Resumo
Este artigo pretende explorar possíveis relações entre a história da imprensa e a história dos movimentos sociais no campo no Brasil. Para tanto, analisará uma série de reportagens de Antonio Callado sobre o Nordeste e as Ligas Camponesas publicadas no jornal Correio da Manhã, em 1959, e reunidas no livro Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco um ano depois. Tal obra tem sido desde então tomada por historiadores e cientistas sociais como fonte central de informações para o estudo daquele período. Entretanto, essas matérias ainda não receberam um estudo específico que procure esclarecer suas condições de produção e seus objetivos políticos. Desse modo, esta análise pretende, ao levar em conta as referidas matérias em seu suporte original e os editoriais do Correio da Manhã que as comentaram, deter-se sobre essas questões. Isso talvez permita avaliar o papel das escolhas individuais de Callado e das forças sociais que convergiram para a confecção daquelas reportagens, bem como alguns dos significados do vocabulário político presente nelas.
Palavras-chave:
História da imprensa no Brasil - Ligas Camponesas - Antonio Callado - reforma agrária - jornalismo literário
Abstract
This article aims to explore possible relations between the history of press and the history of rural social movements in Brazil. To do so, it will analyze a series of news reporting from Antonio Callado concerning the north-east region and the Peasant Leagues. They were first published in the daily newspaper Correio da Manhã in 1959 and printed together in the book Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco (“The entrepreneurs of drought and the ‘Galileans’ from Pernambuco”) one year later. Since then, this work has been taken by historians and social scientists as a major source of information to study that period. However, these reportings have not yet received a specific study that might shed light on their conditions of production and their political objectives. Therefore, this analysis intends, by considering the news reportings published originally in the newspaper and the editorials that commented on them, to think through these questions. This approach might assess the role of Callado’s individual choices and the social forces that converged to produce those texts, as well as some of the meanings of their political vocabulary.
Keywords:
History of press in Brazil - Peasant Leagues - Antonio Callado - land reform - literary journalism
No segundo semestre de 1959,1 1 Gostaríamos de agradecer os avaliadores anônimos desta revista pelas valiosas críticas e sugestões. o jornalista e escritor Antonio Callado elaborou uma série de reportagens acerca da região Nordeste.2 2 Antonio Callado nasceu em Niterói, em 1917. Formado em direito, iniciou sua carreira jornalística no Correio da Manhã, em 1937. Manteve uma coluna no jornal O Globo entre 1939 e 1941. Exerceu ainda a atividade de correspondente de guerra na BBC de Londres de 1941 a 1945, e trabalhou no Serviço de Radio-Diffusion Française em Paris, até 1947. Nesse ano, retornou ao Correio da Manhã, onde foi redator-chefe entre 1954 e 1959, cargo por ele abandonado pouco antes de iniciar as reportagens ora analisadas. Cf. Leite (1982, p. 3-5). Nas obras consultadas, a grafia de Antonio ora vem acompanhada de acento circunflexo, ora não. Optamos pelo segundo caso, dado que é assim que o nome aparece na assinatura das reportagens publicadas originalmente no jornal. Enviado pelo prestigiado jornal Correio da Manhã, sediado na cidade do Rio de Janeiro, o autor embarcou numa viagem com o intuito de explicar as condições sociais da perpetuação da seca naquela região. Em seus textos, legitimou ainda lutas pela reforma agrária conduzidas pelas então ascendentes Ligas Camponesas. Tais matérias foram objeto de intensos debates à época, tendo sido por ele reunidas no ano seguinte no bem conhecido livro Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco. Fontes de informações para as ciências sociais e a historiografia, bem como para a produção literária de Callado, essas reportagens ainda não receberam, todavia, uma análise mais detida a respeito de seus significados e propósitos.3 3 Alguns trabalhos recentes procuraram analisar as reportagens de Callado considerando-as como textos engajados e destinados a estimular determinadas transformações na sociedade brasileira. A despeito de tal avanço, tais reflexões interpretam o autor como simplesmente fazendo parte da “esquerda” ou como “socialista”. Assim, com essas nomenclaturas, homogeneízam toda a trajetória dele, e não enfatizam os projetos específicos por ele defendidos em momentos distintos de sua vida. Cf. Martinelli (2006, p. 20); Martins (2018, p. 19). Este artigo, portanto, busca esmiuçar e compreender com mais profundidade as condições de produção desse documento, isto é, as forças sociais e as escolhas individuais que embasaram sua confecção. Do mesmo modo, procura indicar alguns dos significados do seu léxico político. Para tanto, analisa a trajetória de Callado no Correio da Manhã e as transformações deste último enquanto empresa; as lutas sociais no campo e as pressões daí advindas; e, enfim, os textos jornalísticos em questão em seu suporte original, juntamente com os editoriais que os acompanhavam.
Antonio Callado e o Correio da Manhã : entre a tradição e a modernização
Em matéria publicada na revista Visão, em 16 de outubro de 1959, Antonio Callado conta um pouco da origem e repercussão de suas reportagens sobre o Nordeste. Segundo ele, estas surgiram a partir de convite do Conselho do Desenvolvimento do Nordeste (Codeno), órgão então subordinado ao governo federal e dirigido pelo economista Celso Furtado, para avaliar in loco as possibilidades de aceitação da chamada Lei de Irrigação (CALLADO, 1960CALLADO, Antonio. Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960., p. 125). O anteprojeto de lei previa a desapropriação de terras às margens de açudes construídos por iniciativa estatal. Tais obras produziam a valorização exponencial daquelas propriedades, o que resultava em especulação imobiliária e absenteísmo de seus proprietários ou na produção de gêneros primários pouco ou nada ligados ao projeto industrializante do governo federal (CALLADO, 1960CALLADO, Antonio. Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960., p. 6-7, 17-20, 25-26). Além de ser publicadas no Correio da Manhã, essas reportagens foram reproduzidas, na mesma conjuntura, no Jornal do Comércio, de Recife.4 4 O Correio da Manhã foi um jornal carioca diário e matutino fundado em 1901 por Edmundo Bittencourt. Um dos mais importantes órgãos da imprensa brasileira até seu fechamento, em 1974, era considerado um “jornal de opinião” e de tradições liberais (LEAL, 2001, p. 1625-1629). A primeira série delas veio a lume entre 10 e 23 de setembro de 1959 e a segunda, entre 29 de novembro e 2 de dezembro daquele mesmo ano (CALLADO, 1960CALLADO, Antonio. Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960., p. 2). De imediato, ganharam repercussão nacional, tendo sido debatidas no Senado, na Câmara dos Deputados e em diversas assembleias legislativas estaduais (CALLADO, 1960CALLADO, Antonio. Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960., p. 125).
O livro em questão reúne igualmente uma série de comentários favoráveis ou contrários a essas matérias: colunas de jornal, trechos de debates parlamentares, cartas. Pretende, assim, traçar quais foram as principais linhas das discussões ao redor daquelas. Trata-se evidentemente de uma seleção do autor, com a notável ausência de opiniões explícitas da esquerda revolucionária. No prefácio, Callado argumenta que suas reportagens não necessariamente criaram, mas desencadearam um “movimento de opinião” responsável por dois insignes desfechos: a criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), órgão de planejamento regional, e a desapropriação do Engenho Galileia em Pernambuco pelo governo do estado, para fins de reforma agrária (CALLADO, 1960CALLADO, Antonio. Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960., p. 2). Por mais que suas escolhas pessoais tenham pesado, entretanto, é preciso apurar quais forças sociais confluíram para engendrar esses debates e decisões.
No acervo do Correio da Manhã, é possível perceber que as referidas matérias sempre iniciavam na última página do primeiro caderno. Tal espaço era reservado a assuntos econômicos e questões sociais, como greves ou mobilizações. Cabe salientar que, ao lado de todas as reportagens de Callado acerca do Nordeste, foram publicadas seções relatando o tema da carestia de gêneros alimentícios e a eclosão de motins populares ligados a esse fenômeno em diversas partes do Brasil. Tais levantes não ocorriam devido a razões econômicas ou à inflação elevada gerada pela política industrializante do governo Kubitschek. Cartas enviadas a Jânio Quadros pela população naquele mesmo ano, quando o primeiro construía sua candidatura para a Presidência da República, trazem pistas a respeito das causas daquelas mobilizações. Nas missivas, são frequentes as queixas de indivíduos diante de um cenário de especulação generalizada; atravessadores retiravam mantimentos do mercado como forma de forçar sua valorização para posterior revenda. Os motins populares emergiam assim a partir da percepção de que tais sujeitos rompiam um tabu ou violavam um dos maiores direitos da comunidade ao reter recursos básicos com baixa oferta para fins privados (QUELER, 2014QUELER, Jefferson J. Jânio Quadros, o pai dos pobres: tradição e paternalismo na projeção do líder (1959-1960). Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 29, n. 84, p. 119-133, 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092014000100008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 jul. 2019. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69092014000100008.
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, p. 123). Desse modo, havia um problema de abastecimento de alimentos por todo o país; e é provável que muitas autoridades e sujeitos da época percebessem esse fenômeno, não como passível de ser contido pela autuação dos especuladores, mas através do aumento da oferta de víveres. O Correio da Manhã sugeria oferecer respostas para essas questões por meio das reportagens de Callado. As narrativas acerca da carestia e dos motins pareciam ser apresentadas como problemas que poderiam encontrar solução na coluna contígua.
Ainda não está claro se a ideia de agrupar tais reportagens em livro surgiu antes, durante, ou depois da conclusão das mesmas.5
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Callado já havia publicado o livro-reportagem Esqueleto na lagoa verde (1953), obra referente à investigação do desaparecimento de um explorador inglês no interior do Brasil. Àquela altura, era também autor de romances como Assunção de Salviano (1954) e A Madona de Cedro (1957) e de peças de teatro como O Fígado de Prometeu (1951), A Cidade Assassinada (1954), Frankel (1955), Pedro Mico (1957), O Colar de Coral (1957), além da biografia Retrato de Portinari (1956).
Por outro lado, é provável que o lançamento dessa obra tenha ocorrido, em larga medida, com o propósito de cacifar ou mesmo subsidiar a produção literária de Callado - o caminho inverso poderia ser da mesma forma pensado, o trabalho literário valorizando e guiando o ofício do repórter. O autor, além de defender determinadas posições políticas nas referidas matérias, também se alinhava a uma fatia do mercado editorial que então se fortalecia: a de livros ligados a orientações da esquerda ou do interesse desta, publicados, entre outras companhias, pela editora Civilização Brasileira (CZAJKA, 2014CZAJKA, Rodrigo. Intelectuais, literatura e imprensa no pós-golpe. História Unisinos, São Leopoldo, v. 18 n. 3, p. 498-505, 2014. Disponível em: <http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/htu.2014.183.04> Acesso em: 20 jul. 2019. doi: http://dx.doi.org/10.4013/htu.2014.183.04.
