Resumo
Este texto visa trazer aos leitores um pouco da imagem de Eneida em sua relação com a arte, principalmente a música popular. Serão abordadas algumas passagens vividas por mim e a professora e amiga, ressaltando nossas idas a teatros, shows, cinemas, apresentações artísticas diversas e viagens. Meu interesse é apresentar alguns traços biográficos da intelectual que, apesar de ser muito firme em suas posições acadêmicas e muito dedicada aos seus estudos teórico-críticos - incluindo aqueles ligados à crítica cultural -, nunca abandonou a fruição da leitura literária, o prazer trazido pela experiência estética e o desejo de se reunir com amigos, amigas e familiares. Ela nunca deixou de lado o interesse em desvendar o mundo ladeada por companheiros e companheiras de viagem. Esse aspecto, mais ligado ao lado pessoal da autora, certamente enriqueceu seu olhar para os textos que avaliava, para os projetos que desenvolvia. Por outro lado, a formação intelectual da ensaísta contribuiu para que ela melhor desfrutasse e entendesse o universo artístico-cultural. Eneida trazia a marca da transdisciplinaridade em seu modo de viver e atuar profissionalmente.
Palavras-Chave:
Eneida Maria de Souza; biografema; crítica literária; experiência artística; amizade
Abstract
This text aims to bring readers a little of Eneida's image in her relationship with art, especially popular music. Some passages experienced by me and my teacher and friend will be discussed, highlighting our visits to theaters, shows, cinemas, various artistic presentations, and trips. My interest is to present some biographical traits of the intellectual who, despite being very firm in her academic positions and very dedicated to theoretical-conceptual studies - including those linked to cultural criticism -, never abandoned the enjoyment of literary reading, the pleasure brought by aesthetic experience and the desire to get together with friends and family. She never left aside her interest in discovering the world flanked by traveling companions. This aspect, more linked to the author's personal side, certainly enriched her perspective on the texts she evaluated, on the projects she developed. On the other hand, the essayist's intellectual training contributed to her better enjoyment and understanding of the artistic-cultural universe. Eneida brought the mark of transdisciplinarity in her way of living and acting professionally.
Keywords:
Eneida Maria de Souza; biographeme; literary criticism; artistic experience; friendship
A vida e a arte
Este trabalho apresenta-se como relato sobre algumas memoráveis passagens de minha estreita convivência com a professora Eneida Maria de Souza. Nas entrelinhas, sobressaem traços de uma escrita ensaística, por meio de reflexões estabelecidas entre vida cotidiana e produção intelectual. Procuro ressaltar o interesse da estudiosa pelo campo artístico-cultural, em especial pela música popular brasileira. Em alguns momentos, são apresentadas visões de Eneida sobre o tempo presente e futuro. A escrita interessa-se, sobretudo, por homenagear a filha de Manhuaçu. No entanto, como são apresentados diversos momentos de nossa amizade, a figura do autor também aparece, mas apenas como contraponto à linha discursiva central.
Eneida uma vez me disse que era ela quem avaliava e dava pareceres positivos aos dois projetos de Iniciação Científica que realizei, tendo como orientadora a Profa. Vera Casa Nova - também minha grande amiga -, sobre o rock brasileiro dos anos 1980. Isso foi no início dos anos 1990, mas eu fui saber que os pareceres eram dados por Eneida e que ela achava muito interessante a proposta uns 10 anos depois. Também naquele início da década de 1990, houve uma exposição, creio que sobre Mário de Andrade e autores mineiros, organizada por Eneida em um espaço que havia no segundo andar da Faculdade de Letras da UFMG, próximo à antiga biblioteca da instituição. Nessa ocasião, a professora ficou longo período me explicando os banners e dando detalhes sobre o trabalho. Depois, quando houve o projeto “Modernidades tardias” e aconteceu uma palestra de Silviano Santiago na Faculdade de Música da UFMG, conversei rapidamente com a Eneida durante o café e disse a ela que gostaria de participar do projeto como voluntário, o que, pelas circunstâncias, acabou não ocorrendo. Como às vezes eu tocava em eventos da faculdade, por exemplo, em “calouradas”, é possível que ela tenha visto alguma apresentação minha. Tudo isso sem nos conhecermos de fato.
Quando entrei para o mestrado do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG, minha intenção era trabalhar com o Clube da Esquina, inclusive com alguns ecos relativos à vida bucólica no campo que apareciam na literatura árcade e que eu enxergava sobreviver na criação de Milton Nascimento e parceiros por meio de uma “estética da existência” ligada à contracultura. Meu orientador era o Prof. Lauro Belchior Mendes, outra pessoa maravilhosa que cruzou meu caminho. Ao fazer matérias obrigatórias do mestrado, acabei tendo contato com a produção crítica de Mário de Andrade. O professor José Américo de Miranda, por exemplo, me indicou a leitura do livro O banquete. Apaixonei-me pela escrita, pelas reflexões, pelas perspectivas de Mário em relação à literatura, à música e à cultura brasileira e resolvi mudar meu projeto para trabalhar com Mário de Andrade. O Clube da Esquina ficaria para futuras produções. Conversando com o Professor Lauro Belchior, ele me disse que seria interessante eu fazer um “Estudo Orientado” com a Profa. Eneida durante um semestre pois ninguém na FALE-UFMG conhecia Mário de Andrade como ela. Esse tipo de disciplina ocorre apenas com encontros entre um aluno e o(a) professor(a) ou um grupo pequeno de alunos(as) e o(a) professora e a ideia aproxima-se da composição de grupo de estudos que se debruça sobre determinado tema.
