aufkommend, besonders in der formel kipper und wipper geläufig, s. unter kipper teil 5, 786f.: so sag mir doch eigentlich was die wipper seynd, seynds denn etwan Jüden, die arme leute aussaugen bis auf die gräte discurs etzlicher personen von den itzigen zustand der kipper und wipper (1621) a 3.a; gibt es auch noch der verdamten kipper und wipper, wie in dem mansfeldischen krieg anno 1621 Moscherosch gesichte (1650) 1, 226; allgemeiner 'betrüger, fälscher': (es ist) noch nicht möglich gewesen, alle ungegründete einfälle anderer kipper und wipper der wesentlichen theile der wörter und sylben auszuwurzeln. in der form wippert als bloszes schimpfwort verwendet.” In: Grimm Deutsches Wörterbuch W. Bd. 30, Sp. 516. [grifos nossos].
  • 3
    “Vupes war Ausländer, ein Deutscher, müssen Sie wissen, blond, kräftig gebaut, blauäugig, hochgewachsen, ein Leander, rothaarig - kurzum: ein ganzer Kerl. Ein anständiges Haus”. In: Grande Sertão: Roman. Tradução de Curt Meyer-Clason. Köln: Kipenheuer und Witsch, Rosa (1964). p. 68.
  • 4
    Aqui, as palavras “rógers” e “roscofes” (marcas de relógios e não de ferramentas) funcionam como metonímias para “de boa e má qualidade”. O próprio Rosa esclarece a expressão em sua correspondência com Edoardo Bizzarri: “Roscofe - da pior qualidade. (De uma marca de relógios, suíços, antigamente muito difundida no interior do país, por serem os mais baratos, mas que não prestavam: “Roscoff”). (Curioso: esses ordinaríssimos relógios penetraram também na Rússia, naquela época, e por lá deixaram também o adjetivo: roscoff - no sentido de de péssima qualidade; li isto num conto russo moderno!).” In: Correspondência com seu tradutor italiano. p. 56.

Editado por

  • editor-chefe: Rachel Esteves Lima
  • editor executivo: Cássia Lopes Jorge Hernán Yerro

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    03 Nov 2022
  • Aceito
    03 Dez 2022
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