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, p. 499). No prefácio de Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco, o jornalista-escritor ressalta que seu romance Assunção de Salviano, cuja primeira edição é de 1954, fora relançado naquele mesmo momento. Ambas as obras foram publicadas pelo editor Ênio Silveira através da editora Civilização Brasileira, o que as punha ao lado de livros de renomados literatos brasileiros.6
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O selo editorial da Civilização Brasileira era empregado pela Editora Nacional para divulgar parte de suas edições não didáticas e de ficção. Sob a administração de Ênio Silveira, ligado a posições de esquerda, o primeiro tornou-se, no final da década de 1950, uma das principais editoras do Brasil. Ênio empenhava-se em estimular autores nacionais. Desse modo, a Civilização Brasileira, na década de 1960, transformou-se no canal mais importante para a literatura brasileira. Em seu catálogo, constava extensa gama de autores com perfis políticos diferenciados: Adonias Filho, Carlos Heitor Cony, Hemílio Borba Filho, Antonio Callado, Geir Campos, José Condé, Autran Dourado, Eneida, Millôr Fernandes, Guilherme Figueiredo, Dias Gomes, Ferreira Gullar, Álvaro Lins, Moacir C. Lopes, Raimundo Magalhães Júnior, Esdras do Nascimento, Flávio Rangel e Dalton Trevisan. Cf. Hallewell (2012, p. 587-590).
Assunção de Salviano, no dizer de Callado, inspirava-se em conflito de terras ocorrido anos antes na cidade paranaense de Porecatu, e assemelhava-se aos eventos relatados em suas reportagens concernentes ao Engenho Galileia (CALLADO, 1960CALLADO, Antonio. Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960., p. 2).
De modo semelhante a escritores atuantes no Brasil do início do século XX, como Euclides da Cunha e Lima Barreto, Callado dividia seu trabalho entre atividades jornalísticas e literárias. No caso dos primeiros, as colaborações na imprensa tornaram-se uma atividade corriqueira, a qual fornecia a eles uma renda complementar cada vez mais necessária (MICELI, 2001MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras , 2001., p. 54). Ao longo da década de 1930, porém, a expansão do mercado do livro, escorada na literatura de ficção, permitiu a consolidação da “carreira” de romancista (MICELI, 2001, p. 159). Como entender então a adesão de Callado ao primeiro modelo? Em entrevista, o autor declarou que se o escritor pode sair de um tipo de jornalismo “mais imediato, se tem condições de escolher o que vai fazer, o ideal é procurar assuntos que vão, de certa forma, enriquecer os seus conhecimentos e facilitar a feitura da sua obra” (LEITE, 1982LEITE, Lígia Chiappini Moraes. Antonio Callado. São Paulo: Abril Educação, 1982., p. 5).7 7 Neste mesmo livro, a autora chama a atenção para a criação do personagem Januário, em Quarup (1967), como uma referência a Francisco Julião, liderança das Ligas Camponesas entrevistada por Callado ao longo das reportagens em questão (LEITE, 1982, p. 102). A peça Forró no Engenho Cananeia, publicada por ele em 1964, remete ao mesmo substrato factual ou histórico. Como veremos, essa escolha, longe de ser um anacronismo, pode ser compreendida, na década de 1950, em razão tanto de sua posição de prestígio no Correio da Manhã, quanto de sua peculiar adesão a uma nostalgia romântica.
Naquele período, a possibilidade de jornalistas emitirem opiniões na imprensa tornava-se cada vez mais circunscrita. Um processo de modernização, no interior de diversos jornais, questionava o modelo de produção e divulgação de informações por muito tempo em voga. O chamado jornalismo literário, de escrita mais apurada, opinativo, cedia crescente espaço a um jornalismo apresentado como neutro e imparcial. O primeiro passa a ser considerado por muitos como arbitrário, parcial, suspeito; ao passo que o segundo, apoiado em textos meramente “factuais”, conquista ampla aceitação. Tanto a opinião quanto a crítica evidentemente não abandonaram as páginas dos jornais, mas a emissão explícita de juízos torna-se privilégio de poucos profissionais. Como bem aponta Alexandre Bergamo, tal cenário é revelador de como o jornalismo é caracterizado por uma desigualdade estrutural ou por disputas pelo direito da narrativa (BERGAMO, 2014BERGAMO, Alexandre. A escrita do presente: mudanças no status cultural do jornalismo. In: MICELI, Sérgio & PONTES, Heloisa (org.). Cultura e sociedade: Brasil e Argentina. São Paulo: Edusp, 2014, p. 211-241., p. 223). Como resultado, alguns textos jornalísticos são feitos para ser lidos somente uma vez e depois descartados; outros, para ser relidos e se tornar modelos para as novas gerações ao informar e formar sobre o passado, a “história” (BERGAMO, 2014, p. 226-227). Em meio a uma tendência geral de despersonalização das notícias, as mencionadas reportagens de Callado cumprem assim a função de imprimir autoria e caráter documental em seu trabalho jornalístico, matéria-prima declarada de suas criações literárias.
Em tais circunstâncias, Callado já era jornalista influente e prestigiado. Deixara havia pouco a chefia da redação de um dos jornais mais importantes e influentes do país; e procurava consolidar suas posições de literato e dramaturgo.8 8 Segundo depoimento do jornalista Luís Alberto Bahia, sucessor de Callado como redator-chefe, esse cargo era equiparável ao de ministro, ou até mais importante. Essa assertiva, por mais que seja difícil aferi-la com exatidão, não exagera ao destacar o grande peso político daquela ocupação (ANDRADE, 1991, p. 103). Em depoimento, Callado assevera que aceitara aquela função em razão do salário mais elevado para auxiliar no cuidado dos filhos pequenos; porém, sem “amor” às tarefas a ela ligadas, tão logo “apareceu uma boa chance na Enciclopédia Britânica, que me encarregou de fazer aqui a Enciclopédia Barsa, eu me afastei” (ANDRADE, 1991ANDRADE, Jeferson de. Um jornal assassinado: a última batalha do Correio da Manhã. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991., p. 98). Ao que tudo indica, ele almejava conquistar maior autonomia e tempo para desenvolver obras literárias e pesquisas jornalísticas a elas atreladas; daí retomar o trabalho de repórter. Em suas matérias concernentes ao Nordeste, parecia seguir a trilha de Euclides da Cunha. Este fora correspondente do jornal O Estado de São Paulo em Canudos, interior da Bahia, nos primórdios da República no Brasil. A partir de suas reportagens acerca desse conflito envolvendo a posse de terras, construiu mais tarde o livro Os Sertões (1902). Este último, cruzamento entre jornalismo e literatura, era um cânone literário na década de 1950 ao qual Callado buscava de algum modo equiparar seu trabalho.9 9 Numa de suas matérias, Callado questiona o leitor sobre o que fazer para resolver o drama da luta pela terra no Engenho Galileia em Pernambuco, de modo a evitar que “se encene mais uma vez, neste Brasil que não se emenda, a Paixão de Canudos”. Em resposta, aponta a existência de um projeto de lei na Assembleia Legislativa pernambucana prevendo a desapropriação daquelas terras. Cf. Callado (1960, p. 132-133). Neste mesmo livro, o autor divulgou comentário do jornalista Osório Borba, publicado no jornal Diário de Notícias, que remete à narrativa sobre o conflito de Canudos. Ao louvar o primeiro por trocar o cargo de redator-chefe pelo de repórter, Borba considera que a cobertura em questão “lembra o caso de Euclides da Cunha e da epopeia-libelo de Os Sertões”. Cf. Callado (1960, p. 153).
O cenário político e as forças sociais nele envolvidas traziam evidentemente muitos elementos novos. O período em que Callado foi redator-chefe e conduziu reformas no Correio da Manhã talvez ilumine essa questão. Tal jornal, ao longo da década de 1950, passou por uma série de transformações em sua estrutura empresarial. Segundo Luís Alberto Bahia, a dependência de anúncios classificados daquele periódico vinha cedendo lugar à influência de agências de publicidade; e estas veiculavam propagandas de bancos e indústrias que pesavam na definição dos conteúdos do jornal. A intensa industrialização naquele momento, em especial a ampliação do setor automobilístico, levou o jornalista à seguinte afirmação: o “ferroviarismo não sustenta uma coluna, enquanto o rodoviarismo sustenta o jornal inteiro” (ANDRADE, 1991ANDRADE, Jeferson de. Um jornal assassinado: a última batalha do Correio da Manhã. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991., p. 105). O tom é certamente hiperbólico, mas a ampla influência dos anúncios publicitários na pauta do Correio da Manhã é assim explicitada por um de seus redatores-chefes.
Nelson Werneck Sodré, respaldando-se em dados da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou o jornal Última Hora em 1953, evidencia que os periódicos O Estado de São Paulo, O Globo e o Correio da Manhã eram os que mais recebiam recursos da agência MacCann Erickson do Brasil (SODRÉ, 1999SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 4ª edição. Rio de Janeiro: Mauad, 1999., p. 404-406). No entanto, é problemática a interpretação do autor de que o direcionamento de recursos estrangeiros àquele segmento da imprensa atrelava-o totalmente a interesses de outros países. Caberia analisar, de maneira empírica, os grupos que influenciavam a conformação de determinados conteúdos e opiniões no Correio da Manhã, admitindo, inclusive, a presença de interesses relacionados a lutas sociais da própria sociedade brasileira. Ana Paula Goulart indica caminho fecundo ao sustentar que transformações de cunho empresarial nos jornais cariocas, naquele contexto, não entravam em contradição com suas lógicas políticas, pois tais veículos precisavam apoiar certos grupos para sobreviver enquanto empresas, ao garantir recursos como créditos, empréstimos, incentivos e publicidade (RIBEIRO, 2003RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Jornalismo, literatura e política: a modernização na imprensa carioca nos anos 1950. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 1 n. 31, p. 147-160, 2003. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2186> Acesso em: 20 jul. 2019.
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, p. 156).
As mudanças no interior da redação do Correio da Manhã estavam, em grande medida, relacionadas a transformações então em curso na economia e na sociedade brasileiras. No decorrer do mandato de Juscelino Kubitschek (1956-61), o Brasil consolidava seu processo de industrialização. Esta era impulsionada por uma política econômica que mesclava a iniciativa privada, capital e tecnologia estrangeiros e a intervenção contínua do Estado, tanto em termos de planejamento quanto de investimentos (BENEVIDES, 1979BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. O governo Kubitschek: desenvolvimento econômico e estabilidade política. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1979., p. 202). Além do crescimento da indústria automobilística, houve também a instalação da indústria naval e a criação de novas indústrias siderúrgicas (BENEVIDES, 1979, p. 201). Luís Alberto Bahia relata que Callado, como redator-chefe, decidira acompanhar os ventos da mudança e por isso reformulou o colunismo econômico do jornal; pois este, até então, veiculava apenas o ângulo do consumidor. Segundo ele “o Brasil começava uma revolução industrial séria. Precisava-se ver o lado do produtor. Callado viu muito bem esse ângulo. E criou a coluna com o comentário econômico, do técnico” (ANDRADE, 1991ANDRADE, Jeferson de. Um jornal assassinado: a última batalha do Correio da Manhã. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991., p. 28). O jornalista explicita a maior penetração de opiniões ligadas a setores da indústria no Correio da Manhã, abalizadas por um saber considerado como científico ou neutro.
