ENSAIOS SOBRE EDUCAÇÃO
Produção de conhecimento, ensino/aprendizagem e educação* * Trabalho apresentado na seção de Painéis no XI Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, maio de 1998.
The production of knowledge, teaching/learning and education
Antonio Joaquim Severino
Professor de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e assessor científico junto ao Programa de Mestrado em Psicologia, Universidade São Marcos, São Paulo. E-mail: severino@uol.com.br
RESUMO
Este trabalho pretende debater, de uma perspectiva filosófica, as relações entre o processo epistemológico específico da produção do conhecimento, o processo propriamente pedagógico ocorrente na situação de ensino/aprendizagem e o processo antropológico de formação do sujeito educando. Lida com a hipótese de que a educação não se efetiva como construção do desenvolvimento humano do educando apenas com base nos processos epistêmico-psíquico-pedagógicos tais como vêm sendo apresentados por vertentes contemporâneas do construtivismo. Defende então a idéia de que os processos de construtividade presentes nas situações de produção do conhecimento e de realização do ensino/aprendizagem só se legitimam como mediadores da educação quando marcados também pela historicidade típica da prática real que constitui a substância do próprio existir concreto dos homens. De modo especial, a presente reflexão busca destacar as possíveis contribuições do pensamento de Vygotsky ao esclarecimento do sentido da educação em seu vínculo com processos sócio-culturais envolventes.
Palavras-chave: conhecimento, ensino, aprendizagem, educação.
ABSTRACT
This paper intends to discuss , from a philosophical point of view, the relation between the epistemological process specific to the production of knowledge, the pedagogical process itself that occurs within a situation of teaching/learning , and the anthropological process of bringing up the learner. It deals with the hypotheses that education does not become an effective tool for the construction of the human development of the learner merely on the basis of epistemic, psychological and pedagogical processes, as has been presented by contemporary schools of constructivism. It then proceeds to defend the idea that the processes of constructivity present in situations of production of knowledge and of effecting teaching/learning only become true mediators of education when they are also branded by the historicity typical of actual practice, which constitutes the substance of concrete human existence itself. In a special way, the current reflection seeks to highlight the potential contributions of Vygotsky's thoughts toward enlightening the meaning of education relative to its link with involving social and cultural processes.
Key words: knowledge, teaching, learning, education
A abordagem das relações entre o conhecimento e a educação pressupõe a discussão preliminar sobre o lugar do conhecimento no todo da existência humana. Nesse âmbito, a função substantiva do conhecimento é intencionalizar a prática mediadora dessa existência. Na verdade, o conhecimento é a única ferramenta de que a espécie dispõe para essa intencionalização, ou seja, para dar um sentido orientador para sua existência histórica real. Vistas as coisas à luz da perspectiva da investigação histórico-antropológica, não há como buscar fundamentos transcendentais para a gênese do conhecimento, no âmbito da espécie humana. O conhecimento surgiu como estratégia de ação dos indivíduos humanos, que viviam e agiam coletivamente, ao longo de sua temporalidade histórica.
Sem dúvida, a substância do existir é a prática. Não é a expressão teórica, em si mesma, que efetiva nossa existência real. Só se é algo mediante um contínuo processo de agir, só se é algo mediante a ação. É o que testemunham todos os entes que se revelam à experiência humana. É na e pela prática que as coisas humanas efetivamente acontecem, que a história se faz e que o próprio homem vai se fazendo humano.
Nesse sentido, a consciência, o pensamento enquanto equipamento da subjetividade humana, nasceu embutido na própria prática do homem, originariamente na sua prática produtiva, pela qual garantia sua existência material, mantendo-a inserida num processo permanente de trocas com a natureza. Por isso, a esfera básica da existência humana é aquela do trabalho propriamente dito, ou seja, prática que alicerça e conserva a existência material dos homens, já que a vida depende radicalmente dessa troca entre o organismo e a natureza física. Esta esfera da prática produtiva constitui o universo do fazer.