Era um dia de semana à tarde, no horário do café, quando eu vi Eneida com a professora e também muito querida Vera Lúcia Andrade, ambas muito elegantes, comendo pão de queijo e tomando café na cantina da Faculdade de Letras. Aproximei-me da Eneida e perguntei a ela se poderia, a partir de uma solicitação minha ao Pos-Lit, ser minha professora em um estudo orientado sobre a obra e o pensamento de Mário de Andrade. Eneida era uma professora bem nova, mas estava se aposentando por conta de mudanças que o governo Fernando Henrique Cardoso pretendia realizar no sistema de aposentadoria do país. Foi assim que começou nossa história, nossa amizade, minha admiração pela mestra. A partir do estudo orientado, comecei a mergulhar na obra de Mário de Andrade. Eu e Eneida nos encontrávamos semanalmente, ou quinzenalmente, para conversarmos sobre artigos, ensaios e livros de Mário. O trabalho rendeu tanto que resolvi solicitar outro estudo orientado com a Profa. Eneida, o que ela aceitou de pronto. Passamos, assim, um ano trabalhando com a produção do intelectual e poeta modernista. Eu, realizando fichamentos e resenhas, descobrindo ideias, conceitos, encontrando o Brasil, a música e a cultura pensados por Mário; Eneida relendo textos, desvendando passagens e clareando caminhos.
Dos estudos orientados para as mesas de bar e restaurantes, para visitas às nossas casas foi um pulo. Aí veio o violão - que eu toco -, e a Eneida sempre apreciou; vieram nossos saraus, etc. Eu sempre assistia a palestras da professora, principalmente sobre Mário de Andrade, o modernismo, Belo Horizonte, Pedro Nava, etc. Isso na UFMG, na PUC-Minas, em festivais literários, etc. Não tive a oportunidade de ser aluno de sala de aula da Eneida, nem na graduação, nem na pós-graduação. Vários de meus colegas professores tiveram essa sorte. Eu tive outras.
Quando defendi minha dissertação de mestrado, intitulada Notas de um turista canibal: Mário de Andrade e a estética do inacabado, em 2000, a banca foi composta pela professora Eneida Maria de Souza e pela professora Maria Zilda Cury, além de meu orientador, Lauro Belchior Mendes. Eneida, mesmo revelando ter gostado muito do trabalho, fez críticas. Não era de só elogiar. As sugestões foram aceitas e o trabalho alterado em certas partes para entrega do texto definitivo na secretaria do programa. Cumpre lembrar que, ao final das arguições, recebi louvor pelo trabalho e indicação de que fosse publicado. Após a defesa, fomos, com amigos e familiares, a um bar na Avenida Brasil, no bairro Santa Efigênia. Eneida sempre gostava de contar essa história: eu fui muito cortês durante toda a noite, pedindo para servirem uísques para Eneida, cerveja para os amigos, tira-gosto para todos. Mas ao final, certamente devido à tensão para a banca, eu fiquei meio de fogo e deixei todos os presentes dividirem a conta que, de praxe, eu deveria ter pagado. Sempre que havia uma oportunidade, Eneida lembrava da história: “Esse aqui, ó, fez isso após a sua defesa de mestrado...”. Sempre havia uma gozação, uma brincadeira.
Um dos aspectos que sempre me chamou a atenção em Eneida - além de sua gentileza, sua vontade de sempre encontrar os amigos, relacionar-se de igual para igual com alunos, funcionários, etc., sua postura meio irônica e mesmo suas críticas ácidas a algumas posturas político-acadêmicas - era sua relação com o campo artístico-cultural. Eu tive a oportunidade de conviver bem de perto com Eneida. Visitávamo-nos com frequência, chegamos a ter garrafa de uísque em uma pizzaria de BH para irmos bebendo devagar a cada ida ao local. Os papos eram intermináveis.
Talvez pela circunstância de viver na mesma cidade da Eneida e termos muitos gostos artísticos em comum, fui, dentre seus amigos acadêmicos, quem mais esteve com a professora em espetáculos teatrais e de dança, shows musicais, exposições, filmes, etc, nas duas últimas décadas, um pouco mais. Fomos várias vezes assistir ao grupo Corpo - lembro-me de que Eneida encantou-se por Lecuona. Assistimos a shows de Milton Nascimento, Chico Buarque, Caetano Veloso - algumas vezes -, Carlos Lyra, Nelson Freire, Madeleine Peyroux, entre vários outros. Um evento especial aconteceu numa manhã de domingo, quando houve bela apresentação da cantora e pianista Cida Moreira, no Museu de Arte da Pampulha, espaço bastante presente nos textos críticos da manhuaçuense. Fomos a peças teatrais como Grande sertão: veredas e Macunaíma, ambas dirigidas por Bia Lessa. Vimos vários filmes, como O som ao redor, Manderlay - continuidade de Dogville. Depois da sessão, havia o momento de comentar os espetáculos, shows, filmes, peças, trazer à mesa alguma reflexão, alguma percepção, etc.
Muito comumente, Eneida me ligava e dizia: vou comprar ingresso para o show de tal artista, posso comprar para você e Daniela? Daí a alguns dias estávamos entrando em algum teatro, como, por exemplo, o Palácio das Artes, para assistirmos ao evento. Dani, minha mulher, estabeleceu, desde o primeiro encontro, forte vínculo afetivo com a Eneida. Ficou encantada quando a conheceu. Entusiasmada com os estudos que estava realizando no mestrado que fazia na Faculdade de Comunicação da UFMG, passou muito tempo dizendo o que estava estudando e Eneida a escutou com atenção, falando pouco, fazendo alguns comentários. Essa escuta, que era constante na mestra, aproximou bastante Dani da Eneida e uma bela amizade surgiu daí. Muitas vezes, era a Dani quem dizia “Vou ligar para a Eneida para sairmos para jantar”. A resposta aos nossos convites era sempre positiva: “Vamos!”. Eneida passou a ser nossa grande amiga e mesmo confidente. Conversávamos de tudo quando nos assentávamos em algum local para saborear um vinho, um uísque, uma massa, uma pizza. Foi madrinha de nosso casamento, em Itaúna, terra da Dani, no interior de Minas.
Certa vez fomos eu, Dani, Eneida e Vera Andrade a um show do grupo Orquestra Imperial, de que participa Moreno Veloso. Lembro-me de que estavam presentes, na banda, Wilson das Neves, Nelson Jacobina, Rodrigo Amarante, Nina Becker e Thalma de Freitas, entre outros músicos. Foi uma bela noite, dancei com Dani, com Eneida e com Vera no salão. Ao final da apresentação, estávamos perto do local onde passariam os componentes da banda. Cumprimentamos alguns deles. Eneida conversou com Moreno e disse: “Já escrevi um ensaio sobre o seu pai”. Moreno, muito atencioso, agradeceu, conversou um pouco e seguiu.
