RESUMO
Introdução: A negativa familiar para autorização da doação de órgãos e tecidos humanos mantém-se elevada ao longo dos anos. Dentre as muitas causas de não efetivação da doação, destacam-se a falta de informação sobre o processo e o desconhecimento da família sobre o desejo do doador em vida, além de outras questões, como a aparência do corpo do doador após a captação. Nesse sentido, torna-se necessário trazer à luz da discussão os aspectos que permeiam os conceitos de morte, dignidade humana e zelo pela imagem do doador, principalmente no caso de doadores de tecidos, nos quais a retirada pode apresentar-se mais perceptível.
Objetivos: Realizou-se uma revisão integrativa da literatura (RI), buscando evidenciar lacunas e caracterizar o processo da doação de órgãos e tecidos humanos, com foco na reconstrução do corpo do doador e na dignidade humana. Em complemento, também se propôs descrever um relato de experiência de um profissional de um banco de tecidos humanos (BTH).
Métodos: Por meio da estratégia PICO, elaborou-se a questão norteadora do estudo, após a RI realizada nos últimos 10 anos, operacionalizada por descritores controlados nas bases de dados SciELO, LILACS, Google Acadêmico e PubMed. Adicionado à busca, foi descrito um relato de experiência referente às técnicas de reconstrução do corpo do doador após a captação dos tecidos utilizados por um BTH localizado no interior do estado de São Paulo.
Resultados: Foram encontrados nove estudos específicos sobre doação e utilização de próteses para reconstrução de áreas doadas. Os resultados demonstram os motivos que envolvem a recusa familiar, assim como o cuidado que as equipes técnicas têm na reconstituição do corpo dos doadores. A preocupação da família em relação à situação estética do doador influencia a aceitação para doação, portanto, torna-se necessário investir na seguridade e na qualidade dos serviços prestados pelos BTH, a fim de diminuir a recusa familiar para doação.
Conclusão: A comunicação clara e a seguridade dos processos que envolvem a captação de órgãos e tecidos humanos mostraram-se o melhor caminho para facilitar a doação, podendo, assim, aumentar as doações.
Descritores Doadores de Tecidos; Obtenção de Tecidos e Órgãos; Coleta de Tecidos e Órgãos; Cadáver; Banco de Tecidos
ABSTRACT
Introduction: Family refusal to authorize the donation of human organs and tissues has remained high over the years. Among the many reasons for not donating, we highlight the lack of information about the process and the family’s lack of knowledge about the donor’s wishes in life, as well as other issues, such as the appearance of the donor’s body after donation. In this sense, it is necessary to bring to light the aspects that permeate the concepts of death, human dignity, and care for the donor’s image, especially in the case of tissue donors, where the removal may be more noticeable.
Objectives: An integrative literature review (ILR) was carried out, seeking to highlight gaps and characterize the process of donating human organs and tissues, with a focus on the reconstruction of the donor’s body and human dignity. In addition, the aim was to describe the experience of a professional from a human tissue bank (BTH).
Methods: Using the PICO strategy, the study’s guiding question was drawn up following an IR carried out over the last 10 years, operationalized by controlled descriptors in the SciELO, LILACS, Google Scholar, and PubMed databases. In addition to the search, an experience report was described on the techniques used to reconstruct the donor’s body after the tissues used by a BTH located in the interior of the state of São Paulo were harvested.
Results: Nine specific studies were found on donation and the use of prostheses to reconstruct donated areas. The results show the reasons for family refusal, as well as the care taken by the technical teams in reconstructing donors’ bodies. The family’s concern about the donor’s aesthetic situation influences acceptance for donation, so it is necessary to invest in the safety and quality of the services provided by BTH to reduce family refusal for donation.
Conclusion: Clear communication and the safety of the processes involved in the procurement of human organs and tissues proved to be the best way to facilitate donation and could thus increase donations.