Mas a prática produtiva dos homens não se dá plenamente só como trabalho individual: ela é, antropologicamente falando, expressão necessária de um sujeito coletivo, ou seja, a espécie humana só é humana na medida em que se efetiva em sociedade. Não se é propriamente humano fora de um tecido social, que constitui o solo de todas as relações sociais, não apenas como referência circunstancial, mas como matriz, placenta que nutre toda e qualquer atividade posta pelos sujeitos individuais. Os homens, para que sejam especificamente humanos, têm de habitar uma 'societas', precisam ser efetivamente socícolas! Mas é preciso observar que essa trama de relações sociais que tece a existência real dos homens não se caracteriza apenas como coletividade gregária dos indivíduos, como ocorre nas "sociedades" animais: um elemento específico interfere aqui, mais uma vez marcando uma peculiaridade humana: a sociedade humana é atravessada e impregnada por um coeficiente de poder, ou seja, os sujeitos individuais não se justapõem, uns ao lado dos outros, em condições de simétrica igualdade, mas se colocam hierarquicamente, uns sobre os outros, uns dominando os outros. Torna-se, assim, uma sociedade política, uma cidade. Este coeficiente que marca as nossas relações sociais como relações políticas e que caracteriza nossa prática social, envolve os indivíduos na esfera do poder.
Mas se a prática é prioritária e fundamental na configuração do modo de existir humano, impõe se considerar que a prática humana tem suas especificidades, não se reduzindo nem ao determinismo onto-essencialista da metafísica, nem ao mecanicismo naturalista da ciência, nem ao seu decorrente pragmatismo funcionalista. A prática tipicamente humana, que delineia seu modo de ser, não é a prática mecânica, transitiva; ao contrário, é uma prática intencionalizada, marcada desde suas origens, pela simbolização. Vai ocorrer, então, que tanto a prática produtiva quanto a prática política só se tornam práticas humanas porque são atravessadas por uma terceira dimensão específica do agir humano: trata-se da simbolização, da prática simbolizadora.
Pode-se sintetizar essa tomada dos homens sobre o mundo como uma constituição do sentido, a própria base de sua capacidade simbolizadora. Mas essa função simbolizadora não se faz nem pela explicitação de uma intuição imediata de uma essência, nem pela mera transposição da percepção empírica e transitiva dos órgãos dos sentidos, nem pela elaboração de um constructo puramente lógico-formal. O que se tem, de fato, é uma construção histórica e coletiva do objeto pelos sujeitos.
Mas é preciso ter ainda presente que o sentido do existir humano também não se dá apenas como decorrente da experiência estetizante dos sujeitos. No clima de crítica ao racionalismo e às suas manifestações iluministas, tem sido comum confundir-se conhecimento e racionalidade. Sem dúvida, quando se trata das opções valorativas necessárias para a significação de nosso agir, base de orientação da própria existência, a sensibilidade afetiva, a emotividade, a subjetividade desejante, são fatores dinâmicos indiscutíveis. Mas o que é preciso ter bem presente é que essa potência desejante, se não impregnada pela intencionalização da subjetividade epistêmica, perde toda sua especificidade humana. O território da subjetividade envolvida na atividade de conhecimento não se confunde com nem se restringe ao território da racionalidade lógica. Toda expressão emocional da subjetividade humana é igualmente atravessada pela dimensão epistêmica do saber! Por isso, o sabor, presente na vivência afetiva, emocional, só se vivencia como sabor na exata medida em que é atravessado pela vivência do saber; ou dito de outra forma, o desejo só se sabe (só se saboreia como) sabor, na medida em que se sabe (se vivencia, se apreende) como saber.
Mas, na verdade, o conhecimento individual se dá sobre um fundo de uma experiência radicalmente histórica e coletiva que lhe é anterior e que lhe serve de matriz placentária. Esse contexto, como que um tecido que vai se complexificando pela contínua articulação de novas experiências, já tornadas possíveis pelas experiências passadas e acumuladas, é a cultura, uma das mediações concretas da existência dos homens. E a cultura é o universo do saber. Isto é válido tanto no plano da experiência epistêmica do indivíduo - trata-se sempre de uma experiência que se vai construindo, acumulando, sintetizando, reorganizando, sistematizando dados - quanto no plano da própria humanidade; tanto na perspectiva ontogenética como na perspectiva filogenética.
Podemos então equacionar a existência humana como se dando mediada pelo tríplice universo do trabalho, da sociedade e da cultura. Como os três ângulos de um triângulo, esses três universos se complementam e se implicam mutuamente, um dependendo do outro, a partir de sua própria especificidade.