Outra medida adotada por Callado, à frente do Correio da Manhã, parecia estar relacionada a mudanças sociais mais profundas. De acordo com Luís Alberto Bahia, o primeiro mudara algumas regras da “ortografia da casa” no que tange à questão dos “nomes impublicáveis”: “Callado acabou com isso. Modernizou muito o jornal (…) Deu, assim, ao CORREIO, uma feição mais aberta, menos partidária, apaixonada” (ANDRADE, 1991ANDRADE, Jeferson de. Um jornal assassinado: a última batalha do Correio da Manhã. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991., p. 103). No plano individual, Callado certamente exibia uma atitude mais tolerante em relação a indivíduos combatidos pela equipe que gerenciava o periódico. Contudo, trilhava o caminho da racionalização que avançava sobre diversos veículos de comunicação, tais como o rádio, a televisão e outros jornais, voltado para a eliminação de uma tradição mais personalizada (ORTIZ, 2006ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. 5ª edição. São Paulo: Brasiliense, 2006., p. 138-142).
No entanto, a estrutura interna do jornal resistia a algumas alterações. Segundo Callado, o jornal já vinha se enfraquecendo mesmo antes da crise que o levou ao fechamento, desencadeada após o golpe de 1964, pois sentia a “concorrência de uma nova imprensa e a necessidade de grandes investimentos” (ANDRADE, 1991ANDRADE, Jeferson de. Um jornal assassinado: a última batalha do Correio da Manhã. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991., p. 222). O depoimento do jornalista Jânio de Freitas esclarece mais esse cenário. Ele reporta conversa com Paulo Bittencourt, proprietário do Correio da Manhã, provavelmente ocorrida no final da década de 1950 ou no início da de 1960. Naquele momento, Freitas era reconhecido como importante líder na modernização do Jornal do Brasil, nos moldes já assinalados por Alexandre Bergamo. Diante disso, Bittencourt teria lhe dito: “Passei estes anos fora do país e quando chego aqui, vou aos lugares (…) e ouço os comentários, mas o nome não é mais Correio da Manhã, é Jornal do Brasil. O Jornal do Brasil disse isso, publicou aquilo. Eu não suporto isso” (ANDRADE, 1991, p. 112). Por essa razão, Freitas declara que foi convidado por ele para implantar reforma similar no Correio da Manhã. Ao que tudo indica, este sofria então fortes pressões para abandonar o jornalismo literário em nome de um modelo de produção de notícias supostamente neutro e imparcial. No entanto, as referidas matérias de Callado dão sobrevida ao primeiro modelo ao mostrarem-se capazes de pautar nacionalmente debates a respeito da seca no Nordeste e da reforma agrária. O Correio da Manhã seguia, assim, na competição com outros órgãos da imprensa insistindo em aspectos da tradição.
A persistência de elementos do passado no Correio da Manhã, se por um lado oferecia grande margem de manobra a Callado, impunha-lhe limites, por outro. Luís Alberto Bahia narra quais eram as tarefas do redator-chefe, conduzidas sob o “estilo francês”. Tal figura, segundo ele, incumbia-se de alinhar as matérias consideradas importantes aos comentários e editoriais. Estes serviam como uma espécie de guia para a confecção de um jornal com expressiva uniformidade: “Nunca se encontrava uma manchete brigando com o editorial” (ANDRADE, 1991ANDRADE, Jeferson de. Um jornal assassinado: a última batalha do Correio da Manhã. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991., p. 102). Essa assertiva colide com determinada memória relacionada ao Correio da Manhã, segundo a qual este fora contrário à reforma agrária, mas condescendente com as mencionadas reportagens de Callado - as quais propugnavam um projeto específico de redistribuição de terras - por ser um órgão liberal (LEAL, 2001LEAL, Carlos Eduardo. Correio da Manhã. In: ABREU, Alzira Alves de et al. Dicionário histórico-biográfico Brasileiro. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora FGV , 2001, p. 1625-1632., p. 1630).10 10 Segundo Aspásia de Alcântara Camargo, o Correio de Manhã, em edições de 1956 e 1957, declarou-se favorável a uma reforma agrária que estimulasse o aumento da produtividade, o alargamento do mercado interno e a melhoria de vida das populações rurais, por meio da criação e da proteção da pequena propriedade no campo. Cf. Camargo (1996, p. 151).
Enfim, o prestígio do Correio da Manhã e sua localização na antiga capital federal parecem ter sido decisivos para a repercussão nacional daquelas reportagens. Conforme destaca Bergamo, a simples produção de notícias não implica sua circulação; somente alguns acontecimentos circulam (BERGAMO, 2014BERGAMO, Alexandre. A escrita do presente: mudanças no status cultural do jornalismo. In: MICELI, Sérgio & PONTES, Heloisa (org.). Cultura e sociedade: Brasil e Argentina. São Paulo: Edusp, 2014, p. 211-241., p. 231). Como o meio jornalístico é marcadamente centralizado e hierárquico, existe um centro definidor da importância das informações, tanto no período estudado quanto nos dias de hoje, mais especificamente as capitais São Paulo e Rio de Janeiro, em que são delineados os critérios de importância do que é noticiado em escala nacional (BERGAMO, 2014, p. 227). Não se trata, porém, de afirmar que as matérias sobre o Nordeste foram única e exclusivamente obra das iniciativas de Callado, do Correio da Manhã e de interesses de setores da indústria neste último presentes: lutas sociais no campo por todo o país podem ter sido outro fator.
Movimentos sociais no campo e a construção de uma experiência democrática
As Ligas Camponesas pressionavam para figurar nas páginas dos jornais do eixo Rio-São Paulo. Essa estratégia de luta transparece em declaração de Francisco Julião no opúsculo O que são Ligas Camponesas? Nele, o líder agradece os seguintes periódicos daquelas regiões por acolherem, desde 1957, algumas de suas demandas: Semanário, Novos Rumos, Terra Livre, Binômio, Última Hora de São Paulo, Jornal do Brasil e o próprio Correio da Manhã. Esses periódicos teriam dado “acolhida às cartas e boletins que, de cinco anos para cá, temos escrito, transmitindo a experiência das Ligas Camponesas que de Pernambuco se alastram para outros estados” (JULIÃO, 1962JULIÃO, Francisco. O que são Ligas Camponesas? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1962., p. 41. Julião pretendia não apenas levar as Ligas ao noticiário nacional, como também criar outras delas ao Sul do país.11 11 Segundo Callado, Julião intencionava levar “a fama e a forma das Ligas Camponesas” do Nordeste para o estado do Paraná. Cf. Callado (1960, p. 49). Essas iniciativas precedem em dois anos as reportagens ora analisadas, o que sugere a presença de pressões vindas de baixo, dos movimentos sociais do campo e das mais diversas formas de luta pela terra, na concepção e feitura delas.
Naquele período, uma pluralidade de movimentos e conflitos no campo tomavam corpo na sociedade brasileira. Segundo Leonilde Sérvolo de Medeiros, as lutas sociais dos trabalhadores rurais, por muito tempo, foram concebidas como resultado da “ação de agentes externos”, “elementos estranhos à classe”, os quais viriam fomentar a revolta e abalar uma secular “paz no campo”. Assim, os rurícolas foram tratados como incapazes de agir, de formular seus interesses e de se organizar em sua defesa (MEDEIROS, 1989MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: Fase, 1989., p. 12-13).12
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Em análise sofisticada para o final da década de 1970, mas hoje datada, Aspásia de Alcântara Camargo, por exemplo, concebe que as populações rurais, entre 1930 e 1964, não haviam se afirmado como “classe”, isto é, “como campesinato autônomo e estável, tendo sido, pelo contrário, drasticamente alheadas do poder” (CAMARGO, 1996, p. 123, grifo da autora).
No entanto, esses sujeitos, por meio de suas associações e lutas, obtiveram reconhecimento da sociedade. Localizadas e fragmentadas, a princípio, suas pressões reverberaram nos centros de poder, transformando a reforma agrária em destacado eixo de discussão política (MEDEIROS, 1989, p. 12-13). Isso acontecia justamente no momento em que o Brasil se transformava num país majoritariamente urbano, em ritmo acelerado, com poucos casos equiparáveis na história mundial. Ao longo do governo Kubitschek (1956-1961), de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a participação da indústria no Produto Interno Bruto (PIB), pela primeira vez, ultrapassou a da agricultura. No final do mesmo período, a população brasileira se tornou predominantemente urbana (DEZEMONE, 2016DEZEMONE, Marcus. A questão agrária, o governo Goulart e o golpe de 1964 meio século depois. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 36, n. 71, p. 131-154, 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882016000100131&lng=en&nrm=iso> Acesso em 20 jul. 2019. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1806-93472016v36n71_006.
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Ao mesmo tempo, uma série de conflitos agrários e lutas pela terra afloraram. Em 1955, veio à tona o caso do Engenho Galileia, em Vitória do Santo Antão-PE. Os foreiros daquela propriedade formaram então uma organização de caráter civil aparentemente com objetivos assistenciais, mas que buscava igualmente a defesa de alguns de seus membros diante de ameaças de expulsão. A Sociedade Agrícola de Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco institucionalizava assim lutas anteriores; e seu modelo foi logo adotado em outros estados. Surgiam assim as “Ligas”, nomenclatura inicialmente com sentido pejorativo cunhada pela imprensa conservadora pernambucana, em alusão às Ligas Comunistas da década de 1940, mas logo ressignificada e incorporada pelos integrantes daquelas organizações de trabalhadores rurais (DEZEMONE, 2016DEZEMONE, Marcus. A questão agrária, o governo Goulart e o golpe de 1964 meio século depois. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 36, n. 71, p. 131-154, 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882016000100131&lng=en&nrm=iso> Acesso em 20 jul. 2019. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1806-93472016v36n71_006.
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Criadas pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e atuantes entre 1945 e 1947, as Ligas Comunistas foram idealizadas com o intuito de ampliar as bases políticas do partido e de selar uma aliança operário-camponesa para combater o latifúndio e o imperialismo. Cf. Mota e Esteves (2009, p. 245).
Em razão das represálias desencadeadas contra os “galileus” pelo proprietário do referido Engenho, os primeiros dirigiram-se até Recife para solicitar apoio. A causa foi aceita pelo advogado Francisco Julião, recém-eleito deputado estadual pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) (MEDEIROS, 1989MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: Fase, 1989., p. 46-47). No mesmo ano, uma série de intelectuais (entre eles Celso Furtado e Inácio Rangel), políticos, representantes da indústria, do comércio, da agricultura, reuniram-se no Congresso de Salvação do Nordeste com o propósito de diagnosticar as causas de alguns dos problemas locais. Comumente vislumbradas como produto de secas e de fatores da natureza, muitas das mazelas da região passaram a ser interpretadas como de origem político-social. A Carta de Salvação do Nordeste, documento resultante daquele encontro, considerava os problemas nordestinos como oriundos de uma estrutura altamente concentradora de riquezas e reivindicava uma reforma agrária na região (MEDEIROS, 1989, p. 47).