Descriptors Doadores de Tecidos; Obtenção de Tecidos e Órgãos; Coleta de Tecidos e Órgãos; Cadáver; Banco de Tecidos
INTRODUÇÃO
A doação de órgãos e tecidos humanos é um procedimento cirúrgico que envolve a retirada, a alocação e o processamento de órgãos e tecidos viáveis e inócuos após o consentimento familiar, no caso de doadores em morte encefálica e/ou parada cardiorrespiratória1. Dessa forma, um único indivíduo falecido pode ajudar ou salvar inúmeras vidas, chegando a alcançar mais de 20 pessoas, principalmente pela doação dos tecidos1-3.
As doações de órgãos e tecidos constituem uma alternativa terapêutica segura e eficaz para tratar diversas doenças e quadros clínicos, proporcionando melhor qualidade e perspectiva de vida para os receptores2. Em casos específicos de utilização de tecidos, esses apresentam maior taxa de efetivação e sucesso nos transplantes, já que não necessitam de histocompatibilidade doador-receptor, apresentando, assim, menores índices de rejeição1,3. Assim como nos órgãos, as demandas pelos transplantes de tecidos advêm, também, da consequência de problemas agudos e crônicos por diversas situações, sendo uma prática cada vez mais comum em centros cirúrgicos4,5.
Nos últimos anos, mesmo que ainda insuficiente para contemplar toda a fila de espera, observou-se aumento do número de doadores de tecidos humanos em todo o país4. Segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), os principais tecidos humanos utilizados em transplantação são córneas, pele, membrana amniótica, válvulas, ossos (fêmur, tíbia, fíbula, rádio, úmero, ulna, entre outros), tendões, ligamentos, meniscos, fáscias, cartilagens, etc.4,6
Na esfera legal, compreende-se por bancos de tecidos humanos (BTH) o serviço que tenha instalações físicas e recursos materiais e humanos adequados, que seja responsável pela identificação de potenciais doadores, realizando, também, entrevista familiar, captação, reconstrução do corpo do doador, processamento, armazenamento e distribuição de tecidos de procedência humana, com finalidade terapêutica e/ou científica5-8. No Brasil, atualmente, há apenas cinco BTH credenciados responsáveis pela captação de tecidos musculoesqueléticos, localizados em grandes centros nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Paraná6,7.
Os BTH são mais requisitados pelos centros de ortopedia e odontologia, principalmente pelos tecidos ósseos (musculoesquelético) disponibilizados, que podem ser utilizados em técnicas de enxertia8. Entretanto, pesquisadores já evidenciaram que apenas a implantação do banco de tecidos e sua regulamentação não são suficientes para atender às demandas da sociedade, pois todo o processo depende, principalmente, da existência de doadores aptos e da aceitação por parte de seus familiares7-9.
Sabe-se que muitas famílias deixam de aceitar a doação devido à crença sobre a imagem do doador cadáver após a captação, com o imaginário de amputação e ou desfiguração de seu corpo2. Dessa forma, cabe aos profissionais responsáveis pelo procedimento de captação realizar de forma ética e coerente um serviço de qualidade, preservando, assim, a dignidade do doador e dos familiares envolvidos emocionalmente em relação ao seu ente querido10. Destaca-se, ainda, que o cuidado humanizado se dá desde a abordagem aos familiares em relação à doação até à realização da coleta e entrega do corpo10-12.
O processo de reconstituição do corpo do doador ainda é pouco conhecido pela população em geral, e até mesmo se configura como tabu, tratando-se de temática pouco explorada nos veículos de informação, o que leva à desinformação e, consequentemente, à recusa familiar2,11,12.
Diante do exposto, o presente trabalho objetivou realizar uma revisão integrativa da literatura (RI), buscando evidenciar lacunas e caracterizar o processo da doação de órgãos e tecidos humanos, com foco na reconstrução do corpo do doador e na dignidade humana. Em complemento, também se propôs a descrever um relato de experiência de um profissional de BTH que atua no processo de captação de órgãos e tecidos humanos.
MÉTODOS
O presente trabalho foi realizado em duas diferentes etapas: na primeira foi desenvolvida a RI da literatura, seguida por um relato de experiência de um profissional atuante na área da doação e transplantes de tecidos humanos.