E é nesse contexto que podemos entender as relações do conhecimento com o universo social. Com efeito, o conhecimento pressupõe um solo de relações sociais, não apenas como referência circunstancial, mas como matriz, como placenta que nutre todo seu processamento. Mas essa trama de relações sociais em que se tece a existência real dos homens, como já adiantamos, não se caracteriza apenas pelas relações de gregaridade dos indivíduos, como ocorre nas "sociedades" animais, mas, sobretudo, por relações de hierarquização, envolvendo, pois, o elemento específico a interferir no social humano, o poder, que torna política a sociedade.
O saber aparece, portanto, como instrumento para o fazer técnico-produtivo, como mediação do poder e como ferramenta da própria criação dos símbolos, voltando-se sobre si mesmo, ou seja, é sempre um processo de intencionalização. Assim, é graças a essa intencionalização que nossa atividade técnica deixa de ser mecânica e passa a se dar em função de uma projetividade, o trabalho ganhando um sentido. Do mesmo modo, a atividade propriamente política se ideologiza e a atividade cultural transfigura a utilidade pragmática imediata de todas as coisas.
Como entender, então, a educação nesse contexto das mediações histórico-sociais que, efetivamente, manifestam e concretizam a existência humana na realidade?
Ela deve ser entendida como prática simultaneamente técnica e política, atravessada por uma intencionalidade teórica, fecundada pela significação simbólica, mediando a integração dos sujeitos educandos nesse tríplice universo das mediações existenciais: no universo do trabalho, da produção material, das relações econômicas; no universo das mediações institucionais da vida social, lugar das relações políticas, esfera do poder; no universo da cultura simbólica, lugar da experiência da identidade subjetiva, esfera das relações intencionais.
Com efeito, se se espera, acertadamente, que a educação seja de fato um processo de humanização, é preciso que ela se torne mediação que viabilize, que invista na construção dessas mediações mais básicas, contribuindo para que elas se efetivem em suas condições objetivas reais.
A problemática das relações entre epistemologia, psicologia e educação ocupa um lugar de destaque no debate filosófico relacionado com o construtivismo. Por sua própria configuração categorial e por seus objetivos intrínsecos, o construtivismo compreende uma proposta de articulação entre uma concepção do sujeito epistêmico com a atividade de um sujeito-educando, mediados por um sujeito psíquico.
As preocupações epistemológicas centrais do construtivismo integram o mesmo universo temático de um movimento filosófico atual bastante significativo, movimento que venho designando como transpositivismo. Em grandes linhas, esse movimento se caracteriza por uma postura mais lúcida e esclarecida frente ao conhecimento científico. Com efeito, reconhece e reafirma a autonomia e a relevância da ciência mas, ao mesmo tempo, entende necessário superar aquela postura de puro deslumbramento frente a ela, típica do positivismo ortodoxo. Por isso mesmo, o transpositivismo se dá fundamentalmente como epistemologia que, aliás, é entendida como reflexão voltada especificamente para o discurso científico. E nessa análise crítica sobre a atividade científica, a ciência não é mais considerada como se fosse uma atividade puramente lógica, que nada tivesse a ver com outras dimensões do conhecimento, da cultura e da própria existência humana em geral.
Desenvolvido por pensadores familiarizados com a prática científica - físicos, biólogos, matemáticos - o transpositivismo quer livrar a ciência de alguns resíduos metafísicos e de outros tantos viéses dogmáticos que lhe deixou ainda o positivismo comteano, ao mesmo tempo que quer "enriquecer" o conhecimento científico enquanto processo epistêmico, mostrando que ele não é apenas de textura lógico-formal.