Às vezes, eu e Eneida falávamos sobre nossas preferências musicais e, como não podia deixar de ser, Caetano Veloso e Chico Buarque entravam na roda. Eneida, mesmo encantada pelas composições de Chico, tendo publicado, no jornal Estado de Minas, em 1972, importante ensaio, intitulado “Estragando o sábado” (Souza, 1972SOUZA, Eneida Maria de. Estragando o sábado. Estado de Minas, Belo Horizonte, n. 2, p. 10, 1972. , p. 10), sobre a canção “Construção”, e depois escrito outros textos a respeito do compositor, como “O samba da minha terra”, publicado em Janelas indiscretas (Souza, 2011SOUZA, Eneida Maria de. O samba da minha terra. In: SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011. p.235-2540, p. 235-250), tinha uma queda maior por Caetano. Eu sou também devoto de Caetano e considero os dois artistas grandes representantes da arte mundial, mas tomando mais o lado melódico-harmônico, tenho uma queda maior pela produção de Chico. A conversa ia longe, com argumentos e contra-argumentos. No ótimo ensaio sobre Caetano, intitulado “Jeitos do Brasil”, de Crítica cult (Souza, 2002SOUZA, Eneida Maria de. Jeitos do Brasil. In: SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002. p.147-160., p. 147-160) - produção que dialoga com o texto “Caetano Veloso enquanto superastro”, de Silviano Santiago, presente no livro Uma literatura nos trópicos (Santiago, 2019SANTIAGO, Silviano. Caetano Veloso enquanto superastro. In: SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Recife: CEPE, 2019. p.171-190., p. 171-190) -, a crítica demonstra muita clareza e inteligência na avaliação que realiza a respeito dos procedimentos inventivos de Caetano ligados à ideia de montagem. Trata da noção de alegria e das performances vocais e corporais presentes nos trabalhos do cantor, dados que fazem do baiano um criador extremamente contemporâneo e cosmopolita. O texto revela-se bela aula sobre música popular brasileira e suas interseções com a literatura e a crítica artístico-cultural. Segundo a ensaísta:
Caetano, ao romper enfaticamente com o aspecto linear e tradicional da construção musical, é um dos grandes responsáveis pela revolução na história da música popular feita no Brasil. Na esteira literária da poesia cabralina e da experiência concreta, avança em relação aos seus contemporâneos, tanto do ponto de vista da estruturação de linguagem quando da concepção melódica, além da maneira teatral e distanciada assumida na arte da interpretação. (Souza, 2002SOUZA, Eneida Maria de. Jeitos do Brasil. In: SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002. p.147-160., p. 149).
Eneida - que terminou sendo minha coorientadora de mestrado de modo não oficial, devido a nossos cursos, indicações de leitura e infindáveis conversas sobre Mário de Andrade - foi minha orientadora de doutorado. O trabalho foi defendido em 2008, na FALE-UFMG, com o título - que teve leve alteração quando da publicação em livro - de O traço, a letra e a bossa: arte e diplomacia em Cabral, Rosa e Vinicius. O estudo recebeu o prêmio de melhor tese do Pós-Lit/FALE-UFMG e Menção Honrosa no Prêmio UFMG de teses daquele ano. Obviamente, os prêmios são divididos com a orientadora. Além dos encontros, das dicas, referências bibliográficas, empréstimos de livros, etc, durante o doutorado eu fiz mais um estudo orientado com a Eneida, desta vez sobre a obra e o pensamento de Gilles Deleuze, filósofo que ela conhecia muito bem. Lembro-me de que, em certo momento do desenvolvimento da tese, achava melhor escrever apenas sobre João Cabral e Guimarães Rosa, devido ao fato de os dois autores pertencerem à mesma geração literária e terem trabalhos com a linguagem que permitiam fortes aproximações. Pensava em escrever sobre Vinicius em outro momento da vida acadêmica. Em conversa com Eneida, ela disse: “Não. Deixe o Vinicius. Ele traz a diferença. Comparativismo deve ser feito também pelas diferenças. Além disso, o autor carioca trará a música para o seu trabalho. E você é músico”. Com a permanência de Vinicius no projeto, pude, por exemplo, avaliar mais profundamente a produção lírica de João Cabral, descobrir e desenvolver reflexões sobre poemas e peças teatrais, algumas inéditas, de Vinicius que tratavam do sertão, tema comum de Cabral e Rosa, como sabemos. Pesquisas em arquivos, incentivadas por Eneida, como na Fundação Casa de Rui Barbosa, no IEB-USP, no Acervo de Escritores Mineiros da UFMG, além de arquivos do Itamaraty, no Rio de Janeiro e em Brasília foram essenciais para o desenvolvimento dos estudos.
O tempo e o Whatsapp
Eu e Eneida conversávamos muito por telefone sobre arte, literatura, crítica literária, cinema, política, sociedade, vida acadêmica, vida pessoal e sobre nossos projetos. Pelo menos de 15 em 15 dias batíamos longos papos. Isso quando não saíamos para jantar. Como ressaltei, ligar para a Eneida era saber que ela toparia sair, a não ser que tivesse para viajar, já tivesse marcado algum outro compromisso, houvesse uma banca ou palestra próximas. Muitas vezes o convite partia dela. Além das saídas, sempre havia belas dicas culturais. Era muito comum Eneida ligar para mim ou enviar mensagens de Whatsapp à noite dizendo: “Ligue a televisão na TV Cultura, no Curta Filme, está passando um ótimo filme, um belo documentário”. Para exemplificar, seguem, abaixo, algumas mensagens trocadas por nós nos últimos anos.