Revisão integrativa da literatura (RI)
A RI é um método que proporciona a síntese de conhecimento e a incorporação da aplicabilidade de resultados de estudos significativos na prática2. Dentre os métodos de revisão, a RI é o mais amplo, com a vantagem de inclusão simultânea de pesquisa experimental e quase-experimental, proporcionando uma compreensão mais completa do tema de interesse, além de permitir a combinação de dados de literatura teórica e empírica. Assim, o revisor pode elaborar uma RI com diferentes finalidades, incluindo a definição de conceitos, a revisão de teorias ou a análise metodológica dos estudos abrangendo um tópico particular13.
Para refinamento do rigor metodológico de uma RI, recomenda-se fortemente seguir as seis etapas para sua elaboração: 1) Formulação da pergunta norteadora; 2) Amostragem ou busca dos estudos na literatura; 3) Extração dos resultados; 4) Análise crítica; 5) Análise e síntese dos resultados da revisão; e 6) Apresentação da RI2,13,14. Essas etapas foram realizadas e descritas neste estudo.
Visando contemplar as principais bases de dados para as áreas médica e da saúde, realizamos uma busca abrangente, com diferentes combinações de descritores controlados e não controlados, nas seguintes plataformas: SciELO, LILACS, Google Acadêmico e PubMed. O período de triagem dos artigos foi de agosto a outubro de 2023.
Como questão norteadora desse processo, seguindo o Joanna Briggs Institute reviewers’ manual (JBI)14, foi proposta a seguinte questão norteadora: “Existem evidências na literatura sobre os procedimentos e protocolos acerca da captação de tecidos musculoesqueléticos e sobre o processo de reconstituição do corpo de doadores de órgãos e tecidos?”
As estratégias de busca para cada uma das bases de dados foram desenvolvidas conforme a estratégia PICO, na qual P = População de interesse, I = Fenômeno de interesse e Co = Resultados esperados/encontrados14, como representado na Tabela 1.
Descritores controlados utilizados como estratégia de busca nas bases de dados investigadas.
A escolha dos descritores se deu por meio de buscas no portal Descritores em Ciências da Saúde (DeCs), realizando testes nas bases de dados e identificando os termos mais utilizados em artigos científicos da área investigada. As palavras-chave e os termos livres foram incluídos a cada busca, no decorrer da pesquisa.
Por se tratar de temática muito específica, foi feita uma busca por trabalhos publicados nos últimos 10 anos em cenário mundial. Foram incluídos artigos originais e literatura cinzenta, como teses, dissertações ou trabalhos de conclusão de curso, nos idiomas português e inglês.
Para inclusão no trabalho, os estudos deveriam abordar e descrever materiais e técnicas de reconstituição de cadáveres utilizados pelos BTH e captação de órgãos e tecidos. Foram excluídos trabalhos que abordavam apenas técnicas de reconstituição para doação de órgãos, artigos secundários, protocolos e cartas editoriais.
Todas as publicações identificadas na primeira triagem (busca inicial nas bases de dados) foram organizadas e carregadas no Rayyan13, software gerenciador de dados para trabalhos de revisão que auxilia na seleção de artigos científicos. Esse software permite a remoção de duplicatas e proporciona praticidade aos revisores na seleção dos trabalhos de interesse.
Assim, dois pesquisadores independentes examinaram os títulos e resumos de cada artigo selecionado na primeira triagem, de maneira duplo-cega. Após a triagem, foram discutidos os achados e resolvidos os conflitos, quando a inclusão/exclusão de algum artigo divergia entre os revisores. Os textos completos dos artigos selecionados nessa primeira triagem foram analisados novamente em modo cego de acordo com os critérios de inclusão e exclusão. A amostra final foi alcançada após consenso e os dados foram apresentados conforme o modelo Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA)15.
Relato de experiência
Na segunda fase da pesquisa, foi descrito um relato de experiência, de abordagem crítico-reflexiva, de um dos pesquisadores do presente estudo que faz parte da equipe de um BTH, referência no país, localizado em uma cidade do interior do estado de São Paulo. No relato, foram descritos as principais técnicas de reconstrução de cadáver após doação de tecidos humanos e os aspectos referentes à postura e ao profissionalismo dos envolvidos nesse processo, ressaltando a importância da doação de tecidos musculoesqueléticos.
