RESUMO
O artigo analisa a influência da Portaria GM/MS Nº 1.262, publicada em setembro de 2023, que vincula incentivos financeiros a resultados mensuráveis nos programas de transplante de fígado no Brasil. Considerando as taxas de sobrevida de 30 dias e 1 ano, bem como o número de transplantes realizados, essa iniciativa representa um progresso em direção a maior responsabilidade e melhor tratamento aos pacientes. No entanto, o autor chama atenção para falhas importantes no sistema atual de classificação que podem comprometer os valores de justiça, universalidade e descentralização do Sistema Único de Saúde (SUS). O modelo de pagamento atual é antiquado, não cobre os custos reais dos transplantes e acaba utilizando os incentivos financeiros para suprir déficits orçamentários, em vez de recompensar a excelência nos resultados. Além disso, o foco no número absoluto de transplantes prejudica os centros em áreas menores e menos habitadas, tornando mais difícil a competição com grandes centros em estados mais populosos. Isso agrava as desigualdades regionais e incentiva a centralização das operações de transplante, contrariando o princípio descentralizador do SUS. O autor sugere mudanças no sistema, como a atualização do pagamento base para refletir os custos reais, permitindo que todos os centros operem com estabilidade financeira. Também são recomendados incentivos financeiros que recompensem a excelência nos resultados e um modelo mais justo e orientado por resultados, com o sistema de pontuação atribuindo maior peso às taxas de sobrevida de 1 ano. Para promover equidade e consistência no acesso ao transplante, são aconselhadas medidas proporcionais ao tamanho da população e financiamento redistributivo para hospitais com menor classificação. Embora a Portaria GM/MS Nº 1.262 seja reconhecida como um marco inicial, mudanças são necessárias para alinhar eficiência e qualidade com os valores fundamentais do SUS, garantindo que todos os pacientes recebam um tratamento de excelência, independentemente de onde sejam atendidos.
Descritores
Transplante de Fígado; Sistema Único de Saúde; Equidade no Acesso aos Serviços de Saúde; Financiamento da Saúde; Descentralização nos Serviços de Saúde
ABSTRACT
The article examines the impact of Ordinance GM/MS No. 1,262, published in September 2023, which links financial incentives to measurable outcomes in liver transplant programs in Brazil. The initiative, which considers the number of transplants performed and 30-day and 1-year survival rates, is viewed as progress toward greater accountability and improved patient care. However, the author highlights significant flaws in the current classification system that may undermine the principles of equity, universality, and decentralization of the Unified Health System [Sistema Único de Saúde (SUS)]. The payment model in use is outdated, does not cover the actual costs of transplants, and ends up using financial incentives to fill budgetary gaps rather than reward excellence in outcomes. Furthermore, the emphasis on the absolute volume of transplants disadvantages centers in smaller and less populated regions, making it harder for them to compete with large centers in more populous states. This exacerbates regional inequalities and encourages the centralization of transplant operations, contravening the SUS’s principle of decentralization. The author proposes adjustments to the system, such as updating the base payment to reflect actual costs, enabling all centers to operate with financial stability. It is also suggested that financial incentives reward excellence in outcomes and that the scoring system assigns greater weight to one-year survival rates, creating a fairer and results-oriented model. Proportional measures based on population size and redistributive funding for lower-ranked centers are recommended to promote equity and stability in transplant access. Ordinance GM/MS No. 1,262 is recognized as an initial milestone, but adjustments are needed to align quality and efficiency with the fundamental principles of the SUS, ensuring that all patients receive high-quality care, regardless of where they are treated.
A Portaria GM/MS Nº 1.262, publicada em 12 de setembro de 20231, marcou um avanço significativo ao vincular incentivos financeiros a resultados mensuráveis nos programas de transplante de fígado no Brasil. A correlação entre o número de transplantes realizados, as taxas de sobrevida em 30 dias e 1 ano e os bônus de pagamento foi analisada com o objetivo de promover maior responsabilidade e aprimorar o cuidado ao paciente. Essa é uma iniciativa há muito desejada pela comunidade de transplantes e, sem dúvida, louvável. No entanto, o sistema atual levanta sérias questões sobre sua conformidade com os princípios de equidade, universalidade e descentralização do Sistema Único de Saúde (SUS)2.