Em 21 de março de 2020, no centro do furacão da pandemia, Eneida me escreveu mensagem pelo Whatsapp dizendo: “Estou num tempo apocalíptico. Estou entre ficar tranquila e apavorada. Vamos ver como as coisas vão se resolvendo. Acabo de ver o especial da Elis na Cultura, pelos 75 anos. Lindo!”. No dia seguinte, declarou: “Fui ao médico e ele disse que não é urgência. Terei de fazer exame para diagnóstico e biópsia. Estou revendo artigos para uma futura publicação de um livro de ensaios pela editora de Pernambuco, mas para o ano que vem, se for. Estou também num projeto do André do Rio sobre Minas mundo, que você também deverá contribuir, tudo no começo. No mais, pouca esperança para os dias que virão. Mas a gente precisa ter paciência”. Nota-se, nas mensagens, a difícil sensação de viver isolada, em um país com governo caótico e durante uma pandemia que nos deixava de olhos vendados quanto ao que iria acontecer nos próximos dias, semanas, meses. Há a consciência de uma doença a ser tratada, mas também a incessante vontade de fruição, como vimos na menção ao especial sobre Elis Regina. Percebe-se o interesse em agir, produzir, mesmo em tempos difíceis. O livro mencionado é Narrativa impuras, realmente publicado no ano seguinte e o projeto é o “Minas Mundo: o cosmopolitismo na cultura brasileira”, a que Eneida se entregou inteira, em seus últimos tempos de vida e para o qual realmente me convidou a participar.
No dia 18 de abril de 2020, escreveu, pelo Whastapp: “No Curta agora filme de Eryk Rocha sobre o Cinema Novo. Muito bom. Venceu em Cannes”. E continuou: “Para nossas pesquisas, muito importante. Ditadura e Cinema Novo”. Em 26 de abril de 2020, ela mandou, pelo Whatsapp, arquivo de belo vídeo em preto e branco com Elis Regina cantando a marchinha “Chegou general da banda”. Em 06 de maio, enviou arquivo com texto de André Botelho sobre Mário de Andrade.
Mesmo evitando se mostrar, se exibir, às vezes enviava trabalhos que produzia, ainda que estivessem em fase de elaboração. Em 08 de maio de 2020, mandou-me arquivo com texto escrito por ela sobre a pandemia. Intitula-se “Janelas”. Partindo da novela “A janela de esquina do meu primo”, de 1822, de E.T.A Hoffman, trabalha com noções de vida privada e pública, interior e exterior, trata da cidade moderna, do silêncio das ruas vazias, do sentido de reclusão, da conversa das pessoas consigo mesmas devido o afastamento da convivência com interlocutores. O livro de Hoffman funciona como metonímia da importância do contato com a leitura literária nesses momentos de solidão, de afastamento da vida social e mesmo da força da literatura para ajudar-nos a compreender e perceber melhor o que se passa conosco em nossa época, mesmo que haja distanciamento temporal e espacial em relação ao texto lido. Eneida era assim o nosso farol. O farol de muitos de seus(suas) amigos(as), alunos(as) e ex-alunos(as), colegas de trabalho.
Em 24 de maio de 2020, escreveu: “Documentário arquitetura da destruição. Imperdível. Canal Curta, agora. Sobre Hitler e a arte”. No dia 22 de junho de 2020, recebi a mensagem pelo celular: “Amanhã, terça-feira, às 23 horas, no Canal Curta, um Programa do Café Expresso comigo e Frederico Barbosa, sobre a preguiça”. No dia 26 de junho, Eneida enviou, por e-mail, o ótimo arquivo do vídeo em que ela dá entrevista, em São Paulo, ao poeta, professor e ensaísta Frederico Barbosa, para o programa da série Café Filosófico - não Café expresso, como havia escrito; aliás, Eneida era um pouco atrapalhada nas rápidas mensagens -, intitulado “Macunaíma e a preguiça primordial”. Os dois passeiam por São Paulo, tomam café em uma padaria e visitam o museu Casa Mário de Andrade, situado na casa onde o escritor viveu, na Rua Lopes Chaves, 546, bairro Barra Funda. No local, Eneida faz interessantes considerações sobre o escritor, o mobiliário desenhado por ele, etc. No programa, o tema da preguiça é abordado por Eneida e Frederico sobre diversos ângulos, com fina inteligência e elegância.
Entre outras mensagens, em 31 de agosto, escreve: “Roniere, estou vendo Pantera Negra na Globo. Deveria ver. É fantástico”. Em 14 de outubro, assinalou: “Olá, tudo bem? Vou indo. Hoje falei para o circuito da Praça da Liberdade sobre cosmopolitismo e vanguardas na literatura mineira. Foi bom”. Em 24 de outubro, após enviar arquivo com imagem de capa de livro sobre Silviano Santiago, organizado por Edgar Cézar Nolasco e Pedro Henrique de Medeiros, escreveu: “No canal 620 Bis, um show de jazz maravilhoso. Stanley Jordan. Já tocou com Tom Jobim”.
Dia 25 de janeiro de 2021, recebi, pelo Whatsapp, o texto: “Tom Jobim no Curta filme”. “Está maravilhoso.” No dia seguinte, enviei à Eneida link com trailer do documentário Eu não sou negro, trabalho sobre a vida do escritor norte-americano James Baldwin. A Eneida havia me indicado ler texto dele na revista Serrote. Enviei também link de trailer de documentário sobre Nina Simone, intitulado What happened, Miss Simone? Disse que os filmes estavam disponíveis na Netflix. Eneida respondeu: “Vou ver Nina Simone. Gosto muito dela”. Em 18 de fevereiro de 2021, enviou mensagem: “Entrevista com Silviano no Youtube agora”. No mês de março, Eneida escreveu-me várias vezes dando informações sobre professora Vera Andrade - grande amiga de Eneida e pessoa muito amada por todos que a conheceram. Vera estava hospitalizada, com Covid, e acabou falecendo no dia 31.