RESULTADOS
Revisão integrativa da literatura (RI)
Nos últimos 10 anos, 337 trabalhos científicos com a temática em estudo foram encontrados. Após a triagem, avaliação duplo-cega e análises, nove publicações foram consideradas adequadas para responder à questão norteadora do estudo e incluídas na amostragem final. Mais informações sobre o processo de seleção dos trabalhos nas bases de dados estão representadas na Fig. 1, conforme o modelo PRISMA15.
Com relação aos países onde os trabalhos com a temática foram desenvolvidos, mais da metade (5/9) é brasileira, demonstrando o crescimento de pesquisas na área de transplantes de órgãos e tecidos humanos nos últimos 10 anos no país. As mais importantes características dos trabalhos incluídos na amostragem final estão representadas na Tabela 2.
Relato de experiência
Percebe-se, com a experiência técnica-prática-filosófica e com os anos de experiência em um BTH, que há grande potencial na doação de órgãos e tecidos humanos. Esse potencial pode salvar vidas que ainda aguardam (até mesmo nesse exato momento), angustiadas por anos de espera, em filas de transplantes, consultas ininterruptas e tratamentos exaustivamente prolongados, vendo o tempo esvair-se com a demora, tempo esse que não para, não regride e só aumenta, inquietamente, a realidade da não chegada.
Nesse sentido, emerge-se um potencial notável, pouco aprofundado e/ou divulgado, o qual se encontra na oportunidade em que apenas uma família doadora tem a capacidade de mudar a realidade que lhe foi colocada pela vida, ou melhor, pela morte.
No entanto, após esse ponto final da vida, urge a possibilidade de doação de órgãos e tecidos humanos como ato altruísta, de amor e compaixão ao próximo, tornando-a um possível mecanismo de superação, ou melhor, de enfrentamento de uma dolorosa fase do luto para que, enfim, a aceitação emerja das ruínas e do caos, configurada em perder irreversivelmente alguém tão amado.
É nessa lacuna que esse mecanismo de transformação pode existir. Ao pensarmos na doação como “ponte” entre a vida-morte-vida, que pode fornecer ao enlutado a superação, pensamos na dádiva que existe no “sim” de uma família doadora.
Inspirados nesse “sim”, acreditamos que é possível continuar proporcionando dignidade à humanidade, à memória, à identidade e, principalmente, ao corpo do nosso doador. De forma congruente, verdadeira e empática, criamos protocolos internos de entrevistas com familiares e elaboramos roteiros e questionários para facilitar nossa comunicação em situações críticas. Assim, um funcionário treinado por nosso BTH desloca-se para junto à equipe da Organização de Procura de Órgãos (OPO) para participar das entrevistas e explicar detalhadamente para os familiares o que será retirado, como será reconstruído, onde será alocado e como se dará o processo de preparo e envio dos tecidos ofertados, de forma clara e objetiva.
No serviço de marcenaria do hospital, confeccionam-se próteses substitutivas das áreas doadas, principalmente das de doação de tecidos musculoesqueléticos, sendo essas biodegradáveis e articuladas, prontas para serem colocadas no doador de forma digna (Fig. 2a, b). Além disso, após alguns meses da doação, o BTH envia para a família doadora uma carta de agradecimento assinada pelo diretor clínico da instituição (Fig. 2c).
Fotografias representativas de alguns processos de doação adotados por um BTH em 2024. a e b: uso de próteses para reconstrução do corpo do doador, com as áreas onde os tecidos foram retirados; c: modelo de carta de agradecimento às famílias doadoras.
Por fim, acreditamos que esses pequenos “gestos interpessoais” nos aproximam dos familiares, resgatando, assim, a fraternidade que nos move, que nos faz iguais, enfim, que nos faz humanos.