A estrutura financeira central do novo sistema de classificação está baseada em um modelo de pagamento antiquado, em vigor há mais de 10 anos, sem atualizações para compensar os impactos inflacionários desse período3 e que não reflete mais os custos reais associados à realização de um transplante de fígado. Isso significa que as melhorias financeiras destinadas aos centros de maior classificação são usadas para cobrir os custos básicos da operação, em vez de servirem como bônus para recompensar a excelência nos resultados ou na eficiência. Trata-se de um erro fundamental, pois o sistema acaba promovendo desigualdades ao não oferecer uma base de pagamento adequada, colocando os centros de menor classificação em uma situação ainda mais desafiadora para manter suas operações.
A equidade no SUS tem como princípio básico garantir que todos os pacientes, independentemente do local onde são tratados, recebam o mesmo padrão de cuidado. Contudo, a arquitetura atual do sistema permite o surgimento de discrepâncias entre pacientes atendidos em diferentes centros credenciados e autorizados pelo Ministério da Saúde, comprometendo, assim, o princípio de equidade.
Além disso, a ênfase do método de categorização no número absoluto de transplantes para a alocação de pontos desfavorece estados menores e regiões menos populosas. Essas áreas, naturalmente, realizam menos transplantes, o que torna mais difícil para suas unidades médicas competirem com clínicas de grande volume em estados maiores. Essa estratégia corre o risco de centralizar as operações de transplante, contrariando o princípio de descentralização do SUS e agravando as diferenças regionais no acesso à saúde. Incluímos um gráfico de bolhas que demonstra o equilíbrio — ou desequilíbrio — entre volume e resultados de sobrevida, a fim de auxiliar este debate na definição da classificação dos centros. A Fig. 1 enfatiza graficamente a necessidade de uma estratégia mais equilibrada, que valorize mais os resultados de sobrevida, promovendo, assim, um tratamento justo em todos os lugares.
O sistema de classificação deve ser ajustado para alinhar-se aos princípios do SUS e solucionar esses desafios. Primeiro, o pagamento base para transplantes de fígado deve ser atualizado para corresponder aos custos atuais, garantindo que todos os centros — independentemente da classificação — possam arcar com os custos financeiros da operação. Incentivos financeiros devem, então, funcionar como recompensas reais pela excelência nos resultados, em vez de apenas compensarem perdas inflacionárias.
Em segundo lugar, o método de alocação de pontos deve ser alterado para dar mais importância aos resultados de sobrevida — especialmente às taxas de sobrevida de 1 ano — do que ao volume de transplantes. Essa mudança criaria um sistema mais justo e orientado por resultados, recompensando as unidades que alcançam excelência no cuidado ao paciente. Incluímos um gráfico comparando o paradigma atual, centrado no volume, com uma abordagem que equilibra volume e resultados, demonstrando como essa mudança pode impulsionar melhorias na equidade e na qualidade (Fig. 2).
Em terceiro lugar, a implementação de medidas proporcionais à população no sistema de classificação permitiria que centros menores participassem de forma equitativa e mantivessem a estabilidade financeira. Por fim, mecanismos de financiamento redistributivo devem ser utilizados para fornecer ajuda adicional aos centros de menor classificação, permitindo que continuem operando e oferecendo atendimento justo.
A Portaria GM/MS Nº 1.262 representa um passo inicial necessário para melhorar a qualidade do transplante de fígado no Brasil. Contudo, ao não ajustar o pagamento base desatualizado e corrigir as desigualdades não intencionais no sistema atual, o sistema corre o risco de comprometer os valores fundamentais do SUS. Por meio de uma abordagem mais equilibrada entre volume de transplantes e resultados de sobrevida, a consideração dessas mudanças potenciais ajudará o sistema a alinhar a melhoria da qualidade com os conceitos de equidade e descentralização, garantindo, assim, que todos os pacientes recebam tratamento de alta qualidade, onde quer que sejam atendidos.
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FINANCIAMENTO
Nada a declarar.
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CONFLITOS DE INTERESSE
Nada a declarar.
REFERÊNCIAS
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1 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS Nº 1.262, publicada em 12 de setembro de 2023. [acesso em 01 Dez. 2024]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2023/prt1262_13_09_2023.html
» https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2023/prt1262_13_09_2023.html - 2 Vasconcelos CM, Pasche DF. O SUS em perspectiva. In: Campos GWS, editor. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 2012. p. 968.
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3 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Indicadores IBGE: sistema nacional de índices de preços ao consumidor: INPC-IPCA. [acesso em 01 Dez. 2024]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=7236
» https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=7236