Callado, em sua primeira matéria acerca do Nordeste, ecoa essas teses. “Que é a ‘indústria da seca’, de que tanta gente fala?” (CALLADO, 1959aCALLADO, Antonio. Indústria e industriais da seca. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 10/09/1959a, p. 14., p. 14).14 14 As reportagens foram reunidas em livro pelo autor sem a indicação das datas de sua publicação no jornal. Porém, conseguimos localizá-las através de consultas ao acervo do Correio da Manhã, disponível no site da Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Como resposta, procura mapear justamente as elites locais e os interesses que impediam a região de ter um sistema de irrigação considerado viável. E, ao longo de sua cobertura, advoga um modelo específico de reforma agrária para romper esse impasse. Essas posições políticas ganhavam boa acolhida em diversos setores da sociedade brasileira. Ao longo das décadas de 1950 e 1960, estudos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) conquistaram muitos adeptos no Brasil. Seus resultados ofereciam um aparato conceitual e uma série de argumentos antiliberais a favor da industrialização dos países subdesenvolvidos. Em seu diagnóstico, diferentemente da Europa e dos Estados Unidos, ambos altamente industrializados, a América Latina havia seguido um caminho peculiar de desenvolvimento capitalista, constituindo economias de caráter dual, uma mistura de progresso e atraso, isto é, princípios de industrialização dividindo espaço com a predomínio da produção de gêneros agrícolas para exportação. Estes eram de menor valor em comparação com os produtos industrializados importados, além de serem mais vulneráveis a crises no mercado internacional. Como solução, a teoria cepalina propugnava a realização de reformas estruturais como a industrialização planejada em alguns setores produtivos e a condução de uma reforma agrária: medidas destinadas a consolidar o capitalismo nos países latino-americanos (BIELSCHOWSKY, 1995BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo (1930-64). 2ª edição. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995., p. 13-29). Tanto Celso Furtado quanto a idealização da Sudene partilhavam desse ideário, em certa medida esposado por Callado naquele momento.
A tendência dominante no Partido Comunista do Brasil (PCB), por sua vez, dava suporte à proposta de se efetivar uma reforma agrária no país como forma de impulsionar o desenvolvimento do capitalismo. Segundo sua concepção de revolução por meio de etapas, tal fenômeno seria uma condição necessária para a implantação do socialismo na sociedade brasileira; pois o país mantinha notáveis características “feudais”, entrevistas no latifúndio, que atrasavam esse processo. O latifúndio era interpretado como um arcaísmo que entravava a absorção de milhões de “camponeses” ao mercado interno, base para a indústria que se implantava (MEDEIROS, 1989MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: Fase, 1989., p. 27). Daí a necessidade de uma ampla revisão da estrutura agrária e a redistribuição de terras. Inicialmente defendida pela esquerda, a reforma agrária passou aos poucos a ser encampada por grupos antes contrários a ela. Alguns de seus novos defensores, porém, procuraram esvaziá-la de seu sentido redistributivo. Para eles, a verdadeira reforma agrária era a elevação das condições de vida dos habitantes do campo por meio do aumento seja de sua renda, seja do seu acesso à educação e a serviços de saúde (DEZEMONE; GRYNSZPAN, 2007DEZEMONE, Marcus & GRYNSZPAN, Mario. As esquerdas e a descoberta do campo brasileiro: Ligas Camponesas, comunistas e católicos (1950-1964). In: FERREIRA, Jorge & REIS, Daniel Aarão. Nacionalismo e Reformismo Radical. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2007, p. 209-237.., p. 214). Portanto, havia uma grande e variada quantidade de projetos de reforma agrária em circulação na sociedade brasileira entre as décadas de 1950 e 1960, abrangendo desde propostas radicais de alteração da estrutura fundiária, até proposições de cunho conservador que pretendiam pouco ou nada modificá-la.15 15 A questão da relação entre pressões vindas de baixo e a proliferação de projetos de reforma agrária no país foi bem levantada por Caio Prado Júnior em 1960, em artigo em que critica proposta de redistribuição de terras do então governador de São Paulo Carvalho Pinto, por considerá-la conservadora: “Refletindo essa radicalização do homem do campo que se mostra cada vez mais decidido a lutar por melhores condições de vida, as esferas sociais se mobilizam. Flagrante sintoma disso são os inúmeros projetos de lei e representações de órgãos administrativos (como, em particular, da Comissão Nacional de Política Agrária) que atulham as comissões, e infelizmente também os arquivos do Congresso Nacional.” Cf. Prado Júnior (1979, p. 128).
Ao que parece, tanto Callado quanto a linha editorial do Correio da Manhã defendiam o mesmo projeto de reforma agrária. Nesse sentido, o primeiro, ao investigar os propósitos da construção de um grande açude no Ceará, o Orós, destaca que este se destinava a produzir energia elétrica, criar peixes e “irrigar terras a serem desapropriadas para a plantação de alimentos que garantam a vida do homem local e do operário que vai industrializar o Nordeste” (CALLADO, 1959cCALLADO, Antonio. O Orós, esse desconhecido. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 12/09/1959c, p. 4., p. 4). Para atingir esse objetivo, o repórter-escritor volta-se para a identificação das forças sociais que impediam a concretização desse desígnio, ou seja, interesses de elites locais tradicionais que, pressupõe-se, deveriam ser sobrepujados. Segundo ele, caso a Lei de Irrigação fosse aprovada, os produtores de cera que conservassem suas terras, “terão de arredar seus carnaubais - em primeiro lugar para plantar lavouras que alimentem gente” (CALLADO, 1959c, p. 4).
Não se trata de um posicionamento isolado. A linha opinativa do Correio da Manhã advogava encaminhamento similar. Um editorial daquele periódico comentando as reportagens de Callado trata das tentativas de se aprovar a Lei de Irrigação e posiciona-se sobre a proposta de reforma agrária nela contida. Segundo o jornal, em compasso com reflexões de Celso Furtado, a seca no Nordeste pode ser compreendida como um colapso na produção de alimentos:
Esses alimentos, que já não dão para que se possa industrializar o Nordeste, pois não são suficientes para nutrir um proletariado citadino, em tempo de seca não bastam nem para os próprios agricultores (…) Ora, bacias de irrigação de açudes são os lugares que a União cria para a plantação de alimento. Qualquer outra atividade em bacia de irrigação é um crime (…) Pois os proprietários que, sem nada fazerem, ganham água de açude, são inamovíveis. Não seguem nenhum plano comum de cultura de alimentos, não utilizam a água dentro de uma planificação geral da terra. Só plantam o que querem. Não têm a mentalidade evoluída de um agricultor moderno. (CONTRA…, 1959CONTRA a irrigação. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 16/09/1959, p. 6., p. 6)
O sentido da reforma agrária defendida pelo periódico é bastante específico. Prevê desapropriações de terras somente em bacias de irrigação para impulsionar a produção de alimentos e a industrialização no Nordeste. Trata-se de um projeto distinto daqueles defendidos por movimentos sociais no campo à época, os quais possuíam teor redistributivo mais amplo. Essa contraposição ajuda a compreender as razões pelas quais o mesmo editorial considera a Lei de Irrigação “tranquila”, “moderada” e “ordeira”. Com isso, certamente almejava afastá-la de posicionamentos tidos como radicais ou revolucionários, de modo a atrair o apoio de setores da elite industrial e de outros setores mais conservadores da sociedade brasileira. Callado e o Correio da Manhã alinhavam-se na defesa desse projeto. Segundo o jornalista-escritor, referindo-se a projetos de construção de açudes pelo governo, era preciso desapropriar tanto as áreas inundáveis quanto as irrigáveis “para que este país se governasse mais pela justiça do que pela loteria” (CALLADO, 1959ªCALLADO, Antonio. Indústria e industriais da seca. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 10/09/1959a, p. 14., p. 10).16 16 Em editorial publicado alguns meses depois, o periódico saudava a criação da Sudene e postulava, com argumentos similares aos de Callado, que o objetivo daquela instituição não era a reforma agrária. Em sua opinião, o regime de terras só seria alterado “onde os dinheiros públicos (…) tornarem a terra valorizada a ponto de ser crime permitir, lotericamente, que meia dúzia de felizardos enriqueçam com dinheiro do povo” (SUPERINTENDÊNCIA…, 1960, p. 6). Em outra matéria, restringia ainda mais seus planos para a distribuição de terras para os habitantes do Nordeste, ao colocar que se “em duas bacias de irrigação a CODENO fizer uma reforma agrária e criar verdadeiras lavouras de subsistência”, conseguiria melhorar a situação dos mesmos (CALLADO, 1959iCALLADO, Antonio. No Nordeste o camponês mais triste do mundo. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24/09/1959i, p. 7-12., p. 7, 12). Dessa forma, mesmo que Callado gozasse de elevado grau de autonomia em sua profissão, tanto sua investigação quanto suas opiniões mantinham grandes afinidades com os posicionamentos da empresa jornalística à qual estava ligado.
Nesse cenário, marcado por diversas formas de luta pela terra, grupos pertencentes a diversas orientações políticas vislumbravam a possibilidade de um desfecho revolucionário no mundo rural. Entre as décadas de 1940 e 1950, setores da esquerda encaminharam vários de seus membros para atuar no campo, o que gerou preocupação nas hostes conservadoras. O medo de que a ordem social no Brasil fosse radicalmente alterada baseava-se tanto nos referidos conflitos sociais quanto no cenário internacional. Em outros países, como China, Cuba e Vietnã, movimentos de caráter revolucionário haviam sido desencadeados a partir do campo e dado origem a regimes socialistas. Integrantes da esquerda, por seu turno, vislumbravam nesse ambiente novas oportunidades de ação, dado que teses clássicas, que postulavam a necessidade da formação de um amplo operariado como condição para a deflagração de uma revolução, eram revistas. Países periféricos e agrícolas foram tomados por tais sujeitos como exemplos de que a revolução podia ser lançada no Brasil a partir do campo (DEZEMONE; GRYNSZPAN, 2007DEZEMONE, Marcus & GRYNSZPAN, Mario. As esquerdas e a descoberta do campo brasileiro: Ligas Camponesas, comunistas e católicos (1950-1964). In: FERREIRA, Jorge & REIS, Daniel Aarão. Nacionalismo e Reformismo Radical. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2007, p. 209-237.., p. 217-218).17 17 Em 1960, uma série de reportagens do New York Times chamou a atenção do governo norte-americano para a emergência de uma situação revolucionária no nordeste brasileiro. O segundo assumia que erros e negligência de sua parte haviam contribuído para a eclosão da revolução cubana, e que o Nordeste seria o próximo foco insurrecional, capaz de se alastrar para o restante do Brasil e por toda a América do Sul. Cf. Page (1989, p. 28-29).
O temor de uma mudança social radical ecoava no parlamento à época. Entre os textos reunidos por Callado em Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco, relacionados à repercussão de suas matérias, chamam a atenção os comentários na Câmara do deputado Andrade Lima Filho, do Partido Social Democrático de Pernambuco (PSD-PE). Em sua opinião, o problema do Engenho Galileia era “um entre centenas de milhares no país inteiro” - assertiva que ajuda a compreender o impacto nacional daquela cobertura jornalística. Em seguida, o deputado Neiva Moreira, do Partido Social Progressista do Maranhão (PSP-MA), fez um aparte para alertar as “classes dirigentes do país” de que ou “fazemos a reforma agrária ou esta virá feita através de processos revolucionários” (CALLADO, 1960CALLADO, Antonio. Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960., p. 161-162). No Senado, Mem de Sá, eleito representante do Rio Grande do Sul pela Frente Democrática, coligação organizada em seu estado pelo PSD, pela União Democrática Nacional (UDN) e pelo Partido Libertador (PL), pronunciou-se em direção parecida. Para ele, o trabalho de Callado mostra “que a reforma da estrutura agrária é imperiosa, antes que o desespero gere convulsões sociais”. Ademais, indica que as Ligas Camponesas, “longe de revolucionárias - ao menos por enquanto”, eram tão somente “uma primeira forma de associação e de solidariedade obreira, na defesa de um mínimo de direitos” (CALLADO, 1960CALLADO, Antonio. Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960., p. 71-72). Era notável, portanto, a percepção de parlamentares conservadores de que tanto os conflitos agrários quanto eventuais abalos na ordem podiam ser contidos no país com uma reforma agrária, ainda que não especificada por eles.