Da mesma maneira, outro fator importante é notável na dignidade de reconstrução do corpo do doador, principalmente em áreas visíveis, como o caso da doação das córneas para transplantes. Dentre as muitas técnicas existentes para captação das córneas, uma das mais utilizadas pelos Banco de Olhos e Tecidos do país é a Enucleação Ocular (remoção cirúrgica total do globo ocular). Portanto, após sua retirada, tem-se o cuidado de preencher a cavidade com algodão para o tamponamento e em seguida utiliza-se de um Reconstrutor Específico da Cavidade Orbitária (RECO) (Reco, Ribeirão Preto , São Paulo, Brasil) a fim de aproximar-se o mais fidedignamente da aparência anterior da face. Além disso, com o auxílio de um Pincel Aplicador Descartável Pequeno (Haste Aplik) - adaptado da indústria dental - (Angelus Odonto, Londrina, Paraná, Brasil) aplica-se uma supercola instantânea (cianoacrilato) em toda a linha d'água do olho do doador, aproximando em seguida cuidadosamente as pálpebras móveis superiores e inferiores. Dessa forma, é possível zelar pela imagem do doador, assim como, preservar a família e entes queridos de quaisquer constrangimentos.
Assim, após anos atuando em um BTH como profissionais que participam da conversa com os familiares na explicação de todos os procedimentos – retirada dos órgãos e tecidos humanos, reconstituição do corpo do doador e da finalidade dessa doação –, destacamos a importância da conscientização e esclarecimentos para que o tão esperado “sim” ocorra e inúmeras vidas possam ser ajudadas e salvas.
DISCUSSÃO
A doação e o transplante de órgãos e tecidos humanos estão diretamente relacionados aos diversos dilemas abordados nas temáticas da morte e do morrer. Sendo assim, os profissionais atuantes devem basear suas abordagens em diretrizes científicas comprovadas sem, no entanto, negligenciar as raízes populares e culturais da região em que atuam2.
Há várias definições sobre a temática morte23. Embora envolva significados e aspectos que transcendem a compreensão humana e científica, a definição mais concreta sobre a morte, no sentido fisiológico, é a perda das funções vitais, resultando na cessação definitiva da vida de um organismo ou de um ser humano5-7.
Nesse contexto, Santos et al.9 afirmam que a família só é capaz de doar quando verdadeiramente compreende e aceita a finitude do doador. Além disso, o dilema da aceitação (ou não aceitação) advém da falta de explicação sobre aspectos que envolvem a cirurgia, reconstrução do corpo, utilização e destino dos órgãos e/ou tecidos doados9. Muitas doações são recusadas devido à falta de compreensão do diagnóstico de morte encefálica por parte dos familiares, assim como pela falta de clareza e explicação adequada pelos profissionais responsáveis por comunicar o diagnóstico de morte de um familiar, apesar de suas funções fisiológicas estarem aparentemente evidentes aos olhos de quem o vê2,17,18,23.
Os profissionais dos BTH são responsáveis pela busca de doadores, pelo consentimento familiar, pela captação dos tecidos e reconstrução do corpo do doador de forma digna, evitando desfigurações, conforme previsto no Artigo 26º do Decreto Nº 9.175, de 20175. Em seguida, o corpo deve ser condignamente recomposto para ser entregue aos familiares para sepultamento16. Vale ressaltar que, devido a essa proteção legal, doadores de órgãos e tecidos não necessitam de sepultamento com caixão lacrado.
Devido à dificuldade de aceitação, muitos BTH optam por captar apenas os tecidos dos membros inferiores, já que isso possibilita a coleta de ossos maiores e com grande quantidade de material, resultando em melhor resultado estético para o cadáver. Uma das maiores preocupações das famílias que aceitam doar os órgãos e tecidos de seu ente querido é a situação estética na qual ele será apresentado19,20. Esse fator tem se mostrado importante no momento de decisão das famílias, quando muitas optam pela não doação devido a tabus em relação ao processo de extração do material tecido19-21.
Portanto, é crucial investir na seguridade e na qualidade dos serviços de reconstituição utilizados pelos BTH, a fim de reduzir a recusa familiar para doação17,18. A RI realizada neste trabalho, o relato de experiência aqui descrito e alguns artigos incluídos trazem diferentes técnicas de reconstrução para melhoria contínua dos serviços prestados pelos BTH e, consequentemente, maior aceitação16,20-22.
Como exemplo, o Banco de Ossos do Paraná utiliza uma técnica que envolve o uso de vergalhões metálicos, tubos de silicone e abraçadeiras de náilon para reconstituição dos tecidos musculoesqueléticos, técnica considerada de fácil execução e aplicabilidade, proporcionando resultado estético satisfatório16. Essa técnica difere daquela descrita no relato de experiência, que utiliza próteses de madeira biodegradáveis, mas segue um estilo semelhante de inserção e sutura dos membros.