Destacam-se, nesse amplo movimento, dentre outros, pensadores tais como Poincaré, Canguilhem, Meyerson, Koyré, Brusnchvig, Bachelard, Kuhn e Feyerabend, aos quais se pode acrescentar autores mais recentes do campo da educação, como Piaget e Vygotsky. Estes pensadores, conhecendo a fundo a ciência e ciosos de sua validade e relevância, sentiram a necessidade de fundamentá-la cada vez mais com rigor e lucidez, tentando modernizar essa fundamentação. Nesse sentido, compartilham das preocupações epistemológicas relacionadas às condições de possibilidade do conhecimento científico, mas julgam que a epistemologia não pode se reduzir a uma pura lógica formal, ela envolve necessariamente considerações de ordem axiológica, ou seja, ela não se desvincula de uma filosofia da ciência. Trata-se, pois, de uma reflexão que incide sobre a significação da ciência, enquanto processo e produto da atividade humana, avaliando seus resultados e desenvolvendo uma discussão sobre o sujeito construtor do saber científico. Nesse sentido, o transpositivismo contrapõe-se ao outro também significativo movimento filosófico contemporâneo que é o neopositivismo, tendência esta que reduz a epistemologia a uma análise meramente formal da configuração lógico-lingüística do discurso científico.
Como todas as tendências filosóficas preocupadas em desenvolver uma reflexão sobre a ciência, também o transpositivismo é herdeiro mediato da tradição iluminista da filosofia da modernidade, retomando e valorizando suas perspectivas subjetivistas. Em que pesem as diferenças e especificidades também marcantes, presentes no interior desse movimento, algumas preocupações comuns entre todos os pensadores que o integram, o caracterizam, dando-lhes um ar de família. Assim, a idéia de ciência, forma indiscutivelmente válida de conhecimento, não se exaure nem nos processos experimentais de apreensão de seus objetos nem nos esquemas formais de sua expressão lógico-matemática. Também a idéia que muitos outros fatores intervêm nesse processo, marcando profundamente o conhecimento científico e fazendo dele uma atividade intrinsecamente histórica, não se tratando de pura reconstrução racional, independente do processo de descoberta e de invenção criativa. Descoberta e justificativa se mesclam nos contextos fisiológico, psíquico, social, cultural, político e ideológico.
Sem dúvida, esta inflexão da tradição positivista, que leva à constituição de uma epistemologia crítica, representa uma retomada atualizadora de alguns aspectos fundamentais da epistemologia kantiana, quais sejam, aqueles relacionados com a ativa participação do sujeito na construção do objeto. É bem verdade que se trata de um kantismo sem Kant, já que não está em pauta a assunção de todo o complexo sistema kantiano, mas apenas o reconhecimento da atividade do sujeito, da afirmação da relevância da razão na construção do objeto, sem que isso implique qualquer compromisso com o idealismo apriorista e transcendental de Kant. Reconhecida assim a importância da participação da subjetividade, reconhece-se, por decorrência, o caráter do objeto enquanto configuração, enquanto constructo, o que compromete a identificação do objeto como mero fenômeno natural, como mera coisa, e a passividade do sujeito frente às impressões sensíveis. É forçoso reconhecer também o caráter formalístico e axiomático dos sistemas científicos e sua necessária pluralidade. Enquanto esse formalismo e axiomatismo levam uma significativa corrente de pensadores a uma postura puramente lógico-formalista, presente tanto no neopositivismo como no estruturalismo, outra corrente é levada a repensar o procedimento científico enquanto vinculado a uma subjetividade humana, só que totalmente desligada de qualquer perspectiva de transcendentalidade formal. Ao contrário, no plano epistemológico, o processo do conhecimento é um processo radicalmente imanente às condições concretas do existir natural do homem.
Assim, é preciso reinserir o conhecimento no fluxo bio-fisio-psíquico. Se é verdade que o conhecimento amadurecido se configura enquanto estruturação lógico-formal, ele se faz num contínuo processo, numa constante passagem de estágios de conhecimento menor a estágios de conhecimento maior. A ciência tem uma gênese, a estruturação final do conhecimento é sempre progressiva. Por isso, impõe-se levar em consideração a dimensão psicogenética do conhecimento científico; a análise lógica do conhecimento não podendo se separar de uma análise psicológica.
Nesta linha, ressaltam-se a grande contribuição das abordagens construtivistas na elaboração da teoria do conhecimento e da teoria da aprendizagem. O conhecimento se dá sempre como uma assimilação ativa do sujeito que vai incorporando o objeto nos seus esquemas sensório-motores, isto é, àquelas de suas ações capazes de se reproduzirem e de se combinarem entre si. Trata-se então de uma epistemologia que tenta superar tanto o idealismo quanto o empirismo. No caso de Piaget, temos um construtivismo interacionista que, enquanto estruturalismo genético, busca resolver a problemática do conhecimento e da aprendizagem, salvaguardando as contribuições tanto subjetivas quanto objetivas na constituição desses processos.