Ao longo da década de 1950, diversos outros tipos de lutas emergiram no campo brasileiro. Entre elas, destacam-se a resistência de posseiros contra grileiros, a busca pela extensão da legislação trabalhista e da previdência social ao campo, a defesa de tradições e costumes da parte de foreiros e arrendatários, a reivindicação de pagamentos mais elevados por trabalhadores rurais assalariados e, de forma geral, a luta pela reforma agrária. As estratégias dos movimentos abrangiam greves, ocupações de terras e diversos tipos de organização. A intensidade e o grau de institucionalização dos movimentos sociais no campo podem ser atestados pela criação de entidades de representação dos trabalhadores rurais, com destaque em âmbito nacional para a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultab), em 1954, por iniciativa do PCB. Com ela, havia a intenção de agrupar as várias organizações de trabalhadores rurais, de modo a transpor o localismo e o isolamento das lutas que se desenvolviam no campo (MEDEIROS, 1989MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: Fase, 1989., p. 30). Assim, a questão agrária suscitava interesse em todo o país devido a um amplo e variado espectro de lutas sociais.
As Ligas Camponesas foram, contudo, as principais organizações que atuaram no mundo rural brasileiro antes do golpe de 1964, conforme reconhece majoritariamente a historiografia (DEZEMONE, 2016DEZEMONE, Marcus. A questão agrária, o governo Goulart e o golpe de 1964 meio século depois. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 36, n. 71, p. 131-154, 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882016000100131&lng=en&nrm=iso> Acesso em 20 jul. 2019. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1806-93472016v36n71_006.
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, p. 137). Dois fatores foram muito importantes para seu surgimento e expansão. Em primeiro lugar, cabe salientar a luta contra o cambão, trabalho não diretamente remunerado nos engenhos. Falas de lideranças, como Francisco Julião, ressaltam bastante esse elemento. Além de tudo, pesquisas que levaram em conta as vozes dos próprios trabalhadores rurais atuantes nas Ligas identificaram o papel daquela prática no início das mobilizações. O cambão era praticado havia muito tempo, caraterizado pela execução de serviços da parte dos foreiros por alguns dias da semana nas terras dos proprietários de engenho, em troca do uso de terras para cultivo próprio. Tornou-se um grande fator de descontentamento quando os últimos começaram a cobrar mais dias. Como resultado, houve um aumento da exploração dos trabalhadores, e as expulsões dos engenhos se multiplicaram (DEZEMONE, 2016, p. 138). Em segundo lugar, é importante ressaltar a ascensão de grupos políticos que passaram a disputar a liderança sobre os sujeitos do campo e que admitiam uma maior influência e presença das esquerdas em Pernambuco, entre 1955 e 1964. Em 1955, Pelópidas Silveira, do PSB (o mesmo de Julião), foi eleito para a Prefeitura do Recife, triunfando sobre grupos ligados ao PSD que tradicionalmente controlavam a política local. Em 1958, Cid Sampaio, apoiado pela UDN e pelo clandestino Partido Comunista do Brasil (PCB), chegou ao governo estadual (DEZEMONE, 2016, p. 138).
Os partidos, os sindicatos, as igrejas - e a imprensa, poderíamos acrescentar - como aponta Leonilde Sérvolo Medeiros, tiveram um papel destacado na projeção das lutas dos trabalhadores do campo para fora delas mesmas, na formação de alianças, na articulação entre lutas particulares e lutas mais gerais. Todavia, tais instituições, por si sós, não criavam o conflito. Este era gestado a partir de contradições experimentadas no interior do processo de trabalho, seja pelo rompimento de determinadas normas costumeiras, seja pela ameaça às condições de reprodução de um grupo de trabalhadores (MEDEIROS, 1989MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: Fase, 1989., p. 13).
As reportagens de Callado a respeito das Ligas, portanto, ao mesmo tempo em que as projetam nacionalmente e as tornam objeto de intensa discussão pública, precisam ser entendidas à luz de uma plêiade de lutas no campo no Brasil da década de 1950. Diversas mobilizações de trabalhadores rurais em prol de melhores condições de trabalho, salários mais altos, redistribuição de terras - entre as quais as Ligas formavam o movimento mais influente - ajudam a explicar o interesse de um jornalista de grande prestígio, vinculado a um dos jornais mais influentes do país, em reportar seus dramas e perspectivas. Em outras palavras, as matérias, em grande medida, parecem surgir a partir de pressões vindas de baixo. Do alto, como veremos, parte da chamada grande imprensa buscava canalizar tais conflitos no sentido de impulsionar um projeto específico.
Antônio Callado e o projeto do Correio da Manhã para o campo nordestino
Como vimos, a condição de literato e dramaturgo, bem como o prestígio do cargo de redator-chefe do Correio da Manhã, conferiam notável margem de autonomia à atuação profissional de Callado. Entretanto, suas reportagens, reunidas em livro, poderiam dar a impressão de que o autor tecia opiniões distintas das do famoso periódico carioca, o que não era o caso. Nesse sentido, quais eram os recursos linguísticos que empregavam para defender o projeto em comum? O estudo do vocabulário político das referidas reportagens pode esclarecer não apenas “meios de dizer seus atos ou posições”, dado que os textos são, neles mesmos, atos e posições (PROST, 2003PROST, Antoine. As palavras. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora FGV , 2003, p. 295-331., p. 317).
Ao que tudo indica, Callado e o Correio da Manhã almejavam desmobilizar alguns sujeitos e mobilizar outros, de modo a implementar uma série de transformações de cunho modernizante. Em suas reportagens, o jornalista-escritor critica profundamente o que considera ser o uso irracional da terra ou o “Estado paternalista” no Nordeste (CALLADO, 1959cCALLADO, Antonio. O Orós, esse desconhecido. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 12/09/1959c, p. 4., p. 4). Em sua opinião, a burocracia estatal aí, representada pelo Departamento Nacional de Obras contra as Secas (DNOCS), de “mentalidade empreguista e suntuária”, era permeada por interesses de elites locais que davam alento a tais práticas (CALLADO, 1959bCALLADO, Antonio. Banabui, o açude que teve um filho. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 11/09/1959b, p. 16., p. 16). Em passagem pela Paraíba, Callado denuncia o DNOCS com veemência. Como exemplo, narra que este último desapropriara terras no município de Pilões, à base de indenizações, para a construção de um açude. Sua reportagem procura mostrar como a proposta inicial fora reduzida pelo governo da Paraíba, o qual se opunha à inundação de um conjunto de águas termais na região. O resultado: a construção de um açude com menos de um décimo do tamanho previsto para não tocar naqueles mananciais (CALLADO, 1959dCALLADO, Antonio. O caso tenebroso do açude de Pilões. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 13/09/1959d, p. 14, 18., p. 14, 18).
Além disso, Callado denuncia a ação de grileiros na região, vergastando especialmente o deputado Jacó Frantz, acusado de granjear amplas extensões de terra a partir de expedientes escusos. Os grandes proprietários surgidos nessas circunstâncias se notabilizariam por não viverem em suas possessões rurais, e sim em casas na cidade. Alguns deles, segundo o repórter-literato, “criam gado, em terra de lavoura de subsistência, que é como criar porco na horta ou galinha no milharal” (CALLADO, 1959dCALLADO, Antonio. O caso tenebroso do açude de Pilões. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 13/09/1959d, p. 14, 18., p. 14, 18). Callado é bem incisivo nessa reportagem e apregoa que, uma vez aprovada a Lei de Irrigação, uma reforma agrária piloto fosse introduzida naquelas áreas, sob o pressuposto de que eram “7.000 hectares de terras razoáveis e quase todas ocupadas por ladrões” (CALLADO, 1959dCALLADO, Antonio. O caso tenebroso do açude de Pilões. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 13/09/1959d, p. 14, 18., p. 14, 18).18 18 A única reportagem não publicada no livro relata com mais detalhes as relações de compadrio na política do interior da Paraíba. Como seu conteúdo é muito semelhante ao da matéria da semana anterior, é possível que Callado não a tenha incluído no livro para evitar repetir informações (CALLADO, 1959e, p. 14, 18).. Ao que parece, Callado combate estruturas tidas por ele como arcaicas no campo nordestino em nome de um determinado projeto de racionalização da sociedade e da administração pública. Suas proposições buscavam criar condições mais favoráveis para o avanço da industrialização no Nordeste, em sintonia com os propósitos do Correio da Manhã ao defender a criação da Sudene.
De maneira explícita, Callado não esperava que o Estado, por si só, concretizasse essas transformações. Em sua visão, havia agentes catalisadores para tanto. Estes eram vislumbrados entre os movimentos sociais no campo. É por essa razão que ele volta sua atenção para as Ligas Camponesas, em especial para as lutas dos moradores do Engenho Galileia, cuja experiência queria multiplicada não somente no Nordeste, mas em várias regiões do Brasil:
torço, mesmo, para que vários Engenhos Galileias inquietem num futuro próximo aquele Nordeste egoísta e rotineiro, e, se possível, o Paraná dos espoliados de Porecatu, Pato Branco e Cascavel. (…) A solução melhor provavelmente não virá de Ligas Camponesas e sim de um processo de acúmulo de riqueza, proveniente da industrialização do Nordeste. De uma forma mais impessoal se elevará o nível de vida, e, consequentemente, de educação daquela gente. Mas é preciso também ver que a justiça não se transforme em mero subproduto da economia e que não esperemos até que todos os atuais senhores de engenho se transformem em grandes industriais esclarecidos para então deixarem a caboclada virar gente. (CALLADO, 1959gCALLADO, Antonio. Cambão: resíduo da escravidão no Nordeste. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 18/09/1959g, p. 9-14., p. 9-14)
Como se vê, Callado pensava que as lutas pela terra espalhadas pelo país poderiam impulsionar a industrialização no Nordeste. Em sua interpretação, a eliminação de estruturas tradicionais não ocorreria pura e simplesmente pelo desenvolvimento econômico; resistências deveriam ser igualmente vencidas através do engajamento de agentes potencialmente modernizadores.