Estabelecendo uma avaliação geral, tanto em mensagens de e-mail como por Whatsapp, a maioria dos arquivos refere-se a Silviano, de quem Eneida era grande amiga, seguidora e herdeira. No dia 01 de maio de 2021, escreveu: “Está interessante o programa sobre os vissungos. É um programa que o Pedro [Meira] indicou hoje em uma roda de conversa”. Dois dias depois, enviou a mensagem: “História do choro no Curta”. No dia 03 de outubro de 2021, escreveu, pelo Whatsapp, bem sintética, como de costume: “João Bosco e orquestra Ouro Preto agora no YouTube”. Em 13 de setembro tratou dos encontros virtuais do Minas Mundo: “Eu não estou participando das lives porque continuo em tratamento. Mas está indo”. Em 02 de outubro, assinalou: “Oi Roniere, estou esperando o resultado de alguns exames para dar andamento ao tratamento. E o seu texto? Gostaram dele? Deve sair quando? Espero que sim. Bjs”. O texto referia-se a ensaio sobre Guimarães Rosa que Eneida havia me indicado a escrever para o livro Sertão mundo. O trabalho relacionava-se à exposição homônima que estava ocorrendo no Espaço do Conhecimento da UFMG, Praça da Liberdade. Ela iria escrever o ensaio mas, devido ao tratamento médico, passou-me a incumbência. Percebemos nessas mensagens de Eneida a preocupação com a saúde, o gosto pelo estudo, pelo aprendizado e pela vivência artística. Ao mesmo tempo, nota-se a preocupação com a qualidade das produções. Havia sempre na Eneida, ao lado do espírito lúdico e do gozo existencial, a postura de exigência consigo mesma e com os seus pares. Nota-se, nos pequenos escritos, o interesse em amparar o mundo para que ele possa girar bem, seguindo o seu compasso. Torna-se importante, nesse sentido, a dedicação, o esforço, a entrega.
Em 07 de outubro, Eneida foi agraciada, pela ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada), durante o congresso internacional que ocorria de forma virtual, com o Prêmio Tânia Franco Carvalhal. Fui convidado pela direção da ABRALIC para fazer o discurso de entrega da premiação. Em parte do discurso, escrevi um parágrafo relacionando, metaforicamente, atividade intelectual e ofício de costureira, ao modo como a pensadora desenvolvia algumas de suas analogias. Cito trecho:
Como costureira de talento, cria finas roupas. Nas atividades, avalia o tecido, a textura, a cor, escolhe o molde, corta o pano, faz alinhavos e pisa, com ritmo regular, o pedal da máquina. Interrompe a ação para observar o pesponto de modo mais próximo à vista e depois distancia-se um pouco para melhor perceber o caimento da peça. A modista viaja para acompanhar tendências, ir a feiras internacionais, observar ostreet style, aprender novas técnicas, conhecer talentos, apreciar relações entre arte e cultura, importar tecidos e tratá-los com percepções locais. Trai memórias apreendidas, mescla saberes diversos, inclui, nas produções, bordados nordestinos, estampas do Jequitinhonha, inventa novos cortes, novas costuras, cuida do acabamento. Assim monta sua coleção e realiza seus lançamentos. Com o trabalho minucioso de quem passa a linha pelo buraco da agulha sem perder de vista o contexto, as voltas do planeta, as reviravoltas do país, dissemina as obras que podem funcionar como máquinas de vestir, de morar, de viajar, peças a partir de onde se pode observar as modalidades artístico-culturais e as formas de vida do mundo ao redor. Assim, o trabalho cotidiano da costureira vai se transformando - pelos desenhos precisos da linha e pelos delírios flutuantes da imaginação - no trabalho de estilista. Como hábil costureira e artesã, e ao mesmo tempo estilista inventiva, Eneida Maria de Souza tem produzido marcantes modelos de análise e contribuído imensamente para o desenvolvimento da área de Teoria da Literatura, Literatura Comparada e Crítica Cultural no país. (Menezes, 2022MENEZES, Roniere. Eneida Maria de Sousa: os saberes da crítica. In: TAUFER, Adauto Locatelli; CUNHA, Andrei dos Santos; ZITTO, Bruno Costa (org.). Diálogos transdisciplinares: ciencias humanas, cultura, tecnología. Porto Alegre: Class, 2022. p. 17-26., p. 18).
Lembrei-me dessa passagem pois, logo após o final da live, Eneida me ligou, agradecendo pelo meu texto, do qual dizia ter gostado muito. Como este meu ensaio, agora para livro da ABRALIC, trata de biografemas da nossa companheira e de nossos constantes diálogos, achei que seria bom retornar ao texto do discurso pois descreve algumas facetas da intelectual.
Pelo Whatsapp e por e-mail, Eneida me enviava texto de Silviano sobre Mário de Andrade, podcast de Silviano abordando a obra de Machado de Assis e Graciliano Ramos, vídeo com música latino-americana, ensaio sobre a obra de Caetano Veloso a partir do filme Narciso em férias, artigo sobre Jacques Derrida, fotografias tiradas por ela mesmo da instalação intitulada “Entidades”, que apresentava duas cobras gigantes serpenteando os arcos do Viaduto de Santa Tereza, em Belo Horizonte, criação de Jaider Esbell. Enviava textos teóricos como “Out of the dark night: essays on decolonization”, de Achille Mbembe, entrevista com Vladimir Safatle, textos da Folha de S. Paulo sobre política brasileira, publicação da Editora N-1, do Suplemento de Pernambuco, etc.
Além de CDs, cadernos e canetas, era comum a manhuaçuense me presentear com livros teóricos e literários. O último presente foi o livro A literatura nazista na América, de Roberto Bolaño. As dicas iam de filmes a CDs, indicações de novas cantoras, como Marina de la Riva, de coleção de CDs, como a de Paulo Vanzolini, e daí por diante. Em uma noite, levou uma professora cubana a nosso apartamento. Tomamos vinho, jantamos e passamos a noite assistindo ao DVD que Eneida havia levado com lindas e fortes interpretações de Bebo Valdés e Diego el Cigala.
Certa vez fomos ao restaurante português Verde Gaio, que funcionava no bairro de Lourdes, em Belo Horizonte. Havia um show de fados portugueses realizado por estudantes de escola de música da Unicamp. Após a apresentação, com o restaurante mais vazio, fomos para a mesa dos músicos e começamos a cantar, eu também dei minha canja musical, fomos pedindo mais uma e mais outra garrafa de vinho. Ficamos até umas cinco da manhã. Eneida também sempre repetia a história: “Este aqui se entusiasmou no Verde Gaio, queria só cantar e tocar com a roda, pedir garrafas de vinho e depois me ligou no dia seguinte dizendo que a conta havia ficado muito cara. É lógico. Não sabe parar”. Como boa contadora de história, não dizia estar também aproveitando a noite o quanto pôde.