Piaget não escapa, no entanto, de certa dependência em relação ao esquematismo a priori da inteligência, só que não admite este a priori como inato, pronto e acabado no sujeito: ele vai se formando no decorrer do próprio processo. Só que isso gera uma espécie de círculo vicioso: o mero processo de desenvolvimento da consciência em sua relação com o mundo pressupõe uma estruturação lógica a priori por parte do sujeito, mas o esquema responsável por essa estruturação se forma também no próprio processo de desenvolvimento...
Sem dúvida, Piaget pretende avançar em relação a Kant. Primeiro, ao enfatizar que os esquemas formais do sujeito epistêmico são realmente presentes e ativos, são condições sine qua non do conhecimento, só que não são a priori no sentido absoluto, ou seja, eles também vão se construindo num processo genético. Portanto, vistos deste ângulo, são também a posteriori. Além disso, não se trata mais de priorizar a sensação, mas a ação.
Apoiado nessa epistemologia construtivista, Piaget vai fundo na explicação do processo da aprendizagem. Com efeito, o processo de aprendizagem está intimamente vinculado ao processo de desenvolvimento do psiquismo humano. É, aliás, pelo estudo do processo de desenvolvimento do pensamento que Piaget se propõe prioritariamente a estudar a aprendizagem. Ela é fundamentalmente um processo de conhecimento que, por sua vez, se dá como um processo de desenvolvimento psíquico, embora ancorado em condições estruturantes da subjetividade lógica.
O processo de aprendizagem se alicerça nas condições postas pelo próprio desenvolvimento psíquico. É verdade que esse processo está ligado ao fluxo da embriogênese, sendo, portanto, conduzido e regulado, em última instância, pelas forças articulatórias da totalidade estrutural do conhecimento. A aprendizagem, no entanto, é provocada por situações externas. Mas isto não muda a substância do processo, pois de nada adiantariam esses estímulos exógenos se eles não encontrassem os esquemas endógenos aptos a lhes dar articulação.
Aprender, desde a mais tenra idade, é "conhecer", ou seja, assimilar os objetos em vista de uma acomodação para a equilibração adaptativa, sempre em compatibilidade com as estruturas disponíveis no estágio de maturação psíquica em que se encontra o sujeito epistêmico. Mas este processo de conhecer não é mera percepção e representação, é ação, operação, é atuação prática, pragmática. Desde os primeiros agenciamentos práticos e perceptivos, a criança está 'trabalhando' sobre um objeto e, até mesmo, construindo esse objeto.
No entanto, por mais lúcido e crítico que seja esse psicologismo, ele não dá conta da significação do processo educacional no seu todo. A educação, enquanto prática social, não se limita aos processos de aprendizagem. Ela envolve relações entre os homens que são atravessadas por vetores especificamente políticos, no seu sentido profundo, portadores de um coeficiente de relações de poder. Esse psicologismo acaba por ignorar a dimensão sócio-histórica e política da própria ciência ou então a encará-la sob um viés ideologizado. Não basta referir-se, quando se trata de explicitar as condições de possibilidade da própria psicogênese, ao lado dos fatores biológicos (hereditariedade e maturação do sistema nervoso) e cibernéticos (equilibração e auto-regulação interna), aos fatores sócio-culturais (socialização familiar e transmissão educativa). Além deste último conjunto de fatores ser o menos abordado por Piaget, quando ele é explicitado, não vai além de uma abordagem positivista e funcionalista. Aliás, não basta reconhecer os condicionamentos sociais do conhecimento para se dar conta de seu caráter político. É preciso explicitar as relações de dominação, de exercício do poder e da prática real de opressão. Com relação a isso, as ciências podem até expressar os mecanismos físicos e operacionais que tornam visíveis os processos de dominação política, mas não elucidam a questão fundamental do poder.
Algumas rápidas referências ao pensamento de Vygotsky ajudam a se compreender melhor as relações entre os processos psicológicos e epistemológicos postos em ação na atividade do conhecimento. A teoria do psicólogo russo avança em relação ao construtivismo piagetiano, exatamente por inserir melhor o dimensionamento lógico-formal do conhecimento no processo histórico-social em que ele se dá. Isso se explicita melhor nas discussões que Vygostsky desenvolve com relação à emergência e constituição da subjetividade, para ele necessariamente ligada à intersubjetividade.