A defesa desse caminho persistirá em seu trabalho alguns anos depois. Em 1964, às vésperas do golpe, Callado mantinha visão semelhante. Naquele ano, voltou ao Nordeste, desta vez enviado pelo Jornal do Brasil, e realizou uma série de novas reportagens acerca de Pernambuco, mais tarde reunidas no livro Tempos de Arraes. Ali identificou uma espécie de “revolução-piloto” que poderia ser estendida para todo o Brasil. Num dos exemplos do que queria dizer com essa expressão, menciona a ocupação de terras ociosas da companhia Great Western pelas Ligas Camponesas. Como forma de gerenciar seus trabalhos, estas criaram a cooperativa de Tiriri. O resultado teria sido a eliminação dos intermediários entre o homem que planta ou corta a cana e o usineiro, representante da indústria. Ainda que Tiriri não prosperasse, avaliava o jornalista-escritor, “já cumpriu seu destino histórico de provar que se o capitalismo em Pernambuco não for inteiramente bronco poderá emancipar o camponês e garantir sua própria existência” (CALLADO, 1980CALLADO, Antonio. Tempo de Arraes: a revolução sem violência. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1980., p. 52). Esse caminho, comparado àquele trilhado pelos Estados Unidos e pela Europa Ocidental, poderia evitar uma revolução socialista no Brasil, dado que, se o referido caso fosse emulado, teria “fragmentado o senhor de engenho nos camponeses que ele explorava. E melhorando, assim, a vida do camponês, pode tirar-lhe a gana de se revoltar” (CALLADO, 1980CALLADO, Antonio. Tempo de Arraes: a revolução sem violência. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1980., p. 58, 165-166).
É certo que esse texto foi escrito em momento distinto daquele em que surgiram as reportagens de 1959. Entretanto, o potencial que Callado entrevia nas Ligas Camponesas no final da década de 1950 parecia, aos seus olhos, haver se concretizado poucos anos depois: as lutas sociais no campo impulsionando um determinado processo de modernização capitalista ou industrial no país. Tal encaminhamento, em ambas as conjunturas, constituiria um freio à revolução socialista, em aposta contrária à do PCB. Mais do que constatar um fenômeno, Callado buscava produzi-lo. Suas palavras visavam transformar e reorientar os sentidos das lutas protagonizadas pelos trabalhadores rurais.19 19 J. G. A. Pocock bem cogita que o historiador da linguagem política pode “ver-se lidando (…) com uma rede ou comunidade de homens de letras, profissionais ou diletantes, já estabelecidos ou arrivistes, que empregam as linguagens de grupos profissionais, sem necessariamente pertencer a elas, e são capazes, primeiro, de adaptar esses idiomas ou retóricas aos objetivos de seu próprio discurso, e segundo, de gerar e desenvolver idiomas e retóricas próprias, no curso desse processo.” Cf. POCOCK (2003, p. 69, grifo do autor).
Para tanto, Callado flertou com imagens e ideias prezadas pela esquerda comunista. Ao que parece, pretendia redirecionar o prestígio e a influência desta nos movimentos sociais no campo através da ressignificação de alguns de seus termos. Assim, chegou a declarar que, em suas andanças pelo Nordeste, somente no engenho Galileia enxergara “caras de homens livres”, isto é, “as caras de Zezé, de Manuel Severino, do preto Santana, essas caras que a gente vê dos chineses da nova China de Mao, tão diferente da cara dos chineses de outros tempos” (CALLADO, 1959fCALLADO, Antonio. Homens livres no engenho Galileia. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 17/09/1959f, p. 11, 18., p. 11, 18). Essa observação remete a uma visão positiva de um modelo de revolução socialista que fora desencadeado pela ampla participação de camponeses. Callado empregou, ainda, vocabulário da tradição socialista em outra matéria. Ao tratar das condições de trabalho no Nordeste, avaliou que “a exploração do homem pelo homem” aí, era “igual à de que não importa que região torpe do mundo” (CALLADO, 1959hCALLADO, Antonio. Julião e sua marcha de 50.000 camponeses. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20/09/1959h, p. 21., p. 17, 21). Desse modo, o jornalista-literato incorpora termos e expressões da tradição socialista para tecer críticas à intensidade e à forma da exploração do trabalho no campo nordestino. Essa estratégia deixa implícita a possibilidade de transformação desse cenário.
Callado empreendia essa tarefa tanto mais facilmente na medida em que partilhava de traços do romantismo de setores da esquerda. Havia uma estrutura de sentimento romântico-revolucionária que perpassava ampla parcela das obras de arte a partir do final da década de 1950 (RIDENTI, 2005RIDENTI, Marcelo. Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960. Tempo Social, v. 17, n. 1, p. 81-110, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702005000100004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 20 jul. 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-20702005000100004.
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, p. 83). Um de seus princípios era a vontade de transformação, a ação para modificar a História e construir o homem novo. Este último seria talhado a partir de um modelo buscado no passado: o “autêntico” homem do povo, habitante do interior do país, do mundo rural, um local supostamente não tocado pela modernidade urbano-capitalista. Essa concepção romântica incluía um projeto de modernização que não envolvesse a submissão ao fetichismo da mercadoria e do dinheiro, considerado fonte de desumanização (RIDENTI, 2005, p. 84). As utopias em voga à época incorporavam tal perspectiva e pretendiam construir o socialismo (RIDENTI, 2005, p. 87). Além disso, as transformações advindas da modernização colocaram em cena novas representações de “povo” e “nação” pelas elites políticas e culturais. Estas almejavam tanto criar novos canais de comunicação com as camadas populares, quanto integrá-las num novo projeto de país, ainda que subordinadas e guiadas politicamente (NAPOLITANO, 2007NAPOLITANO, Marcos. Forjando a revolução, remodelando o mercado: a arte engajada no Brasil (1956-1968). In: FERREIRA, Jorge & REIS, Daniel Aarão (org.). Nacionalismo e Reformismo Radical (1945-1964) . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2007, p. 585-619., p. 588). Com base nessas colocações, é possível notar que Callado esposava o princípio romântico de que determinada categoria de trabalhador rural poderia impulsionar a modernização do país. Contudo, diferentemente da esquerda socialista, o autor almejava dar forma a um desenvolvimento capitalista específico, redirecionando ou canalizando as lutas no mundo rural.20
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Posições românticas podem ser identificadas em Callado pelo menos desde a publicação de seu livro-reportagem Esqueleto na lagoa verde. Logo na primeira página do relato, por exemplo, ele saúda os indígenas com os quais se encontrara no Xingu, em 1952, pela “inocência deles, da candura e falta de malícia deles”, como se fossem arquétipos do selvagem rousseauniano. Cf. Callado (2010, p. 13) A perspectiva romântica do escritor-jornalista, porém, não resulta em nenhuma forma de projeto anticapitalista passadista ou reacionário, nem em orientação anticapitalista socialista ou revolucionária. De maneira distinta, sua nostalgia romântica abre caminho para uma modernização capitalista de relações tradicionais. Tal postura certamente facilitou sua apropriação de aspectos do ideário romântico-revolucionário presente nas esquerdas, com o qual não se alinhava inteiramente naquele momento.
Ao que parece, é por essa razão que Callado adjetiva o conceito de revolução que utiliza, em caminho distinto daqueles propostos pela esquerda revolucionária. Nesse sentido, ele proclama, entusiasticamente, que uma “revolução branda”, de “final bacharelesco”, ocorrera no Engenho Galileia, em meio a supostos perigos. Num “Estado como o Ceará”, afirma, “nada mais fácil do que imaginar um levantamento verdadeiramente colérico de massas. É de espantar que ainda não tenha havido nenhum e de esperar que alguém em breve se anime” (CALLADO, 1959iCALLADO, Antonio. No Nordeste o camponês mais triste do mundo. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24/09/1959i, p. 7-12., p. 7, 12). Em seus horizontes, o jornalista-escritor preferia, no lugar de uma revolução que estabelecesse a igualdade total, uma transformação da sociedade que liberasse os sujeitos de determinadas relações tradicionais. Assim, em artigo publicado na revista Sr. em novembro de 1959, Callado louva a “revolução modesta” do Engenho Galileia, pois ali mil “pessoas e um bacharel fizeram uma Revolução Francesa em algumas centenas de hectares de terra de cana” (CALLADO, 1960CALLADO, Antonio. Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960., p. 115). A menção à França de 1789 refere-se certamente à supressão de relações feudais no desfecho daquele processo histórico; afinal, traços de feudalismo eram vislumbrados no Brasil da década de 1950 por determinados grupos de esquerda.
No projeto de Callado, as novas relações sociais a serem criadas no país seriam impessoais e destinadas a ampliar o mercado interno. Sobre a condição de foreiros, parceiros, rendeiros, meeiros, eiteiros e “outros explorados nos feudos do Nordeste”, Callado declara que Julião cuidaria de legalizar a atuação informal ou sem documentação escrita dos mesmos (CALLADO, 1959hCALLADO, Antonio. Julião e sua marcha de 50.000 camponeses. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20/09/1959h, p. 21., p. 21). Dessa forma, ele evoca termos do vocabulário político do PCB, como a avaliação deste a respeito da necessidade de se eliminar entraves “feudais” no Brasil. Ao que parece, Callado idealiza um mercado de trabalho formalizado e regulamentado por leis e pela Justiça do Trabalho, elementos que garantiriam, a seu ver, a consolidação e a permanência do capitalismo no Brasil.21 21 Fernando Antônio Azevedo, ao se referir ao campo à época, lembra que: “as relações de trabalho não eram regulamentadas pelo Estado, nem amparadas por nenhum tipo de legislação, estando tanto o trabalhador rural quanto o campesinato à margem dos direitos sindicais ou de associação e sem acesso aos benefícios da previdência social. Assim, os contratos de trabalho, bem como de arrendamento ou parceria, eram negociados diretamente com o grande proprietário da terra e rompidos arbitrariamente, quando este último assim o quisesse. A lei do salário mínimo, férias ou 13º salário também não vigoravam no campo, bem como a aposentadoria e outras prerrogativas e direitos sociais já conquistados pelo assalariado urbano” (AZEVEDO, 1982, p. 38-39). É improvável que os grandes proprietários pudessem definir as relações de trabalho e seu rompimento de maneira completamente arbitrária, sem negociar em alguma medida com os trabalhadores rurais; mas é certo que teciam relações extremamente desiguais e desequilibradas com os últimos. Quando não investia contra “feudos”, denunciava uma espécie de “escravidão” no campo nordestino, a qual submeteria qualquer cor de pele (CALLADO, 1959hCALLADO, Antonio. Julião e sua marcha de 50.000 camponeses. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20/09/1959h, p. 21., p. 21). Tal retórica atacava especialmente a instituição do cambão. Este era conceituado por setores da esquerda brasileira como um resquício feudal, uma espécie de corveia. No diagnóstico do repórter-jornalista, entretanto, essa prática deveria ceder espaço a relações sociais tidas como modernas, isto é, uma determinada forma de trabalho assalariado regulamentado pelo Estado.