Em certa ocasião, fizemos um encontro em nosso apartamento. Ficamos cantando e tocando violão até mais de 5:00 da manhã, talvez para o incômodo de vizinhos... No dia seguinte, eu e a Dani não estávamos passando muito bem. Ficamos preocupados se havia algo estragado na comida japonesa encomendada. Liguei para a Eneida para saber se ela estava bem e ela disse: “Já fui à hidroginástica e já dei entrevista para a Rede Globo sobre o Fernando Sabino - que havia falecido nesse dia - e estou saindo para almoçar”. A nossa baixinha notável era dura na queda. Algumas vezes tocou piano em nosso apartamento. Tocava bossa nova, Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Baden Powell, algumas peças conhecidas de MPB. Tinha habilidade com o piano, apesar de não exercitar muito devido ao trabalho acadêmico incansável e ao fato de o instrumento dela - no qual estudou muito durante a adolescência - ficar em Manhuaçu.
Quando surgiu o documentário Vinicius, eu fui com Eneida assistir ao filme no cinema do Shopping Diamond. Foi uma epifania vermos o trabalho naquela pequena sala de cinema, lotada. Todo mundo ligado e adorando as canções, as histórias do poetinha. Assim que o filme acabou e as luzes se acenderam, Eneida se levantou e disse a mim: “Agora precisamos tomar um uísque”. Seria uma homenagem ao Vinicius e um brinde à vida, aos biografemas do autor presentes no vídeo. Seria um brinde a nós mesmos que estávamos ali podendo ver como tão grande pode ser a vida.
A Viagem e o olhar
Fizemos várias viagens juntos. Fomos uma vez para Bichinho, distrito de Prado, lugarejo próximo a Tiradentes, acompanhados de Eneida Leal Cunha e outra amiga. Eu tinha uma casa no Bichinho. Eneida foi dirigindo, toda feliz com o passeio. Estivemos em Congonhas, São João del Rey e, ao chegarmos a Tiradentes, lembro-me de irmos a um restaurante e, antes do almoço, Eneida deliciar-se com uma boa dose de cachaça. Parecia querer beber da vida a cada instante, vivenciar em profundidade cada encontro. Assim, deixou marcas intensas por onde andou. Nessa ida ao Bichinho, ainda houve um sarau musical à noite. Uma outra boa viagem que realizamos foi a um festival de jazz em Ouro Preto. Entre amigos, amigas, algumas doses de uísque e muito frio, vibramos com o show de artistas estrangeiros e, em especial, com a apresentação de César Camargo Mariano e Romero Lubambo.
Em 2012, fomos ao Congresso internacional da LASA (Latin Amerian Studies Association), em San Francisco, Califórnia, juntamente com o Prof. Reinaldo Marques e Lúcia Lopes, grande amiga de Eneida. Visitamos museus, fomos à ponte Golden Gate, ao vilarejo de Sausalito, à livraria City Lights Bookstore - que fora ligada à Geração Beat e tivera Jack Kerouac entre seus frequentadores -; estivemos em restaurante frequentado por grandes estrelas do cinema norte americano dos anos 1940-1960. No encerramento do Congresso, houve um show de música cubana. A viagem a San Francisco foi encantadora devido à beleza da cidade, aos seus ritmos, ao espírito cosmopolita que habita o lugar.
Em novembro de 2013, aconteceu, na UFBA, Salvador, o Seminário de Estudos sobre o Espaço Biográfico, intitulado “Desafios da bioficção”. O evento teve caráter interartístico e interdisciplinar. Na abertura do seminário houve uma homenagem à Eneida, pelos seus 70 anos. A professora da UFBA, pessoa querida, também ex-orientanda e grande amiga da Eneida, Rachel Esteves Lima - uma das organizadoras do encontro -, me convidou para realizar, junto com Paulinha - sua orientanda de mestrado -, uma apresentação musical. Tocamos e cantamos no Auditório da Reitoria da UFBA, tendo no palco a companhia de ótimos músicos baianos, com quem tivemos alguns ensaios. Foi uma noite muito especial e Eneida ficou feliz com a cerimônia, com o presente sonoro.
Durante o Congresso da BRASA (Brasilian Studies Association) de 2014, em Londres, ao lado de vários amigos e amigas, como Anderson Martins, Rachel Lima, Marília Rothier Cardoso, Lúcia Lopes, as irmãs da Eneida, Cibele e Leila, fomos assistir à peça Rei Lear, de Shakespeare, no Globe Theater. Além dos encontros acadêmicos, dos ótimos debates, fomos a diversos pontos turísticos, a bons restaurantes, contamos casos, rimos bastante.
Em 2015, viajamos - eu por indicação de Eneida - a São Paulo para participar de um seminário organizado por Eduardo Jardim na Biblioteca Municipal Mário de Andrade sobre os 50 anos de morte do poeta modernista. Em uma das noites durante o evento fomos ao Teatro da PUC junto com Florencia Garamuño e Lúcia Lopes assistir à peça A tempestade, de Shakespeare. Na volta para Confins, estávamos andando no Aeroporto de Congonhas quando, de repente, Eneida disse: “Veja quem está lá na frente: o Criolo”. O rapper estava distante e eu não notei sua presença, mas o olhar arguto de Eneida o havia reconhecido no meio da multidão. Entre Mário de Andrade e Criolo certamente existe grande diferença, mas torna-se possível estabelecer comparações - pelas semelhanças e diferenças -, algo que Eneida, com sua “sabença”, fazia muito bem. Essas associações eram realizadas em suas viagens, em suas montagens sobre a mesa de estudo, nos arquivos do notebook, no momento da escrita, dos debates acadêmicos. Sempre defendeu os novos nomes surgidos na cena artística do país. Lembro-me de ela elogiar muito o cantor Seu Jorge quando este apareceu. Torna-se difícil pensar em idade quando tratamos de nossa mestra pois ela, com suas antenas contemporâneas, revelava-se sempre jovial, estava sempre à frente, seja nos debates sobre novas teorias, no interesse pelos novos filmes, na escuta dos últimos lançamentos de música popular no país.