Ao falar do conceito de consciência, Vygotsky o associa à sua tentativa de construção de uma 'nova psicologia', para superar a chamada crise da psicologia do início do século. O reducionismo comportamentalista, por um lado, procurava explicar processos elementares sensoriais e reflexos, propondo a eliminação do constructo consciência da psicologia científica. A psicologia idealista, por outro lado, tomava a consciência como substância, como 'um estado interior' preexistente, uma realidade subjetiva primária, de cunho metafísico.
Contra estas duas abordagens, "Vygotsky argumentava que era possível evitar esse dilema concebendo a consciência como organização objetivamente observável do comportamento, que é imposta aos seres humanos através da participação em práticas sócio-culturais." (p. 78, citação extraída de Wertsch, 1988, p. 195-6) O conceito de consciência em Vygotsky, embora derivado do marxismo, não se vinculava a temas tradicionais do marxismo como consciência de classe ou falsa consciência.
Sua fundamentação nos postulados marxistas é evidente: toma a dimensão social da consciência como essencial, sendo a dimensão individual derivada e secundária. O processo de internalização, isto é, de construção de um plano intrapsicológico a partir de material interpsicológico, de relações sociais, é o processo mesmo de formação da consciência (Wertsch, p.78).
Para Vygotsky, "a internalização não é um processo de cópia da realidade externa num plano interior já existente; é, mais do que isso, um processo em cujo seio se desenvolve um plano interior da consciência" (p.78, citação de Wertsch, 1988, p. 83).
A consciência representaria, assim, um salto qualitativo na filogênese, sendo o componente mais elevado na hierarquia das funções psicológicas humanas. Seria a própria essência da psique humana, constituída por uma inter-relação dinâmica, e em transformação ao longo do desenvolvimento, entre intelecto e afeto, atividade do mundo e representação simbólica, controle dos próprios processos psicológicos, subjetividade e interação social
(Wertsch, p. 79).
O processo de internalização que corresponde à própria formação da consciência é também um processo de constituição da subjetividade a partir de situações de intersubjetividade. A passagem do nível interpsicológico para o nível intrapsicológico envolve, assim, relações interpessoais densas, mediadas simbolicamente, e não trocas mecânicas limitadas a um patamar meramente intelectual. Envolve também a construção de sujeitos absolutamente únicos, com trajetórias pessoais singulares e experiências particulares em sua relação com o mundo e, fundamentalmente, com as outras pessoas.
A questão da formação da consciência e a questão da constituição da subjetividade a partir de situações de intersubjetividade nos remetem à questão da mediação simbólica e, conseqüentemente, à importância da linguagem no desenvolvimento psicológico do homem. Uma das idéias centrais, e mais difundidas, de Vygotsky, é a idéia de que os processos mentais superiores são processos mediados por sistemas simbólicos, sendo a linguagem o sistema simbólico básico de todos os grupos humanos. A linguagem fornece os conceitos e as formas de organização do real que constituem a mediação entre o sujeito e o objeto de conhecimento
(Wertsch, p. 80).
A concepção de Vygotsky sobre o significado das palavras deixa evidente a conexão entre os aspectos cognitivos e afetivos do funcionamento psicológico. Ele distingue dois componentes do significado da palavra: o significado propriamente dito e o "sentido". O significado propriamente dito se refere ao sistema de relações objetivas que se formou no processo de desenvolvimento da palavra, consistindo num núcleo relativamente estável de compreensão da palavra, compartilhado por todas as pessoas que a utilizam. O sentido, por sua vez, refere-se ao significado da palavra para cada indivíduo, composto por relações que dizem respeito ao contexto de uso da palavra e às vivências afetivas do indivíduo. Assim, a linguagem sempre requer interpretação com base em fatores lingüísticos e extralingüísticos, já que compreender a fala de alguém significa compreender seu pensamento, e não suas palavras. Além disso, nenhuma análise psicológica de um enunciado estará completa sem levarmos em conta suas motivações.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Jul 2009 -
Data do Fascículo
Ago 1998