Essa discussão poderia se beneficiar de uma breve reflexão conceitual. Em artigo publicado em 1960, Caio Prado Júnior criticou a interpretação anterior no âmbito da própria esquerda comunista. Em sua opinião, os trabalhadores sujeitos ao cambão não estavam imersos em relações feudais, na medida em que eram locadores de serviços perfeitamente assimiláveis aos assalariados, diferenciando-se destes tão somente pelo meio do pagamento recebido. Os primeiros receberiam elementos equivalentes ao salário ao ganhar parte do produto do seu trabalho, ou o direito de utilizar as terras do proprietário, ou até uma combinação dessas duas formas de pagamento (PRADO JÚNIOR, 1979PRADO JÚNIOR, Caio. A questão agrária no Brasil. 2ª edição. São Paulo: Brasiliense , 1979., p. 20). Élide Rugai Bastos segue direção semelhante e interpreta o cambão como uma forma de venda da força de trabalho. Em sua perspectiva, a luta das Ligas Camponesas contra tal instituição representa um combate não contra a servidão, mas contra uma determinada mudança então em curso: a gradual perda do controle do processo de trabalho que evolui para a clara e completa situação da venda da força de trabalho (BASTOS, 1984BASTOS, Élide Rugai. As ligas camponesas . Petrópolis: Vozes, 1984., p. 53-54).22 22 Essa maior autonomia nas relações de trabalho ocorria no interior de práticas paternalistas, as quais se desfaziam de maneira crescente. Cf. Montenegro (2008, p. 246). Dessa forma, ambos destacam bem como o cambão é uma relação social de exploração do trabalho de cunho capitalista, uma forma de assalariamento. Bastos vai além, porém, ao explicar as mobilizações das Ligas como uma forma de resistência a outra forma de assalariamento, estabelecida após a expulsão dos trabalhadores de suas terras.
Essas observações, ainda que pretendam compreender o fenômeno do cambão com mais clareza, não buscam cobrar precisão conceitual dos textos de Callado; objetivam somente tornar mais claras as transformações que ele buscava concretizar por meio de seu vocabulário político. Ao que parece, o autor almejava a difusão de relações de trabalho assalariado não apenas regulamentadas pelo Estado, como também monetizadas. Assim, ao sugerir opção para a substituição do cambão, assevera que: “Se alguém no Nordeste pagasse (excluído o governo) o salário mínimo de 100 cruzeiros por dia”, José Daniel (um caso por ele apontado para denunciar o cambão), “no fim do ano, teria comprado sua terra quase duas vezes” (CALLADO, 1959gCALLADO, Antonio. Cambão: resíduo da escravidão no Nordeste. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 18/09/1959g, p. 9-14., p. 14). O trabalho assalariado pago em dinheiro e minimamente estipulado pelo Estado, em sua concepção, seria capaz de promover a desconcentração da propriedade no Nordeste. É importante destacar que uma certa redistribuição de terras era reclamada por setores favoráveis à ampliação da industrialização. É o que sugere editorial do Correio da Manhã de 24 de setembro de 1959. Nele, o jornal critica proposta do deputado gaúcho Arno Arnt de distribuir terras somente em áreas inexploradas. Ao defender uma reforma agrária próxima das regiões de consumo, por outro lado, o periódico denuncia as precárias condições de existência da maior parte da população rural e questiona: “Como pode a crescente indústria brasileira tolerar essa ausência de mercado interno?”. Da mesma forma, sustenta que só “a pequena propriedade garante a intensa agricultura de subsistências que é indispensável para o abastecimento das grandes cidades” (EDITORIAL, 1959EDITORIAL. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24/09/1959, p. 6., p. 6).
Em suas reportagens acerca de Pernambuco feitas para o Jornal do Brasil, em 1964, Callado identifica continuidade e mudança no processo histórico na região: “Eu prefiro, tendo conhecido o Pernambuco de 1959, quando o processo revolucionário mal despontava no Engenho Galileia, o que lá vi agora” (CALLADO, 1980CALLADO, Antonio. Tempo de Arraes: a revolução sem violência. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1980., p. 61). Com isso, exaltava, entre outras coisas, a expansão de relações capitalistas modernizadas, entrevistas em várias usinas de açúcar e na ampliação do mercado de trabalho. A regulamentação deste último, no governo de Miguel Arraes, estabelecera uma tabela definindo a remuneração dos trabalhadores através de uma relação entre o trabalho efetivamente executado no campo e o salário mínimo regional. Desse modo, um novo cenário emergiria: “A Polícia não vai de chanfalho em cima do camponês. Vai de Tabela em punho” (CALLADO, 1980CALLADO, Antonio. Tempo de Arraes: a revolução sem violência. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1980., p. 115). Por mais idealizado que esse quadro possa parecer, é certo que as relações trabalhistas em Pernambuco tinham passado a sofrer maior interferência do Estado. Como consequência, teria havido um aumento da renda dos trabalhadores rurais, responsável por dinamizar o comércio no interior (CALLADO, 1980CALLADO, Antonio. Tempo de Arraes: a revolução sem violência. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1980., p. 102).
Ao que tudo indica, o projeto de Callado, em compasso com as posições do comitê editorial do Correio da Manhã, estava se concretizando. Um mercado interno ganhava corpo no interior do Nordeste e a industrialização ali avançava, tendo grande parte dos trabalhadores rurais como impulsionadores desse processo. O autor previa, ao longo dessas matérias, que esse encaminhamento teria longo fôlego e que se consolidaria por meio da via democrática, afastando a revolução socialista do cenário político. O golpe de 1964, todavia, colocou sérios entraves a esse movimento.
Considerações finais
Quando da feitura de suas reportagens sobre o Nordeste, Callado procurava consolidar sua carreira de literato. Deixara o prestigiado cargo de redator-chefe do Correio da Manhã para retomar a profissão de repórter. Não se trata de uma perda de prestígio, contudo. Suas matérias emitiam opiniões e mais tarde se transformaram em livro, algo que nem todo jornalista podia então fazer. Por meio de seu trabalho investigativo, Callado colhia ainda subsídios para seus trabalhos de ficção. Em algumas de suas obras para a literatura ou teatro, seus personagens são inspirados nos sujeitos que integravam as fileiras das Ligas Camponesas, claro que talhados com maior liberdade e sem total rigor histórico.
É certo que a posição de destaque do autor, já então nacionalmente afamado, permitia-lhe tais incursões. No entanto, é preciso também levar em conta as forças sociais que as permitiam. No campo brasileiro, uma série de conflitos e lutas pela terra agitavam o cenário político. Greves, ocupações, organizações locais e nacionais destinadas a canalizar demandas dos trabalhadores rurais, lutas pela posse da terra, por aumento de salários, contra a quebra de tradições e a perda de autonomia no processo produtivo, eram alguns dos motivos que impulsionavam os movimentos rurais surgidos à época. A bandeira da reforma agrária vinha sendo encampada por muitos desses grupos e chegava à imprensa e ao Congresso Nacional - embora fosse defendida também por grupos conservadores, que procuravam esvaziar seu sentido redistributivo. De qualquer forma, pressões sociais vindas de baixo forçavam a discussão das ações de movimentos sociais agrários e de suas demandas pela imprensa.
As reportagens de Callado acerca do Nordeste e das Ligas Camponesas de 1959, por mais que contassem com sua grande dose de autonomia, alinhavam-se às posições editoriais do Correio da Manhã. Este passou, ao longo da década de 1950, por um impactante processo de mudança, em que setores da indústria conquistaram extensa influência na produção de suas mensagens e opiniões, notadamente por meio da publicidade que veiculavam. Segundo parcela dos industriais atuantes à época, era preciso deslanchar a industrialização no Brasil a partir do aumento do seu mercado interno. Isso implicava não apenas estimular o consumo de trabalhadores urbanos e rurais, como também o desenvolvimento de regiões menos industrializadas, como o Nordeste. Tal projeto objetivava, ademais, tornar o campo um fornecedor de alimentos para os trabalhadores que iriam eventualmente ingressar nas fileiras da indústria a ser implantada naquela região.
É com esses propósitos, e em sintonia com as opiniões da equipe editorial do Correio da Manhã, que Callado tece as referidas matérias. Em seu projeto, todavia, a indústria e o que considerava ser a modernização das relações sociais não seriam fruto exclusivamente de um processo de desenvolvimento econômico, pois alguns sujeitos deveriam impulsioná-lo com suas lutas. Nesse sentido, as Ligas Camponesas poderiam cumprir tal papel ao acelerar o desenvolvimento industrial na região, desde que suas lutas fossem direcionadas para uma reforma agrária limitada e para a construção de um mercado de trabalho assalariado monetizado e regulamentado pelo Estado. Para realizar esse intento, Callado busca redirecionar a influência da esquerda comunista sobre aquele movimento social, ao alterar o significado de termos de seu vocabulário político. É assim que delineia o que chama de “revolução branda” no campo, distinta da revolução socialista que queria evitar. A primeira pretendia difundir um modelo de capitalismo no país com maior presença da indústria, uma certa redistribuição de riquezas e a ampliação de direitos sociais, no âmbito das instituições democráticos então vigentes.
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Este artigo resulta de uma colaboração entre os professores Arnaldo José Zangelmi e Jefferson José Queler. O primeiro contribuiu com a pesquisa bibliográfica sobre a história dos movimentos sociais no campo, e o segundo, com a bibliografia acerca da história da imprensa. Ambos os autores participaram de todas as etapas da pesquisa e da construção deste texto. Todas as fontes e a bibliografia empregada são referidas nele.
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Gostaríamos de agradecer os avaliadores anônimos desta revista pelas valiosas críticas e sugestões.
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Antonio Callado nasceu em Niterói, em 1917. Formado em direito, iniciou sua carreira jornalística no Correio da Manhã, em 1937. Manteve uma coluna no jornal O Globo entre 1939 e 1941. Exerceu ainda a atividade de correspondente de guerra na BBC de Londres de 1941 a 1945, e trabalhou no Serviço de Radio-Diffusion Française em Paris, até 1947. Nesse ano, retornou ao Correio da Manhã, onde foi redator-chefe entre 1954 e 1959, cargo por ele abandonado pouco antes de iniciar as reportagens ora analisadas. Cf. Leite (1982, p. 3-5)LEITE, Lígia Chiappini Moraes. Antonio Callado. São Paulo: Abril Educação, 1982.. Nas obras consultadas, a grafia de Antonio ora vem acompanhada de acento circunflexo, ora não. Optamos pelo segundo caso, dado que é assim que o nome aparece na assinatura das reportagens publicadas originalmente no jornal.
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Alguns trabalhos recentes procuraram analisar as reportagens de Callado considerando-as como textos engajados e destinados a estimular determinadas transformações na sociedade brasileira. A despeito de tal avanço, tais reflexões interpretam o autor como simplesmente fazendo parte da “esquerda” ou como “socialista”. Assim, com essas nomenclaturas, homogeneízam toda a trajetória dele, e não enfatizam os projetos específicos por ele defendidos em momentos distintos de sua vida. Cf. Martinelli (2006, p. 20)MARTINELLI, Marcos. Antonio Callado , um sermonário à brasileira. São Paulo: Annablume, 2006.; Martins (2018, p. 19)MARTINS, Lilian Juliana. Antonio Callado jornalista: a narrativa da grande reportagem e o ideal do Brasil possível. Tese de doutorado em Comunicação, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Unesp, Bauru, 2018..
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O Correio da Manhã foi um jornal carioca diário e matutino fundado em 1901 por Edmundo Bittencourt. Um dos mais importantes órgãos da imprensa brasileira até seu fechamento, em 1974, era considerado um “jornal de opinião” e de tradições liberais (LEAL, 2001LEAL, Carlos Eduardo. Correio da Manhã. In: ABREU, Alzira Alves de et al. Dicionário histórico-biográfico Brasileiro. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora FGV , 2001, p. 1625-1632., p. 1625-1629).