A decisão sobre a doação, exclusiva responsabilidade da família, frequentemente gera conflitos e questionamentos aos envolvidos, uma vez que nem todos os potenciais doadores expressaram verbalmente em vida seu desejo favorável à doação2,9,10. Do ponto de vista ético, essa decisão é de cunho pessoal, podendo gerar divergência entre os familiares no momento da tomada de decisão, especialmente devido ao desconhecimento sobre a possibilidade de doação de diferentes tipos de órgãos e tecidos, ao seu simbolismo cultural, entre outros fatores9,10.
Portanto, é necessário considerar as práticas estudadas sobre a temática e utilizar as técnicas de reconstrução aqui descritas e/ou melhorá-las, a fim de contribuir para o processo de doação. É possível realizar essas atividades técnicas por meio de um escopo humanitário, fundamentado na empatia e no cuidado, capaz de dar subsídios de superação, oferecendo apoio, cuidado e sensibilidade23,24.
Consideradas essas questões, o que parece estar efetivamente ao alcance do profissional de saúde são subsídios que adquirem concretude por meio do acolhimento, para que a família se sinta, principalmente, acolhida e segura diante da má notícia. Sendo assim, é necessário exercer uma postura pautada nos princípios éticos, entendendo que essa família há de se lembrar com pesar quão difícil foi passar por esse momento de luto, favorecendo que se deixe alegrar ao lembrar da confiança e do acolhimento recebidos24.
Destaca-se que uma formação profissional mais humanizada para profissionais da saúde pode prepará-los adequadamente para esses momentos de contato com os familiares dos doadores e, possivelmente, contribuir para a maior aceitação da doação conscientizada, quebrando tabus relacionados ao transplante de órgãos e tecidos.
Por mais relevantes e necessários que sejam os assuntos que permeiam esse tema, é evidente que há poucos trabalhos que abordam a dignidade humana na doação de órgãos e tecidos humanos na literatura atual, necessitando, portanto, de estudos mais robustos, replicáveis e padronizáveis. Este estudo tem como limitações a não utilização de todas as bases de dados disponíveis na literatura, bem como a abordagem exclusivamente qualitativa sobre a temática.
CONCLUSÃO
Com base nos resultados da RI realizada, focada nas categorias-chave enfatizadas no campo da doação, captação e reconstrução do corpo do doador, identificaram-se lacunas significativas no processo de doação de transplantes de órgãos e tecidos humanos no Brasil, especialmente no que diz respeito à reestruturação do corpo do doador. Percebeu-se, ainda, que há muitos desafios a serem superados para que o processo de captação de órgãos e tecidos seja ampliado no cenário nacional. A comunicação clara e devidamente orientada com os familiares emerge como o melhor caminho para aumentar o número de doações, considerando que uma das principais preocupações apresentadas reside na reconstituição do corpo do doador.
O relato de experiência aqui apresentado demonstrou o processo de reestruturação conduzido por profissionais de um BTH de referência no Brasil, evidenciando, novamente, a importância de uma abordagem humanizada e empática com o doador e sua família. Diante do exposto, o presente estudo indica a necessidade de novas pesquisas e técnicas direcionadas à reconstituição do corpo do doador, visando sua ampla divulgação na comunidade, e ações de conscientização que possam favorecer a quebra de tabus, possibilitando um maior índice de aceitação de doação por parte dos familiares.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem a contribuição das instituições que colaboraram neste estudo multicêntrico entre o Banco de Tecidos Humanos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/SP – Brasil, o Centro Universitário Estácio de Ribeirão Preto (Estácio) e a National School of Public Health, Comprehensive Health Research Centre, Lisboa, Portugal.
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FINANCIAMENTO
Não aplicável.
DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA
Todos os dados foram gerados ou analisados nesse estudo.
REFERÊNCIAS
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Editado por
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Editora de Seção: Ilka de Fátima Santana F Boin https://orcid.org/0000-0002-1165-2149
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Jul 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
01 Fev 2024 -
Aceito
11 Abr 2024