O canto e a alegria
Lembro-me de uma série de TV - se não me engano - que trazia, na abertura, a música “Juízo final”, de Nelson Cavaquinho. Na época, conversamos sobre o compositor, seus parceiros, sobre a criação popular; escutamos a música em alto volume, emocionados e concentrados, cantando juntos, entre doses de uísque e bom tira-gosto. A letra, o ritmo, a melodia vinham embalados com a voz rouca, o coro, o cavaquinho, o violão com bordões bem ponteados, a percussão e a cuíca: “O sol há de brilhar mais uma vez/ A luz há de chegar aos corações/ Do mal será queimada a semente/ O amor será eterno novamente// É o juízo final/ A história do bem e do mal/ Quero ter olhos pra ver/ A maldade desaparecer”. Ao me recordar da cena, agora, veio-me à mente carta em que Mário de Andrade escreve a Moacyr Werneck de Castro dizendo ter escutado “Vão acabar com a praça onze”:
Gostei, sim, muitíssimo do Amélia,1 1 “Ai que saudades da Amélia”, samba de Ataulfo Alves e Mário Lago (carnaval de 1942). é das coisas mais cariocas que se pode imaginar. Mas o Vão acabar com a Praça Onze2 2 “Praça Onze”, samba de Herivelto Martins e Grande Otelo (carnaval de 1942). me estrangula de comoção, palavra. Você já viu coisa mais lancinante? Aquele grito “Guardai o vosso pandeiro, guardai!” é das frases mais musicalmente comoventes, um grito manso, abafado, uma queixa de povo suave, que se deixa dominar fácil, sem muita consciência, mas sofre e se queixa. Palavra que acho aquilo horrível, de não poder aguentar. Tomei como um ataque sentimental danado. Xinguei a estupidez do “progresso” dos estúpidos, está claro, fiz discurso num ambiente bom com vários uísques e de vez em quando continuava cantando o sermão, “guardai o vosso pandeiro, guardai!” com lágrimas nos olhos. (…). (Castro, 1989CASTRO, Moacir Werneck de. Mário de Andrade: exílio no Rio. Rio de Janeiro: Rocco, 1989., p. 189-190).
Podemos aproximar Eneida de Souza e Mário de Andrade em vários aspectos, por exemplo, no gosto detido pelo estudo, na elaboração de projetos visando frutos a longo prazo, nas reflexões sobre a noção de modernidade, mas também na percepção da vida como doação, dispêndio, no entusiasmo pelas coisas tidas como simples, porém dotadas de muito saber e arte.
A mescla entre o discurso intelectual e a experiência artística norteou a vida de Eneida, por mais que às vezes mostrasse o seu lado mais duro, de pesquisadora séria. Algumas vezes, ao assinalar que havia concluído a leitura de uma tese ou dissertação, para não dizer que havia fortes críticas ao trabalho, comentava: “Não tá ruim não”. Outras vezes, revelava-se ansiosa e aflita quando, por exemplo, em alguma apresentação de congresso ou seminário, alguém ultrapassava muito o tempo e não desconfiava ou então não havia preparado bem a palestra, etc. Em situações assim, Eneida balançava a cabeça, fechava a cara e dizia: “Gente!!!”. Era muito cuidadosa, acolhedora, mas também muito exigente com orientandos(as) e alunos(as). Não gostava muito de abraçar, de pegar; não era efusiva ao receber algum carinho. Nesses momentos, mostrava sempre uma espécie de reserva. Mas não perdia oportunidade de estar numa roda de amigos, de brincar, de rir das histórias. Não era de seu hábito falar de coisas tristes, de doenças, etc. Esse assunto durava pouco. Queria a vida pulsando, o humor. Com amigos e amigas, dividia as histórias de trabalho com seus conflitos, os desejos de realizar bons projetos, as expectativas sobre a política social do país. Sempre recusava o lamento, o ressentimento. A emoção aflorava em seus olhos, em seu sorriso, quando a arte lhe tocava. Certa vez, no apartamento da Eneida, toquei violão e cantei umas músicas antigas, como “Meus tempos de criança”, de Ataulfo Alves, para a mãe dela, a D. Lilita. Notava-se a alegria estampada no rosto de Eneida ao ver a mãe, já bem idosa, cantando, delicada e feliz, com a turma.
De 20 a 24 de julho de 2015, eu e Eneida dividimos uma oficina sobre música popular e Ditadura Militar no Brasil no Festival de Inverno da UFMG. O curso aconteceu na Escola de Música da UFMG e foi uma experiência muito interessante devido aos diálogos ocorridos na preparação dos encontros, nas propostas de tarefas para a turma e durante nossas aulas. Para o corpus foram selecionadas canções de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento e Chico Buarque. Em alguns momentos, cheguei a tocar violão e cantar algumas canções. A música, a relação entre literatura e outros campos artísticos, incluindo o contexto sócio-histórico, sempre foi um bom lugar de respiro nas minhas relações e em minhas conversas com Eneida.
As histórias são muitas, as idas a eventos artísticos diversas, não cabem todas as experiências neste curto texto. Mas de tudo fica um pouco, como dizia o poeta de Itabira. Fica a vontade de viver, de aproveitar os momentos ao lado de pessoas de quem se gosta, de ouvir o próximo e o distante, de se aproximar das produções culturais do país sem nunca se fechar para as criações cosmopolitas - que possibilitam, inclusive, uma mirada mais profunda para as produções locais.
A despedida e o agradecimento
Durante a pandemia, eu e a Eneida não nos vimos. Conversávamos com frequência por telefone, pelo Whatsapp e por e-mail; encontrávamo-nos em lives, algumas delas promovidas pelo Projeto Minas Mundo. Quando do pré-lançamento do projeto, fizemos um encontro pela internet entre os componentes do grupo, com vinhos e bom papo. Depois, no lançamento oficial, aconteceu um show, pela internet, de José Miguel Wisnik e Marina Wisnik. Durante a exibição, de que gostamos muito, Eneida me ligou rapidamente, dizendo: “está chorando, Roniere?”. Ela sabia que eu e a Cibele - sua irmã - choramos à toa ao ouvirmos bons shows musicais. Não perdia a oportunidade de fazer uma brincadeira.