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Callado já havia publicado o livro-reportagem Esqueleto na lagoa verde (1953), obra referente à investigação do desaparecimento de um explorador inglês no interior do Brasil. Àquela altura, era também autor de romances como Assunção de Salviano (1954) e A Madona de Cedro (1957) e de peças de teatro como O Fígado de Prometeu (1951), A Cidade Assassinada (1954), Frankel (1955), Pedro Mico (1957), O Colar de Coral (1957), além da biografia Retrato de Portinari (1956).
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O selo editorial da Civilização Brasileira era empregado pela Editora Nacional para divulgar parte de suas edições não didáticas e de ficção. Sob a administração de Ênio Silveira, ligado a posições de esquerda, o primeiro tornou-se, no final da década de 1950, uma das principais editoras do Brasil. Ênio empenhava-se em estimular autores nacionais. Desse modo, a Civilização Brasileira, na década de 1960, transformou-se no canal mais importante para a literatura brasileira. Em seu catálogo, constava extensa gama de autores com perfis políticos diferenciados: Adonias Filho, Carlos Heitor Cony, Hemílio Borba Filho, Antonio Callado, Geir Campos, José Condé, Autran Dourado, Eneida, Millôr Fernandes, Guilherme Figueiredo, Dias Gomes, Ferreira Gullar, Álvaro Lins, Moacir C. Lopes, Raimundo Magalhães Júnior, Esdras do Nascimento, Flávio Rangel e Dalton Trevisan. Cf. Hallewell (2012, p. 587-590)HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. 3ª edição. São Paulo: Edusp , 2012..
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Neste mesmo livro, a autora chama a atenção para a criação do personagem Januário, em Quarup (1967), como uma referência a Francisco Julião, liderança das Ligas Camponesas entrevistada por Callado ao longo das reportagens em questão (LEITE, 1982, p. 102). A peça Forró no Engenho Cananeia, publicada por ele em 1964, remete ao mesmo substrato factual ou histórico.
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Segundo depoimento do jornalista Luís Alberto Bahia, sucessor de Callado como redator-chefe, esse cargo era equiparável ao de ministro, ou até mais importante. Essa assertiva, por mais que seja difícil aferi-la com exatidão, não exagera ao destacar o grande peso político daquela ocupação (ANDRADE, 1991ANDRADE, Jeferson de. Um jornal assassinado: a última batalha do Correio da Manhã. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991., p. 103).
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Numa de suas matérias, Callado questiona o leitor sobre o que fazer para resolver o drama da luta pela terra no Engenho Galileia em Pernambuco, de modo a evitar que “se encene mais uma vez, neste Brasil que não se emenda, a Paixão de Canudos”. Em resposta, aponta a existência de um projeto de lei na Assembleia Legislativa pernambucana prevendo a desapropriação daquelas terras. Cf. Callado (1960, p. 132-133)CALLADO, Antonio. Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960.. Neste mesmo livro, o autor divulgou comentário do jornalista Osório Borba, publicado no jornal Diário de Notícias, que remete à narrativa sobre o conflito de Canudos. Ao louvar o primeiro por trocar o cargo de redator-chefe pelo de repórter, Borba considera que a cobertura em questão “lembra o caso de Euclides da Cunha e da epopeia-libelo de Os Sertões”. Cf. Callado (1960, p. 153)CALLADO, Antonio. Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960..
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Segundo Aspásia de Alcântara Camargo, o Correio de Manhã, em edições de 1956 e 1957, declarou-se favorável a uma reforma agrária que estimulasse o aumento da produtividade, o alargamento do mercado interno e a melhoria de vida das populações rurais, por meio da criação e da proteção da pequena propriedade no campo. Cf. Camargo (1996, p. 151)CAMARGO, Aspásia de Alcântara. A questão agrária: crise de poder e reformas de base (1930-1964). In: FAUSTO, Boris (org.). História geral da civilização brasileira: tomo III: O Brasil republicano: volume 10: sociedade e política (1930-1964). 6ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996..
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Segundo Callado, Julião intencionava levar “a fama e a forma das Ligas Camponesas” do Nordeste para o estado do Paraná. Cf. Callado (1960, p. 49)CALLADO, Antonio. Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960..
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Em análise sofisticada para o final da década de 1970, mas hoje datada, Aspásia de Alcântara Camargo, por exemplo, concebe que as populações rurais, entre 1930 e 1964, não haviam se afirmado como “classe”, isto é, “como campesinato autônomo e estável, tendo sido, pelo contrário, drasticamente alheadas do poder” (CAMARGO, 1996CAMARGO, Aspásia de Alcântara. A questão agrária: crise de poder e reformas de base (1930-1964). In: FAUSTO, Boris (org.). História geral da civilização brasileira: tomo III: O Brasil republicano: volume 10: sociedade e política (1930-1964). 6ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996., p. 123, grifo da autora).
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Criadas pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e atuantes entre 1945 e 1947, as Ligas Comunistas foram idealizadas com o intuito de ampliar as bases políticas do partido e de selar uma aliança operário-camponesa para combater o latifúndio e o imperialismo. Cf. Mota e Esteves (2009, p. 245)MOTA, Márcia & ESTEVES, Leandro da Silva. Ligas Camponesas: história de uma luta (des)conhecida. In: MOTA, Márcia & ZARTH, Paulo (org.). Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflito ao longo da história: vol. II: concepções de justiça e resistência nas repúblicas do passado (1930-1960). São Paulo: Editora Unesp; Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Agrário; Nead, 2009, p. 243-257..
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As reportagens foram reunidas em livro pelo autor sem a indicação das datas de sua publicação no jornal. Porém, conseguimos localizá-las através de consultas ao acervo do Correio da Manhã, disponível no site da Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
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A questão da relação entre pressões vindas de baixo e a proliferação de projetos de reforma agrária no país foi bem levantada por Caio Prado Júnior em 1960, em artigo em que critica proposta de redistribuição de terras do então governador de São Paulo Carvalho Pinto, por considerá-la conservadora: “Refletindo essa radicalização do homem do campo que se mostra cada vez mais decidido a lutar por melhores condições de vida, as esferas sociais se mobilizam. Flagrante sintoma disso são os inúmeros projetos de lei e representações de órgãos administrativos (como, em particular, da Comissão Nacional de Política Agrária) que atulham as comissões, e infelizmente também os arquivos do Congresso Nacional.” Cf. Prado Júnior (1979, p. 128)PRADO JÚNIOR, Caio. A questão agrária no Brasil. 2ª edição. São Paulo: Brasiliense , 1979..
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Em editorial publicado alguns meses depois, o periódico saudava a criação da Sudene e postulava, com argumentos similares aos de Callado, que o objetivo daquela instituição não era a reforma agrária. Em sua opinião, o regime de terras só seria alterado “onde os dinheiros públicos (…) tornarem a terra valorizada a ponto de ser crime permitir, lotericamente, que meia dúzia de felizardos enriqueçam com dinheiro do povo” (SUPERINTENDÊNCIA…, 1960SUPERINTENDÊNCIA do Nordeste. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 09/01/1960, p. 6., p. 6).
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Em 1960, uma série de reportagens do New York Times chamou a atenção do governo norte-americano para a emergência de uma situação revolucionária no nordeste brasileiro. O segundo assumia que erros e negligência de sua parte haviam contribuído para a eclosão da revolução cubana, e que o Nordeste seria o próximo foco insurrecional, capaz de se alastrar para o restante do Brasil e por toda a América do Sul. Cf. Page (1989, p. 28-29)PAGE, Joseph A. A revolução que nunca houve: o Nordeste do Brasil (1955-1964). Rio de Janeiro: Record, 1989..
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A única reportagem não publicada no livro relata com mais detalhes as relações de compadrio na política do interior da Paraíba. Como seu conteúdo é muito semelhante ao da matéria da semana anterior, é possível que Callado não a tenha incluído no livro para evitar repetir informações (CALLADO, 1959eCALLADO, Antonio. Um país de ruínas novas. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 15/ 09/1959e, p. 14, 18., p. 14, 18)..
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J. G. A. Pocock bem cogita que o historiador da linguagem política pode “ver-se lidando (…) com uma rede ou comunidade de homens de letras, profissionais ou diletantes, já estabelecidos ou arrivistes, que empregam as linguagens de grupos profissionais, sem necessariamente pertencer a elas, e são capazes, primeiro, de adaptar esses idiomas ou retóricas aos objetivos de seu próprio discurso, e segundo, de gerar e desenvolver idiomas e retóricas próprias, no curso desse processo.” Cf. POCOCK (2003, p. 69, grifo do autor)POCOCK, John G. A. O conceito de linguagem e o métier d’historien. In: MICELI, Sergio (org). Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp , 2003, p. 63-82..
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Posições românticas podem ser identificadas em Callado pelo menos desde a publicação de seu livro-reportagem Esqueleto na lagoa verde. Logo na primeira página do relato, por exemplo, ele saúda os indígenas com os quais se encontrara no Xingu, em 1952, pela “inocência deles, da candura e falta de malícia deles”, como se fossem arquétipos do selvagem rousseauniano. Cf. Callado (2010, p. 13)CALLADO, Antonio. Esqueleto na lagoa verde: ensaio sobre a vida e o sumiço do coronel Fawcett. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. A perspectiva romântica do escritor-jornalista, porém, não resulta em nenhuma forma de projeto anticapitalista passadista ou reacionário, nem em orientação anticapitalista socialista ou revolucionária. De maneira distinta, sua nostalgia romântica abre caminho para uma modernização capitalista de relações tradicionais. Tal postura certamente facilitou sua apropriação de aspectos do ideário romântico-revolucionário presente nas esquerdas, com o qual não se alinhava inteiramente naquele momento.
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Fernando Antônio Azevedo, ao se referir ao campo à época, lembra que: “as relações de trabalho não eram regulamentadas pelo Estado, nem amparadas por nenhum tipo de legislação, estando tanto o trabalhador rural quanto o campesinato à margem dos direitos sindicais ou de associação e sem acesso aos benefícios da previdência social. Assim, os contratos de trabalho, bem como de arrendamento ou parceria, eram negociados diretamente com o grande proprietário da terra e rompidos arbitrariamente, quando este último assim o quisesse. A lei do salário mínimo, férias ou 13º salário também não vigoravam no campo, bem como a aposentadoria e outras prerrogativas e direitos sociais já conquistados pelo assalariado urbano” (AZEVEDO, 1982AZEVEDO, Fernando Antônio. As ligas camponesas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982., p. 38-39). É improvável que os grandes proprietários pudessem definir as relações de trabalho e seu rompimento de maneira completamente arbitrária, sem negociar em alguma medida com os trabalhadores rurais; mas é certo que teciam relações extremamente desiguais e desequilibradas com os últimos.
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Essa maior autonomia nas relações de trabalho ocorria no interior de práticas paternalistas, as quais se desfaziam de maneira crescente. Cf. Montenegro (2008, p. 246)MONTENEGRO, Antônio Torres. Ligas Camponesas e sindicatos rurais em tempo de revolução. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O tempo da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2008, p. 243-271..
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Jul 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
01 Fev 2019 -
Aceito
19 Jun 2019