Gostaria de dizer de minha felicidade e de meu agradecimento pelos muitos convites feitos a mim por Eneida: para realizar palestras em seminários na FALE-UFMG, em cursos da professora no Pós-Lit/UFMG, no curso de Letras da Universidade Federal de São João del Rey, em seminário em São Paulo. Foram feitos convites para eu participar de projetos, e mesmo várias indicações de meu nome para a realização de trabalhos, como o da organização do site oficial de Murilo Rubião - trabalho realizado por volta de 2005-2006. Tudo isso, além de apoio para a publicações de ensaios em coletâneas e principalmente de meu livro O traço, a letra e a bossa: literatura e diplomacia em Cabral, Rosa e Vinicius. Após contatos com uma primeira editora, o livro acabou sendo publicado em 2011, pela Editora UFMG. A última indicação foi para substituí-la, na escrita de pequeno texto sobre Guimarães Rosa para o livro Sertão Mundo, como assinalei. Assim, por meio desse trabalho diplomático, várias portas foram se abrindo.
Ficou faltando o último contato, a despedida, que poderia ter ocorrido quando do lançamento do livro Narrativas impuras, no dia 06 de novembro de 2021, na Livraria Quixote. Daniela, minha mulher, e Bia, minha filha, foram, e depois saíram juntas para almoçar em restaurante. Ficaram conversando com outros amigos e amigas até tarde. Eu não fui pois estava muito gripado e fiquei com receio de me encontrar com a Eneida, que estava muito fragilizada devido a tratamento de saúde. Esperava ainda encontrá-la boa, curada. Na dedicatória do livro, escreveu: “Para Daniela, Roniere e Bia, com amizade eterna. Eneida”.
No dia 23 de novembro de 2021, enviei à Eneida arquivo com o texto publicado no catálogo da exposição Sertão-mundo. Ela respondeu: “Muito bom seu texto. Você se saiu muito bem da encomenda. Estou indo. Amanhã faço o último exame. Espero. Bjs”. Lendo agora, com distanciamento, a expressão “Estou indo”, nota-se uma ambiguidade, uma percepção, talvez difícil de assumir inteiramente, de que o tempo estava se esgotando.
No dia 08 de dezembro de 2021, dia do aniversário de nossa amiga, ela estava hospitalizada. Eu, a Daniela e a Bia gravamos uma mensagem de voz e enviamos a ela. Cantamos os parabéns, cada um falou um pouco e, ao final, eu toquei violão e cantei “Reconvexo”, de Caetano Veloso, de quem, como já salientei, era grande admiradora. Como resposta, escreveu, no Whatsapp: “Obrigada queridos. Depois agradeço tudo de bom que vocês têm me proporcionado”. Dia 11, escreveu: “Já estou em casa me restabelecendo”.
Durante o tempo de internação, a pedido da Eneida e Cibele, fui doar sangue para a minha amiga no Hospital Felício Rocho. Pedi a alguns amigos e ex-alunos da Eneida que fossem fazer a doação e obtive certo êxito. Consegui também, por meio de um colega conterrâneo, comandante de polícia, que alguns militares doassem sangue para ela.
Na véspera do Natal de 2021, estávamos indo para Itaúna, com a Daniela dirigindo o carro. Eneida me ligou do hospital, com voz fraca, e disse que estava me ligando para agradecer. Falamos pouco, mas de modo bem afetuoso. Disse que esperava a sua melhora para poder visitá-la, desejei saúde e votos de um ótimo Natal e Ano Novo. Foi nosso último diálogo. Estranhamente, eu, que devo demais à Eneida, por tudo que fez por mim em minha vida acadêmica-profissional, por nossa sincera amizade, por poder ter compartilhado comigo ótimos momentos existenciais, fui quem recebi agradecimento nesse momento que, sem eu saber, era de despedida. Mas o agradecimento sou eu quem farei eternamente à nossa querida mestre e parceira de inúmeros projetos e belas vivências, amiga de longas e boas conversas que continuam existindo e irão permanecer para sempre. A última mensagem aconteceu dia 02 de janeiro de 2022, um dia após meu aniversário: “Parabéns atrasados, Roniere!” Estava doente, internada, mas sempre ligada às datas, aos compromissos, aos afetos.
Eneida partiu dia 01 de março de 2022, terça-feira de carnaval. Foi viver ao lado da Ursa Maior que é Macunaíma, ao lado de amigos e amigas que tanto amava, como Renato Cordeiro Gomes e Vera Lúcia Andrade, junto dos pais que tanto admirava, no campo vasto do céu. Quando de madrugada olhamos para o alto e vimos a estrela da manhã, não é a estrela da manhã não - como dizia Macunaíma -, é nossa mestra e amiga que continua a brilhar e a orientar nossos caminhos.
Referências
- CASTRO, Moacir Werneck de. Mário de Andrade: exílio no Rio. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
- MENEZES, Roniere. Eneida Maria de Sousa: os saberes da crítica. In: TAUFER, Adauto Locatelli; CUNHA, Andrei dos Santos; ZITTO, Bruno Costa (org.). Diálogos transdisciplinares: ciencias humanas, cultura, tecnología. Porto Alegre: Class, 2022. p. 17-26.
- SANTIAGO, Silviano. Caetano Veloso enquanto superastro. In: SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos Recife: CEPE, 2019. p.171-190.
- SOUZA, Eneida Maria de. Estragando o sábado. Estado de Minas, Belo Horizonte, n. 2, p. 10, 1972.
- SOUZA, Eneida Maria de. Jeitos do Brasil. In: SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002. p.147-160.
- SOUZA, Eneida Maria de. O samba da minha terra. In: SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011. p.235-2540
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1
“Ai que saudades da Amélia”, samba de Ataulfo Alves e Mário Lago (carnaval de 1942).
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2
“Praça Onze”, samba de Herivelto Martins e Grande Otelo (carnaval de 1942).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Dez 2023 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2023
Histórico
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Recebido
10 Out 2023 -
Aceito
23 Out 2023